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José Leon Machado

VercialEdições

Os Aduladores da Gravata

Textos sobre língua, culturae literatura portuguesas

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Gordura, formosura

Do ponto de vista adiposo, as pessoas fazem por ignorar esse bem, esse mal na nossa moderníssima sociedade. Os homens pré-históricos lapidaram estatuetas que mostravam a gordura ser um mérito. São as chamadas Vénus de Milo, toscas formas de mulher com peitos, ancas e ventre enormes. A gordura era venerada como sinal de fertilidade. Claro que os gostos estéticos dos nossos antepassados não eram de modo nenhum os atuais ou os dos povos antigos, como os gregos. Estes amavam a forma perfeita, o belo. Facilmente depreendemos isso das maravilhosas esculturas que nos deixaram e a cada passo são roubadas dos museus da Grécia, colega de Portugal na CEE em igualdade de circunstâncias.

O velho ditado da nossa terra – não sei se é muito velho – «Gordura é formosura», escapa a toda a conceção de beleza clássica e herdada pela sociedade chique atual. Não sei se o provérbio saiu pela primeira vez da boca de algum venerando obeso, para desculpar o seu peso, ou por os dois vocábulos, por circunstâncias convenientes, rimarem entre si.

O certo será que os portugueses, na sua maioria, preferem as mulheres cheiinhas às mais palitadas.

Os países menos elegantes da Europa, analisando-os através do conceito de beleza clássica, são a Alemanha e Portugal. É onde se veem mais obesos. A Alemanha, por ser muito habitada e agora, com a unifi cação, tem 25% da banha europeia – segundo fontes fi dedignas. – Portugal anda nos 4,3%, o que é demasiado, se fi zermos as contas ao número de habitantes. Dará, em dez milhões, 80% de gente pançuda. As causas da adiposidade na Alemanha serão talvez devidas à ingestão abrupta de salsichas e cerveja. Na nossa terra o caso é outro.

Uma dieta à base de carne de porco, pão e arroz – somos

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os maiores consumidores de arroz da Europa –, sem esquecer a pinguinha essencial, que sem ela o resto não escorrega, alarga as ancas às mulheres, as barrigas aos homens numa rusticidade, numa falta de equilíbrio tal, que envergonha os nossos parceiros comunitários.

Os alemães, por mais gordos que sejam, a sua grande estatura disfarça o excesso. E são, podemos dizer, um povo aceitavelmente aprumado. Nós – eu não sou gordo, mas para lá caminho –, sendo por natureza baixos, com a banha no lombo fi camos atarracados, fi guras de bobos da corte sem graça.

E não adianta a aeróbica e o ballet para as senhoras, a ginástica e a musculação para os homens. Aliás, na nossa terra, vê-se mais desporto do que aquele que se pratica. Enquanto se comer mal, se pensar mal, viver-se-á mal. É uma questão de mentalidade, de estômago. E, afi nal, «Gordura é formosura».

Correio do Minho, 7 de novembro de 1990, secção “Depilações”

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A «embragar» o trânsito Um sobrinho meu contou-me uma história que, se eu ainda

os tivesse, me punha os cabelos em pé. E vou contá-la, tal como a ouvi da sua boca:

«O tio quer saber o que me aconteceu um destes dias? Você sabe que eu, quando vou às aulas na Faculdade de Filosofi a, estaciono o carro no Largo das Teresinhas. Há quatro anos que o faço e nunca houve problemas. Sempre o estacionei no mesmo sítio, nunca houve motivos para me chamarem a atenção talvez porque sou bastante cuidadoso nesses assuntos. Faço o possível por cumprir o código e até agora nunca fui multado. E já tenho carta há sete anos! Pois parece que a viatura, apesar de pequena e velha, começou de repente a incomodar os senhores agentes de segurança.

Recebi em casa um aviso da PSP para pagar uma multa por ter posto o carro no Largo das Teresinhas «a embargar o trânsito». Fui à esquadra saber do evento e disse-lhes que achava estranha aquela multa: o local onde estaciono não tem sinal de proibição e quanto a embargar o trânsito, só se fosse um camião TIR com dois atrelados a querer passar na ruela. Mas não; o problema não era o trânsito de veículos. O problema é que o carro estava «a embargar o trânsito a piões». Continuei a achar estranho. Mas quem vai compreender os meandros sombrios da lei e sua aplicação? O carro em cima do passeio não estava, porque nem sequer há passeio; peão, nunca vi nenhum que lá passasse, a não ser talvez naquele dia o senhor agente de segurança, a fazer uma das suas rondas, ou, quem sabe?, a ir espiar as pernas das meninas da Faculdade à hora da saída para o almoço. Querido tio, que lhe parece?»

Que me parece? Preferi encolher os ombros. O meu sobrinho sempre exagera um pouco. Sai ao tio... De qualquer forma, vou pronunciar-me agora, que não está presente o meu sobrinho, rapaz sensível que eu não quero melindrar e nem costuma ler o Correio.

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Em Braga, a caça à multa é já uma calamidade. Tudo serve para apanhar alguns contos de rei em selos ao Zezinho. Claro que o código de estrada é para cumprir. E não me pronuncio acerca das coimas mais que justifi cadas a certas contravenções, como excesso de velocidade, estacionamentos proibidos, passagem no vermelho, paragens na via ou sobre os passeios, atropelamento de piões, etc. E nessa medida, Braga é também calamidade. A Avenida Central, da Liberdade, o Campo da Vinha, a Rua dos Chãos e a Praça do Município são zonas em que o trânsito se torna impossível. O problema é porque se multa, a quem se multa e quem multa.

Porque se multa depende das infrações ao código ou da predisposição do agente de trânsito. Se ele teima que há infração, mesmo que só na própria cabeça, ninguém o demoverá de escrevinhar no bloco. Claro que, se for o sr. engenheiro fulano de tal, o sr. doutor sicrano ou o sr. comerciante que tem ali na esquina uma loja de pronto a vestir ou o sr. dono do café em frente, mesmo que estacione o carro debaixo da Arcada enquanto vai comprar um maço de tabaco, as coisas serão bastante diferentes. E então temos o problema de a quem se multa. O sr. agente, quando precisa de umas calças ou de um cafezinho, até sabe onde há de entrar...

Quem multa muitas vezes não é aquela fi gura da autoridade pública simpática, educada e ao mesmo tempo competente no seu trabalho. Forjados à pressa (para poupar tempo e dinheiro), os nossos agentes primam – algumas vezes – pela brutalidade e má educação. Alguns têm até difi culdade em soletrar o nome dos infracionários impresso nas cartas de condução. Há países em que os agentes policiais têm de ter um curso de Direito.

Pedi ao meu sobrinho paciência. Eu também já fui muitas vezes multado, graças a Deus; e hei de sê-lo, se Deus quiser. Nós, os moradores de Braga, sabemos que nem sempre são os nossos carros estacionados que embargam o trânsito. Outros andarão por aí a “embragar” mais do que nós.

José Velho

Correio do Minho, 27 de fevereiro de 1992, secção “Depilações”

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Na queda de um furo

Depilações voltam ao domínio público com uma nova face que não é velha e é a mesma. Velha é nossa avó, se ainda não morreu, e as nossas teias de aranha com ranço retardado que lhe dão aquela aparência de es(mer)al(da) sem brilho. No início deste ano de 1893 (não é gralha!), porque pensamos defraudar um pouco mais os nossos escassos leitores, e após umas curtíssimas férias de seis meses (julho-dezembro), regressamos.

Neste entrementes, viajámos por alguns países civilizados da Europa (Marrocos, Bangladesh, Somália e Bolívia) para nos cultivarmos e arranjar assunto para as nossas crónicas.

O jornalismo carrancudo, onde a verdade, a seriedade, a objetividade e outros termos que tais em -dade eram apanágios inamovíveis, entrou em franca decadência. Assim como os bancos, os seguros, os serviços públicos e privados, o jornalismo tornou-se também personalizado, dirigindo-se a cada indivíduo pertencente à grande multidão anónima dos cidadãos. É oximórico, mas corresponde ao que hoje se planeia nas diretorias dos multimedia que nos dominam e governam. Quem molda as ideias e as aspirações dos portugueses já não é o sermão do padre na missa ou na novena, nem o discurso patriótico e moralista do sr. Presidente do Conselho na Emissora Nacional. São os cronicões dos jornais e os apresentadores da rádio e da televisão.

O poder dos meios de comunicação está mais que comprovado. Tendo consciência disso, os seus técnicos e gestores tentam, através deles, ganhar o público e estuprar as inteligências dos que não nasceram para pensar por si próprios. Se não vejamos: bastou a televisão alertar para as «coitadinhas das criancinhas bósnias», que logo apareceram milhares de almas caridosas a oferecerem-se para receber em seus humildes tugúrios as coitadinhas. Todavia, a oferta não chegou para a procura e

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muitas dessas almas não puderam realizar a boa ação do dia. Andam todos a fazer o que a televisão manda.

A opinião pública é um mito. Existe a opinião de alguns projetada na multidão anónima através dos media. «Eu sou o pastor, vós sois o rebanho», dizia Cristo. O «Maria vai com as outras» também se aplica. O comando da gentinha portuguesa pela comunicação social é lamentável. Ficaria bem citar o editorial do n.º1 da revista Kapa: «Não há expressão mais mentirosa do que comunicação social. Hoje não se comunica, informa-se. A verdade é que nunca houve tantas bestas bem informadas. O diálogo com o leitor é uma treta em que ninguém acredita: hoje as pessoas informam-se em vez de tentar compreender».

Que propomos para o reinício de Depilações? Uma desin-toxicação do excesso informativo (como se vai fazendo por esses poucos centros de recuperação de jovens drogados) e pôr aqueles que nos leem a pensar dialogando. Estamos fartos, fartíssimos de sermos interrompidos em cada hora nas rádios por locutores desejosos de nos informarem daquilo que já sabemos; enfartados de telejornais nos não se sabe quantos canais de televisão, onde o sangue e o macabro à hora do almoço e jantar nos tiram o apetite; aborrecidos com o desaproveitamento das páginas dos jornais cheias de repetições daquilo que passamos o dia a ver e ouvir.

Defendemos a agressividade sem agressão, o despudor sem baixar as calças, a denúncia sem o tribunal. Da nossa parte, poremos de lado o rifão que anda na boca de taralhoucos e fi nórios «a pensar morreu um burro» e faremos bandeira (desportiva!) do cogito, ergo sum de Descartes. Pensem e venham dizer-nos qualquer coisa. Senão, iremos nós ter convosco, ao vosso sofá, ao café, à rua, à cama.

Correio do Minho, 20 de janeiro de 1993, secção “Depilações”

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Diário de um esfaqueado

A noite gélida aquecia o espírito de quem se desejava solitário e melancólico. Desesperado com a minha inutilidade, saí pelas ruas desertas de burgueses que dormiam já ou punham os chavelhos aos cornúpetos esposos em residenciais discretas e cómodas.

Desejaria ter deixado o pensamento em casa, mas, à semelhança de um espião em dia de folga, teimava em perseguir-me. Até que o autorizei a aproximar-se e ambos íamos dialogando num solilóquio interiormente impossível.

Evitava a biqueira da bota sobre algum resto de corrimento nasal de transeunte diurno constipado ou simplesmente catarrento, quando percecionei – ou pelo menos percecionaram-no as minha orelhas transidas de frio mais preocupadas em recolher-se entre o cabelo das têmporas do que atentar no que poderia surgir à sua volta – percecionei, dizia, um singular estribilho de lima de unhas num fecho de porta.

Era no meu carro, no meu querido automóvel que tanto me tem custado a pagar. Alguém que não era eu tentava desobstruir a porta e possivelmente entrar. Quedei-me a apreciar, as mãos enfi adas nas algibeiras demasiado pequenas para o seu tamanho (calças de saldos!...) e o meu pensamento foi-me aconselhando sobre o que deveria ou não fazer: fugir ou fi car, fi car ou fugir. Fiz contas de cabeça à vida e permaneci no dilema. O corpo a empurrar para a fuga; o pensamento a impelir-me a defender a minha propriedade.

Fui gatuno um dia, quando roubei a virgindade a uma vizinha que, coitada, já casou (não comigo) e tem dois fi lhos (um é meu). Desse crime me penitencio porque crime não o entende assim o Direito Natural (cf. Rousseau e o código de Hamurabi com as XII Tábuas em cima mais as duas de Moisés a

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imporem autoridade). Me penitencio também de quando matei o entusiasmo e o otimismo que fi zeram navegar as velas do meu íntimo. Para não falar da morte de um gato, porque essa fora involuntária num momento de raiva contra a Humanidade que não é gata.

Ia a meio das contas e já o desconhecido, sentado ao volante, tentava uma ligação direta. Esforcei uma coragem que não vinha e avancei meio passo. As botas chiaram no alcatrão dando azo a que o fi nório voltasse a vista e reconhecesse o perigo. Enfrentou-me num olhar de musgo. Depois continuou o trabalho.

– Ó seu fi lho da pata! – grunhi, num rasgo de ânimo impetuoso com ressaibos de grosseria vinda sabe-se lá donde. – Tire essas unhas suínas do meu carro!

O desconhecido não se intimidou. Abriu o vidro, pois havia já conseguido entrar, voltou a olhar-me e exclamou:

– Mas afi nal que quer? Não sabe que estou em serviço? Vá mijar a outra esquina.

Tremi confuso com a resposta. Todavia, insisti, avançando mais meio passo:

– Não ouviu o que eu disse? Ponha-se já daí para fora ou chamo a polícia.

– Ó homem, quer deixar-me em paz?Se houvesse arames no local, com certeza teria lá fi cado

pendurado. Atirei-me para a frente e larguei o corpo atrás. O desconhecido abriu a porta, saiu e esperou, braços em cruz e pescoço gordo levantado como peru pronto a defender o que lhe pertencia.

– O carro é seu? – perguntou-me. – Veja lá se o carro é seu. Se o carro não é seu, meta o nariz no traseiro e desande daqui.

Desci dos arames que não havia, arregacei as mangas que me custaram a subir por serem de sobretudo, e cheguei-me a ele:

– Seu fi lho de uma grande pata! Volta a pôr as mãos no automóvel e amasso-o todo!

O desconhecido agarrou-me no braço e uma dor no lado

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esquerdo do ventre fez-me acordar numa cama de quarto a cheirar a éter. A enfermeira, fria como as minhas orelhas (engraçado! agora estavam quentes...), sossegou-me:

– Pronto, já passou. Um arranhão de nada. O sr. doutor tirou-lhe um centímetro de intestino apenas. Ainda lhe restam bastantes metros para toda uma vida de digestão.

Correio do Minho, 18 de fevereiro de 1993, secção “Depilações”

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Hotel em ruínas

Entrei numa farmácia a comprar um analgésico para as dores de cabeça. Enquanto esperava que o funcionário terminasse de fazer o pequeno embrulho, ouvi a meu lado um miúdo a pedir a uma outra funcionária:

– Uma embalagem de preservativos...A funcionária, de bata branca e ainda fresca em idade,

olhou-o com afetado ar inquiridor. O miúdo corou. Preferia ter sido o funcionário a atendê-lo. Era homem e compreenderia a situação. Agora, pedir uma caixa de camisas a uma mulher era sempre de encavacar. Num ato de coragem, meteu as mãos trémulas nas algibeiras e refez o pedido. A mulher sorriu cúmplice e perguntou:

– De que marca?– Daqueles... dos que dão na televisão.– De quatro ou de doze?– Qual é a diferença?– De quatro só dá para uma vez... ou duas. Com doze muita

coisa se pode fazer...– Levo a de quatro.Paguei o meu analgésico e saí. Fevereiro denotava sinais de

tempo ameno, a estação das fl ores e dos beijos rebentaria a qualquer momento. Todavia, como andava resfriado, encasaquei-me para sair de casa. O miúdo vi-o ultrapassar-me na rua como seta (de Cupido?). Não passava dos quinze anos, a cara coberta de acne, metido num blusão volumoso que a juventude gosta de vestir. A caixa mágica do amor apertava-a num dos bolsos. Invejei-o, não pelo que iria fazer, mas pelo nervosismo de um rapazinho em que a única grande coisa importante era experimentar, descobrir as sensações desde um início primordial.

O dia de São Valentim hoje. Talvez o miúdo nem tivesse

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comprado nada para oferecer à rapariga, um ramo de fl ores, uns bombons, um perfume... Talvez o único presente seja ele mesmo, na sua inexperiência. Teriam marcado encontro à noite, num local escuso, longe de vistas inconvenientes. Talvez se possuam a medo, na rapidez do receio e do desejo da satisfação impossível.

O hotel em ruínas está para eu o olhar enquanto passo. Ardeu e no entanto não se apercebem marcas de fumo ou fogo. É alto, para lá da minha cabeça, o telhado desmoronou-se, as janelas de vidros quebrados têm as portadas abertas e eu entro e vejo a alma cega que me cabe. Fora construído nos anos vinte, parece, e os burgueses que vinham passar um mês às Termas eram os seus clientes habituais. Davam-se festas e banquetes, pagos com o di-nheiro do Brasil. Agora resume-se a paredes onde se descobre ainda o amarelo original, um pequeno lago onde peixes vermelhos nada-vam, e um abeto grosso desproporcionalmente triste. Era dentro destas ruínas que alguns namorados costumavam encontrar-se, numa troca sôfrega de beijos, de prazeres momentâneos, fugazes.

– É uma vergonha! – dizia a gentinha da vila.E organizou-se até uma comissão para zelar pela moralidade

nas ruínas do hotel. Todas as noites a guarda, a ver se apanhava algum casalinho, fazia ronda e certa vez agarrou o fi lho do presidente da Câmara com a fi lha do chefe dos Bombeiros. As rondas terminaram, mas os pais das donzelas olhavam sempre com receio o monstro escuro que lhes roubava a pureza às fi lhas.

Talvez aquele miúdo dos preservativos tenha descoberto um melhor local, um quarto quente e iluminado, as traseiras de um automóvel... Mas nada tira a sensação única de um hotel em ruínas, nas paredes musgosas e húmidas de um quarto sem teto, mas com tanto para dizer se houvesse ouvidos para escutar. Destroço do tempo o deixo para trás e sigo para casa a tomar o analgésico de que já não preciso, pois a cefaleia entretanto desaparecera.

Correio do Minho, 1 de abril de 1993, secção “Depilações”