José Rodrigues dos Santos O romancista acidental · como funciona a nossa economia e a nossa...

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José Rodrigues dos Santos O romancista acidental A Mão do Diabo é o decimo romance do escritor que mais livros vende em Portugal - ultrapassou um milhão e meio de exemplares. E o sexto em que entra Tomás de Noronha, herói -historiador que tem por missão revelar «as verdades fundamentais sobre como funciona a nossa economia e a nossa democracia». Palavras do autor que começou a publicar ficção com Maria do Rosário Pedreira. Um perfil. Manhã fria de fim de novembro. Depois de uma chuva bíblica, o céu fica limpo. O encontro está marcado para um hotel cm Sin- tra. Aguardamos no exterior, onde dois senhores falam sobre pilates, natação uma ou duas vezes por semana, trabalho específico para os abdominais. Uma senhora sai do hotel para a corrida matinal, garrafa de água na mão. A entrada, um fun- cionário de sobrecasaca e chapéu alto recolhe, com uma pinça, as beatas depositadas no cinzeiro. E um hotel de luxo. No átrio, os hóspedes falam baixo, os receeionistas recebem-nos com sorrisos descartáveis: «Vem para uma entrevista? Com certeza. E um mo- mento.» Cinco minutos após a hora marcada, chega José Rodrigues dos Santos. Afável, não levanta qual- quer objeção a que comecemos pelas fotografias. En- tretanto, refere circunstancialmente que este hotel foi considerado o melhor do mundo por uma publicação internacional. Depois das fotografias, é hora de falar- mos com o escritor que mais livros vende em Portugal, mais de um milhão e meio, segundo os números da editora (G radiva). A exceção do primeiro,^ Ilha das Trevas, todos os seus romances ultrapassaram a barrei- ra dos cem mil exemplares. Antes de ser romancista, era uma figura conhecida como jornalista c apresen- tador do «Telejornal». Os livros deram-lhe outro tipo de notoriedade. Recentemente foi eleito pelos leito- res da Readers Digest como «escritor de confiança», à frente de José Saramago e de Miguel Sousa Tavares. O seu décimo romance,^-í Mão do Diabo, lançado em novembro, tem um tema bastante atual mas, de certa forma, inesperado para um thriller. a crise económica. É o regresso de Tomás de Noronha, historiador e pro- tagonista dos seus romances de mistério, pronto a des- vendar o segredo dos verdadeiros responsáveis pela cri- se. Pelo meio, perseguições a alta velocidade pelas ruas de Lisboa e uma missa negra em Florença. Ain- da que um romance possa não parecer a hipótese mais óbvia para o efeito, este foi um livro pensado para es- clarecer os portugueses sobre as origens da situação em que vivem. A experiência do escritor diz-lhe que, em Portugal e na Europa (na América, segundo ele, é di- ferente), os leitores gostam de ver temas não-ficcionais tratados pela ficção. «Achei que as pessoas estavam confusas cm relação ao tema e utilizei este veículo, o romance, para, procurando ser muito interessante na história que burilei, expressar estas verdades fundamen- tais sobre como funciona a nossa economia ea nossa democracia.» E reafirma que, depois de lerem A Mão do Diabo, os portugueses dificilmente se deixarão en- ganar pelos políticos. Uma ideia caridosa, quando o próprio defende que «nós não queremos ouvir a ver- dade». Estaremos então preparados para ler a verdade num romance? «Mas aí acho que é importante que o romance a explique. Neste caso, uma explicação para que as pessoas entendam os desafios que temos.» O livro tempera a verdade crua com o sal e a pimenta

Transcript of José Rodrigues dos Santos O romancista acidental · como funciona a nossa economia e a nossa...

José Rodriguesdos Santos

O romancistaacidental

A Mão do Diabo é o decimo

romance do escritor que mais livros

vende em Portugal - ultrapassou um

milhão e meio de exemplares. E o sexto

em que entra Tomás de Noronha,

herói -historiador que tem por missão

revelar «as verdades fundamentais sobre

como funciona a nossa economia e

a nossa democracia». Palavras do autor

que começou a publicar ficção com

Maria do Rosário Pedreira. Um perfil.

Manhãfria de fim de novembro.

Depois de uma chuva bíblica,

o céu fica limpo. O encontro está

marcado para um hotel cm Sin-

tra. Aguardamos no exterior,

onde dois senhores falam sobre pilates, natação uma

ou duas vezes por semana, trabalho específico para os

abdominais. Uma senhora sai do hotel para a corrida

matinal, garrafa de água na mão. A entrada, um fun-

cionário de sobrecasaca e chapéu alto recolhe, com

uma pinça, as beatas depositadas no cinzeiro. E um

hotel de luxo. No átrio, os hóspedes falam baixo, os

receeionistas recebem-nos com sorrisos descartáveis:

«Vem para uma entrevista? Com certeza. E só um mo-

mento.» Cinco minutos após a hora marcada, chega

José Rodrigues dos Santos. Afável, não levanta qual-

quer objeção a que comecemos pelas fotografias. En-

tretanto, refere circunstancialmente que este hotel foi

considerado o melhor do mundo por uma publicação

internacional. Depois das fotografias, é hora de falar-

mos com o escritor que mais livros vende em Portugal,

mais de um milhão e meio, segundo os números da

editora (G radiva). A exceção do primeiro,^ Ilha das

Trevas, todos os seus romances ultrapassaram a barrei-

ra dos cem mil exemplares. Antes de ser romancista,

já era uma figura conhecida como jornalista c apresen-

tador do «Telejornal». Os livros deram-lhe outro tipo

de notoriedade. Recentemente foi eleito pelos leito-

res da Readers Digest como «escritor de confiança»,

à frente de José Saramago e de Miguel Sousa Tavares.

O seu décimo romance,^-í Mão do Diabo, lançado em

novembro, tem um tema bastante atual mas, de certa

forma, inesperado para um thriller. a crise económica.

É o regresso de Tomás de Noronha, historiador e pro-

tagonista dos seus romances de mistério, pronto a des-

vendar o segredo dos verdadeiros responsáveis pela cri-

se. Pelo meio, há perseguições a alta velocidade pelas

ruas de Lisboa e uma missa negra em Florença. Ain-

da que um romance possa não parecer a hipótese mais

óbvia para o efeito, este foi um livro pensado para es-

clarecer os portugueses sobre as origens da situação em

que vivem. A experiência do escritor diz-lhe que, em

Portugal e na Europa (na América, segundo ele, é di-

ferente), os leitores gostam de ver temas não-ficcionais

tratados pela ficção. «Achei que as pessoas estavam

confusas cm relação ao tema e utilizei este veículo,

o romance, para, procurando ser muito interessante na

história que burilei, expressar estas verdades fundamen-

tais sobre como funciona a nossa economia e a nossa

democracia.» E reafirma que, depois de lerem A Mão

do Diabo, os portugueses dificilmente se deixarão en-

ganar pelos políticos. Uma ideia caridosa, quando

o próprio defende que «nós não queremos ouvir a ver-

dade». Estaremos então preparados para ler a verdade

num romance? «Mas aí acho que é importante que

o romance a explique. Neste caso, dá uma explicação

para que as pessoas entendam os desafios que temos.»

O livro tempera a verdade crua com o sal e a pimenta

da ficção. Na nota final, o escritor refere os mais de 20

livros que leu para fundamentar as opiniões veiculadas

no romance. Apesar disso, acrescenta que há infor-

mações que não podem ser encontradas em nenhum

outro lado, como a explicação pormenorizada do que

se passa nos bastidores: «A forma como a políticaé exercida, como os negócios são feitos para beneficiar

os financiadores do partido em detrimento dos finan-

ciadores do pais, que são os contribuintes.»

Quer isto dizer que os jornalistas têm falhado na mis-

são de esclarecer os cidadãos? Falharam, sim, mas poruma boa razão: «Um jornalista, um historiador ou um

jurista pode saber que algo aconteceu mas se não tem

modo de o provar não o pode afirmar. Enquanto um ro-

mancista quando sabe que algo aconteceu usa a ficção.

Perguntam-lhe: "Mas qual é a prova?" Ele responde:

"Ah, mas isto é ficção." E possível usar a ficção para di-

zer grandes verdades. Por exemplo, Kafka, quando

escreveu O Processo, disse uma grande verdade sobre a

justiça. Nós lemos e intuímos que aquilo é verdadeiro.

É possível usar a ficção para expor a verdade de uma for-

ma que o discurso não-ficcional não consegue porque

está preso a um conjunto de convenções. Nesse sentido,

é verdade que os jornalistas fracassaram mas fracassa-

ram devido às reinas da sua profissão.»

Um romancista usa a ficção quando sabe

que algo aconteceu mas não o pode provar.Perguntam-lhe: «Qual é a prova?» Ele responde: «Ah,

mas isto é ficção.» E possível usar a ficção para expor

a verdade de uma forma que o discurso não ficcional

não consegue porque está preso a um conjunto de

convenções. Nesse sentido, os jornalistas fracassaram,

mas fracassaram devido às regras da sua profissão.

A Mão do Diabo é o sexto romance com Tomás de

Noronha. «Tenho dois tipos de romance: o histórico, que

obedece a regras mais canónicas, e o de mistério, em que

faço o jogo entre ficção e não-ficção que são os roman-

ces do Tomás de Noronha.» Regra geral, estes últimos

vendem melhor, apesar de os resultados das vendas, des-

de Fúria Divina, publicado em 2009, terem vindo a cair,

ainda que ligeiramente. A fórmula é simples: Rodrigues

dos Santos pega num tema e procura uma maneira de

o tornar interessante vestindo os factos com os fatos do

romance de mistério/policiaVde aventuras. A naciona-

lidade de Cristóvão Colombo, a existência de Deus, o

aquecimento global, o terrorismo islâmico e os segredos

do cristianismo foram submetidos ao mesmo tratamen-

to narrativo. <tA Fórmula de Deus é um romance sobre fí-

sica e matemática. A questão é como vamos pegar num

tema que pode ser mais seco e transformá-lo numa coi-

sa interessante. Esse c o desafio do escritor.» Só A Fór-

mula de Deus vendeu 187 mil exemplares em Portugal.

São estes números que lhe dão confiança para acreditar

que nem as longas passagens explicativas e didáticas de

A Mão do Diabo demoverão os leitores. Pelo contrário,

estão habituados a isso nos romances de Tomás de No-

ronha: «Ê um pouco como os romances da AgathaChristíe. No final, o Poirot junta os suspeitos.Têm aque-le formato.» Conta de seguida que um livreiro lhe disse

que estes são os únicos livros que vendem tão bem no

Dia do Pai como no Dia da Mãe, embora os homens

se interessem mais pelos diálogos - «a parte de ensaio

do romance» - e as mulheres passem à frente, à procurada parte romanesca. E se os leitores sabem que podem

contar com um determinado formato, sabem também

que podem contar com a fiabilidade da informação fac-

tual. Por muito que se esforce por tornar cativantes os

seus livros, Rodrigues dos Santos, ao contrário de Dan

Brown, com quem é frequentemente comparado, não

altera os factos: «Ele [Dan Brown\ faz o jogo da verda-

de-não verdade mas apenas ao nível da verosimilhança.

Ele altera os factos reais para se adaptarem à ficção e eu

faço o contrário: altero a ficção para que esta se adapte

aos factos reais. Não quer isto dizer que eu esteja imune

ao erro, mas quando digo uma coisa que não seja verda-

deira é por erro, não é intencional. » Uma ideia reforça-

da por Guilherme Valente, editor da Gradiva, quandodiz que «Carlos Rolhais e Jorge Dias de Deus, dois físi-

cos de inquestionável competência, afirmaram diante de

mim e publicamente não terem encontrado um único

erro científico» em A Fórmula de Deus. O escritor tam-

bém não considera que romancear ideias complexas e

teses muito debatidas corresponda a uma simplificação.

A propósito de O Último Segredo, que abordava temas

polémicos para o cristianismo, a virgindade de Maria

ou o facto de Jesus ser judeu, diz: «O livro tem mais

de 600 páginas, não simplifica assim tanto.»

No caso de José Rodrigues dos Santos, a resposta

ao desafio de tornar «interessante» um tema reside,

em grande parte, no trabalho de pesquisa. «Ê a pesquisa

que me vai ditar qual é o sentido da ficção que vou criar.

Por exemplo, quando estava a fazer a pesquisa paraA Fórmula de Dais cruzei-me com uma referenda a um

encontro que Einstein teve com Ben-Gurion {primei-ro-ministro de Israel] em 1951, em Princeton, em que fa-

laram sobre a existência de Deus, e pensei: "Eh pá! Este

é o ângulo que eu vou usar para a história ficcional."» Isto

terá a ver com a sua formação jornalística que, admite,é a principal influência no seu estilo de escrita. Admira-dor de SomersetMaugham, reconhece que somos in-fluenciados por todos os autores que lemos, mas a sua

bíblia estilística c o jornalismo. «As palavras não são umfim em si mesmo mas são um instrumento para contar

alguma coisa. O meu backgroundt o de jornalista. E os

jornalistas, como sabe, escrevem com duas funções: a de

serem compreendidos - se eu escrever uma frase e o lei-

tor não compreender, em princípio a culpa é minha — e

a de aquilo que escrevem ser interessante.» Outrosescritores falam da tortura que é o processo de escrita.

Rodrigues dos Santos desconhece essas dificuldades:

«Escrevo um texto e estou constantemente a limá-lo

c mesmo depois de o livro ser publicado há coisas queencontro que podiam ter sido mais bem trabalhadas,

mas é diferente da questão do prazer e da tortura que o

livro suscita. Para mim escrever é como respirar, faz par-te da minha vida. Enquanto um grande número de es-

critores menciona que é um período terrível, o fabrico

do livro para mim é puro prazer.»

0 ESCRITOR PREFERIDO

DA CLASSE MÉDIA

Por MIGUEL REAL

Hoje, século XXI, a literaturatambém se tornou reflexo de

uma sociedade anémica, apá-tica e individualista, pragmáticae tecnocrática, e o autor é enca-

rado mais como um ídolo social

(um star da literatura), um íco-

ne cultural, com grupo de «fãs»

no Facebook, do que como umintelectual lúcido, cuja obra e

palavra se assumiriam como

sismógrafos da realidade social

e moral da comunidade.

José Rodrigues dos Santos,com muito afinco e certamentemuita disciplina de escrita, con-

seguiu esse dificílimo estatuto de

«vedeta» da literatura construí-

do pelo mercado das grandes

superfícies das cadeias livrei-

ras internacionais. E o problemaé justamente esse, o mercado

muda, exige novas vedetas, ou-

tros tipos de romance (gótico,

pornográfico, BD, histórico...) edentro de 10 ou 20 anos, o queantes fora excelso repousaráeternamente no pó das estantes,

sem leitores. Para o mercado,o único tempo que conta é o pre-

sente, e José Rodrigues dos San-

tos é a nossa grande «vedeta» li-

terária do presente. Cada paístem a sua, como no passado ti-

vemos Ladislau Batalha, AbelBotelho com O Barão de Lavos,

Teixeira de Vasconcelos, Guerra

Junqueira com Os Simples, Fer-

reira de Castro com A Selva, Joa-

quim Paço d'Arcos com Ana

Paula, Campos Júnior com os

seus romances históricos. Ne-nhum destes autores, exclusiva-

mente pelos livros citados, tevedireito a entrar na História da

Literatura, justamente porqueo gosto erudito e histórico de

quem faz as histórias da literatu-

ra não se identifica nunca com o

gosto medíocre e infantilizado,

popularizado, da classe média.De facto, existe um público

desejoso de narrativas sentimen-

tais, catarticamente consolado-

ras de uma vida rotineira, cons-

tituído por uma classe média

urbana culta, enriquecida, masnão letrada, que busca no ro-mance (como na telenovela ou

na série televisiva) um efeito psi-

cológico de voyeur. uma aventu-

ra ou a felicidade que não viveu,

uma tragédia que não lhe acon-

teceu, a viagem a terras exóti-

cas que nunca fará, o amor ou o

sexo que nunca experimentou,a descrição da desgraça social

ou da doença individual de quenão foi acometido, a falência fi-

nanceira a que escapou ou re-

ceia ser acometido no futuro.Dito de outro modo, o roman-

ce de mercado destina-se a ser

usado (a expressão é esta: «usa-

do», não usufruído) pelo leitor

como mero entretenimento,extraindo dele, sobretudo, não

uma função estética (primeiro,último e eminente objetivo do

romance como arte), mas uma

função consolatória, identifican-

do os retratos dos personagenscom os dos seus vizinhos, os an-

tigos colegas da escola, os cole-

gas de escritório, de armazém,de fábrica, contabilizando o bem

e o mal que a vida lhes trouxecom a sua pessoal quantidadede bem ou mal social que indivi-

dualmente ganhou ou perdeu.Neste sentido, os romances

de José Rodrigues dos Santos

cruzam - com grande mestria,deve dizer-se -, duas estruturas

romanescas clássicas: uma boa

história de suspense, fundadaem enigmas atuais da existên-

cia, e elementos do maravilhoso,

pertinentes ao universo mentalde classe média atual, acrescidos

da consistência de personagens«reais», que todos nós podemosdetetar no nosso vizinho do lado.

Falta a José Rodrigues dos

Santos o desenho da universali-

dade intemporal dos sentimen-tos e das vivências e um estilo

próprio (uma maneira pessoal de

escrever a língua portuguesa)

para se tornar num grande ro-

mancista, como Agustina, Sara-

mago ou Lobo Antunes.

Foi por acaso que o jovem apresentador do noticiário

noturno da RTP se tomou uma celebridade. Em1991, quando começou a Primeira Guerra do Golfojosé

Rodrigues dos Santos, então com 26 anos, estava em di-reto. Desde esse dia, o «apresentador orelhudo» (ver pá-

gina 77 de A Mão do Diabo) é uma das figuras mais po-pulares da televisão portuguesa. A segunda vida, a de

romancista, também começou por acaso. As circuns-

tâncias da sua estreia não foram tão dramáticas, mas o

próprio ficou surpreendido quando José Manuel Men-des, presidente da Associação Portuguesa de Escrito-

res, depois de ler a sua tese de doutoramento (Crónicas

de Guerra, também publicada pela Gradiva) , lhe garan-tiu que estava ali um grande romancista em potência.«Eu olhei para ele e ri-me. Era a mesma coisa que ele

me dizer que eu era um astronauta em potência. Ri-me.Não fazia sentido. Acontece que ele manteve esta ideia

e tinha uma revista literária e pediu-me para escrever

um conto. Não tive lata de dizer que não. Então pegueinuma história que se passava em Timor, e que não ti-nha sido incluída na tese, e comecei a escrever um con-tozinho. Quando me apercebi, o conto já tinha 200 pá-ginas e acabei por publicar o meu primeiro romance,A Ilha das Trevas. E aí fiquei hooked, fiquei viciado.»

A Ilha das Trevas foi publicado pela Temas e Debates,numa coleção dirigida por Maria do Rosário Pedreira,

a editora mais conhecida do meio literário quando se

trata de descobrir novos talentos. «Um dia, o jornalista

da RTP Rui Lagartinho, meu amigo havia vários anos,

perguntou-me se não me importava de receber o José

Rodrigues dos Santos, pois ele estava a escrever um

livro que achava encaixar-se perfeitamente na [co/íção]

"FicçãoA^erdade". Disse-lhe que sim e marcámos uma

reunião em que soube quejosé Rodrigues dos Santos

adorava a coleção e, independentemente da relação

com a editora que publicava os seus outros livros

(e que, aliás, manteve), queria fazer um livro para a

"Ficção/Verdade". Falou-me do tema [a história de

Timor desde a anexação pela Indonésia em 1975 até a res-

tauração da independência em 2002] e da sua ideia de

misturar personagens fictícios aos reais, e fiquei bastan-

te entusiasmada, até porque ele me contou ter acom-

panhado como repórter vários momentos importantes

dessa história e isso me dar alguma segurança sobre o

rigor da crónica.» Maria do Rosário Pedreira pensou

que o livro se adequava à coleção que dirigia e pratica-

mente não fez alterações. A «prosa era fluente como

a de uma notícia, sem rodriguinhos nem floreados» e «o

tom era despretensioso, como o de uma reportagem».

O primeiro contacto de Guilherme Valente com a es-

crita de Rodrigues dos Santos foi mais intenso. Um dia,

ao chegar à editora, tinha em cima da secretária o origi-

nal de Crónicas de Guerra: «Pensei: "Mais um desses me-

diáticos a querer ser escritor. . ."Mas aconteceu um "mi-

lagre", isto é, o improvável: deu-me para começar logo a

ler o texto e li, sem parar, toda a parte referente à Guer-

ra Civil de Espanha.» Foi o começo de um sucesso avas-

salador que, já em 2012, atingiu o primeiro lugar do tof

de vendas da FNAC, em França, com a tradução de

A Fórmula de Deus, feito assinalável para um autor por-

tuguês. Ate na Bulgária o nome de Rodrigues dos San-

tos começa a ser conhecido. Daniela Atanasova, da Her-

mes Books, que publica autores como James Patterson

e Daniel Silva, revela que O Codex 632 e A Fórmula de

Deus - cuja tradução foi apoiada pela Direção-Geral do

Lívto e das Bibliotecas - tiveram uma excelente receção

quer por parte da crítica, quer por parte do público.

Para um autor publicado em mais de 20 países, com

mais de um milhão e meio de exemplares vendidos só

em Portugal, será que as críticas negativas são tidas em

conta ou subscreve a afirmação de Miguel Sousa Ta-

vares quando afirmou, em entrevista à LER (setembro

de 2009), que se encontrava confortavelmente senta-

do em cima de um milhão de livros vendidos? «Não

subscrevo nem dessubscrevo. Por uma questão: não te-

nho muitas críticas negativas. Você vai ler as críticas

agora em França, são espantosas. Também já tive crí-

ticas negativas no estrangeiro. São raras. Mas nas crí-

ticas negativas no estrangeiro o crítico não me conhe-

ce de parte nenhuma e portanto eu percebo que ele não

é malicioso, não é destrutivo. Ele diz que a obra tem

esta falha, eu analiso c posso dar-lhe razão. O que às

vezes acontece em Portugal é que há malícia porque as

pessoas já me conhecem.»

Vou explicar o

que são as PPPA colagem de sucessivos blocos

de informação num thrilkr que não respeita

os serviços mínimos (até o culto satânico

é despropositado) faz de A Mão do Diabo um

romance falhado. José Rodrigues dos Santos

recorre aos personagens para explicar em

pormenor - e em centenas de páginas - as

variáveis da crise. Ficamos esclarecidos.

yi Mão do Diabo é um livro didático, com muita informação

Al sobre a crise e, neste aspeto, é útil. É também um livro de

entretenimento, com uma história rebuscada repleta de per-

seguições, criptogramas, homicídios, seitas satânicas, envolvi-

mentos amorosos, etc. Enquanto literatura, mesmo a de cariz

mais popular ou comercial, falha porque esses dois blocos - o

de informação e o de entretenimento - nunca se entrelaçam

de um modo convincente. A informação sobre a crise é trans-

mitida ao leitor em intermináveis diálogos, melhor dizendo,

solilóquios em que os personagens falam não para o seu inter-

locutor ficcional (reduzido à função de ponto) mas para o leitor,

em passagens completamente despojadas de tensão dramáti-

ca. Os bons autores de thrillers e policiais recorrem a factos do

mundo real para emprestar plausibilidade à ficção. A ficção re-

tribui este empréstimo retirando a aridez aos factos e conferin-

do-lhes a força e o brilho próprios da ficção. Demasiados factos

e a ficção não se consegue autonomizar do mundo real, sendo

apenas uma forma mais irresponsável de transmitir informa-

ção; factos a menos e a ficção entra no domínio da fantasia des-

cabelada. Entrelaçar factos e ficção requer paciência e en-

genho. O mais fácil é cavar dois buracos: para um despejam-se

os factos, para o outro as invenções. É isso que acontece em

A Mão do Diabo (Gradiva). São várias as cenas em que a ação é

suspensa para ouvirmos as explicações dos personagens sobre

a crise. Da página 66 à 72, na Grécia, um turista alemão conve-

nientemente equipado com uma camisola da seleção alemã,

perora sobre a história económica da Grécia; da página 125

à 146, durante uma viagem de carro entre Lisboa e Coimbra,

o tema é a economia portuguesa, o investimento no setor não

transacionável e as PPP. Da 166 à 179, mais lições sobre o dé-

fice português. A partir da página 260, e depois de uma breve

explicação sobre a bolha imobiliária espanhola, as coisas aque-

cem: Tomás de Noronha, o herói dos livros de José Rodrigues

dos Santos (n. 1964), explica à agente espanhola da Interpol,

a curvilínea Raquel de Ia Concha, como foi cometido o crime do

século que deu origem à Segunda Grande Depressão. Começa

no crash da bolsa de 1929 e em 10 páginas trepidantes vai até

Alan Greenspan. A impaciente De Ia Concha, que confessa sen-

tir-se atraída por homens inteligentes, não aguenta de curiosi-

dade e exige que Noronha lhe conte imediatamente «o que

aconteceu depois de eles terem desreguladotudo em 1999», 0 versátil professor de História

leva mais 17 páginas a contar a emocionante

narrativa da crise. Em fuga dos vilões que os

perseguem, o português e a espanhola vão de

comboio para Barcelona. É a altura ideal paramais uma lição sobre a crise: esta tem ao todo

26 páginas. Segue-se outra viagem de comboio

de Barcelona para Florença. E o que é que acontece? Quinze pági-

nas didáticas e depois mais quinze. Eis alguns exemplos ilustrati-

vos do tom de um quinto do «romance»: «O valor da reforma dos

Gregos foi fixado em noventa e seis por cento do seu salário, mais

do dobro da proporção alemã»; «A verdade é que uma fatia cres-

cente das receitas e das despesas públicas foi colocada fora do

Orçamento do Estado»; «Claro que os bens não transacionáveis

são importantes»; «Vou explicar-lhe o que são as PPP». Isto são

os personagens a falar. Se lhes acrescentarmos mais algumas pá-

ginas em que a informação é devidamente inserida na narrativa

(a cena quase no final no TPI) estas cem páginas são tudo o quelivro tem para oferecer de verdadeiramente útil. O problema é

que isto é um romance e tem mais 400 páginas. De um thríller,

seja qual for o tema, espera-se que cumpra certos serviços míni-

mos: manter o leitor na expectativa do que vai acontecer a seguiré o mais importante. Isto consegue-se normalmente através de

um mistério (descobrir o assassino ou a revelação de um segre-do) que só é desvendado no final. Na tragédia grega chama-se

a esse momento anagnórise. Para o leitor atento, a anagnórise de

A Mão do Diabo acontece ainda nas primeiras cem páginas. O sus-

pense morre quase antes de nascer. Outra forma de manter o lei-

tor interessado no que vai acontecer a seguir é criar laços de em-

patia e de identificação com os personagens. Mas os personagensde Rodrigues dos Santos, que neste livro parecem existir apenas

para ouvir lições sobre a crise ou para elas próprias sinalizarem

os efeitos da crise, são tão mal construídos que o seu destino é

totalmente irrelevante para o leitor. Alexandre, um desempre-

gado que Noronha conhece na fila do Centro de Emprego e a

quem o professor dá boleia até Coimbra, desaparece depois de

cumprir a sua função de ouvir as longas explicações sobre a cri-

se. O arqueólogo grego, Markopolou, surge no início da tramamas os seus serviços são imediatamente dispensados. Raquel de

Ia Concha, a fogosa espanhola, tão depressa está a chorar pela

morte de um amigo íntimo como, poucos minutos depois, está

a seduzir Noronha, como qualquer/ewme/oío/e Não se cria o mí-

nimo de empatia com os personagens porque são inexistentes,

irreais, inverosímeis. O leitor aceita tacitamente que os heróis con-

sigam escapar das situações mais delicadas, que tenham uma in-

teligência acima da média, que sejam capazes de proezas físicas

inacreditáveis. Mas para que se aceite esse lado fantástico é ne-

cessário carregar alguns traços de humanidade que equilibrem a

representação. Foi isso que Stieg Larsson fez de forma notável na

sua trilogia Millennium, em que importantes assu ntos históricos,

sociais e económicos são abordados sem que tenhamos a sensa-

ção de nos estar a ser despejado para cima um camião de infor-

mação. Os protagonistas, Mikael Blomkvist e Lisbeth Salander,

que têm algumas qualidades extraordinárias e sobre-humanas,têm também qualidades e vulnerabilidades humanas, o que põe

o leitor naquela espécie de encantamento infantil a torcer pelo

sucesso deles contra os maus da fita. Em nenhum momento

Rodrigues dos Santos consegue libertar os seus personagense deixar que se aproximem dos leitores.

Nada no enredo está tão fora de sítio como o culto satânico in-

serido na trama de forma despropositada e gratuita. O leitor pode

pensar que o tal culto está relacionado com a crise mas a única

coisa em comum é que o vilão da história é líder da seita de ado-

radores de Satanás, como poderia ser, com igual impacto narra-

tivo, presidente do Rancho Folclórico da Barra Cheia. (Claro queos membros de um rancho não dariam uma sobrecapa tão su-

gestiva e é duvidoso que se envolvam em rituais de natureza se-

xual.) O desfecho chega a ser penoso na sua inverosimilhançae atinge o paroxismo quando o vilão, suspeito de ter ordenado

vários homicídios, rodeado de polícias, mantém com estes uma

conversa sem retirar o capuz de adorador do diabo, até ao mo-mento em que Tomás de Noronha revela a nada surpreendenteidentidade do mestre de cerimónias.

Esta inépcia na arquitetura narrativa e na construção dos per-

sonagens é tão evidente e censurável num livro deste género queas deficiências no estilo até merecem uma amnistia. Algumasnotas: utilizar a expressão «entranhas húmidas e sequiosas» na

descrição de uma cena de sexo não é uma boa opção; «as cha-

mas trémulas a bambolearem como serpentes hipnotizadas»;«candeeiros de época que bordejavam a serpenteante Prome-

nade des Anglais [...] os reflexos a cintilarem nas águas inquietas

[...] como chamas bamboleantes» (p. 11); ou «Os vários fios de

fumo suave erguiam-se como serpentes bamboleantes» (p. 109)revelam um considerável défice descritivo, embora a insistência

na fórmula tenha efeitos cómicos que o leitor agradece; as rimas,

sobretudo se vierem aos pares, revelam falta de cuidado: «A mãe

e a sua velhice não lhe pareciam o assunto mais empolgantepara discutir com uma mulher tão interessante e as circunstân-

cias tornavam desapropriada qualquer iniciativa mais arrojada»;a descrição de uma cena de sexo entre um português e uma

espanhola não devia ser um argumento contra o iberismo: «Ro-

laram pelo sofá até ao tapete, sôfregos, gulosos, na voracidade

do prazer, o calor de um a incendiar o outro, as línguas ardentes

a entaramelarem-se, a lutarem, a saborearem-se, melancolia

portuguesa e paixão espanhola, mar lusitano e fogo castelhano,veludo e ferro, sal e sangue, olá e hola» (p. 327).

É a sobreposição, em vez do cruzamento, de blocos de informa-

ção factual com ação estapafúrdia que faz de A Mão do Diabo um

romance falhado. Apresenta-se como romance mas parece um ar-

gumento de Indiana Jones escrito por Medina Carreira. Qualquercoisa menos literatura. Bruno Vieira Amaral