Jornalismo transmídia no dossiê Tudo Sobre Belo...

15
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 1 Jornalismo transmídia no dossiê Tudo Sobre Belo Monte 1 Marcos Carvalho MACEDO 2 Yvana FECHINE 3 Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE Resumo Articular conteúdos diversos, complementares e autônomos, distribuídos em diferentes mídias ou plataformas explorando as potencialidades da convergência midiática e da cultura participativa constitui a especificidade do modelo transmídia, desenvolvido na indústria do entretenimento, e ensaiado também no jornalismo. O objetivo deste trabalho é investigar como o modelo transmídia, especialmente as narrativas transmídias (Jenkins, 2009a), foi implementado no dossiê Tudo Sobre Belo Monte, publicado pelo Grupo Folha. A partir da sistematização de conceitos como transmidiação e conteúdos transmídias (Fechine et al, 2013), procuramos identificar as estratégias utilizadas para propagação e expansão dos conteúdos jornalísticos através da análise dos desdobramentos temáticos dos conteúdos produzidos e distribuídos na internet, no jornal impresso, na televisão e em aplicativo do conglomerado. Palavras-chave: jornalismo; transmidiação; narrativas transmídias; convergência midiática. Introdução Com a crise dos modelos tradicionais de produção e distribuição de notícias, as empresas de jornalismo têm repensado suas rotinas e estimulado novas formas de engajamento de seu público. Os investimentos em produção de conteúdos multimídias que estabeleçam algum tipo de interação com os consumidores, hoje bem mais ativos do que há alguns anos, apesar de estar longe do ideal, já se constituem uma urgente e indiscutível necessidade. A cultura participativa, desencadeada pelas ferramentas que permitem aos consumidores também produzir e distribuir informação, não se restringiu ao ambiente da web. As mudanças são mais amplas e afetam o modo de consumir informação também em outras mídias. É neste contexto que as produções de narrativas transmídias encontram espaço. A possibilidade de utilizar diversas mídias para distribuição de conteúdos que se desdobram e mantém relação entre si pode ser vista como uma tentativa de alcançar consumidores cada vez mais segmentados, já que cada conteúdo se torna um ponto de entrada para todos os demais. No jornalismo, as narrativas transmídias tendem a se concretizar em grandes 1 Trabalho apresentado na Divisão Temática Jornalismo, da Intercom Júnior XII Jornada de Iniciação Científica em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação 2 Graduado em Jornalismo 2016.1 pelo DCOM-UFPE, email: [email protected] 3 Orientadora do trabalho. Professora do Curso de Jornalismo do DCOM-UFPE, email: [email protected]

Transcript of Jornalismo transmídia no dossiê Tudo Sobre Belo...

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

1

Jornalismo transmídia no dossiê Tudo Sobre Belo Monte1

Marcos Carvalho MACEDO2

Yvana FECHINE3

Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE

Resumo

Articular conteúdos diversos, complementares e autônomos, distribuídos em diferentes

mídias ou plataformas explorando as potencialidades da convergência midiática e da cultura

participativa constitui a especificidade do modelo transmídia, desenvolvido na indústria do

entretenimento, e ensaiado também no jornalismo. O objetivo deste trabalho é investigar

como o modelo transmídia, especialmente as narrativas transmídias (Jenkins, 2009a), foi

implementado no dossiê Tudo Sobre Belo Monte, publicado pelo Grupo Folha. A partir da

sistematização de conceitos como transmidiação e conteúdos transmídias (Fechine et al,

2013), procuramos identificar as estratégias utilizadas para propagação e expansão dos

conteúdos jornalísticos através da análise dos desdobramentos temáticos dos conteúdos

produzidos e distribuídos na internet, no jornal impresso, na televisão e em aplicativo do

conglomerado.

Palavras-chave: jornalismo; transmidiação; narrativas transmídias; convergência midiática.

Introdução

Com a crise dos modelos tradicionais de produção e distribuição de notícias, as

empresas de jornalismo têm repensado suas rotinas e estimulado novas formas de

engajamento de seu público. Os investimentos em produção de conteúdos multimídias que

estabeleçam algum tipo de interação com os consumidores, hoje bem mais ativos do que há

alguns anos, apesar de estar longe do ideal, já se constituem uma urgente e indiscutível

necessidade. A cultura participativa, desencadeada pelas ferramentas que permitem aos

consumidores também produzir e distribuir informação, não se restringiu ao ambiente da

web. As mudanças são mais amplas e afetam o modo de consumir informação também em

outras mídias.

É neste contexto que as produções de narrativas transmídias encontram espaço. A

possibilidade de utilizar diversas mídias para distribuição de conteúdos que se desdobram e

mantém relação entre si pode ser vista como uma tentativa de alcançar consumidores cada

vez mais segmentados, já que cada conteúdo se torna um ponto de entrada para todos os

demais. No jornalismo, as narrativas transmídias tendem a se concretizar em grandes

1 Trabalho apresentado na Divisão Temática Jornalismo, da Intercom Júnior – XII Jornada de Iniciação Científica em

Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação 2 Graduado em Jornalismo 2016.1 pelo DCOM-UFPE, email: [email protected] 3 Orientadora do trabalho. Professora do Curso de Jornalismo do DCOM-UFPE, email: [email protected]

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

2

reportagens que abordam temas complexos e polêmicos, e necessitam de maior

aprofundamento e contextualização.

O presente artigo investiga a produção de jornalismo transmídia. Pretendemos

averiguar como o modelo de produção e distribuição de conteúdos associados em diversas

mídias, até então praticado de forma mais recorrente pela indústria do entretenimento, vem

sendo explorado também no jornalismo. As narrativas transmídias, apontadas como a forma

mais rara e complexa de desenvolvimento desse modelo, serão o objeto da atenção

específica deste estudo. Nosso objetivo é caracterizar tais narrativas no jornalismo a partir

dos desdobramentos temáticos de conteúdos espalhados em diversas mídias do dossiê Tudo

Sobre Belo Monte, publicado pelo Grupo Folha.

Ainda que escassas, as produções transmídias têm chamado atenção pelas

possibilidades que oferecem ao jornalismo de reencontrar seu espaço no novo cenário de

convergência midiática. Os desafios são muitos, sobretudo porque se trata de um modelo

concebido para o entretenimento, mais especialmente do cinema e da televisão, embora os

estudiosos do tema não deixem de considerar sua aplicabilidade no jornalismo em geral.

Com a ampliação do acesso, a web tem se tornado um importante ponto de

referência no processo de convergência dos meios, visto agora de forma diferente daquele

até então anunciado, de cooptação dos antigos meios pelas tecnologias digitais. “Se o

paradigma da revolução digital presumia que as novas mídias substituiriam as antigas, o

emergente paradigma da convergência presume que novas e antigas mídias irão interagir de

forma cada vez mais complexas” (Jenkins, 2009a, p. 32).

Convergência não é um conceito novo, mas o significado que apresenta hoje difere

substancialmente daquele até então concebido. Inicialmente definiu-se convergência a partir

de elementos tecnológicos, depois dos meios e, por fim, dos conteúdos e da cultura. Apesar

deste histórico, coube a Jenkins (2009a), com a publicação de Cultura da Convergência, a

popularização desta ideia, evidenciada de forma mais ampla pelo autor na descrição das

produções e práticas do mundo do entretenimento.

Por convergência, refiro-me ao fluxo de conteúdos através de múltiplas

plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao

comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a

quase qualquer parte em busca de experiências de entretenimento que desejam.

Convergência é uma palavra que consegue definir transformações tecnológicas,

mercadológicas, culturais e sociais, dependendo de quem está falando e do que

imaginam estar falando. (Jenkins, 2009a, p. 29).

Na visão de Jenkins (2009a) aquilo que distingue a cultura da convergência é o

rompimento com o modo tradicional de passividade dos espectadores dos meios de

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

3

comunicação. Os novos consumidores são estimulados pela cultura participativa

potencializada pela web, a apropriarem-se dos conteúdos, tomarem parte no processo de

produção e distribuição ou até produzirem seus próprios conteúdos. Tratamos por cultura

participativa “o cenário e o conjunto variado de possibilidades abertas aos consumidores de

maior acesso, produção e articulação de conteúdos midiáticos, a partir da digitação e

convergência dos meios” (Fechine et al. (2013, p. 27).

Neste cenário, a web ocupa lugar de destaque. Seu ambiente de digitalização e

convergência desenvolve nos consumidores habilidades e competências diferenciadas como

design, programação, criação, edição, mediação, etc.. “A web representa um lugar de

experimentação e inovação, onde os amadores sondam o terreno, desenvolvendo novos

métodos e temas e criando materiais que podem atrair seguidores, que criam suas próprias

condições”. (Jenkins, 2009a, p. 207)

Transmidiação e Narrativas transmídias

A conceituação de narrativa transmídia – objeto de interesse específico deste

trabalho – possui um recorte mais preciso dentro do leque variado de manifestações

multiplataformas e multimídias, envolvendo a relação entre distintas plataformas

tecnológicas no ambiente da cultura participativa. Por isso, antes de partirmos para sua

caracterização, conceituaremos o fenômeno mais amplo, no qual estas estão inseridas, que é

a transmidiação, conforme tem sido proposto por Fechine (2013, 2014). Esta distinção entre

transmidiação e narrativa transmídia é fundamental para compreensão das manifestações

potencializadas pela convergência midiática e a cultura participativa.

Entendemos transmidiação como um modelo de produção orientado pela

distribuição em distintas mídias e plataformas tecnológicas de conteúdos

associados entre si e cuja articulação está ancorada em estratégias e práticas

interacionais propiciadas pela cultura participativa estimulada pelo ambiente de

convergência. Por envolver uma cadeia criativa multiplataforma, esse modelo de

produção é adotado mais frequentemente por corporações que atuam em distintas

mídias (Fechine et al., 2013, p. 26).

Os autores destacam a necessidade de um projeto de produção de conteúdos

planejado de forma a aproveitar o melhor de cada mídia e as potencialidades da cultura

participativa. Dentre esta articulação de mídias, deve-se eleger uma “mídia regente”, isto é,

uma mídia na qual “se desenvolve o texto de referência (um programa narrativo principal) a

partir do qual se dão os desdobramentos e articulações” (Fechine et al., 2013, p. 29), que

Jenkins (2009a) chama de ‘nave mãe’ da franquia.

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

4

Na transmidiação é fundamental também a produção de conteúdos associados entre

si, que devem fazer parte do mesmo universo narrativo e manter uma relação estreita com

um conteúdo ou texto de referência, veiculado na mídia regente. Para isso faz-se necessário

uma instância produtora responsável pelo projeto ou ação transmídia que articule estratégias

e práticas para engajar seus destinatários-consumidores.

Na caracterização de um projeto transmídia o que o constitui como tal é a

articulação entre o texto de referência e os desdobramentos e complementações veiculados

em outras mídias e dispositivos. O que podemos considerar como o texto ou o enunciado

transmídia só se manifesta no momento mesmo em que se dá essa articulação entre

conteúdos (Fechine, 2014). A transmidiação não existe para aquele consumidor que não

aciona, a partir do ponto de acesso, os demais conteúdos associados. O texto transmídia

representa, portanto, o resultado do conjunto das manifestações de um projeto transmídia.

O texto transmídia pode ser pensado como a totalidade da manifestação que

resulta da articulação de enunciados correlacionados e distribuídos em distintas

plataformas tecnológicas, ou seja, corresponde ao todo que resulta da articulação

das partes propostas pelo enunciador e operada pelo destinatário (Fechine, 2014,

p. 121).

A proposta de Fechine (2014) é de tomar a hipertextualidade como chave de leitura

para pensar a organização do texto transmídia, porque ele só se concebe enquanto tal à

medida que consumidores acessam conteúdos associados a partir de um destes mesmos

conteúdos. Quando um texto em uma mídia ou plataforma leva o consumidor a conectar-se

a outro texto em outra mídia ou plataforma que complementa o anterior, ativa, então, a

transmidiação. Esse modo de organização da linguagem baseado na associação e

remissividade entre textos pode ser pensado, em termos mais amplos, como

hipertextualidade.

Esta característica, explorada pelo webjornalismo, tem como função remeter ou

conectar a outras informações, sejam elas textos, imagens fixas ou em movimento, sons ou

infografias, e “abre uma diversidade de itinerários de leitura tão vasta quanto o número de

arranjos e combinações possíveis” (Canavilhas, 2014, p. 9), permitindo organizar conteúdos

em fragmentos, ao mesmo tempo dependentes e autônomos de sentidos entre si. A

hipertextualidade aproxima-se, então, do modo de organização do texto transmídia.

A respeito das estratégias transmídias, Fechine et al. (2013) identificam na

teledramaturgia duas grandes categorias: a propagação e a expansão. Ambas têm como

objetivo o engajamento do destinatário-consumidor, seja reiterando e repercutindo o texto

de referência (propagação) ou criando novos conteúdos articulados dentro do mesmo

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

5

programa narrativo (expansão). Dentre as estratégias de expansão, os autores identificam as

narrativas transmídias como uma das manifestações da transmidiação. Para Fechine (2013,

2014) as narrativas transmídias ocorrem quando o texto de referência (narrativa principal)

se desdobra em novas histórias a partir do universo narrativo. Nessa lógica, as narrativas

transmídias são consideradas uma das mais complexas e bem articuladas manifestações da

transmidiação.

Os distintos modos de expansão do universo podem ser considerados, nas ações

mais complexas, como programas narrativos auxiliares ou secundários,

contribuindo, a partir da articulação com o programa narrativo principal ou de

base (texto de referência), para a construção de uma narrativa transmídia scricto

sensu (Fechine, 2014, p. 122, grifo próprio).

Embora não seja o primeiro a tratar de narrativas transmídias, foi Jenkins (2009a)

que desenvolveu de forma mais compreensível este conceito e apontou as particularidades

deste modelo de produção. O autor descreve como textos articulados em uma única

narrativa são concebidos de forma tão ampla que não se reduzem a uma única mídia. O

fluxo de conteúdos movimenta-se em múltiplas plataformas e mídias, aproveitando-se da

cooperação entre os múltiplos mercados e da cultura participativa.

Uma história transmídia desenrola-se através de múltiplas plataformas de mídia,

com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo. Na

forma ideal de narrativa transmídia, cada meio faz o que faz de melhor – a fim de

que uma história possa ser introduzida num filme, ser expandida pela televisão,

romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em games ou

experimentado como atração de um parque de diversões. Cada acesso à franquia

deve ser autônomo, para que não seja necessário ver o filme para gostar do game,

e vice-versa. Cada produto determinado é um ponto de acesso à franquia como

um todo” (Jenkins, 2009a, p. 138).

Posteriormente, Jenkins (2009bc) propõe sete princípios a partir dos quais se

organizam as narrativas transmídias. Compreendemos que não se tratam de critérios de

classificação das produções transmídias e sim de características que se manifestam em

maior ou menor grau nestas produções: tornar os conteúdos Distribuíveis x Exploráveis

(Spreadability vs. Drillability); explorar sua Continuidade x Multiplicidade (Continuity vs.

Multiplicity); bem como o potencial de Imersão x Extração (Immersion vs. Extractability);

desenvolver a Construção de Universos (Worldbuilding); e a Serialidade (Seriality) dos

conteúdos; explorar a Subjetividade (Subjectivity) dos personagens; e estimular a

Performance (Performance), dos fãs.

Para mostrar como o modelo de narrativas transmídias pode ser aplicado no

jornalismo, Moloney (2011) recuperou estes sete princípios (Jenkins, 2009bc), mostrando

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

6

como já vem sendo explorados nas redações, ainda que não com a mesma intensidade que a

indústria cinematográfica de Hollywood.

A maioria destes princípios, no entanto, não aprofundam a relação existente entre

os conteúdos que compõem o texto transmídia, entendido como a totalidade dos conteúdos

associados. Não são capazes, portanto, de tornar clara a existência de uma narrativa

transmídia, visto que não caracteriza a especificidade das narrativas transmídias: os

desdobramentos ou complementaridade de conteúdos em outras plataformas ou mídias a

partir do texto de referência e dentro de um mesmo universo narrativo, que segundo

Fechine et al. (2013) são as estratégias de expansão. Ainda assim, subsidiam nosso processo

de análise na identificação das funções dos conteúdos do dossiê Tudo Sobre Belo Monte.

Por se tratar de um processo que vem sendo incorporado pouco a pouco em uma

atividade com rotinas produtivas marcadas pelo deadline do fechamento, Moloney (2011),

Scolari (2013), Renó e Flores (2012) e Canavilhas (2013), dentre outros autores, tendem a

considerar o jornalismo diário, com as restrições da brevidade de tempo, o menos indicado

para explorar as narrativas transmídias.

Produções transmídias devem ser concebidas e desenvolvidas com cuidado e em

um tempo maior para se tornarem eficazes. Da concepção à distribuição uma

franquia de Hollywood leva anos para seu lançamento. Mas tradições de longas

investigações ou documentários estendidos estão profundamente enraizados no

jornalismo. Coberturas de questões complexas e contínuas – imigração,

consequências de guerras, conflitos sociais – prestam-se perfeitamente para uma

abordagem aprofundada e distribuição complexa. (Moloney, 2011, p. 12, tradução

nossa).

Na visão de Moloney (2011), o jornalismo literário e o jornalismo público são

potenciais formas para exploração de narrativas transmídias, tanto porque propicia maior

profundidade e contextualização na abordagem de temas, criando conexões entre estruturas

narrativas ou favorecendo a multiplicidade de vozes, quanto pela capacidade de interação

que incorpora o público, estimulando a conversa entre cidadãos de modo a aprofundar

discussões de temas relevantes para a sociedade.

Jornalismo transmídia no dossiê Tudo Sobre Belo Monte

O dossiê4 Tudo Sobre Belo Monte, primeiro da série Tudo Sobre, projetado pelo

Grupo Folha, trata da construção da terceira maior hidrelétrica do mundo, às margens do

4 Utilizamos o termo “dossiê” para referir-se à totalidade dos conteúdos produzidos de forma associada e distribuída em

diversas mídias sobre a temática da Usina de Belo Monte, o especial Tudo Sobre Belo Monte, e a expressão “reportagem

para web” para referir-se ao texto de referência A Batalha de Belo Monte, publicado no portal da Folha.

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

7

Rio Xingu, no Pará. O projeto de dossiês, desenvolvido posteriormente com outras

temáticas, articula uma reportagem especial, publicada no portal, com conteúdos associados

veiculados nos principais veículos do conglomerado de mídias: além do próprio portal, no

Jornal Folha de S. Paulo e no telejornal semanal TV Folha, então exibido pela TV Cultura5.

Assumimos a reportagem para web A Batalha de Belo Monte, publicada em 15 de

dezembro de 2013 no hotsite agregado ao Portal da Folha de S. Paulo, como o texto de

referência, isto é, como texto a partir do qual se desenvolveu um programa temático

principal. Esta qualificação fica evidente também porque os conteúdos ligados à reportagem

que foram veiculados no jornal impresso, na TV ou mesmo nas matérias do portal da Folha,

remetem, de uma maneira ou de outra, ao hotsite. Temos então, além do texto de referência,

uma mídia de base ou regente, ou seja, uma mídia a partir da qual o texto transmídia se

articula. Essa mídia de referência é a internet, rede mundial de computadores, e a

plataforma utilizada é a web6.

A noção de hipertextualidade citada anteriormente como chave de leitura do texto

transmídia foi tomada como um dos pressupostos para análise do dossiê Tudo Sobre Belo

Monte. Exploramos o modo como os conteúdos produzidos para as diversas mídias

associam-se ao texto de referência e como reportam-se uns aos outros ou desdobram-se e

ampliam em novos conteúdos distribuídos em outras mídias e plataformas.

Para perceber a articulação entre os conteúdos distribuídos nas mídias utilizadas,

um caminho de investigação que se mostrou possível foi a partir da análise dos aspectos

temáticos abordados tanto no texto de referência quanto nos textos associados. Procuramos,

neste caso, traçar um paralelo entre universo narrativo, mais recorrente na ficção, e universo

temático, mais adequado a uma abordagem jornalística. Esta perspectiva, apoiada no

método de análise para reportagens especiais adotado por Fechine (2013-2016), nos pareceu

razoável por evidenciar como os conteúdos se desdobram e avançam na abordagem de

novos aspectos temáticos para além do texto de referência e da mídia regente, bem como

por se tratar, em última análise, de uma reportagem especial, cuja principal característica é

aprofundar um determinado tema, oferecendo diversos pontos de vista sobre o mesmo.

A reportagem A Batalha de Belo Monte está organizada em cinco capítulos – Obra,

Ambiente, Sociedade, Povos Indígenas e História – , além de um Making-of, dois artigos de

5 O Programa TV Folha deixou de ser exibido na TV Cultura em abril de 2014, tornando-se um produto exclusivo da

internet, apesar de manter o mesmo formato. 6 Seguimos a distinção proposta por Fechine et al. (2013, p. 28), que trata plataforma como “a combinação de uso de uma

determinada mídia com certo tipo de tecnologia (Pratten, 2011, p. 28). Podemos ter, assim, plataformas distintas a partir

do emprego de tecnologias distintas em uma mesma mídia”.

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

8

opinião e um mapa interativo da Bacia do Rio Xingu, bem como o link para uma página

onde é possível acessar o newgame Folhacóptero, todos acessíveis no menu lateral do

hotsite. Apesar desta divisão, a análise mais detalhada dos conteúdos nos fez reagrupar os

aspectos temáticos abordados de outra forma. Esta nova divisão temática tornou-se

necessária para facilitar o trabalho posterior de comparação dos aspectos temáticos entre o

texto de referência e os textos associados. Organizamos da seguinte maneira os temas

abordados na reportagem para web:

Figura 1: Quadro temático do texto de referência (reportagem para web)

Fizemos o esforço de sintetizar os temas tratados na reportagem, realocando os

aspectos temáticos abordados nos cinco capítulos do texto de referência em dois grandes

temas. O primeiro deles, a Obra de construção da Usina, e segundo envolvia os impactos

causados com instalação da Usina, na verdade, o ponto desencadeador da discussão e da

reportagem. Estes dois temas se desdobraram em outros aspectos temáticos (Figura 1).

Assumindo como pressuposto a existência de uma articulação de textos

distribuídos em diversas mídias e plataformas, tomamos como ponto de partida para a

análise destes textos, as estratégias já identificadas por Fechine et al. (2013) de propagação

e expansão de conteúdos transmídias, pois elas nos permitem distinguir os conteúdos que

acrescentam ou não aspectos diferentes ao texto de referência.

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

9

A partir destas estratégias transmídias de propagação e expansão, e tomando como

referência as subcategorias propostas por Fechine et al. (2013), procuramos agrupar, a partir

de uma perspectiva do próprio fazer jornalístico, os textos associados ao texto de referência

a partir de suas funções comuns. Alguns dos textos apresentavam mais de uma função.

Nestes casos, optamos por identificá-los a partir da função de maior destaque ou apontar as

ênfases, quando possível, de cada função presente nos textos. Os resultados desta análise

foram sistematizados na Tabela 1. Descreveremos, a seguir, cada uma das categorias e

funções identificadas.

Tabela 1: Estratégias e funções dos conteúdos em Tudo Sobre Belo Monte

ESTRATÉGIAS FUNÇÕES

PROPAGAÇÃO

Reprodução

Reedição

Síntese

Promoção

EXPANSÃO

Atualização

Aprofundamento e contextualização

Debate

Vivencial

Imersão

Fiduciária

Fonte: Elaboração do autor.

As estratégias de propagação têm a finalidade de apresentar o texto de referência,

despertar o interesse de consumidores e remetê-los aos desdobramentos temáticos, isto é,

aos conteúdos associados que resultavam de estratégias de expansão.

O primeiro modo de propagação assumiu a função de reprodução de parte do texto

de referência em outra mídia, sem qualquer adaptação de formato ou acréscimo de aspectos

temáticos. O Portal de notícias da Folha, na data do lançamento da reportagem para web,

publicou integralmente os textos dos capítulos sem a mesma formatação apresentada no

hotsite especial, com uma ou outra galeria de fotos7. O Jornal Folha de S. Paulo, na mesma

data, limitou-se a publicar o primeiro capítulo no Caderno Ilustríssima, repetindo a mesma

prática no Caderno Folha 10 (21/12/2013). Mapas e infográficos que integravam o texto de

referência também foram reproduzidos em mateira do Caderno Mercado 2 (14/12/2013).

7 Entre o jornal impresso e o portal de notícias, os conteúdos apenas se repetiram, sem maiores adaptações dos conteúdos.

Considerando que a articulação em diferentes mídias constitui fator caracterizador do texto transmídia, pouco

mencionamos neste trabalho os conteúdos do portal, prevalecendo as publicações do jornal Folha de S. Paulo.

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

10

Outra forma de propagação do texto de referência consistiu na reedição dos

conteúdos, adaptando-os à linguagem específica da mídia utilizada, mas sem tratar de novos

aspectos temáticos. Duas matérias publicadas no Caderno Mercado do Jornal Folha de S.

Paulo traziam à tona a discussão sobre a construção da Usina, utilizando como gancho os

dados da pesquisa realizada pelo Instituto DataFolha para a reportagem. Todos os aspectos

temáticos desenvolvidos nesta matéria estavam presentes no texto de referência, no entanto,

foram apresentados no Jornal com outra redação pelo repórter Marcelo Leite.

A síntese foi identificada como outra função de conteúdos cuja estratégia era a

propagação do texto de referência. A finalidade, neste caso, era sumarizar o texto de

referência, fazendo um resumo dos aspectos temáticos ali presentes em outra mídia. Esta

espécie de conteúdo foi uma forma de adaptação, mas distinguiu-se dela por abordar de

forma condensada todos os temas do texto de referência, ainda que através de outro arranjo

estrutural, inclusive privilegiando um ou outro aspecto. O programa TV Folha Especial

Belo Monte (12/01/2014), procurou resumir em três blocos, por meio de imagens e

depoimentos, mais de 30 horas de material produzido para o projeto. Os percursos

temáticos presentes nos três blocos - O Canteiro, Altamira e Os impactados - seguiam quase

a mesma lógica do texto de referência, com as necessárias realocações temáticas, como a

história do Projeto e os Povos Indígenas, para conseguir abordar todos os aspectos em

pouco mais de 26 minutos de programa.

Uma outra estratégia para propagação foi a utilização de conteúdos para promoção

do texto de referência e dos conteúdos associados. Os aspectos temáticos foram abordados

de maneira superficial ou seletiva, visando atrair o consumidor para o conteúdo que estava

sendo promovido. Poderíamos relacionar este tipo de conteúdo com o que no jornalismo

televisivo é chamado de teaser, uma pequena chamada gravada pelo repórter sobre uma

notícia ou imagens do acontecimento colocadas na escalada do telejornal para atrair a

atenção do telespectador. Sucessivos boxes vinculados às matérias do dossiê publicadas no

Jornal Folha de S. Paulo, evidenciaram esta função de promover os conteúdos, sejam eles

do texto de referência, a reportagem A Batalha de Belo Monte, sejam de textos de outras

mídias, como o aplicativo Folhacóptero, o programa TV Folha Especial Belo Monte, bem

como o Debate com especialistas promovido pela Folha. O último bloco da edição 94 do

TV Folha (15/12/2013) reforçou também esta ideia de teaser, selecionando aspectos

temáticos específicos para despertar no telespectador a curiosidade pelo tema e o consumo

da reportagem na web.

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

11

Figura 2 - Expansão temática do dossiê Tudo Sobre Belo Monte. Fonte: Elaboração do Autor

Na análise dos conteúdos identificamos estratégias de expansão. Com a

comparação de todos os temas abordados no texto transmídia sintetizamos no quadro

Expansão Temática do Dossiê Tudo Sobre Belo Monte (Figura 2) como se deram os

desdobramentos temáticos para outras mídias a partir do texto de referência. Para melhor

visualização de expansão temática, destacamos as abordagens feitas em cada aspecto

ampliado, tanto no texto de referência como nos demais textos associados em outras mídias.

A análise temática que evidenciou a presença de conteúdos desdobrados e

associados ao texto de referência permitiu caracterizar o dossiê Tudo Sobre Belo Monte

como uma narrativa transmídia jornalística, isto é, um texto que se distribui em diversas

mídias através de conteúdos complementares que traziam informações novas e

aprofundavam certos aspectos temáticos. O dossiê cumpriu as condições fundamentais

deste modelo de produção, produzindo conteúdos jornalísticos autônomos em torno de um

mesmo universo temático, no caso a construção da Usina de Belo Monte, no Pará,

explorando tanto aspectos relativos à obra quanto aos impactos gerados por ela por meio da

internet, do jornal impresso, da televisão, e de um aplicativo para smarthpone e tablet.

Os desdobramentos temáticos ou estratégias de expansão foram verificados em

todas as mídias e plataformas associadas e procuravam expandir a abordagem dos temas do

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

12

texto de referência, ampliando informações e contribuindo para uma melhor compreensão

da questão tratada.

Identificamos conteúdos de expansão cuja finalidade principal foi a atualização do

texto de referência, a partir dos acontecimentos recentes relacionados ao assunto. No

jornalismo são as notícias ou hard news, que possuem o papel de manter o público

informado dos últimos fatos. Foram publicadas matérias factuais no Jornal Folha de S.

Paulo que ampliavam aspectos temáticos relativos à Obra, como, por exemplo, a

determinação da paralização das obras da Usina pela Justiça Federal (18/12/2013); a sua

retomada com a liberação judicial e a revelação de que havia um veio de ouro sob o local de

construção da barragem (20/12/2013); assim como as soluções de engenharia na construção

com a descoberta de rocha permeável em dois diques da barragem (14/12/2013).

Outros conteúdos de expansão presentes no dossiê tiveram como função o

aprofundamento ou contextualização de aspectos temáticos presentes no texto de

referência. Os desdobramentos procuravam detalhar algum aspecto relevante que não havia

sido desenvolvido de forma mais ampla na reportagem para web. São matérias mais ao

estilo “feature” ou de gavetas, que aprofunda um assunto numa dimensão mais atemporal.

O Jornal Folha de S. Paulo pautou, durante a semana seguinte à publicação da reportagem A

Batalha de Belo Monte, conteúdos de extensão através de matérias que desdobravam o

aspecto temático da produção energética no Brasil, tomando a Usina de Belo Monte como

gancho para a abordagem: sobre o sistema de transmissão de energia (16/12/2013); sobre

energia eólica (17/12/2013); e sobre o atraso nas obras das usinas de Jirau e Santo Antônio,

ambas no rio Madeira (19/12/2013).

O Programa TV Folha Especial Belo Monte (12/01/2014) também acionou

estratégias de expansão de conteúdos aprofundando aspectos temáticos relevantes. O

enriquecimento com a utilização de novas fontes ou ampliação das falas das fontes já

citadas na reportagem para a web poderia, em princípio, ser considerado parte das

estratégias de expansão, mas destacamos novos aspectos temáticos abordados como: as

condições de trabalho dos operários da Obra; o atraso nas ações compensatórias da cidade

de Altamira, inclusive com o depoimento dos repórteres que destacaram as confusões de

um dia de domingo na cidade; o relato humanizado do agricultor Benedito Balão, ribeirinho

do Xingu, e a descrição de seu habitat e do sonho de voltar a viver às margens do rio.

Uma outra função dos conteúdos de expansão foi o debate de pontos de vista sobre

o assunto considerado polêmico e expressar uma posição frente ao tema, interpretando e

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

13

analisando argumentos a favor ou contra a construção da Usina. No jornalismo esta forma

de conteúdos identifica-se com os gêneros opinativos: editorial, artigo, colunas, cartas e

charges. Citamos, por exemplo, os artigos “Arrancada histórica” (16/12/2013), “Em busca

do equilíbrio” “Inadimplência ambiental”, na sessão Tendências / Debates (21/12/2013); e

o Editorial “A lição de Belo Monte” (18/12/2013)8, além do próprio Debate promovido pela

Folha, mas que optamos por categorizar sob outro aspecto.

Este evento (18/12/2013), que reuniu especialistas para discutir diversos aspectos

da Usina Belo Monte, chama atenção como um outro modo de expansão temática que não

se refere a uma mídia específica. O público, convidado por meio de matérias no jornal e no

portal para comparecer ao auditório na sede da Folha, em São Paulo, pôde presenciar

posicionamentos diversos. Um desdobramento temático importante, mas atípico, porque sai

do âmbito discursivo textual, para inserir-se em um nível mais vivencial, nos moldes

apontados por Jenkins (2009b) de Extração (Extractability) e exemplificados por Moloney

(2011) como workshops promovidos por jornalistas sobre temas de suas coberturas. Como

não tivemos acesso ao debate na íntegra, só foi possível conhecer os aspectos temáticos

expandidos através da matéria do Jornal Folha de S. Paulo (20/12/2013).

Observamos outros conteúdos que expandiam através de uma experiência de

imersão em alguns dos aspectos abordados no texto de referência, proporcionada pela

interação com o ambiente virtual, capaz de motivar a exploração e despertar interesse pelo

assunto. Esta experiência aconteceu através do newgame Folhacóptero, aplicativo

produzido especialmente para o dossiê temático Tudo Sobre Belo Monte. O jogo coloca o

usuário no helicóptero da Folha para sobrevoar a Usina Belo Monte.

8 Pontos de vistas diversos sobre a Usina Belo Monte também apareceram na sessão Painel do Leitor. Posicionamento dos

leitores, elogios e críticas ao trabalho, pedidos de correção de informações foram veiculados na sessão do jornal, no

entanto, poucas foram as respostas dos jornalistas. O mesmo ocorreu nas redes sociais, pouco exploradas pelos produtores:

o hotsite da reportagem para web não permite comentários, apesar de conter botões para compartilhamento no Twitter e

Facebook.

Figura 3: Captura de tela do game Folhacóptero

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

14

Os aspectos temáticos mais evidentes presentes no aplicativo em relação ao texto de

referência foram a noção da dimensão da usina, agora não mais descrita, e os impactos do

alagamento, que acontece no jogo à medida que se cruza um dos círculos posicionado sobre

a barragem. O sobrevoo pelo ambiente virtual do aplicativo coloca o usuário frente à frente

com o objeto tão discutido, a Usina Belo Monte, e projeta o seu momento mais controverso,

o alagamento, quando, de fato, passará a funcionar e efetivará seus impactos. Esta

realidade, ainda que virtual, é presenciada pelo usuário.

Não podemos deixar de destacar um conjunto de abordagens que não se referiam a

um aspecto temático em particular, mas tinham por função reforçar o contrato fiduciário9

tanto do texto de referência quanto de outros conteúdos transmídia. A estratégia era

evidenciar o percurso de produção jornalística da reportagem, descrevendo o processo de

produção e apuração da reportagem a fim de credenciá-la. Esta é uma prática recorrente no

jornalismo investigativo, onde o repórter e os passos percorridos para chegar até as

informações e fontes, acabam se constituindo parte do discurso. A TV Folha (22/12/2013)

enveredou por este caminho descrever o processo de construção de pauta, a apuração e os

desafios para captação de fotografia e vídeo. Os repórteres conversavam e testemunhavam

suas impressões, as dificuldades e soluções encontradas no andamento da produção,

ressaltando o trabalho em profundidade e as perspectivas de atualização do dossiê.

Considerações finais

As narrativas transmídias, compreendidas como uma das estratégias da

transmidiação, tem se mostrado como um dos modelos possíveis no novo cenário do

jornalismo, porque integra os recursos tecnológicos digitais e as redes, e explora um de seus

aspectos mais significativos, a interpretação, a contextualização e o aprofundamento para

qualificar mais a informação.

Da análise do dossiê Tudo Sobre Belo Monte, caracterizado como narrativa

transmídia, ficou claro como a adoção de estratégias de expansão, seja para atualizar,

detalhar, debater pontos de vista ou promover imersão ou vivência da temática,

contribuíram para uma abordagem diferenciada. Os consumidores do dossiê que trilharam o

percurso proposto pelos produtores, acompanhando as repercussões e desdobramentos

9 Na Semiótica o contrato fiduciário refere-se ao fazer persuasivo do destinador e à adesão do destinatário, que tem como

base um crer verdadeiro atribuído ao discurso, isto é, à confiança depositada pelo enunciatário ao enunciado (Greimas;

Courtés, 2008).

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

15

temáticos, tiveram um ganho na compreensão da temática abordada bem maior que aquele

que acessou apenas uma mídia. As narrativas transmídias revelam, assim, seu potencial de

promover um aprofundamento de questões relevantes e abrir espaço para múltiplas vozes

numa sociedade onde não só a informação como os públicos estão fragmentados.

As categorizações propostas neste trabalho não têm a pretensão de se fazerem

universais às narrativas transmídias no jornalismo. O olhar para o objeto de análise nos fez

ver algumas das formas possíveis que tomavam os conteúdos nesse modelo de produção,

mas ao mesmo tempo assinalar a convergência dos elementos próprios da cultura jornalista.

O método ensaiado da análise temática dos conteúdos transmídias pode, ainda, ser apontado

como uma contribuição para a identificação das estratégias de expansão transmídias no

jornalismo em trabalhos futuros.

Referências Bibliográficas

CANAVILHAS, João. Jornalismo Transmídia: um desafio ao velho ecossistema midiático. In:

RENÓ, Denis; CAMPALANS, Carolina; RUIZ, Sandra; e GOSCIOLA, Vicente. Periodismo

Transmedia: miradas múltiples. Bogotá: Editorial Universidad del Rosario, 2013.

________. Hipertextualidade: novas arquiteturas noticiosas. In: CANAVILHAS, João (org.).

Webjornalismo: 7 caraterísticas que marcam a diferença. Covilhã: LabCom, 2014, p. 3-24.

FECHINE, Yvana et al. Como pensar os conteúdos transmídias na teledramaturgia brasileira? Uma

proposta de abordagem a partir das telenovelas da Globo. In: LOPES, Maria Immacolata Vassallo

de (org). Estratégias de transmidiação na ficção televisiva brasileira. Porto Alegre: Sulina, 2013.

FECHINE, Yvana. Disciplina Telecinejornalismo. Recife, Universidade Federal de Pernambuco,

2013-2016. Anotações e fichas de Aula.

_________. Interações discursivas em manifestações transmídias. In: FECHINE, Yvana. et al.

(Orgs). Semiótica nas práticas sociais: Comunicação, Artes, Educação. São Paulo: Estação das

Letras e Cores, 2014.

GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. Tradução de Alceu Dias Barbosa Lima et

al. São Paulo: Contexto, 2008.

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2009a.

_________ . The Revenge of the Origami Unicorn: Seven Principles of Transmedia Storytelling.

2009b. Disponível em: http://henryjenkins.org/2009/12/the_revenge_of_the_origami_uni.html.

Acesso em 09 nov. 2015.

_________. Revenge of the Origami Unicorn: The Remaining Four Principles of Transmedia

Storytelling. 2009c. Disponível em:

http://henryjenkins.org/2009/12/revenge_of_the_origami_unicorn.html. Acesso em 09 nov. 2015.

MOLONEY, Kevin T. Porting Transmedia Storytelling to Journalism. 2011. 115 f. Dissertação

(Mestrado em Artes). Faculty of Social Sciences, University of Denver.

RENÓ, Denis; FLORES, Jesus. Periodismo Transmedia: Reflexiones y técnicas para el

ciberperiodista desde los laboratorios de medios interactivos. Madrid: Editorial Fragua, 2012.

SCOLARI, Carlos A. Narrativas transmedia: Cuando todos los medios cuentan. Barcelona: Duesto,

2013.