José Carlos Dos Anjos - Sobre o escandâlo polÃ-tico em Cabo Verde

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 SOBRE O ESCÂNDALO POLÍTICO EM CABO VERDE Cabo Verde será realmente um país com condições excepcionais de transparên- cia, como é geralmente reconhecido pela comunidade internacional ? Os gover- nantes cabo-verdeanos Þzeram sempre questão de se apresentarem como uma excepção em África. Ora, podemos interrogar-nos sobre as condições sociais de sucesso das denúncias da grande corrupção em Cabo Verde e sobre o quadro moral instaurado à volta dos assuntos de Estado desde a abertura ao multipar- tidarismo. Uma análise dos principais escândalos salienta simultaneamente as estatégias organizadas no processo de denúncia e os jogos de veri Þcação a que se submetem os actores políticos durante as crises políticas ligadas a estes escân- dalos. Isto permite elucidar tanto as condições de possibilidade de denúncia como a pertinência das redes de corrupção nesta democracia pequena e recente.  About political scandal in Cape V erde Islands Is Cape Verde really a country that enjoys exceptional conditions of transparency, as is generally acknowledged by the international community? Those who govern Cape Verde have always made a point of presenting themselves as something of an exception in Africa. Questions can be raised, however, as to the social conditions that have enabled the success of the whistleblowing against serious corruption in Cape Verde, and the moral framework that has been established surrounding state affairs since the arrival of the multiparty system. An analysis of the main scandals highlights not only the strategies used in the whistleblowing process, but also the checks politicians undergo in the political crises relating to these scandals. This throws light not only on the conditions making whistleblowing possible, but also the relevance of corruption networks in this small and recent democracy.  À propos du scandale politique aux Îles du Cap-V ert Le Cap-Vert serait-il vraiment un pays aux conditions exceptionnelles de trans- parence, comme la communauté internationale le reconnaît généralement ? Les gouvernants capverdiens ont toujours mis un point d’honneur à se présenter comme une exception en Afrique. Or on peut s’interroger sur les conditions sociales de réussite des dénonciations de la grande corruption au Cap-Vert et sur le cadre moral instauré autour des affaires d’État depuis l’ouverture au pluripartisme. Une analyse des principaux scandales met simultanément en évi- dence les stratégies mises en place dans le processus de dénonciation et les jeux de vériÞcation auxquels les acteurs politiques se soumettent lors des crises politiques liées à ces scandales. Cela permet d’élucider aussi bien les conditions de possi- bilité de dénonciation que la pertinence des réseaux de corruption dans cette petite et récente démocratie. E ste artigo se insere na interface das problemáticas da construção recente de

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Transcript of José Carlos Dos Anjos - Sobre o escandâlo polÃ-tico em Cabo Verde

  • SOBRE O ESCNDALO POLTICO EM CABO VERDE

    Cabo Verde ser realmente um pas com condies excepcionais de transparn-cia, como geralmente reconhecido pela comunidade internacional ? Os gover-nantes cabo-verdeanos zeram sempre questo de se apresentarem como uma excepo em frica. Ora, podemos interrogar-nos sobre as condies sociais de sucesso das denncias da grande corrupo em Cabo Verde e sobre o quadro moral instaurado volta dos assuntos de Estado desde a abertura ao multipar-tidarismo. Uma anlise dos principais escndalos salienta simultaneamente as estatgias organizadas no processo de denncia e os jogos de veri cao a que se submetem os actores polticos durante as crises polticas ligadas a estes escn-dalos. Isto permite elucidar tanto as condies de possibilidade de denncia como a pertinncia das redes de corrupo nesta democracia pequena e recente.

    About political scandal in Cape Verde Islands

    Is Cape Verde really a country that enjoys exceptional conditions of transparency, as is generally acknowledged by the international community? Those who govern Cape Verde have always made a point of presenting themselves as something of an exception in Africa. Questions can be raised, however, as to the social conditions that have enabled the success of the whistleblowing against serious corruption in Cape Verde, and the moral framework that has been established surrounding state affairs since the arrival of the multiparty system. An analysis of the main scandals highlights not only the strategies used in the whistleblowing process, but also the checks politicians undergo in the political crises relating to these scandals. This throws light not only on the conditions making whistleblowing possible, but also the relevance of corruption networks in this small and recent democracy.

    propos du scandale politique aux les du Cap-Vert

    Le Cap-Vert serait-il vraiment un pays aux conditions exceptionnelles de trans-parence, comme la communaut internationale le reconnat gnralement ? Les gouvernants capverdiens ont toujours mis un point dhonneur se prsenter comme une exception en Afrique. Or on peut sinterroger sur les conditions sociales de russite des dnonciations de la grande corruption au Cap-Vert et sur le cadre moral instaur autour des affaires dtat depuis louverture au pluripartisme. Une analyse des principaux scandales met simultanment en vi-dence les stratgies mises en place dans le processus de dnonciation et les jeux de vri cation auxquels les acteurs politiques se soumettent lors des crises politiques lies ces scandales. Cela permet dlucider aussi bien les conditions de possi-bilit de dnonciation que la pertinence des rseaux de corruption dans cette petite et rcente dmocratie.

    Este artigo se insere na interface das problemticas da construo recente de Estados democrticos e o da corrupo nos Estados africanos pretendendo retrabalhar conceitos chaves como os de clientelismo e criminalizao do Estado. Trataremos aqui de um caso menos tpico em frica. Os Estados africanos

    Koninklijke Brill NV, Leiden, 2009 Lusotopie XVI (1), 25-43Also available online brill.nl

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    freqentemente so descritos pelos desfuncionamentos administrativos, a capilari-dade das prticas corruptivas , o fraco nvel de institucionalizao e a forte personalizao do poder1. Cabo Verde se constitui como um pas com condies excepcionais para a transparncia poltica como fazem evidenciar alguns impor-tantes indicadores internacionais. As especi cidades histricas e geogr cas do pas parecem apontar em sentido a rmativo.

    Cabo Verde tem sido, ao lado de So Tom e Prncipe, considerado como o pas da frica sub-sariana de melhor governance e gerncia econmica, de acordo com o Freedom Houses2. Enquanto So Tom e Prncipe se compe de duas ilhas, num total de 964 km2 e cerca de 160 mil habitantes, Cabo Verde tem uma populao estimada de 499 796 no censo 2000, distribuda por dez ilhas e 4 033 km2. Certamente as duas elevadas performances, para os indicadores inter-nacionais de boa governao, se correlacionam dimenso de micro-estados e de pequenas naes em que se conformam esses dois arquiplagos em frica. Est subjacente a este artigo hiptese de que a proximidade e a densidade de rela-es inter-pessoais entre governantes e governados potencializa o rumor, as fofocas, e a rapidez com que determinadas performances de governo se transformam em escndalos polticos. intensidade do controle proporcionado pelos mecanismos informais e formais de provocao de escndalos polticos no chegam, contudo a colocar em xeque a corrupo e desigualdades sociais crescentes, pelo menos no caso cabo-verdiano, tratado aqui.

    Com uma trajetria de trinta anos ps-coloniais de relativa estabilidade poltica e uma transio de um regime monopartidrio para o pluripartidrio3 sem gran-des traumatismos, a vida poltica cabo-verdiana parece granjear credibilidade su ciente para a incorporao e imaginao de modelos ousados de promoo da participao poltica. Mas o fato da insularidade e da dimenso populacional reduzida no tem incitado inovaes no sentido de gestes mais descentralizadas e de promoo de autonomias locais.

    1 Vide entre muitos outros, J.-F. Mdard, Charles Njonjo : portrait dun Big Man au Kenya , in E. Terray, (ed.), Ltat contemporain en Afrique, LHarmattan, Paris, 1987, em um texto particularmente importante para esse estudo pelo modo como se afasta das anlises clssicas que associam poder pessoal e carisma.

    2 O estudo Governance Matters V : World Governance Indicators , 1996-2005, aponta Cabo Verde como o pas de maior estabilidade e Estado de Direito dentre os pases africanos lusfonos.

    3 Aparentemente a mudana de regime retirou do poder um governo de esquerda, substituido por outro francamente neo-liberal. De forma sinttica Cahen demonstra que no plano econmico o novo governo do ps-pluripartidarismo no iniciou as politicas de reformas econmicas liberais, mas levou-as adiante mais decisivamente, em trs eixos principais : num primeiro eixo, a restri-o do papel do Estado ao de simples gestionrio macro-econmico ; um segundo eixo o das incitaes scais ao investimento estrangeiro atravs da criao de zonas francas, supresso de controle de preos, exibilizao da regulamentao do trabalho ; por m, atravs de mudanas nas polticas de trocas e nos direitos aduaneiros. J antes, o partido nico, que foi nacionalista radical mas no marxista, desde a segunda metade da dcada de 1980 ganhara uma orientao liberal em matria econmica sob o grande projeto de se transformar o pas numa Estao de servio do Atlntico mdio. Vire M. Cahen, De nulle part la mondialisation ?, in Pays lusophones dAfrique : sources dinformation pour le dveloppement, Paris, Ibiscus, 2000 : 105-109.

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    Apesar, ou por causa, da importao padronizada dos modelos institucionais ocidentais, os diferentes governos cabo-verdeanos tm aparecido para os indica-dores internacionais de boa governana como uma excepcionalidade africana. O controle sobre a imagem internacional da nao passa por uma frentica atua-o no sentido da importao de instituies de controle das atividades poltico-administrativas que se sobrepem numa obscura diviso de tarefas e competncias. Desde o Supremo Tribunal de Justia, o Tribunal de Contas, a Comisso de Coordenao do Combate Droga, a Alta Autoridade contra a Corrupo, uma densa estrutura institucional vem se sobrepondo e se sucedendo no enquadramento aos atentados a improbidade administrativa.

    Nesse cenrio, a emergncia de uma srie de escndalos de corrupo pode tanto evidenciar o desfuncionamento de tais instituies de controle como uma sensibilidade exagerada para com situaes normais do ponto de vista jurdico. Uma anlise dos principais escndalos de corrupo que se detenha simultanea-mente nas estratgias colocadas em jogo nos processos de denncia assim como nos processos de comprovao a que os atuantes se submetem nas crises polticas correlacionadas aos escndalos permite descortinar tanto as condies de possibi-lidade da denncia quanto a eventual pertinncia das redes de corrupo nessa pequena e recente democracia.

    Para esta analise parto de trs livros publicados na dcada de noventa denun-ciando casos de corrupo durante o governo do Movimento para a Democracia (MpD) assim como de um farto material de imprensa relacionado aos eventos cunhados como de corrupo, alm de entrevistas em profundidade com os autores dos livros e com uma dezena de quadros do alto escalo poltico-administrativo.

    O escndalo poltico em um pas de democracia recente

    Tanto pela necessidade de defender a imagem de pas politicamente estvel, democrtico e ntegro, quanto pelas heranas de um longo passado colonial e de quinze anos de regime monopartidrio, existem ainda, alguns mecanismos de censura a denncia de corrupo poltica apesar de uma aclamada liberdade de imprensa e expresso4 desde a dcada de noventa.

    Este estudo re ete sobre as condies sociais de felicidade das denncias5 da grande corrupo em Cabo Verde e sua relao com o quadro moral instaurado em torno dos affaires de Estado desde a abertura pluripartidria da segunda repblica6.

    4 Cabo Verde, So Tom e Prncipe e Portugal so considerados pela Freedom House os nicos pases lusfonos com liberdade total de imprensa.

    5 Em um artigo tido como fundador de uma sociologia pragmtica em Frana, L. Boltanski, La dnonciation , Actes de la recherche en sciences sociales (Paris, Ehess), 1984 : 54, demonstra que as condies de apario de causas ou affaires exemplares esto sujeitas aos constrangimentos de uma gramtica da denuncia. Quando as pessoas se apresentam como denunciadores devem satisfazer a um constrangimento de comensurabilidade entre o autor da denncia, a vitima, o autor da tormenta e o juiz designado para o affaire.

    6 De 1975 a 1991 governou o pas o Partido Africano para a Independncia da Guin e Cabo Verde (PAIGC) que se transformou em Partido Africano para a Independncia de Cabo

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    Blic e Lemieux7 de nem o affaire como estrutura tridica em que o confronto entre dois adversrios se d sob o olhar de um pblico para quem certos golpes podem ser denunciados como demasiadamente baixos, o que impe o respeito a determinadas atitudes formais e certa eufemizao da violncia. Pretendo analisar a transformao de escndalos polticos em affaires, como possibilidade de eviden-ciar o modo como as instituies democrticas importadas vem sendo remode-ladas nos confrontos pblicos dessa nascente democracia.

    Na anlise dos dois escndalos mais retumbantes da dcada de 1990 em Cabo verde trata-se, em primeiro lugar de expor como as denncias contra o alto escalo de um governo de uma democracia recente se legitima publicamente, em segundo lugar em seguir o escndalo no modo como se transforma em affaire8, em outros termos, como uma denncia pblica contra-atacada de modo a se instituir uma profunda clivagem no seio da elite que governa o pas. Contrariamente a idia de uma naturalizao da corrupo no seio da populao em geral, como sugerem Blundo e Olivier de Sardan9 para outros trs pases da frica ocidental, h evidncias, no caso cabo-verdeano, de uma cultura poltica do escndalo que produz vigilncia e indignao contra as praticas ilcitas de governantes. O affaire Benoni e o escndalo da privatizao da Enacol, analisados em seguida, evidenciam uma cultura poltica no seio dos quadros superiores em que a troca de golpe entre adversrios passa incisivamente pelo desvelamento de ati-vidades ocultas , na forma da escandalizao, o que o avesso de uma cultura de aceitao naturalizada de aes de improbidade administrativa. O paradoxo que cabe desvendar aqui que mesmo sendo o escndalo uma das principais atividades atravs das quais os grupos polticos se redesenham, as hierarquias se defrontam e os pertencimentos se instituem, a alta corrupo permanece preca-riamente punvel em Cabo Verde.

    Denunciar em Cabo Verde : a partir de trajetrias excepcionais

    A denncia de corrupo na embaixada de Cabo Verde em Portugal eclodiu em 1993, iniciada por um funcionrio da prpria embaixada. Transformou-se em escndalo quando um outro funcionrio do Ministrio de Negcios Estrangeiros que

    Verde (PAICV) na dcada de 1980. Com as primeiras eleies livres e pluripartidrias, chegou ao poder o maior partido de oposio ao mono partidarismo o MpD.

    7 D. de Blic & C. Lemieux, Le scandale comme preuve. lments de sociologie pragmati-que , Politix (Paris), 2005, XVIII : 28.

    8 Minha aposta que seguir o programa de uma sociologia pragmtica do escndalo que considera o escndalo como uma provao atravs da qual reavaliada coletivamente o vnculo s normas ajudaria a descontituir imagens simplista da corrupo em frica como a noo de que a predomina uma economia moral que banaliza o enriquecimento ilcito, abordagem que no ajuda a explicar porque existe um pblico que consome os escndalos de corrupo. Cf. D. de Blic & C. Lemieux, Le scandale . . . , op. cit. : 17.

    9 G. Blundo & J.-P. Olivier de Sardan, La corruption au quotidien , Politique africaine (Paris, Karthala), 83, octobre 2001 : 11. Blundo e Sardan no tm a pretenso de que suas constataes para o Senegal, Niger e Benin sejam generalizveis para os demais paises da frica, embora o tom do artigo sugira que provalvelmente os demais estejam em situao mais grave. Cita-se a ttulo de casos diferenciados, as economias fundadas sobre a exportao do diamante e do petrleo, sem falar das economias de guerra e de pilhagem

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    foi encarregado de averiguar as irregularidades passou a se ver como vtima de perseguio do prprio governo que lhe encarregou da tarefa. Entre 1996 e 2000 o funcionrio encarregado da averiguao escreve dois livros denunciando as irregularidades da embaixada e a perseguio de que vtima. O escndalo se transforma em affaire quando o governo move um processo contra o funcionrio e membros do governo passam a contra-atac-lo na mdia local. Entretanto Daniel Benoni R. Costa, o inspetor encarregado de averiguar a diplomacia cabo-verdiana em Lisboa, foi demitido, sob a alegao de que era funcionrio aposentado da administrao pblica de Portugal10. Uma srie de trocas de acusaes nos peri-dicos da capital acompanha e incrementa todo o processo de escandalizao do pas.

    Benoni um cabo-verdeano que tendo feito uma longa carreira no funciona-lismo colonial portugus em Moambique, adquire toda uma experincia buro-crtica til ao novo Estado cabo-verdeano, mas nenhum trunfo passvel de reconverses numa repblica dos combatentes 11. Efetivamente, com a indepen-dncia nacional de Cabo Verde, Benoni fora convidado a integrar os quadros de um recm-criado Ministrio dos Negcios Estrangeiros, mas apesar de ter se integrado logo de incio ao processo de estruturao da burocracia do ministrio sua carreira pouco evolui ao longo dos quinze anos de regime monopartidrio. A trajetria de Benoni tpica de quadros intermedirios que no participaram da luta de libertao nacional e que no tendo uma formao superior vegetam a sombra dos combatentes da luta de libertao nacional.

    O protagonismo poltico de Benoni se inaugura na dcada de 1990 com os primrdios da abertura poltica em que convidado a coordenar o setor de imprensa de um pequeno partido de oposio ao regime do PAICV. Tendo aban-donado rapidamente essa primeira incurso no mundo da poltica partidria, Benoni permanece margem do mundo poltico, com algumas pequenas contri-buies no peridico local at a ecloso do affaire da embaixada em Portugal. Na conjuntura da denncia, Daniel Benoni vem de uma trajetria s margens tanto de um destino poltico quanto de escritor. Com uma trajetria escolar inter-rompida de forma demasiadamente precoce para facultar as competncias reque-ridas de uma almejada vocao de escritor, Benoni havia publicado trs obras relativamente despercebidas12 antes do sucesso de pblico de Escndalo e Beno13,

    10 Entrevista com Daniel Benoni em 4 de maio de 2007.11 Sobre a monopolizao dos principais postos do Estado ps-colonial pelos ex-guerrilheiros

    durante a primeira Repblica vide J.C.G. dos Anjos, Intelectuais, literatura e poder em Cabo Verde : lutas de de nio da identidade nacional, Porto Alegre (Brasil), UFRGS/IFCH / Praia (Cabo Verde), INIPC, 2004 : 195-240.

    12 Os esforos de publicao de Daniel Benoni R. Costa quase sempre o levam a editorao pessoal das prprias obras. D. Benoni escreveu As aves descansam com o crepsculo, em 1973, numa publicao mimeografada na gr ca Minerva na cidade da Praia. A segunda obra, No quero ser tambor foi editado na Praia pelo Instituto Cabo-verdiano do Livro e do Disco em 1977 [nova edio Lisboa, Vega / Praia, ICLD, 1989, 52 p.]. Um cabo-verdiano em Moambique, tambm foi editorado pelo prprio autor em 1991 na Praia, 197 p. O ltimo livro de Benoni, Pedaos de uma vida, publicado em 2009, volta a ser uma edio do prprio autor.

    13 D. Benoni, Escndalo e beno, Praia, Edio do autor, 1996, 268 p.

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    o primeiro livro em que denuncia as irregularidades administrativas da Embaixada de Cabo Verde em Lisboa.

    Desde o m do sculo xix h, em Cabo Verde, um reconhecimento tcito de que o intelectual tem como propriedades a formao universitria (ou a do Seminrio de So Nicolau at o incio do sculo xx), publicaes literrias (contos, poesias ou romances) e intervenes na poltica a favor da populao vtima (da fome). Essa tradio de interveno letrada na poltica, na forma de denncia publicada (nos peridicos locais e livros, sobretudo de poesias) em nome de um povo iletrado se constituiu, ainda durante a colonizao, a partir das trajetrias escolares nativas mais destacadas. Com a ampliao do acesso formao no exterior aps a independncia cresce no apenas o nmero de pro ssionais liberais, mas tambm a quantidade de participaes literrias o que contribui para a reconstituio do campo daqueles que podem reclamar a condio de intelectual por oposio ao poltico. A posio subordinada dos escritores na hierarquia dos cargos poltico-administrativos permite uma relao letrada com a poltica, que se constitui como um modo peculiar de estar na vida poltica , que sob a apa-rncia de desinteresse imediato, autoriza uma interveno na forma de publicaes locais investidas de uma pretensa neutralidade e cuja audincia e legitimidade so ampliadas pela fora da evocao de competncias literrias. Trata-se de um modo de estar na poltica que retira a fora de sua legitimidade justamente do fato de poder se apresentar como posio exterior ao mundo da poltica, mundo esse supostamente reduzido esfera dos principais cargos governamentais. Logo, a aparncia de neutralidade e distncia uma condio de credibilidade da denn-cia e do denunciador e da extenso paradoxal do campo de possibilidades de interveno poltica.

    Por essa relao letrada com a poltica, Benoni leva seu affaire para alm de seu sector de trabalho, dos peridicos locais e da assemblia nacional. com o affaire da embaixada de Portugal que Benoni extrapola a projeo nacional, ganha reconhecimento da Anistia Internacional que o premeia com distino em Cambrigde e seu nome passa a constar do 26 volume do Dicionrio de Biogra as Internacionais daquela entidade14.

    O affaire Benoni : dos peridicos aos livros

    Para se entender como se transforma um relatrio, que poderia ter sido rotina de um sector de Estado, em um escndalo, se faz indispensvel uma rpida incur-so pelas relaes entre a mdia do pas e o governo. Depois de quinze anos de regime monopartidrio, da dcada de 1990 em diante, Cabo Verde assiste a uma disputa pluripartidria alimentada por uma relativa liberdade de imprensa. Apesar das declaraes de intenes em favor de uma maior autonomia, de uma abdi-cao a qualquer forma de censura e de uma insistente propaganda em favor da promoo dos meios de Comunicao Social como lugar do pluralismo de idias, os novos governos que at aqui se instalaram nunca deixaram de ceder a tentao do controle autoritrio sobre a imagem que os media podiam veicular de suas atividades. O predomnio do Estado no mercado miditico facilita o exerc-cio desmesurado de uma presso sobre o campo jornalstico em formao,

    14 Entrevista com Daniel Benoni em 4 de Maio de 2007.

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    cujos efeitos so, por um lado, a neutralizao da capacidade de denncia da imprensa estatal e por outro, o denuncismo partidarizado e de oposio na imprensa privada, suportada pelas foras partidrias de oposio. A bipolarizao que modela o campo poltico se estende ao espao de expresso jornalstico de modo a anular a credibilidade dos espaos institucionais das denncias, tidos como partidarizados.

    Nessas condies poltico-institucionais, a denncia de corrupo s um empreendimento destinado a convencer que se trata efetivamente de um escndalo, se ela se demarca da polarizao partidria e se inscreve de forma durvel para alm dos espaos da imprensa como uma quase expertise. O escndalo poltico , como a totalidade de instituies polticas cabo-verdeanas, uma instituio importada, um modelo de relao com a poltica e uma estratgia de produo de um tempo intenso da poltica. A extenso temporal do escndalo implica na gerao de uma memria e numa produo de registros pblicos que concatenam acontecimentos e biogra as o que demanda do denunciante, uma relao letrada com a poltica, como meio de xao durvel do estopim do escndalo na pai-sagem poltica do pas. As disposies, as competncias e os instrumentos para uma denncia na forma de dossis pblicos no sectorializados, so bens relati-vamente raros, em naes recm sadas de uma colonizao avara na escolariza-o dos indgenas. Chamo aqui de dossi publico no sectorializado15 a arquivos que no se restringem a forma de relatrios que circulam no espao interno a um sector do Estado, nem so veiculados pela imprensa na ntegra e nem mesmo se constituem como uma enunciao dirigida a um pblico da academia. Se propor em explicitar as possibilidades da encarnao dessas condies de escan-dalizao em determinadas trajetrias sociais pode ser um fecundo caminho para a explicitao no apenas do quanto e do como o desvelamento da corrupo pode acontecer em Cabo Verde, mas tambm, dos interesses subjacentes s estratgias da denncia poltica que extrapola os limites das contra-posies partidrias.

    Com vocao autobiogr ca e com explcitas intenes literrias, os dois livros16 de Daniel Benoni so testemunhos pblicos que ao reunir dossis de imprensa e relatos de conversas privadas faz um balano que reclama do leitor uma justa escandalizao17. A estratgia de apresentao de si que testemunha, sobretudo o ltimo livro, os clarins da perseguio e corrupo , o tom literrio e a

    15 Sobre relaes entre crise e desectorializao, vide M. Dobry, R exions partir dune analyse sociologique des crises politiques : point de vue de Michel Dobry. Actes de la 3e sance, Programme Risques collectifs et situations de crise, Grenoble, CNRS, 22 juin 1995 : 55 ; Digamos que tendencialmente, de maneira assimtrica, de maneira sempre desigual, o que ns chamamos de crises polticas as grandes crises polticas ao menos corresponde a enfraquecimento da sectorializao doespao social, a uma desectorializao tendencial do espao social, a uma menor signi cncia das fronteiras .

    16 Cada livro de denncia de Benoni se esgota rapidamente uma tiragem de 1 000 exempla-res, numa capital de 11 7000 habitantes, o que no nada desprezvel se considerado os frgeis investimentos em publicidade editorial.

    17 Aqui tambm, escandalisar no apenas a rmar que um limiar foi transposto, que isso no tolervel, suportvel, tambm procurar um meio de fazer dizer e de fazer crer que o fato, a situao continua bem escandalosa . (M. Offerle, Sociologie des groupes dintrt, Paris, Montchrestien, 1994 : 126).

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    auto-heroisao so recursos de escandalizao que no estariam disponveis na forma artigo para os pequenos peridicos do lugar. Os livros de Benoni so ajus-tes de contas com um governo diante do qual se sente impotente politicamente, mas que pode expor publicamente. Trata-se de uma revanche que visa no mesmo momento reconstituir uma imagem de si ultrajada pela perseguio policial e poltica e se apresentar como uma demanda poltica por mais democracia.

    Armindo Ferreira : de governante a denunciante

    Uma outra carreira moral construda em torno de denncias de corrupo a de Armindo Ferreira. Tal como Benoni, Ferreira vem de uma trajetria por uma ex-colnia portuguesa em frica, na qual coube aos quadros cabo-verdeanos um papel de intermedirios da colonizao portuguesa. Esse tipo de trajetria por posies elevadas no imprio colonial portugus tende, por um lado, a infundir elevadas expectativas de insero nos mais elevados postos do arquiplago por conta da transferncia de habitus relacionados a um desempenho de mediador em meio a uma massa de colonizados em Angola, Moambique e Guin-Bissau. Por outro lado, o desvio de trajetria, de quadros que no passam nem pela guerrilha, nem pelas atividades clandestinas de estudantes na metrpole, tende a implicar numa insero retardatria e con ituosa no seio da elite ps-colonial cabo-verdeana. Armindo Ferreira, nunca fora uma liderana destacada do MpD, partido que destronou, nas primeiras eleies livres, os quinze anos de governo do PAICV. O engajamento de Armindo Ferreira nas lutas de oposio ao regime monopartidrio e uma formao superior em Engenharia de Minas lhe conferiram cotao para chegar a condio de Ministro das Infra-estruturas e Transporte, sob o primeiro governo do MpD. Depois de demitido, numa conjuntura de crise do partido do governo em que quatro outros ministros tambm so preteridos por divergncias polticas, Armindo Ferreira escreve um livro expondo suspeitas sobre o processo de privatizao da maior estatal cabo-verdeana de combustveis18. Tendo sido deslocado do centro da esfera poltica do pas numa conjuntura crtica de reorganizao das foras que ocuparam o poder com a transio democrtica , Ferreira no tem um lugar no parlamento como seus demais confreres rejeitados da condio de Ministros. Inserido na rede da elite poltica o su ciente para conhecer seus segredos e distante o bastante para ambicionar a um auditrio mais amplo do que o circuito de homens da poltica, Ferreira se projeta num livro de edio caseira que lhe permite uma exposio de informaes como no poderia nos maiores peridicos do pas.

    Enquanto os outros quatro ministros afastados retomavam posies na Assemblia Nacional e podiam a expor as tramas ocultas dos processos em torno da privatizao das estatais, Armindo Ferreira dispunha de tempo, distncia e, sobretudo capital social para expor o escndalo na forma de um livro com pre-tenses de objetividade e exaustividade. O dossi de Armindo Ferreira pode ser tomado como uma releitura dos affaires revelados pelos pares em instncias rela-tivamente fechadas, e como um processo de gesto da memria do escndalo que lhe estende a temporalidade muito alm da conjuntura inicial da denncia19.

    18 A. Ferreira, A cortina dos milhes, Praia, Edio do autor, 2003, 209 p.19 Como na forma social do aletra, trabalhado por F. Chateauraynaud & D. Torny, Les sombres

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    Seria redutor fazer do descontentamento desses dois demitidos do governo do MpD o nico ponto de partida dos empreendimentos morais de desvelamento de irregularidades na forma de livros, mas certamente a estratgia do Primeiro Ministro de destruio sistemtica dos ocupantes dos postos no alinhados com o governo, favorece o processo de dessectorializao da denncia que segundo Dobry (1986) tpico das conjunturas udas .

    O escndalo da embaixada

    Que exerccios de comprovao se impem ao reconhecimento do escndalo poltico nas condies cabo-verdeanas ? A re exo em torno da questo das pos-sibilidades de tomada de palavra pblica contra um governo num contexto de democracia recente um exerccio que permite simultaneamente descortinar o grau em que as atividades poltico administrativas esto sujeitas a dispositivos de vigilncia que constrangem disposies corruptivas e as exigncias que pesam sobre o denunciante para que possa ser levado a srio.

    J antes de partir para Portugal, em 1993, Benoni recebera insinuaes de que a averiguao das irregularidades praticadas pelo embaixador em Portugal deveria na verdade ser apenas uma visita de performance. Quando esse inspetor do Ministrio de Negcios Estrangeiros regressa de Portugal, aps averiguar a denn-cia feita publicamente pelo funcionrio da embaixada, Dr Geraldo Almeida, segundo a qual o embaixador Eugnio Inocncio vinha praticando mltiplas irre-gularidades no exerccio das suas funes, recebe ordens implcitas de seus supe-riores hierrquicos de que deve abafar tais irregularidades20. Essa a verso pela qual Benoni pretende mobilizar a pequena esfera dos leitores cabo-verdeanos de que seu caso s aparentemente singular merece bem a ateno de todo um pblico, porque so os valores de uma nao pretensamente democratizada que esto em jogo. Qualquer que seja a parte de verdade dessa verso, a reao pblica do governo revela as prticas e estratgias do jogo poltico que conformam a importao das instituies democrticas em Cabo Verde e a qualidade das redes de alianas que o governo tende a mobilizar para proteger suas mais ele-vadas guras dos efeitos do escndalo.

    Quando, desnecessariamente, em aparncia, o Primeiro Ministro faz um pro-nunciamento pblico realando os servios do embaixador denunciado, o gesto desnuda uma demonstrao de foras sem pudores. Como geralmente na imprensa estatal, as mltiplas manifestaes oriundas das posies de defesa do governo, que se seguiram, revelam um misto de manipulao de cdigos jurdicos, argu-mentos de autoridade poltico-moral e a sustentao implcita numa rede de posies de poder que permitem no levar em conta as demandas morais do

    prcurseurs : une sociologie pragmatique de lalerte et du risque, Paris, EHESS, 1999 : 66, na situao de escndalo a de nio do presente ou, se preferir, da atualidade ela mesma de geometria varivel segundo o tipo de objeto do processo em causa . No caso em pauta, quando dez anos depois da publicao do livro Ferreira decide tomar uma posio eleitoral prxima dos polticos que acusara e acusado de contradio em site da internet o presente do escndalo ainda enquadra a geometria do evento escndalo na Enacol.

    20 Entrevista com Daniel Benoni em 4 de Maio de 2007.

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    adversrio. Os termos dessas enunciaes demonstram quem qui podi 21, expres-so local de demonstrao de uma fora assente em capacidade de violncia fsica, que sem precisar se efetivar gera autoridade.

    A fora moral da enunciao de poder em Cabo Verde reside no domnio de um cdigo que por ser externo a maioria da populao a reduz a condio de espectadora e esmaga os adversrios a golpes de autoridade que prescindem de fora argumentativa substancial e exacerbam dimenses formais do exerccio de compro-vao22 em lugar da explorao das dimenses de justia moral em questo.

    A fora das redes de neutralizao do escndalo

    A relao dos intelectuais cabo-verdeanos com retrica de poder precisaria de um captulo a parte. A experimentao principal deste artigo tem como base a idia de uma peculiaridade cabo-verdeana em seus processos de reconverso de elites intelectuais. Em um pas sem outras fontes de enriquecimento que o controle dos uxos de bens estrangeiros, o domnio sobre a principal agncia de importao o Estado crucial nas estratgias de reconverso de elites. H mais de um sculo, em Cabo Verde, as elites lutam pelo controle do processo de importao de modelos, ttulos e instituies escolares como estratgia central de controle de seus processos de reconverso, reproduo e recrutamento para os principais postos na alta administrao. A grande herana intelectual cabo-verdeana, transmitida de gerao em gerao de intelectuais, a noo de que o prestgio deriva de um domnio de cdigos intelectuais inacessveis a maioria. Por isso a peculiaridade cabo-verdeana nos processos de converso de recursos estatais em riquezas pessoais se faz com o intelectual como gura central nas estratgias de controle do Estado.

    Duas dcadas aps a independncia nacional, o regresso anual de um grande nmero de pessoas de uma formao no exterior caracteriza uma nova gerao de intelectuais : os quadros. Emergentes em nmero relativamente grande, com formao heterognea no s pela multiplicidade de pases de formao, mas, sobretudo pela diversidade de reas de estudo, os quadros colocam em jogo a prpria noo anterior de intelectual no arquiplago. Sem a formao literria e a proeminncia intelectual das geraes anteriores, os quadros recm chegados ao pas tm di culdade em responder vocao de mediadores poltico-culturais que a perspectiva de sua histria de grupo lhes impem. Disputando, cargos, posi-es e recursos de prestgio cada vez mais escassos, os novos quadros tendem cada vez mais a se desengajarem da velha gura do escritor-poeta-mediador e a assu-mirem que a poltica-partidria o nico caminho para o topo da hierarquia de uma sociedade cada vez mais desigual em riquezas.

    A trajetria do ento Primeiro Ministro, Carlos Veiga23, tpica, antecipa e inaugura um novo tipo de trajetria intelectual, a do expert, que no tendo pas-

    21 Quem rene condies de esmagar o adverrio, num jogo de foras .22 o que ca evidente, por exemplo, quando a comisso parlamentar de inqurito que

    investiga o escndalo da diplomacia em Portugal, exige do scal do Ministrio de Negcios Estrangeiros a demonstrao de que o excesso de bebidas alcolicas compradas pelo embaixador no teve um destino no mbito de suas atuaes diplomticas.

    23 Uma explicitao mais detalhada da trajetria de Carlos Veiga em correlao com as lutas e transformaes das elites politicas cabo-verdeanas ps-colonias pode ser encontrada em

  • sobre o escndalo poltico em cabo verde 35

    sado pela luta de libertao nacional, nem possui os talentos literrios exigidos das geraes consagradas anteriormente, em compensao tem a exibir, mais do que nunca, o domnio de cdigos externos a cultura local (sobretudo cdigos jurdicos) e competncias relacionadas manipulao de relaes locais e inter-nacionais que conferem poder. Quando Carlos Veiga, o Primeiro Ministro, demons-tra publicamente seus vnculos com o embaixador e sua adeso a essa parte da contenda, a controvrsia ganha a forma de um affaire. Os pressupostos fatos de corrupo fragilmente encarnados em um testemunho na forma de relatrio e depois em um formato de livro passam a enfrentar a fora de enunciao do Chefe do Executivo do pas que mobiliza um conjunto de instncias institucionais como a procuradoria, os tribunais, a televiso estatal e a polcia para desquali car o autor da denncia e reforar a autoridade do governo.

    Se do lado do ex-inspetor toda uma rede se instala para tornar possvel desde a publicao de um livro de divulgao do escndalo e a designao do denun-ciante como candidato e sua eleio como edil na capital do pas, em contrapo-sio, do lado do Chefe de Estado e do embaixador, aliam-se o Tribunal de Contas que retm o processo por trs anos, o Procurador Regional da Repblica que acusa o ex-inspetor de desvio de documentos da embaixada, a polcia mobi-lizada para procurar os referidos documentos em casa do ex-inspector que passa a se ver, de certo modo, em regime de vigilncia.

    Dessa clivagem poltica que se instala com o affaire Benoni resulta a impossi-bilidade de estabilizao do fato da corrupo. Outros textos j zeram a demons-trao dessa instabilidade, a impossibilidade de comprovao positivista do fato da corrupo, como uma das caractersticas do escndalo poltico. Acontece com a forma social escndalo como com o alerta que contrariamente ao modelo posi-tivista da prova formal que deve vigorar na esfera jurdica um escndalo no precisa ser objetivo mas deve apenas engendrar bons testes 24.

    Portanto nada interessado na possibilidade de comprovar a corrupo subjacente ao escndalo, interessa-me aqui o escndalo como dispositivo de vigilncia, demons-trar sua vigncia no caso cabo-verdeano, como um dos regimes de relao com a poltica e que constrange aes de corrupo.

    Uma denncia bem detalhada

    Se nem todo o caso de corrupo se transforma em escndalo poltico, o que faz com que determinados casos ascendam a esse status de escndalo para alm da presena prxima de atores dotados dos recursos para uma denncia sistemtica, como vimos acima ?

    Em Cabo Verde, livros inseridos em escndalos polticos, no aparecem no inicio das atividades de corrupo para neutralizar seu prosseguimento, mas tam-bm nunca so apenas um balano nal. Num estado de poltica demasiada-mente urgente, quem organiza dossis est convocado a intervir politicamente, escreve enquanto empreendimento de mobilizao de opinies, e s o faz quando

    M. Cahen, Vent des les. La victoire de lopposition aux les du Cap-Vert et So Tom e Principe, Politique africaine, 43, 1991 : 68.

    24 Vide F. Chateauraynaud & D. Torny, Les sombres prcurseurs . . . op. cit. : 28.

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    tem chances de grande impacto, quando o sistema de transgresso est su cien-temente ameaado para garantir a a rmao da gura do denunciador.

    A conjuntura da publicao do primeiro livro de Benoni demonstra bem que a exacerbao de uma crise no seio da elite governamental ocasio em que um evento ou uma srie de eventos podem ser denunciados, pretexto para dissidentes do grupo no poder ampliarem e potencializarem um auditrio, munidos dos recursos polticos de uma oposio atiada sobre a fragilidade momentnea do adversrio que governa. assim que os dois escndalos s ocorrem no momento em que o MpD se fragmenta aps sucessivas crises e expulses de quadros impor-tantes de fundao desse que o primeiro partido a chegar ao poder aps a implantao do sistema multipartidrio.

    Tendo se deslanchado como escndalo uma srie de eventos que pareceriam desarticulados tendem a se organizar aos olhos de um auditrio para se con gu-rarem como evidncias de um processo sistemtico de converso de bens estatais em riquezas pessoais. a relao do escndalo com o tempo, na forma como coloniza eventos do passado e do futuro, que faz-nos pensar num dispositivo crescente de scalizao da vida pblica cabo-verdeana25. O escndalo tem uma relao com o tempo que o da ressonncia. Toda uma serie de acontecimentos passados e futuros passam a ser enquadrados na moldura do escndalo. assim, que se passa a lembrar que Eugnio Inocncio, o embaixador, era o Presidente do Conselho de Administrao aquando do processo de privatizao da empresa cabo-verdeana de telecomunicaes, cuja transparncia tambm foi colocada em causa tanto na Assemblia nacional como nos rumores de rua.

    tambm parte do escndalo o fato de que dez anos depois da denncia o mesmo ex-diplomata reaparea na cena pblica como um dos maiores acionrios do maior investimento empresarial no pas. A construo do maior complexo turstico com que contar Cabo Verde, o Santiago Golf Resort, est sendo asse-gurada por uma companhia portuguesa e o recm reconvertido homem de negcios, Eugnio Inocncio26. Conjuntamente, Eugnio Inocncio e a multinacional portu-guesa asseguram um projeto de 550 milhes de euros, o equivalente ao oramento geral do Estado Cabo-Verdeano por dois anos. No affaire Santiago Golf Resort, o grupo portugus Sacramento Campos contribui com 75 por cento do nancia-mento e o ex-homem poltico com os restantes 25 por cento.

    25 Mesmo se como analisa Garrigou, o escndalo tenha um fraco poder de mobilizao consecutiva, porque os agentes potencialmente mobilizadores preferem conduzir o affaire em instncias o ciais, em situaes de importao recente de instituies estatais as fronteiras sec-toriais so muito mais permeveis como se pode ver no caso pauta. Vide A. Garrigou, Le Scandale politique comme mobilisation , in F. Chazel (ed.), Action collective et mouvements sociaux, Paris, PUF, 1993 : 183-191.

    26 Tudo pode passar a alimentar e reformatar a temporalidade do escndalo. Assim um blog do jornalista portugus Leston Bandeira faz lembrar que Eugnio Inocncio, quando exilado em Lisboa, na dcada de 1980, lhe fora apresentado solicitando emprego, como algum que no j no tinha sequer para comer . Uma trajetria de uma dcada como comerciante aps a reconverso da politica para os negcios e Eugnio Inocncio se apresenta em Cabo Verde com um investimento empresarial de mais de cem milhes de euros !

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    Por essa geometria de um presente que se alastra numa srie de eventos, mesmo se nem todas as aes de corrupo se transformam em escndalo, o presente do escndalo tende a colonizar de tal modo o passado e o futuro que se constitui numa espcie de dispositivo panptico.

    No se poderia dizer que Cabo Verde um pas em que os atos de corrupo estejam naturalizados. Que estratgias de escandalizao tenham ido buscar os gastos de uma embaixada no exterior com bebidas27 deixa evidente o regime de esquadrinhamento e vigilncia a que o funcionalismo cabo-verdiano pode ser submetido. O que se veri ca no arquiplago como alhures, uma distncia intransponvel entre denncia e comprovao, quando os denunciados so su -cientemente poderosos para transformarem o escndalo em affaire.

    Tal regime de exigncias de comprovaes torna evidente a impotncia do sistema de punio diante da rede de alianas das elites no poder. Se as clivagens no interior dessa elite so su cientes para produzir revelaes escandalosas, os empreendimentos morais que decorrem dessas clivagens no esto su cientemente instrumentalizadas para desencadear a punio. Que essa impotncia possa ter como efeito um descrdito nas instituies e que possa gerar um ciclo vicioso de corrupo, isso no signi ca uma cultura na populao em geral que seja favo-rvel s atividades corruptivas como pretendem Olivier de Sardan e Blundo28 para o Senegal, o Niger e o Benim.

    O Escndalo da Enacol

    O segundo caso de escndalo, do regime pluripartidrio cabo-verdiano e que gerou um livro, refere-se primeira fase de privatizao da Enacol que ocorre em 1997 com a venda de 65 % da empresa Petrogal (Multinacional Portuguesa) e Sonangol (Multinacional Angolana de Petrleos), passando cada uma destas entidades a deter 32,5 % do capital social da mais importante empresa cabo-verdeana de combustveis.

    O processo de privatizao emerge como um escndalo quando rumores suge-rem que teria havido graves irregularidades na conduo das negociaes com a multinacional angolana, a Sonangol. O escndalo cede lugar a uma crise poltica quando seis deputados do prprio partido no governo (os mesmos ministros que tinham sido demitidos) dirigem ao Primeiro Ministro uma carta29 explicitando os pontos controversos da negociao e sugerindo a possibilidade de um desvio de dois milhes de dlares. Segundo os rumores explicitados na carta, o montante da venda Sonangol teria sido de onze milhes trezentos e setenta e cinco mil dlares e uma parcela de tal valor, algo em torno de dois milhes de dlares, no teria entrado nos cofres do Tesouro Pblico.

    Vrios so os pontos de controvrsia com relao forma como a negociao foi entabulada. Desses pontos destacam-se trs pela intensidade dos debates que suscitaram.

    27 A denncia refere-se a compra de 609 contos de whisky (quase oito mil dlares) em um ms.28 G. Blundo & J.-P. Olivier de Sardan, La corruption au quotidien . . ., op. cit.29 Horizonte de 18 de Maio de 2000.

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    Previa-se de incio, por lei, que 65 % das aes deveriam ser vendidas pelo processo de venda direta, na totalidade e em bloco indivisvel a uma empresa de petrleo ou a um consrcio de empresas que inclusse pelo menos uma empresa de petrleo. A revelia da lei as aes foram vendidas em dois blocos de 32,5 % para a Petrogal e a Sonangol. Alega o governo que as duas empresas teriam atuado como um consrcio, o que no se veri ca posteriormente.

    Duas outras supostas irregularidades tm a ver com as exigncias de um seguro cauo e de um contrato de compra e venda. Segundo alegaes do Vice-Primeiro-Ministro, Sonangol no se teria cobrado a cauo de 500 000 dlares previsto em lei por razes polticas e diplomticas, dentre as quais o fato de Cabo Verde ter uma dvida de seis milhes de dlares para com o Estado de Angola.

    As razes para a inexistncia de um contrato de compra e venda so apresen-tadas da seguinte forma pelo Primeiro Ministro no auge do affaire :

    Mas h mais : diz-se que h falta de contrato. Na venda de aces, um contrato escrito no essencial. Segundo a nossa lei, para que haja transferncia de propriedade das aces, preciso que haja o averbamento dessa transferncia no livro de registo de aces. Mesmo que eu tenha um documento a dizer que transferi as aces, isto no releva enquanto no zer o averbamento. O contrato um juntar de declarao de vontades. Basta que eu tenha duas cartas em que um diz, eu vendo e o outro diz eu aceito comprar, para se ter um contrato. E ns temos isso. Temos uma carta do Governo a dizer que aceitmos o preo de nove milhes de dlares e temos uma outra da Sonangol a dizer que vo comprar. 30

    De novo emerge o carter no substancial e meramente formal do processo de conduo das justi caes pelas foras polticas no poder31. O que permite des-cortinar se a empresa angolana pagou onze milhes em vez de nove milhes de dlares ? Nenhum documento o cial.

    Um outro ponto muito explorado no affaire, ndulo decisivo nas exigncias de comprovao o fato do governo ter dado a conhecer empresa concorrente, Sonangol, o resultado da avaliao interna para se saber quanto a sua empresa vale. Tanto por um princpio econmico quanto pelo legal a empresa compradora no teria razes para conhecer avaliao solicitada pelo governo cabo-verdeano a uma auditoria internacional.

    Esse ponto tanto mais decisivo na controvrsia porquanto alega o governo que a cota da Enacol vendida a Sonangol de fato no valia mais do que nove milhes, pelo que os dois milhes em questo referem-se apenas a diferena entre o valor indicativo adiantado pelo governo cabo-verdeano e o valor efetivo de nido por auditoria internacional.

    Instado a justi car os privilgios concedidos a empresa angolana nas negociaes, o representante do governo o faz alegando motivaes de ordem estratgica , o objetivo de fazer de Cabo Verde um ponto estratgico de comrcio de deriva-

    30 Primeiro Ministro em entrevista ao jornal Horizonte de 8 de junho de 2000.31 No uma particularidade dos governos do sul que, como chama a ateno Lascoumes

    para as situaes de corrupo no primeiro mundo, podem se dar ao luxo de um cinismo com o qual os dirigentes se apropriam do poder que lhes temporariamente con ado e o exercem segundo uma legalidade elstica e, mesmo fora das regras do direito comum segundo os princ-pios de utilidade imediata (P. Lascoumes, Corruptions, Paris, Presses de Science Po, 1999 : 62).

  • sobre o escndalo poltico em cabo verde 39

    dos de petrleo. Sob essa linha de raciocnio a Sonangol, estaria sendo, tratando-se de uma empresa que produz petrleo bruto, seduzida a vender a Cabo Verde o combustvel a preos competitivos, apontando-se inclusive para a possibilidade de construo de uma re naria de petrleos em Cabo Verde. Mira-se a longo prazo para a possibilidade de Cabo Verde se apresentar como uma plataforma de exportao de petrleo re nado para paises desenvolvidos que lutam com problemas de saturao em termos de quota de poluio. Visualiza-se que Cabo Verde teria uma boa localizao geo-econmica se considerada a proximidade de grandes bacias de petrleo, da frica Central e do Oeste. Alega-se que o mape-amento dessas pr-condies pela multinacional angolana poderia vir a estimular um investimento neste domnio32.

    O objetivo aqui, no explorar as contradies do governo, na explicao dos tramites da negociao, mas o de explicitar a qualidade das redes de relaes sociais acionadas para neutralizar as estratgias e os efeitos da escandalizao. Efetivamente a base de relaes para conter as estratgias de escandalizao so as mesmas acionadas para efetivar a transao comercial, a con ana pessoal que estabelece a invisibilidade do privado em trmites que so do domnio Estatal.

    Para justi car o depsito num paraso scal, da parte angolana, de nove milhes de dlares sem um contrato de compra e venda o governo cabo-verdeano pode alegar no apenas que o contrato no juridicamente imprescindvel, como tam-bm apresentar uma troca de cartas em que o Vice-Primeiro Ministro de Cabo Verde e o diretor geral da Sonangol concordam quanto ao valor de nove milhes de dlares. As duas cartas no carregam os sinais de o cialidade, alm da noto-riedade dos dois interlocutores.

    Contratos explcitos se fazem inscrever materialmente em formas jurdicas, da a necessidade do governo apresentar formas de inscrio alternativas ao contrato inexistente. O fato da empresa ter um novo estatuto ? A tomada de posse pelo administrador da Sonangol, com todos os tramites documentais que a instalao de um novo escritrio implica ? A possibilidade de que exista um registro notarial em Angola ? Todas as alternativas so apresentadas pelo vice-primeiro ministro em Assemblia nacional.

    O que o conjunto do affaire revela o predomnio de aes baseadas em con ana entre o vice-primeiro ministro e a direo da multinacional angolana nas brechas das exigncias legais de contratos explcitos entre duas entidades o cialmente representadas.

    Fazendo opinies sobre a corrupo

    Com poucos institutos de sondagem e a maior parte das pesquisas sociais reali-zadas sob demandas internacionais, portanto voltadas para temas mais estruturais

    32 Sobre a tendncia dos governantes a alegar motivos estratgicos para justi car irregulari-dades administrativas vide P. Lascoumes, Corruption, op. cit. : 95, particularmente o extrato seguinte : Alm disso, dois possantes fatos justi cativos contribuem para eufemisar a gravidade do aten-tado e as responsabilidas : o realismo econmico e o pragmatismo diplomtico. No m das contas, nenhuma instncia de sano social no realmente mobilizada, a ao da justia impotente e toda a sano parece ilegtima .

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    do que conjunturais, difcil avaliar o grau de penetrao do escndalo e a medida em que os dossis da Enacol e da Embaixada construram uma opinio publica em Cabo Verde em torno da questo da corrupo. Contudo essa avaliao dos impac-tos dos escndalos sobre uma esfera pblica criada a partir da crise seria funda-mental para o argumento principal deste artigo de que as lutas da elite poltica do pas tm estimulado uma importante moralizao das opinies com relao s atividades poltico-administrativas.

    Um dos poucos institutos africanos de sondagem e pesquisas sociais sediado em Cabo Verde, o Afrobarmetro, realizou uma sondagem de opinies no seio dos funcionrios pblicos e privados. Como essa sondagem acontece de sete a nove anos aps o inicio dos escndalos, ela no favorece a anlise sobre os impactos dos dossis (o que no era o objetivo da pesquisa do Afrobarmetro), ajuda-me contudo a esclarecer o modo como uma opinio pblica sobre corrupo vem sendo gestada e estimulada. Tomo os estudos como os realizados pelo Afrobarmetro como parte das mesmas estratgias de mobilizao subjacentes ao escndalo. Efetivamente a sondagem nas condies cabo-verdeanas mais um ato de mobi-lizao pblica do que de simples exposio do estado prvio das opinies.

    O estudo foi encomendado por um escritrio das Naes Unidas sob mediao da Comisso de Coordenao do Combate a Droga. A demanda pelo o estudo se insere numa conjuntura internacional em que presso exercida sob os Estados perifricos por austeridade econmica se conjuga cada vez mais uma imposio de austeridade moral33. A par da importao de instituies de vigilncia como o caso da Alta Autoridade contra a Corrupo34, o governo cabo-verdeano atende a injunes por avaliaes e seminrios freqentes sobre a corrupo. Nesse caso a avaliao do grau em que a corrupo importante em Cabo Verde se faz no pelo estudo dos casos de corrupo, mas pela avaliao da opinio dos funcionrios pblicos e privados35 sobre o que seja corrupo e sua importncia em Cabo Verde.

    Entendendo-se que o processo de importao de modelos de avaliao e mode-los de instituies de intermediao, tem o efeito de fazer ressoar tal sistema de vigilncia no interior das esferas administrativas, o estado das opinies dos fun-cionrios cabo-verdeanos sobre a corrupo no imune rusga moral imposta pelas instncias internacionais36. Ou seja, a demanda pelo estudo parte do pro-

    33 D. Georgakakis, Lutte anti-fraude, scandale et nouvelle gouvernance europenne , in J.-L. Briquet & P. Garraud (eds), Juger la politique, Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 2001 : 284.

    34 Que o atual primeiro ministro tenha colocado em dvida as atividades de uma organizao como a Alta Autoridade de Combate a Corrupo ao mesmo tempo em que multiplica inicia-tivas governamentais relacionadas ao tema um bom sinal da in ao regulamentria tpica da atual conjuntura mundial de festa dos empreendedores morais no campo da poltica.

    35 Foram aplicados 492 inquritos para um universo de 16 585 funcionrios.36 A estatstica estando inscrita no funcionamento mesmo do mundo social, a anlise esta-

    tstica no poderia se alojar sobre o plano da tcnica : pelo erro de se aprender as implicaes sociais da estatstica e as implicaes estatsticas da realidade social um outro exemplo seria o debate sobre as probabilidades objetivas e as probabilidades subjetivas , se corre o risco de se fazer a sociologia sem o saber, isto , a golpe de uma m sociologia , P. Bourdieu, La noblesse dtat. Grandes coles et esprit de corps, Paris, ditions de Minuit, 1989 : 451.

  • sobre o escndalo poltico em cabo verde 41

    cesso de exportao de modelos de constituio de esferas pblicas e o resultado do estudo j est contido em parte nas injunes subjacentes a demanda.

    assim que a sondagem recentemente realizada pelo afro-barmetro revela que a opinio dos funcionrios pblicos do pas com relao corrupo est longe de uma disposio discursiva que favorea a naturalizao desse tipo de prticas. Destaca-se como um dos resultados do estudo que apenas um em cada cinco funcionrios pblicos cabo-verdeanos a rma-se indisponvel para denunciar um colega em caso de corrupo. Mais de metade dos funcionrios cabo-verdeanos tende a avaliar que a qualidade dos servios administrativos no est condicionada retribuio dos utentes. O reconhecimento de que existe um nvel de corrupo sensvel37 e que a imparcialidade de suas atuaes como funcionrios no total tanto pode indicar uma permissividade quanto uma auto-critica, relao no naturalizada com prticas que os prprios funcionrios considerariam irregulares.

    Do mesmo modo que o reconhecimento de um conjunto de prticas de favo-recimento a conhecidos e familiares pode ser revelador de um quadro moral de relaes de reciprocidade que no as reconhece como prticas irregulares bem como pode signi car uma rejeio a nvel discursivo e a constatao de seu pros-seguimento a nvel das prticas. O que os resultados da pesquisa revelam que mesmo se a reciprocidade inter-pessoal perpassa a esfera pblica, est longe de signi car uma aceitao moral das prticas reconhecidas como irregulares e que recobre signi cativamente o mbito do que legalmente se prescreve como atos de improbridade administrativa. Grosso modo se poderia dizer que o estudo revela a e cincia da rusga internacional moralizadora que atuando sobre uma disposi-o subjetiva j previamente propensa a aceitar um discurso de austeridade moral nas esferas administrativas, recolhe bem os resultados de sua prpria iniciativa, numa situao favorvel de importao de instituies e modelos de governamen-talizao da coisa publica .

    certo que uma denunciada ausncia de dispositivos institucionais de acolhi-mento e proteo denncia e aos denunciados pode gerar o ciclo vicioso da discon ana em relao a institucionalidade que gera mais corrupo. A percep-o de tal risco est to presente nos funcionrios cabo-verdeanos que, mesmo se na prtica medidas impopulares de controle da pequena corrupo encontrem resistncias o quadro moral lhe favorvel pois que tais medidas tendem a ser apreciadas como necessrias.

    Uma avaliao minuciosa dos limites do estudo apontaria para a possibilidade de que a grande corrupo no seja visvel para esse tipo de instrumento de pesquisa que a sondagem e que a pequena corrupo para ela bem visvel em setores chaves de a uxo de bens materiais (diferentemente das irregularidades

    37 Cerca de um tero (32,5 %) dos funcionrios concorda, ou concorda fortemente, que alguns dos utentes obtm um melhor servio. Estes funcionrios tambm reconhecem, embora em propores muito menores, que familiares e amigos de colegas obtm um melhor servio. Preocupante no tanto o nvel, mas sim, a frequncia com que os familiares e conhecidos so bene ciados, mesmo violando as normas e regulamentos. Praticamente 1 em cada 3 funcionrios (31,1 %) con rma que o faz frequentemente ou quase sempre. Uma proporo quase idntica (29,1 %) a rma que nunca o faz (Afrosondagem, Inqurito sobre Crime e Corrupo em Cabo Verde : Relatrio Preliminar, Praia, 2006 : 7).

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    nanceiras) como a alfndega e o setor de gesto de pequenos servios de Estado que so as cmaras municipais.

    So basicamente os funcionrios do setor publico e privado os leitores que os empreendedores morais das estratgias de escandalizao mobilizam numa cruzada que tende a recristalizar o espao poltico nacional aps o desaquecimento do nacionalismo anti-colonialista. No por acaso que os dois escndalos em pauta tenham emergido como estratgias de atores politicos marginalizados ao espao de atuao politico-partidrio, trata-se de uma logica de ao de reordenamento do campo dos possveis visando a uma reinsero no centro de uma politica moralizada. Mas a medida em que cresce o nmero de escndalos tende a diminuir a capacidade mobilizadora desse tipo de estratgia da escandalizao e seus efeitos sobre a pequena corrupo poderia vir a ser, seguindo a abordagem dos tericos do capital social seguidores de Robert D. Putnam, a do crculo vicioso da m gou-vernana38 ? Teria isso j acontecido na maioria dos demais pases da frica ?

    A impotncia das redes de desvelamento

    A dinmica dos dois escndalos analisados acima produto e contribui para cristalizar um espao pblico de vigilncia, sobre a esfera administrativa, no seio do qual atuam os peridicos locais e que se estende atravs da internet e dos rumores de rua. Se por um lado essa visibilidade a que se submetem as prticas de governo tende a coibir a corrupo, por outro lado a rotinizao da denncia tende a neutralizar as estratgias de escandalizao.

    Apesar do elevado nvel de sensibilidade da opinio dos funcionrios pblicos cabo-verdeanos em relao corrupo, nas altas esferas o carter grosseiro das prticas de canalizao de recursos pblicos para enriquecimento privado a-grante nos processos de reconverso de trajetrias de homens politicos em homens de negcios. Tentei sugerir ao longo do artigo que as redes informais de recipro-cidade no seio da elite governamental so o que garante a sub-punio dos casos de corrupo, sustentando a continuidade de tais prticas. As exigncias de com-provao a que as denncias devem transpor so demasiado elevadas para o poder de ocultao das redes que envolvem as prticas escandalosamente cunhadas de alta corrupo.

    Nos dois casos logo aps a denncia, a interveno do ento Primeiro Ministro foi providencial para desestabilizar o processo de averiguao dos supostos fatos de corrupo. A teia de relaes em torno do Primeiro Ministro, mobilizadas para impedir a instalao efetiva de um sistema de comprovaes, acusou a assimetria entre denncia e comprovao que torna impraticvel a punio por crime de improbidade administrativa.

    De modo geral se poderia dizer que em Cabo Verde o trabalho dos funcion-rios est sob razovel nvel de vigilncia. Os casos j ocorridos de punio por corrupo testemunham que quando ela no envolve o alto escalo de governo, a irregularidade tende a ser punida de tal forma que no se poderia dizer que

    38 Para uma exposio dos limites desse tipo de abordagem sobre a corrupo vide P. Bezes & P. Lascoumes, Percevoir et juger la corruption politique , Revue franaise de science politique (Paris), LV (5-6), octobre-dcembre 2005 : 764-766.

  • sobre o escndalo poltico em cabo verde 43

    a capilarizao de pequenas prticas irregulares que sustenta moralmente os gran-des delitos de Estado. O maior caso de averiguao em profundidade de uma denncia de irregularidade administrativa provavelmente o das Alfndegas da Praia. De julho a Dezembro de 2004 dois inspetores chegaram ao relatrio nal de uma sindicncia que con rma a existncia de um quadro de corrupo. Esse tipo de processo de comprovao se imps contra ameaas e presses de atores sociais inseridos em redes muito menos poderosas do que as dos casos da Enacol e da embaixada.

    A pequena e alta corrupo no so fenmenos que podem ser sociologicamente descortinados num mesmo quadro. Trata-se de fenmenos diversos, que mesmo se inseridos num mesmo contexto, demandam metodologias diferenciadas. O empreendimento de moralizao da relao com a coisa pblica, com fortes investimentos internacionais, tende a assegurar uma vigilncia sobre os setores baixos e intermedirios do funcionalismo, deixando invisvel as tramas em torno dos altos cargos de poder. Diante das alianas e dos recursos moblizveis no seio da elite poltica os dispositivos de comprovao e punio se revelam impotentes. No caso da alta-corrupo, a poltica anti-fraude tem sobrecarregado de humor moral o processo de transformao da denncia em escndalo e do escndalo em affaire, sem que esse processo ajude a estabilizar os fatos de corrupo, seu pro-cesso de comprovao.

    Dada urgncia compulsiva de dissoluo dos marcos da presena do Estado na economia, a imposio de polticas de privatizao pelas agncias vencedoras da mundializao no vem acompanhada das garantias institucionais de que os marcos jurdicos exportados para tal processo sejam su cientes para coibir as estratgias de reconverso de recursos pblicos em riquezas pessoais. A margem de exibilidade proporcionada por esses dispositivos abre imensas brechas para que os importadores do dogma da privatizao rpida e a qualquer custo, tirem todas as vantagens das brechas entre contratos implcitos e a formalizao legal.

    O tratamento desigual em termos metodolgicos que normalmente se d aos affaires em frica e na Europa tendem a exacerbar o contraste cultural e moral ali onde uma sociologia da importao de instituies e da circulao de elites do norte e do sul explicaria melhor do que uma pressuposta propenso cultural atvica corrupo.

    Junho de 2007 e janeiro de 2009Jos Carlos dos ANJOS

    Universidade Federal do Rio Grande do SulPrograma de Ps-graduao em sociologia