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SumárioCAPÍTULO 2 – Cidadania e Responsabilidade Social .........................................................05

2.1 Cidadania: histórico, conceito e implicações com as relações de trabalho ......................06

2.1.1 Grécia Antiga: a ideia de cidadania na Antiguidade ............................................07

2.1.2 A noção de cidadania em Esparta .....................................................................09

2.1.3 A noção de cidadania em Atenas ......................................................................09

2.1.4 O nascimento do conceito moderno de cidadania ..............................................11

2.2 Cidadania hoje: implicações contemporâneas .............................................................15

2.2.1 Implicações contemporâneas do conceito de cidadania .......................................16

2.2.2 Tecnologia e cidadania: a experiência brasileira .................................................19

Síntese ..........................................................................................................................22

Referências Bibliográficas ................................................................................................23

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Capítulo 2 Luíza e Cláudio são casados e vivem juntos em uma pacata cidade do interior. Após o jantar, como de costume, deitam-se abraçados no largo sofá da sala, confortavelmente acomodados, a fim de assistir à sua novela preferida. Hoje é o dia do último capítulo, e o desfecho da história dos personagens principais ronda os pensamentos de grande parte do povo brasileiro. Luíza e Cláudio, como tantos, estão ansiosos para o grande final. Mas a empolgação é interrompida quando o apresentador do telejornal, que antecede a novela, anuncia: “Outro escândalo de corrupção no Brasil!”. O casal se revolta. “O país está mesmo perdido”, brada Cláudio.

E você, caro aluno, já viu uma cena parecida com essa? Já presenciou ou participou de alguma discussão sobre política? Talvez nunca tenhamos percebido, mas quais os limites de nossas pre-ocupações com os rumos do país?

Desde crianças, ouvimos, aqui e ali, a respeito da necessidade de sermos bons cidadãos e de co-operarmos para o desenvolvimento da sociedade. A todo instante, ouvimos pessoas afirmarem: “Eu sou um bom cidadão, pois pago meus impostos nos prazos e corretamente”. Mas, afinal, o que significa isso? Como ser, efetivamente, um bom cidadão? Ao longo deste capítulo, você irá investigar o conceito de cidadania e sua aplicabilidade em nossa vida cotidiana e profissional nos campos da política, economia, entre outros.

No primeiro tópico, você estudará a história do conceito de cidadania. Para tanto, retornaremos aos tempos dos gregos antigos, pois foi na Grécia, sobretudo nos séculos V e IV a.C., que a noção de cidadania se consolidou na história da humanidade. Em seguida, você verá as implicações da noção de cidadania na modernidade, a partir dos grandes movimentos intelectuais surgidos nos séculos XVII e XVIII, como, por exemplo, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

O segundo tópico tratará das implicações do conceito de cidadania na contemporaneidade a partir de suas relações com a tecnologia e com o desenvolvimento das sociedades contemporâ-neas, estabelecendo a relação com a responsabilidade social. Nessa perspectiva, abordaremos uma experiência brasileira dos usos da tecnologia para a majoração da atuação consciente e cidadã, destacando também suas implicações na vida profissional.

Nesse momento, você conhecerá a Lei de Acesso à Informação e sua aplicabilidade na realidade brasileira.

Conhecer e reconhecer as definições e os limites da cidadania e da responsabilidade social alte-rará, substancialmente, sua postura diante de situações-problemas – sejam elas emergenciais ou não – que exijam a reflexão e a prática ética em seu dia a dia profissional. Por isso, estudar este material é de extrema importância.

Bons estudos!

Cidadania e Responsabilidade Social

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2.1 Cidadania: histórico, conceito e implicações com as relações de trabalhoEm meados de junho de 2013, as ruas de diversas cidades brasileiras testemunharam um intenso movimento de manifestações populares. Eram jovens, adultos e crianças contra os “20 centa-vos”. Tratava-se, inicialmente, de inviabilizar o aumento da tarifa do transporte público na cidade de São Paulo. No entanto, o espírito das manifestações se espalhou país afora e, pouco a pouco, mais pessoas aderiam às passeatas e às ruas. A questão em debate não mais se restringia ao preço da passagem. Esparramava-se em um sem-número de pautas, incluindo a corrupção e os indícios de sua ocorrência no Planalto, em Brasília. Os manifestantes, aos gritos e empunhando suas bandeiras e cartazes, conclamavam o restante da população: “Vem pra rua! Vem pra rua!”.

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Em Junho (Brasil, 2014), o diretor João Wainer apresenta a história das manifestações que tomaram o país em junho de 2013. O filme é resultado da premiada cobertura realizada pela TV Folha e traz, além das imagens, diversos depoimentos dos líderes das manifestações – Nina Capello e Lucas Monteiro – e de importantes jornalistas e intelectuais. Assista!

Figura 1 – Manifestantes protestam nas ruas do Rio de Janeiro, em 20 de junho de 2013.

Fonte: Shutterstock, 2015.

“Ir para a rua”, nesse momento da história brasileira, significaria participar definitivamente de uma posição: uma posição política diante da cidade, uma posição ética com relação ao outro, uma posição de cidadania.

Participar tem sido ultimamente a palavra de ordem (GALLO, 2003, p. 26). Do voto às ruas e às manifestações, participamos da composição política em nosso município, em nosso estado e em nosso país. Votamos neste ou naquele prefeito, neste ou naquele vereador. Elegemos o governa-

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dor, os senadores, os deputados e a presidência. Enfim, participamos. No entanto, talvez jamais tenhamos nos perguntado: o que isso significa? O que é a cidadania?

Antes mesmo de adentrarmos em direção às especificidades das variações do conceito de cida-dania, analisemos algumas definições mais genéricas. Do ponto de vista etimológico, o termo cidadania origina-se da mesma raiz comum do termo latino civis, utilizado para designar o cida-dão romano. Civis, por sua vez, advém de civitas, cujo significado é diverso, e vai desde liber-dades da cidade ao termo cidade, propriamente dito. Isso corrobora a tese da cooriginalidade entre os termos cidade e cidadania.

Para você compreender melhor o que é a cidadania e como ela tem sido exercida ao longo do tempo, analisaremos a sua história e o seu conceito. Para tanto, regressaremos aos tempos da Grécia Antiga, berço da civilização ocidental, a fim de compreender como nasceram as primeiras noções de cidadania.

Você deve estar se perguntando: “por que tenho que estudar isso?”. Compreender a ideia de cidadania, sobretudo a partir de suas raízes gregas antigas, implica refletir não apenas a respeito de nossa própria razão de estar no mundo. Muito mais! Você entenderá as razões pelas quais estamos no mundo em companhia dos outros, vivendo em sociedade. Por que, afinal, não nos matamos a todos, em busca de nossos interesses mais íntimos? Porque, em algum momento de nossas vidas, compreendemos que, para além de nós mesmo, existem os outros, com os quais conviveremos, e que uma busca desenfreada e desregrada pelos nossos próprios interesses não resultaria senão no extermínio de toda a humanidade.

Por essas razões, vamos aos estudos!

2.1.1 Grécia Antiga: a ideia de cidadania na Antiguidade

Para compreender a noção de cidadania na Antiguidade, começaremos investigando suas raízes na ideia de cidade, que se caracterizava como o núcleo político essencial. Em seguida, analisa-remos as duas mais importantes experiências citadinas gregas: Esparta e Atenas.

A criação das primeiras cidades gregas inaugura na Antiguidade um novo modo de composição das relações humanas. Desde o início do século VIII a.C., o mundo grego se encontrava politi-camente dividido em um conjunto de pequenas cidades. Ao longo dos anos seguintes, nos sécu-los VII e VI a.C., mais especificamente, a consolidação das cidades gregas alcançou seu pleno desenvolvimento, transmutando pequenas aglomerações camponesas e guerreiras em grandes civilizações, fundamentalmente centradas nas cidades (FUNARI, 2002).

Nesse momento, a cidade delimitava uma nova fronteira para as relações políticas e comerciais e, por conseguinte, um novo espaço das relações humanas.

As cidades, nesse período, eram basicamente constituídas por três elementos:

1. um centro urbano, a “cidade” propriamente dita;

2. o campo ao redor;

3. em alguns casos, pequenos povoados urbanos secundários.

Seu núcleo existencial era o demos, o povo, constituído por uma “coletividade de indivíduos submetidos aos mesmos costumes fundamentais e unidos por um culto comum às mesmas divin-dades protetoras” (FUNARI, 2002, p. 25). Ainda segundo o autor:

Em geral uma cidade, ao formar-se, compreende várias tribos; a tribo está dividida em diversas frátrias e estas em clãs, estes, por sua vez, compostos de muitas famílias no sentido estrito do

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termo (pai, mãe e filhos). A cada nível, os membros desses agrupamentos acreditam descender de um ancestral comum, e se encontram ligados por estreitos laços de solidariedade (FUNARI, 2002, p. 25).

O surgimento dessa nova estrutura social recompôs paulatinamente os mecanismos que regula-vam, naquele momento, as relações entre os homens.

A economia grega, no período arcaico, constituía-se basicamente pela agricultura e pela cria-ção. Os grandes proprietários de terra – em geral, os chefes dos clãs – exerciam, por essa razão, forte influência política e econômica nas cidades, reduzindo, inclusive, a importância da atuação do rei e assumindo, em regra, o gerenciamento efetivo das instituições, conforme demonstra Funari (2002). Compunham, por exemplo, um conselho soberano cujo fim consistia em gestar a instituição jurídica das cidades com base em um “direito tradicional pautado por regras man-tidas em segredo” (FUNARI, 2002, p. 26). Além disso, porque detinham acesso privilegiado e exclusivo às armas, a cavalos e servos, ocupavam também importantes funções guerreiras e de defesa das fronteiras das cidades. Em resumo, esse pequeno grupo de “nobres” detinha a posse das terras e, por consequência, o domínio das instituições econômicas, políticas, jurídicas e bé-licas. O regime de administração das cidades, portanto, se caracterizava por uma aristocracia ou oligarquia da nobreza.

O que é aristocracia? O que a difere da oligarquia? Ambas são modos de governo. O filósofo grego Platão, no livro República, propôs, como modo de governo, a aristocra-cia. Segundo o filósofo ateniense, os homens deveriam ser governados por um grupo de sábios e filósofos. Aristocracia significaria, portanto, e até os dias atuais, o governo de um pequeno grupo. Contudo, a ideia platônica foi, ao longo dos séculos, sofrendo terríveis degenerações, e a principal delas é a oligarquia. O fundamento da oligarquia é o patrimônio. Nela, apenas os poderosos proprietários das riquezas estariam aptos a exercer o governo sobre os demais.

NÓS QUEREMOS SABER!

Para a subsistência da nobreza e de seu poder, a cidade comportava ainda outros elementos também fundamentais. Segundo Funari (2002), escravos, servos, trabalhadores agrícolas livres, artesãos e também pequenos proprietários compartilhavam a vida nas cidades, juntamente com a nobreza, embora permanecessem ainda como uma classe inferior.

Com a expansão das cidades gregas para regiões mais longínquas, cresceram o comércio maríti-mo e o artesanato (que consistia principalmente na produção de armas e cerâmica). O aumento da produção e o consequente barateamento das armas tornou possível às classes medianas e pobres o desempenho de atividades bélicas e de defesa das cidades. Como participavam, agora, da classe guerreira, essas classes iniciaram um longo processo de reivindicação de reformas e de maior participação política. Tais demandas evoluíram, em inúmeras ocorrências, para guerras civis. A fim de solucionar esses conflitos, algumas cidades gregas – Atenas, por exemplo – funda-ram sólidas instituições legislativas, que, em certa medida, reduziriam em longo prazo o poderio da nobreza, impondo-lhes limites para as interpretações do Direito, restringindo-lhes a interpre-tação das leis com base em interesses próprios.

As instituições legislativas ampliaram significativamente o acesso aos direitos políticos fundamen-tais. Nesse momento, surgiu a figura do cidadão. No entanto, conforme apontam os estudos de Funari (2002), não podemos admitir a existência de um único modelo político e de participação cidadã para todas as cidades gregas. Ao contrário, é mais “correto afirmar que, no fim do século VI, as cidades gregas eram muito distintas umas das outras” (FUNARI, 2002, p. 28). Você verá, a seguir, duas das mais emblemáticas experiências de cidade na Grécia Antiga: Esparta e Atenas.

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2.1.2 A noção de cidadania em Esparta

No século IX a.C., as invasões dórias fizeram rebentar uma das mais importantes cidades gre-gas: Esparta. Localizada na região da Lacônia, no sudeste da península do Peloponeso, Esparta possuía geografia bastante singular: tratava-se de um vale envolto por altíssimas montanhas, de solo fértil e com bons campos para pastagem.

Ao conquistar toda a região da Lacônia, os guerreiros dórios, considerados historicamente como os primeiros bárbaros, submetiam os conquistados e seus descendentes à condição de servos, chamados hilotas. Cada espartano, proprietário agora das terras conquistadas, distribuía às famílias de hilotas porções de seus lotes. Os hilotas, por sua vez, cultivavam a terra e eram obri-gados a destinar boa porcentagem de seus cultivos ao sustento espartano.

Aos espartanos, proibidos por lei de exercer qualquer trabalho, restava a tarefa de administrar a cidade e suas instituições e guerrear pela conquista de novos territórios. Devido à sua eficiência bélica, os espartanos, no final do século VII a.C., haviam já dominado um terço do território da península do Peloponeso.

Contudo, devido ao crescente número de conquistados – em número muito maior que o de con-quistadores – e temendo o enfraquecimento bélico, os espartanos, por volta do século VI a.C., decidiram abandonar certos territórios difíceis de administrar e optaram por fortificar a cidade de Esparta, fechando-a “às influências estrangeiras, às artes, às novidades e às transformações, adotando para si próprios costumes rígidos e uma disciplina atroz a fim de manter intacta a ordem estabelecida” (FUNARI, 2002, p. 29). Nesse momento, solidificou-se o modo de vida espartano.

A cidadania espartana e o direito de influir no destino da cidade restringiam-se aos conquista-dores espartanos, que governavam a si próprios por meio de um pequeno grupo de dirigentes, a Gerúsia, composta pelos dois reis de Esparta e por 28 anciãos, “escolhidos entre os nobres de nascimento com mais de sessenta anos” (FUNARI, 2002, pp. 29-30). Os anciãos, por sua vez, eram eleitos pela assembleia dos homens adultos de Esparta e permaneciam no cargo vitalicia-mente. A assembleia, a cada ano, elegia também cinco éforos, que possuíam, como prefeitos, funções executivas.

Em síntese, o poder político permanecia concentrado nas mãos de um pequeno grupo que exer-cia influência sempre de acordo com seus interesses.

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Assista a 300 (EUA, 2007), dirigido por Zack Snyder. Esse filme narra a história do rei Leônidas I e sua batalha contra os persas, liderados por Xerxes I, interpretado pelo bra-sileiro Rodrigo Santoro. Além disso, ilustra os modos de vida e de organização política em Esparta. Retrata, também, a severa educação guerreira a que eram submetidas as crianças espartanas e que fez de Esparta uma referência bélica no mundo antigo.

2.1.3 A noção de cidadania em Atenas

Do século IX a.C. ao século VI a.C., vigorou, em Atenas, o regime aristocrático. Os eupátridas (os “bem nascidos”) dominavam as extensões de terras. Um pequeno número de magistrados, divididos em polemarcas e arcontes, administravam os rumos da cidade. A justiça, por sua vez, encontrava-se sob o domínio de um minoritário conselho, que, reunido no Areópago, tomava

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suas decisões de acordo com seus interesses. Do outro lado, camponeses e artesãos, empobreci-dos pelas dívidas, submetiam-se à penúria e à escravidão, a fim de saldar os débitos.

O vertiginoso crescimento econômico de Atenas – que, naquele período, estendia seus laços comerciais com todo o mundo mediterrâneo –, no entanto, enriqueceu algumas das camadas pobres, como, por exemplo, os pequenos comerciantes. Com o progresso econômico, essas clas-ses começaram, então, a pressionar a aristocracia, em busca de maior participação nos destinos da cidade.

Para amenizar os conflitos iminentes, Drácon, legislador ateniense, por volta do ano 620 a.C., redigiu o Código de Drácon. A despeito de sua base no direito público e universal, o código draconiano não conseguiu derrubar a hegemonia aristocrata. Por essa razão, Atenas vivia ainda sob as ameaças e os conflitos entre as classes populares revoltosas e a aristocracia dominante.

Para caminhar em direção à democracia, em 594 a.C., Sólon, eminente arconte ateniense, elaborou uma série de medidas que culminariam no fortalecimento das classes mais pobres. Em primeiro, perdoou as dívidas dos pobres e acabou com o “sistema de escravidão por endivida-mento”, conforme nos esclarece Funari (2002, p. 33). Além disso, Sólon fortaleceu a assembleia popular, a Eclésia, e desvinculou os direitos políticos e cidadãos dos privilégios de nascimento, de sangue e de família, vinculando-os, agora, à fortuna. Sólon instituiu também a Bulé, espécie de tribunal popular que, mais tarde, por volta do século V a.C., iria se sobrepor às instituições aristocráticas dos arcontes e do próprio Aerópago.

Mesmo com os significativos avanços na distribuição dos direitos políticos e cidadãos, Atenas permanecia ainda sob o domínio de um pequeno grupo, os aristocratas. Por isso, Clístenes, importante estadista ateniense, propôs um conjunto de medidas que, de certa forma, alteraram substancialmente o cenário político ateniense. De início, reagrupou as tribos e alterou o sistema de votos e de representatividade política. Conforme comenta Funari (2002, p. 34):

[...] as antigas quatro tribos hereditárias foram substituídas por dez tribos definidas por seu território geográfico, a Bulé passou de quatrocentos a quinhentos membros, escolhidos por sorteio, o campo foi dividido em tritias (três por tribo), cada uma com um certo número de demos. A partir daí, todo cidadão estava alistado em um demos e podia votar na assembleia.

Atenas, nos tempos de Clístenes, caminhou definitivamente para a consolidação da democracia e da participação de todos nos assuntos da cidade. A figura do cidadão começou, aqui, a ser reconfigurada.

Outro personagem importante para a compreensão da cidadania e das instituições democráticas atenienses é Péricles, líder dos democratas. Em meados de 469 a.C., por lei, ele estendeu aos pobres, e não mais apenas aos ricos, o direito de ocupar cargos políticos nos âmbitos legislativos e executivos, reconfigurando irrecorrivelmente a composição política e cidadã ateniense.

De acordo com os historiadores, a partir do século V a.C., Atenas viveu o apogeu do regime democrático. Todos os cidadãos influíam diretamente nos rumos da cidade, por meio da Eclésia, em praça pública. Contudo, vale ressaltar, em contrapartida, os limites da democracia ateniense. Em Atenas, o direito à cidadania era reservado a todos os cidadãos, desde que homem, maior de 18 anos e ateniense (pai e mãe atenienses). Os direitos cidadãos, de acordo com Funari (2002, p. 36), consistiam em três direitos fundamentais:

• liberdade individual;

• igualdade com relação aos outros cidadãos perante a lei;

• direito à palavra nas reuniões da Assembleia.

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As reuniões da Eclésia aconteciam, ordinariamente, dez vezes ao ano. Para cada reunião ordiná-ria, no entanto, havia outros três encontros extraordinários. Logo, ao longo do ano, aconteciam, em geral, 40 encontros, entre ordinários e extraordinários. Da Eclésia, as proposições dos cida-dãos eram enviadas à Bulé para serem comentadas, revistas e emendadas. Em seguida, os co-mentários, os vistos e as emendas retornavam para aprovação da Eclésia. Às decisões da Eclésia não se admitia apelação. Para resguardar as decisões da Eclésia, afastando-as da leviandade, havia o Senado, cuja função era aconselhar e direcionar os cidadãos às questões de interesse público, propondo, para tanto, projetos de decreto, entre outros.

Observe um exemplo da importância dada à participação cidadã em Atenas: a partir de 395 a.C., aos cidadãos que efetivamente participassem das assembleias era pago um valor corres-pondente ao trabalho/dia, pois as assembleias, em geral, prolongavam-se por todo o dia, invia-bilizando a participação daqueles que, por suas condições, não podiam abrir mão do sustento diário. Com essa medida, os cidadãos mais pobres puderam também assumir sua cidadania e participar efetivamente da administração da cidade.

2.1.4 O nascimento do conceito moderno de cidadania

A modernidade, por inúmeras razões, significou um período de profundas transformações na sociedade. No campo religioso, por exemplo, os movimentos da Reforma e da Contrarreforma, vindos desde a Idade Média, culminaram nessa época. Na política, a modernidade marcou o fim do Estado monarquista absoluto e o surgimento dos primeiros Estados nacionais. Mais espe-cificamente no século XVIII, ocorreram as grandes revoluções no campo das disputas políticas: Revolução Americana (1776), Revolução Francesa (1789) e Revolução Industrial, cujos princípios se estenderiam aos séculos seguintes, séculos XIX e XX. Quanto às investigações filosóficas e científicas, os séculos XVII e XVIII assistiram ao aparecimento das mais ilustres personalidades da humanidade: Voltaire, Montesquieu, Diderot, Rousseau, Locke, Hobbes, Kant, entre outros. As ar-tes, por sua vez, viram despontar nomes como Mozart, Beethoven, entre tantos. Indubitavelmente, a modernidade representou, para a história universal, um período extremamente profícuo.

Como a modernidade influenciou as ciências? Assim como na política, foi um período de intensas transformações. No século XVII, Copérnico propôs a mudança do modelo geocêntrico para o heliocêntrico. Tycho Brahe introduziu a moderna ideia de órbita. Kepler teorizou a respeito do movimento elíptico dos planetas. Galileu formulou os princípios da inércia e Newton introduziu a lei da gravitação universal e o cálculo infi-nitesimal. Foi um século e tanto, não é mesmo?

NÓS QUEREMOS SABER!

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Figura 2 – Ilustração da Revolução Francesa, de Ferdinand Delacroix. “Liberty on the Barricades” (1830).

Fonte: Shutterstock, 2015.

O século XVII definiu, também, novos rumos para a ideia de cidadania. Na modernidade, o con-ceito de cidadania, assim como para os gregos dos séculos V e IV a.C., encontrava-se também organicamente ligado à ideia de direito, conforme demonstra Coutinho (1999). Contudo, sobre-tudo no primeiro momento, e ao contrário dos gregos antigos, a noção moderna de cidadania vinculava-se mais precisamente “à ideia de direitos individuais ou ‘civis’”, segundo nos indica Coutinho (1999, p. 43). De acordo com o autor, a ideia que melhor expressa o volume das transformações políticas ocorridas na modernidade e que melhor representa o desenvolvimento das instituições democráticas naquele período é a de cidadania. Para compreender essa questão, veja como o pensamento moderno concebeu o tema da cidadania.

O filósofo liberal John Locke, que viveu na Inglaterra do século XVII, ao elaborar seu pensamen-to político, propôs a existência de direitosnaturais. Para Locke, o homem, em sua condição individual, possui uma série de direitos naturais e, a fim de mantê-los em sua integridade, deve confeccionar, em conjunto com os demais homens – também detentores de direitos naturais –, um Estado e um governo, por meio do contratosocial.

John Locke nasceu na cidade de Wrington, no sudoeste da Inglaterra, em 1632. Era filho de advogado e pequeno proprietário de terra. Em 1646, começou a frequentar a Escola de Westminster. Em 1625, em Oxford, matriculou-se no Colégio Christ Church. Foi membro da Real Society e, em 1689, publicou “Dois tratados sobre o Governo”, um dos marcos e o fundamento do liberalismo político. Viveu 72 anos, falecendo em 1704.

VOCÊ O CONHECE?

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Figura 3 – John Locke.

Fonte: Shutterstock, 2015.

No contrato social,

[...] cada homem é ao mesmo tempo legislador e sujeito. Ele obedece à lei que ele mesmo fez. Isso pressupõe uma vontade geral distinta da soma das vontades particulares. Cada homem possui, como indivíduo, uma vontade particular; mas também possui, como cidadão, uma vontade geral que o conduz a querer o bem do conjunto do qual é membro (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, s/p).

Sem o contrato social, os direitos naturais dos indivíduos estariam ameaçados, na medida em que, fora da proteção do Estado, vigoraria a condição humana pré-política, em outros termos, a condição do estado de natureza.

No estado de natureza, conforme Locke prevê, o homem se submeteria a um ininterrupto estado de guerra de todos contra todos. No estado de guerra, as disputas são travadas fundamental-mente por meio da coerção, dos privilégios da força e da brutalidade. Para escapar dessa con-dição primitiva, os homens confeccionaram o Estado, cujo papel é o de garantir a manutenção dos direitos naturais do homem, como, por exemplo, o direito à propriedade.

De acordo com Coutinho (1999, p. 44):

[...] esse conceito de ‘direito natural’ – de direitos que pertencem aos indivíduos independentemente dos status que ocupam na sociedade em que vivem – teve um importante papel revolucionário em dado momento da história, na medida em que afirmava a liberdade individual contra as pretensões despóticas do absolutismo e em que negava a desigualdade de direitos sancionada pela organização hierárquica e estamental própria do feudalismo.

A afirmação de Locke de que o direito individual antecede e é mais abrangente que o direito institucional e o direito positivo – aqueles instituídos pela letra da Lei – alterou significativamente os rumos das relações políticas e, por consequência, das relações entre os cidadãos no período da modernidade. Nas palavras de Coutinho (1999, p. 44), “os direitos têm sempre sua primeira

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expressão sob a forma de expectativa, de direitos, ou seja, de demandas que são formuladas, em dado momento histórico determinado, por classes ou grupos sociais”. Nesse sentido, as per-cepções e aspirações do direito individual dos cidadãos constituem a essência das proposições positivas do Direito. Logo, o Direito nasce nos e por meio dos anseios individuais e das sensações de direito individuais.

Para compreender melhor essa questão, observe o exemplo dos trabalhadores das fábricas.

CASONa época da Revolução Industrial, os operários trabalhavam entre 14 e 16 horas por dia. Para acelerar o processo produtivo, naquele tempo, era permitido que as crianças trabalhassem, com jornadas que variavam, em geral, de 10 a 12 horas diárias. Esse era o cenário da vida operá-ria no final do século XVIII e início do século XIX. A partir do século XIX, os operários, por meio de sua prática política, foram reconhecendo gradativamente suas más condições de trabalho e vida. Por isso, reunidos, deram início a uma longa luta, a fim de que fosse determinado, entre outras pautas, um limite instituído em Lei para a jornada de trabalho, em consonância com as constatações, já famosas, das “leis do mercado”. No Brasil, por exemplo, apenas em 1932 foram promulgadas as primeiras leis que regulamentavam o limite da jornada de trabalho dos trabalhadores para 8 horas por dia.

A teoria do jusnaturalismo de Locke marca, portanto, uma severa distinção com relação à com-posição dos direitos nos períodos anteriores à modernidade, sobretudo se assumirmos como referência os paradigmas sociais do feudalismo. Os direitos, na verdade, sempre estiveram pre-sentes em toda e qualquer sociedade, desde os momentos mais remotos da história da civilidade. Contudo, no feudalismo, esses direitos estavam substancialmente determinados, em sua origem, pelo status social que, por sua vez, direcionava aos indivíduos o volume de “justiça” cabível, segundo a proporção da representatividade social. Nos termos de Marschall (1967, p. 64), “na sociedade feudal, o status era a marca distintiva de classe e a medida de desigualdades. Não havia nenhum código uniforme de direitos e de deveres”. A teoria dos direitos naturais não rompe com a distinção das classes sociais. Impõe, no entanto, o princípio da igualdade dos cidadãos, na medida em que defende que todos, sem exceção, nascem detentores de direitos, a despeito do status oriundo das riquezas e das posses.

Na esteira do pensamento político da modernidade, outra importante referência para a conso-lidação do conceito de cidadania pode ser encontrada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Além de listar os princípios que norteariam a redação da Constituição Francesa, de 1791, a Declaração de 1789 funcionou como um manifesto revolucionário, cujo objetivo era decretar, de uma vez por todas, o fim do antigo regime.

Em seus artigos, essa declaração retoma os conceitos vigentes na modernidade, que versavam, entre outras coisas, a respeito dos direitos naturais. Segundo Bobbio (1992, p. 93):

[...] o núcleo doutrinário da Declaração está contido nos três artigos iniciais: o primeiro refere-se à condição natural dos indivíduos que precede à formação da sociedade civil; o segundo, à finalidade da sociedade política, que vem depois [...] do estado de natureza; o terceiro, ao princípio de legitimidade do poder que cabe à Nação.

Você conseguiu compreender a transformação do conceito de cidadania? Ele muda conforme o pensamento humano evolui. Acompanhe o quadro a seguir, que resume as principais caracterís-ticas do exercício da cidadania em diferentes períodos históricos.

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GréciaAntiga Feudalismo Modernidade

Esparta Atenas•A divisão

do direito à cidadania es-tava vincula-da ao status social.

•Nesse perío-do, ocorreu a institucio-nalização da desigualdade de direitos.

•A sociedade dividia-se hierarquica-mente, e sua divisão era estamental, com pouca possibilidade de ascensão social.

•Século XVII: repre-sentou profundas mudanças na organização das sociedades.

•Foram formula-das as primeiras definições do jusnaturalismo liberal, cujo prin-cípio fundamental era a constata-ção dos direitosnaturais, proprie-dade intrínseca e imanente a todos os cidadãos.

•Surgiram as pri-meiras instituições democráticas, com a formação dos primeiros Es-tados nacionais.

•Os moradores de Esparta dividiam--se em espartanos e hilotas, espécie de despojos das conquistas.

•Apenas aos esparta-nos era concedido o direito de adminis-trar a cidade.

•Um pequeno grupo de homens, a Ge-rúsia, governava os rumos da cidade.

•A Gerúsia era formada pelos dois reis de Esparta e mais 28 anciãos, provenientes das classes nobres, com mais de 60 anos.

•Dos séculos IX a VI a.C., vigorava um regime aris-tocrático, cujo critério se assentava nos privilégios de nascimento.

•Nos séculos V e IV a.C., começam as primeiras transformações. A Eclé-sia foi fortalecida, e o critério de participação política passou a ser a fortuna. Foi instituída a Bulé, tribunal popular.

•Em 469 a.C., o direito de influir no destino da cidade foi estendido aos cidadãos pobres que, a partir de 395 a.C., começam a receber uma ajuda de custo para fomentar a participação popular nas assembleias.

Quadro 1 – Síntese da evolução do conceito de cidadania.

Fonte: Elaborado pelo autor (2015).

Inicialmente, na Grécia dos séculos V e IV a.C, a cidadania estava condicionada a uma série de características que determinavam quem estava apto a participar dos destinos da cidade. Mais adiante, a modernidade, sobretudo a partir do século XVII, começou a moldar o conceito de cidadania como é visto hoje. O pensamento do filósofo inglês John Locke está nas raízes do moderno conceito de cidadania, especialmente no que diz respeito à teoria do jusnaturalis-mo, cuja base e fundamento liberais perduram até os dias de hoje. Um importante documento, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, trata a temática da cidadania, desenvolvendo, no âmbito do poder legislativo francês, o pensamento vigente na modernidade em John Locke e outros autores.

2.2 Cidadania hoje: implicações contemporâneasQuando desaceleramos nossos veículos, permitindo que as pessoas, sejam jovens ou idosas, atravessem as ruas, nos sentimos, mesmo que por um instante, mais cidadãos. Nesse momento, compreendemos que, nos dias atuais, sercidadão significa, para além dos suntuosos movimen-tos políticos, pequenas atitudes diárias.

Neste tópico, você estudará as implicações contemporâneas do conceito de cidadania. Inicial-mente, você estudará como a sociologia compreende a composição dos direitos cidadãos, dos direitos civis, políticos e sociais. Mais adiante, verá quais as implicações do avanço tecnológico para a noção de cidadania. Nesse momento, você será apresentado à Lei nº 12.527, de 2011, a Lei do Acesso à Informação, buscando compreender as relações entre tecnologia e cidadania.

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2.2.1 Implicações contemporâneas do conceito de cidadania

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, no caput de seu artigo 5º, apregoa: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (BRASIL, 1988). Ademais, ao longo dos incisos do referido artigo, a Constituição nos apresenta um conjunto de direitos e deveres do cidadão brasileiro.

Afinal, o que significa isso?

Marschall (1967), sociólogo britânico, em seu famoso ensaio intitulado “Cidadania, Classe Social e Status”, propõe a divisão do conceito de cidadania em três partes (ou elementos) aos quais atribui os nomes de cidadania civil, política e social. De acordo com ele, o acesso aos direitoscivis funda-mentais configura a dimensão básica de nossa vida em sociedade. Nesses termos, para ser cidadão, é necessário, em primeiro lugar, possuir certos direitos civis. Nos termos do autor, “o elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual” (MARSCHALL, 1967, p. 63).

Para conquistar tais direitos, é necessário, inicialmente, atravessar um longo processo de luta, com inúmeras derrotas e vitórias. A luta pela garantia dos direitos fundamentais exige nossa in-serção nos mais diversos movimentos, impulsionando-nos a participar dos rumos da sociedade. A essa participação efetiva no bem público e comum – cujo fim pretende questionar e propor caminhos para as instituições democráticas – chamamos direitos políticos. Nesse sentido, o elemento político trata do “direito de participar no exercício do poder público, como membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal or-ganismo” (MARSCHALL, 1967, p. 63). Logo, ao votar e ser votado, estamos exercendo direitos políticos, assim como ao manifestar nosso descontentamento com as diretrizes adotadas por certos governos.

Os direitos civis e políticos, por si só, não garantem a força de uma democracia. Toda democra-cia, quando sólida, fundamenta-se em direitos civis, direitos políticos e, especialmente, em direi-tossociais. Os direitos sociais são aqueles direitos que nos garantem, como cidadãos, usufruir da riqueza coletiva de uma nação. O direito à educação, ao trabalho, ao salário, à saúde, entre outros, são alguns exemplos. De acordo com os argumentos de Marschall (1967, p. 63-64), “o elemento social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade”.

Com base na estrutura proposta por Marschall, podemos compreender que somente exercemos a cidadania plena por meio do conjunto dos direitos civis, dos direitos políticos e dos direitos sociais. Se isolados, tais direitos não correspondem ao exercício pleno da cidadania.

Cortina (2005, p. 28), em seu livro Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania, nos apresenta dimensões complementares que, em seu conjunto, configuram o exercício pleno da cidadania. São elas:

• cidadania política;

• cidadania jurídica;

• cidadania social;

• cidadania econômica;

• cidadania civil;

• cidadania intercultural.

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Segundo a autora, a cidadania é essencialmente política, na medida em que proporciona ao cidadão participar de uma comunidade política. As raízes políticas da ideia de cidadania, con-forme vimos, remontam à democracia ateniense dos séculos V e IV a.C.

Outra dimensão fundamental da cidadania advém de seu caráter jurídico. A definição jurídica de cidadão, sobretudo a partir dos romanos, vincula-se fundamentalmente ao Direito. Segundo Cortina (2005, p. 42), do ponto de vista jurídico, cidadão é aquele que “atua sob a lei e espera a proteção da lei”, ou seja, é “membro de uma comunidade que compartilha a lei”.

De acordo com a abordagem social, a cidadania também se configura por meio das garantias de proteção do Estado nacional, o Estado de “bem-estar” social. Nesse caso, ser cidadão é estar ciente da existência de um “Estado de justiça”, cuja finalidade é proteger e prover, por meio das riquezas, o justo sustento da sociedade, conforme afirma Cortina (2005).

A cidadania econômica, por sua vez, trata do respeito ao direito de participar da gestão e dos lucros de determinados organismos públicos e, também, privados. A cidadania civil, conforme já indicamos anteriormente, trata da legitimação dos valores cívicos.

Por fim, a cidadania intercultural se refere a um projeto ético e político pautado nos valores da interculturalidade, em contraposição aos valores afirmados de modo etnocêntrico.

A interculturalidade parte da percepção do caráter múltiplo das sociedades. Afinal, a característi-ca essencial dos dias atuais é sua diversidade, elemento constitutivo primordial da sociedade. O modus operandi do corpo social está pautado na profunda compreensão da impossibilidade de se calcular a imensa dimensão de modos de ser e de estar possíveis. Nesse ponto de vista, são infinitas as possibilidades de existência nas sociedades. Em contrapartida, os valores etnocêntri-cos estão pautados na supervalorização deste ou daquele modo de existência, em detrimento de todos os demais, até mesmo oprimindo-os.

Nessa perspectiva, para atuarmos de forma cidadã, é preciso inicialmente estar a par do caráter múltiplo da sociedade, admitindo as diferenças e as diversidades existentes. Agir de modo etno-cêntrico, priorizando esta ou aquela cultura como moralmente mais aceita e dominante, pode nos levar a noções equivocadas de cidadania e de pertencimento social. Um gravíssimo exemplo doentio dessa postura etnocêntrica pode ser observado nos modos como, na Alemanha do sécu-lo XX, foram traçados os perfis necessários para participar da cidadania alemã, culminando em um dos mais terríveis capítulos da história da humanidade: o nazismo.

Outro exemplo bastante grave, e mais recente, pode ser observado na postura etnocêntrica de uma jornalista que, em 2013, publicou em uma rede social sua impressão a respeito das médicas cubanas, contratadas pelo Programa Mais Médicos, do Governo Federal. De acordo com repor-tagem do G1 (2013), ela afirmou que as médicas cubanas tinham “uma cara de empregada do-méstica”, temendo, por isso, a ineficiência dos serviços médicos a serem prestados à população. Sua postura é duplamente etnocêntrica, na medida em que, em primeiro, associa aparência e competência, indicando que a aparência impactaria, necessariamente, nas aptidões médicas das profissionais cubanas, e, em segundo, porque pretende instituir, a rigor, uma aparência pejorati-va associada às empregadas domésticas.

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Desenvolvimento humano e social

Figura 4 – A interculturalidade é a marca distintiva da diversidade.

Fonte: Shutterstock, 2015.

A questão central a que nos dedicaremos, a partir da compreensão da ideia de cidadania de-senvolvida até o momento, circunscreve-se às seguintes problemáticas: quais as implicações da noção de cidadania para o mundo contemporâneo? Do ponto de vista da consolidação das de-mocracias, quais os aspectos que ainda são frágeis com relação à participação do cidadão? E, por fim, quais as configurações possíveis para a ideia de cidadania, a partir do avanço tecnoló-gico e industrial, sobretudo quando nos referimos ao crescente desenvolvimento das tecnologias de comunicação no mundo contemporâneo?

O mundo produz, a cada instante, novas exigências decorrentes de seu prodigioso crescimento e desenvolvimento. Todos os dias, novas configurações sociais emergem. As minorias, antes aquie-tadas pelos processos dominantes, hoje se fazem ouvir por meio dos mais diversos mecanismos de comunicação, como a internet, entre outros.

A participação das mulheres na vida política pode nos indicar, por exemplo, quão marcantes são as diferenças entre o mundo contemporâneo e o passado. Do ponto de vista histórico, a inserção das mulheres na vida política faz parte de um processo extremamente recente. No Brasil, apenas tardiamente, em novembro de 1927, surgiu em Mossoró, no Rio Grande do Norte, a primeira eleitora. Na Itália, a despeito da solidez de suas instituições democráticas, as mulheres perdura-ram ainda mais tempo à margem da participação política, sendo impedidas de votar até 1946. Trata-se, portanto, em comparação às centenárias instituições democráticas, de um processo ainda embrionário, com pouco mais de meio século.

A despeito disso, as mulheres, que antes eram impedidas do exercício do voto, hoje já ocupam importantes cargos no executivo, no legislativo e no judiciário. As grandes empresas têm assumi-do a importância do gerenciamento feminino. No Brasil, na Alemanha e em outros importantes países da economia mundial, por exemplo, as mulheres estão à frente das instituições democrá-ticas, ocupando os cargos executivos de primeiro escalão.

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Figura 5 – Manifestante em luta pelo direito ao voto feminino em Fort George, na Escócia.

Fonte: Shutterstock, 2015.

O Relatório Anual Socioeconômico da Mulher – Raseam 2014, produzido pela Secre-taria de Política para as Mulheres, é um importante documento que, periodicamente, apresenta à sociedade brasileira um conjunto de dados relativos à participação das mulheres nos diversos âmbitos da vida nacional e, especialmente, no mercado de tra-balho. Acesse em: <http://www.spm.gov.br/central-de-conteudos/publicacoes/publi-cacoes/2015/livro-raseam_completo.pdf>.

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Vivenciamos outros tempos para a cidadania e para a democracia. Por isso, é preciso compre-ender as implicações do conceito de cidadania no mundo contemporâneo, para que possamos traçar os limites de nossa ação. Do ponto de vista profissional, político e ético, receberemos os benefícios da ação cidadã consciente em relação a nós mesmos e aos demais cidadãos.

2.2.2 Tecnologia e cidadania: a experiência brasileira

Com os avanços tecnológicos, os limites do exercício da cidadania foram estendidos para o espaço quase infinito das redes. A participação política passa necessariamente pelas diversas re-des sociais. As manifestações de junho de 2013 são um significativo exemplo de como o avanço tecnológico alterou essencialmente os modos de exercício da cidadania, sobretudo no caso bra-sileiro. Milhares de pessoas foram conclamadas às ruas por meio dos dispositivos tecnológicos. Além disso, outros milhares, mesmo na comodidade de suas casas, puderam participar em tempo real das manifestações, também por meio dos diversos dispositivos de comunicação. Ao com-

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partilhar suas posturas políticas ou comentar as posições alheias nas redes sociais, os cidadãos travam, entre si, o debate político que antes, na Grécia dos séculos V ou IV a.C., por exemplo, ocorria na praça pública, demandando intenso movimento organizativo. Agora, o cidadão pode estar conectado a um sem-número de informações, refletindo e discutindo sobre elas quase no mesmo instante em que ocorrem em qualquer parte do mundo.

Figura 6 – As redes sociais participam intensamente da vida contemporânea.

Fonte: Shutterstock, 2015.

No Brasil, uma importante experiência relacionada à tecnologia e à cidadania pode ser cons-tatada pela aprovação da Lei nº 12.527, promulgada em 18 de novembro de 2011. É a Lei de Acesso à Informação, que garante aos cidadãos interessados acesso às informações dos poderes judiciário, executivo e legislativo nos âmbitos municipal, estadual, distrital e federal.

Por meio dos mecanismos tecnológicos, a Lei de Acesso à Informação institui um novo paradig-ma de atuação cidadã, regulamentando um direito essencial: o de “receber dos órgãos públi-cos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral” (BRASIL, 2011). Ao garantir a publicidade imediata dos atos públicos, a tecnologia produz uma nova forma de participação cidadã, reduzindo substancialmente a distância entre os cidadãos e as instituições democráticas. De suas casas, os brasileiros podem atuar de forma cidadã, conhecendo e ques-tionando os gastos públicos, os contratos públicos, enfim, a coisa pública.

O acesso à vida pública, em todos os campos da atuação pública e em todos os âmbi-tos, após a promulgação da Lei nº 12.527, foi democratizado. Todos os brasileiros têm direito à publicidade dos atos públicos e, além disso, a requerer dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, coletivo ou geral. Conheça você também esse novo modo de atuação cidadã. Acesse: <http://www.acessoainformacao.gov.br>.

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Neste tópico, você conheceu as implicações contemporâneas do conceito de cidadania. Em um primeiro momento, você viu a composição dos três direitos essenciais: o direito civil, o direito político e o direito social. Mais adiante, estudou como o mundo contemporâneo, em suas rela-ções políticas e sociais, alterou substancialmente o modo de compreender e praticar a cidadania. Finalmente, você leu sobre a experiência brasileira da aplicabilidade da tecnologia na prática ci-dadã, especialmente com a Lei nº 12.527, a Lei de Acesso à Informação. Também compreendeu como a vivência da cidadania é possibilitada por meio dos mecanismos tecnológicos.

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Síntese• Em meados de 2013, o Brasil vivenciou um intenso movimento de manifestações

populares de descontentamento com relação às práticas governamentais. Esses protestos conclamavam os brasileiros à rua, a fim de que participassem, de forma cidadã, das questões do país.

• Para compreender a evolução histórica do conceito de cidadania, é preciso retornar aos tempos da Grécia arcaica e analisá-la sob a ótica dos movimentos contemporâneos. Para entender a noção de cidadania vigente nos séculos V e IV a.C., é preciso avaliar como Atenas e Esparta, as mais relevantes cidades gregas, traçaram os paradigmas da participação cidadã.

• A modernidade representou, para a história universal, um período de profundas transformações em todos os âmbitos da vida humana: nas ciências, na economia, na política, etc. Os séculos XVII e XVIII figuram entre os mais importantes da história do homem. Nesse período, o filósofo inglês John Locke lançou as bases do pensamento do liberalismo, reconfigurando o conceito de cidadania por meio da compreensão do caráter natural dos direitos dos homens.

• A noção contemporânea de cidadania, de acordo com a Sociologia, está assentada na ideia de direitos civis, políticos e sociais. A análise da cidadania demanda a compreensão de suas relações com os modernos mecanismos comunicacionais, na medida em que estes estreitaram as distâncias entre as entidades políticas e o cidadão comum e impactam diretamente no exercício da profissão.

• A Lei de Acesso à Informação, Lei nº 12.527, de 2011, é um importante exemplo de como a internet pode propiciar o aumento da participação dos cidadãos na administração da coisa pública, na medida em que impõe a publicidade imediata dos atos públicos e o acesso à informação da administração pública, regulamentando um dispositivo legal presente na Constituição Federal, de 1988.

• A compreensão da noção fundamental de cidadania e responsabilidade social impacta diretamente nos modos de exercício das profissões, na medida em que impõe a reflexão a respeito das sociedades contemporâneas e dos modelos éticos de convivência com os demais componentes do corpo social.

Síntese

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______. Leinº12.527. Brasília, 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações pre-visto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constitui-ção Federal; altera a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei nº 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm>. Acesso em: 22 maio 2015.

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