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    Jos Gil Euforia e terror

    H muito que o pressentimos, sem ter disso a conscinci a ntida: vivemos numasociedade normaL izada, consensuaL , que esconde, sob uma fachada briLhante, uma! insegurana profunda. A "auto-estima" (expresso horrveL , que diz o que diz) de n )que tanto se f~a, ;:.ecobre a faLta ;;L ~ uma sL ida~utoconfiana. Continuamos a 'l iacreditar ouco e_mns, portugueses, apesar de. 'illL!lQ.~da vez mais bombardea-dos om inmer~s ';~'~espariissentim;'~~rguLhosos, contentes, vaL onzados:-_-;:- ....",... .~":":.--.,,~~~u-~P ...~1>~~" , . ___.E porque no o somos? Porque continua vivo, no fundo de ns, o pequeno masinsistente, permanente e obsessivo temor e tremor que nos impede de ser um povoaLegre? A lgum disse, recentemente, que estamos a viver um perodo de apatiaeufrica! : porqu esta apatia que no deixa a eufori a expandi r- se, vi ver por si ,vencer definitivamente o maL -estar? Que maL -estar?A "normaL izao" a que vem sendo submetida a sociedade portuguesa no incideapenas - nem principaLmente - no processo de reguLarizao da vida poL ticademocrtica, depois dos sobressaL tos que se seguiram ao 25 de Abril. A normaL iza-o de que aqui se trata um movimento muito mais geraL e profundo: caracteriza- ~ --se ne ativa eL a homo eneiza o dos com ortamentos, peLa supresso de ~ ~()possibiL idades de vida (criao de novos posstveis de subjectiva~o),e pOSlV - - " " . q~~mente, peL a aceitao universaL deste estado de coi sas. Um trao essencial aa noY :-' _ < : j ~maLizao: a au~~cii d~'ltmti~Ti1T idUn;iTnica norma em todos OS&~ ;:"'~~domnios (desde a governao vida privada), sao acompanhadas peL o desapareci- r~G~ :')mento da norma. A sociedade por' uguesa eStnormaLizada por uma regra invisvel.,J :, ~t..P.~Onde est eLa? EL a,que prescreve uma s poL tica? Uma s moraL? Uma s manei ra'~ ~,/) ""-l {~ ~de agir, de senti r, reagir, pensar? M as como def ini r a norma, se o pensamento e a ,6~~~Cc '-(~'~.~co, a poL tica e c : . .moraL idade vigentes se vive~ com a naturaLidade e a crena das J)~.~ C.:9. '

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    , A democracia tornou-se uma guesto de bom senso. av i a n ica, Impe-se uni-versalmente; e impe-se em Portugal, misturando-se com o mais fino teci do dasmental idades que querem o consenso, fogem dos conf li tos e valorizam, acima detudo, a paz da mediania, o equil brio do justo meio - numa palavra, o bom senso.- ,. Por isso, em Portugal , talvez mais do que noutros pases tambm normalizados,se d menos pela falta de norma. Vivemos num espao (mental, social, de vi da) cir-cunscri to por l imi tes, mas onde no se di stingue o que nos limita. M aisuma vez: naturalmente, espontaneamente, que pensamos de uma s maneira, caminhamospor uma s via, como se fosse evidente que s estas existem. Porque as outras "pos-sveis" pertencem ao passado e verificaram-se impossveis; e as que se apresentamcomo diferentes e reais levam directamente excluso social. A s alternativas actu-~o impossveis: muito simplesmente no existem. ---.-,Paradoxa mente, estas cractersticas da normalizao portuguesa assemelham--se a certos efei tos descri tos por Hannah A rendt nos regimes totalitrios. Nestes,que ela distingue dos regimes autoritrios "tradicionais" (di tadura, despotismo,tirania), a via nica visa a transformao do gnero humano, e a e vidncia da legi ti -midade da poltica totali tria funda-se no facto de esta realizar uma lei da Naturezaou da Histria. Contrariamente tirania. no estado total i tri xistem leis, mas ele~ _ . ~ . _ " " " ~ . , . - .. . . . ~ - _ . . " - '" ". = - ~"pode prescindir do con.::.~~~~1~ri~J ?Or9~P1Qm~tgJ iberta.r.,l..efectua1;o--f!.:'~~~et(')d~ a~~alfel~_!2l}y"ontgJ i~.b.um~d,~_.pI.Qmete_alusti--~O~"r~:utle~raorqueprete;d"e fazer do prprio gnero humano a incarnaoda lei"2. --~s amos onge;e (ro:cf'-st'~d;d"-di;~it;;"d~~r9i~'es democrticos. Aquicumprem-se as leis, al i "0 seu [do regime totalitrio] desafio s leis posi tivas ,assegura ele, uma forma mais elevada de legitimidade que, inspirando-se nasprprias fontes [a Natureza e a H istria], pode desembaraar-se de uma legalidademesquinha">,Se parece descabido, ou mesmo monstruoso, comparar, no plano pol tico, oregime total i trio com o regime democrtico em que vivemos, j no o tanto quan-do se traa um' paralelo entre os princpios "ideolgicos" (na terminologia deHannah Are~~L ?o !.2t.aJ jta~ris,01o,i&9.i~ef~iQ_L ~ia.o-~~if~,,~a. lta ismovigente e da globalizao. .-A certamente...um::M alitarismo':.,prcJ prio das ".sociedades de controlo,:'(Q ..eleuz~,Fo,.ucault actuais. A alil icq~dps OO.'1aSe.cnologias a todo o tipo de servi os, por~el1l lo, im li ca o im erativo de cumpri r os re ulamentos sob pena de excluso.A globalizao acentua e ~liza este tipO de padres nico~ de comportame~- na necessidade de responder s exignd~t d 'prodU tividade do trabalho, desegui r as vias impostas pela funcional idade dos servios de sade, de educao, delazeres. Um exemplo emblemtico a ser utilizado em breve em Portugal, nos serviospri si onai s: a ul sei ra ma ntica de l ocalibg, - . ncia ue o p~consigo sempre que se ausente da priso. (Em breve seremos todos prisioneHos emliberdade, controlados distncia.) O cidado s pode submeter-se e aderi r, emnome da lgica funcional do sistema de regulamentao da vida social, pbl ica e pri -vada. Caso contrrio, surge, automaticamente tambm, a ameaa da excluso.

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    A excluso, neste tipo de regime que tende a controlar o conjunto dos compor-tamentos do indivduo, no significa apenas tal ou tal efeito determinado (como odesemprego), mas atinge todos os aspectos da vida individual. O regulamento esti-pula que se corte a gua, se no se paga a conta nas datas f ixadas. M as quem j nopode pagar a gua, est na iminncia de no poder pagar a electricidade, a renda, aescola das crianas, os transportes, a alimentao. Exige-se uma integrao tocompleta do indivduo, que o mnimo desvio sinal de catstrofe, quer dizer, deperigo de excluso total.A excluso total no um fantasma das grandes cidades altamente desenvolvi-das, tornou-se uma realidade de todos os dias. A norma que marca a fronteira entrea integrao e a excluso no diz: "Ou tudo ou nada" (porque tudo s muito poucoso tm), mas indica a separao que faz de um homem integrado um ser social nor-mal, e de um excludo, um pria, algum que visto como vivendo em condiessub-humanas - e que, por isso mesmo, vai perdendo quaquer coisa da "essncia dognero humano". Ouseja, a excluso no apenas "social", ou do "mercado do tra-

    ) balho", ou "racial", ou "cultural", ou "psicolgica", mas atinge o cerne dahumanidade do homem. (Que ausncia de humanidade no por ns sentida noL rumador toxicodependente, sujo, esfarrapado, que se arrasta de carro para carro?)A ssim, de maneira natural e democrtica que se cria um padro nico dehumanidade. No estamos muito longe do totalitarismo descri to por Hannah Arendt- um totali tarismo no poltico, nias no menos aterrador.Em Portugal vi ve-se uma situao particular, de transio das sociedades "disci- C(:::/plinares" para as de controlo, ~da v..ezmais apanhada na rede geral da globaliza...:.. ~o. Com~ctsI transio, este mostra-se extremamente complexo, titerogneo, com mltiplos traos arcaicos que coexistem e lutam ainda contra as ~novas regras que definiro a sociedade futura. L imitamo-nos aqui a evocar o proble- "\.ma da invisibilidade da norma numa tal situao. ~Sucintamente:

    1.As normas da sociedade tradicional "disciplinar" que correspondiam a hierar-quias de poder POtitic.o e social, ten..dem a ser. substitudas P.QLD'o'.J .mas...Y .!J .iase ~e ~se_no con eg"mas fontes de autoridade nem as fronteiras que elas marcam. '2(!2. Enquanto n~se c" lsTptlrtT"~e~aL itonfi1aSlazarism0,-il irarqUia~" ~~constitua uma rede de burocracia e de pequenos despotismos - a distncia do dita- ~' ~dor ao povo transferia-se imaginariamente para cada um dos patamares do poder na -~.sua relao ao cidado -, na nova sociedade de transio a autoridade da hierar- " - ' ~ ~ .quia tende a desaparecer em benefci o de uma "norma .ca" quer ela emane dor:L .a. ~ ~ '~~sis~ma t~~~9is9.j~ controlo0l~~:..E~~~,~~,9!f>l?aliza o.

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    o estado de transio actual da sociedade portuguesa, com a passagem rpidade um regime autoritrio para um regime em que a di scipli na emana do sistemaorgnico da funcional idade tecnolgica, cria uma si tuao em que o novo "princpio~o" surge CD.1J J .CL U ll L P.Iolongamentoatural do mec!.o.J tambm lnV lsvel eubquo, inelutvel e nico: , como veremos, uma certa forma de terror._~ ,v _ 'Q ~_ ~"-seesqueam, porm, as diferenas (paradoxlmente, aQui, elas con-tribuem para as convergncias). O suporte pol tico do medo era a ditadura: osuporte do "pri~9pio de a2~ actual , em democracia, no s..:.9~doainda e sobre-tudo) lesejo e a liberdade,' su6entnde-os, pois porque eles existem e seinscrevem na prpria prtica e princpios democrti cos que a sua supressoautomtica e efectiva (em benefcio do seu contrrio, a norma nica), se torna maisenigmtica e, de certo mdo, inconscientemente af~~...ConvIT iCllsfi'::::-n:=:u~l"";;"r=o-=m='ea:t':o:::-';td"""o..::'t"""e""'r:O:::o-;;:"r'" 1: S -: :e:-:::g:-::u-:::::n :T a:::J =F=red, o medo caracte riza-se peloconhecimento do seu objecto, contrariamente angstia. M as se, com Ferenczi, ~atrihuilJ I lQ..E.Qj:errortarnM .m a jgD.O.LD.d.a.d.Q.~~ no seria exagerado con- ~~ .s~~:!.ar._~_~J~ed

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    condio prvia essencial de toda a liberdade: muito simplesmente, a faculdade dese mover que no pode existir sem espao.6" ~Siderao, supresso da motil idade e da percepo: o terror no deixa espaopara a mnima liberdade, provocando um efeito de no inscrio de vazio psquicoque se presta a um preenchimento de qualquer tipo.De uma maneira geral, o terror nasce de uma operao a que chamarei "duplo--esmagamento". Se, depois de uma primeira injustia violenta que esmaga o sujeit,se procura "limpar", e ao mesmo tempo "inscrever" essa primeira violncia com u~segunda injustia, criando assim uma memria do irrepresentado, do imemor'provoca-se um efe"it de teIT .QL O adul to que, no quereniconfess~.r criana quepuniu iQjustamente, a pune novamente para confjrmar a justeza do seu castigo -est a praticar o duplo-esmagamento. A ssim fora a criana ~dincla.Obedincia sem motivo, sem justif icao, esmagamento. A ssim fora a criana obe-dincia. Obedincia sem motivo, sem justificao, obedincia pela obedincia - eiso que [email protected]. Obediencia ao poder incompreensveL , e sua apl icao arbitrria.O princpio do governo pelo terror formula-se da seguinte maneira, na suaexpresso pura: os oL hos do povo, nenhuma razo, nenhum valor devem ser supe-riores ordem do sistema de poder (que pode ou no admitir no seu cume umdspota), qualquer que seja a sua injustia ou crueldade. Porque estas desaparecemdo campo da percepo e do pensamento. preciso pelo menos uma condio paraque haja obedincia ao terror: que, a partir de um certo momento, o terror no sejareconhecido como tal; que, de algum modo, se esquea a sua origem e a sua existn- 0z~cia. O terror trabalha ento do interior dos sujeitos, suscitando cadeias colectivas e..~por cont iQ.) que fumallL tlQ !T lJ .. de condu a. errorjcl-nao se manifesta' d~ ~ ~ ~ " : 7Ineira brutaL e imprevisvel no P~.Rilli lico ~SVeCA i,~~e~tb;"li~ :-sen' C'---. (/q

    ~

    - ~~esprito dos domina os; em vez e engendrar pavor e angstia, faz nascer solicitude, l.q ~amor e servilismo. Os aterrorizados so invadidos pela ansiedade permanente em sa- ~ r j-COtiS"fazer as exig~cias do sistema ( dos su eriores: orque qualuer coisa da autri- L ~(.s., . ,- --c . .. ,~ 01/a e, da arbitra' ade; do.medo t;~nico~co_ntinua a existir na socie a e o a- -~ _ '-

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    Deum outro modo, a norma nica pressupe cada vez mais um s padro do "gnerohumano".Um dos efeitos mais subtis, poderosos e esquizofrenizantes do novo tipo de con-trolo que vai tomando posse da nossa vida quotidiana, a organizao do espao.Comoj foi observado (M i chel Hardt), um espao sem Fora: tudo se passa cada vezmais em vastos recintos de centros comerciais, de auditrios, de salas de confern-ci s interactivas.Mas, curiosa .ente este ao sem fora no se si'lise em territrios bem

    /' tI~fi os,,-lJ em-GQ,nlp.aL tim.~'lti9,OS}egulados. um espao flou e fluent~s~rcu lam livre~ e~te.!.~em trajects'~i?J ;>~9ilerJ nf!1-a~s~'4c-r'cter-Pra- ~\..axal (e bruta) deste tipo de espao que se general iza por todo o Planeta mani fes- ,.....-(J ?.~.!.a-se n03esfas?mento entre ~ movime d. co.r os e o seu fechamento, que o?'~~Sacompanha. So corpos evoluindo num espao "l iso", sem obstculos, aparente- ~ ~mente semregras, onde o aleatrio e o imprevist'Precem possveis. Na realidade, ~'\ ~a esse movimento exterior "livre" no corresponde nenhuma abertura, nenhuma ~J ~ C~Qanso interior dos corpos~ctiyos). E les movem-se livremente, fechados sobre - e ~ /~si: isolados, inc~pazes d : :stabelecerem uma comunicao (tal com~ o.prisi,o~eiro~' ~~>~ vcom a sua pulseira magnetica: sob controlo permanente, e dentro de l imites rqidos, ~ \ < j ,ele livre de ir a casa, ao caf, etc.). c,~_\. 9' -;;O espao do corpo - o territrio que, como uma pele, prolonga o corpo para almo ~ \. 9 ..Qdos seus contornos, o abre afectivamente e o leva a m isturar-se com o espao exte- b~ '7rior e.os outros corpos - volta-se para dentro, paralisa-se, recolhe-se numa cara- ~

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    sacres do Kosovo quase nos deixam indiferentes, por outro lado os espaos do nossoquotidiano enchem-se de terrores nascentes. Terrores no escritrio, na empresa, nojornal , na universidade, terror de no estar altura, de ser apontado a dedo, de serpunido, de perder o emprego, de engordar, de no saber (educar os filhos, ser mu-lher, ser alegre e dinmica, etc., etc., etc.).A nossa pele crivou-se de terrores eventuais. O terror tornou-se o possvel quo-tidiano das sociedades actuais de controlo.Enquanto sociedade de transio entre um regime de medo e um regime que pro-duz um certo tipo de terror (da excl uso), Portugal, antes mesmo de ter conquista-do e construdo a liberdade da democracia, est j a perd-la, entrando na sociedadeglobalizada de controlo. A ntes mesmo de possuir um espao pbli co, comeou j aedificar o espao li so (democrtico) e fechado, do urbanismo dos grandes centroscomerciais, dos fruns em auditrios delimitados, dos debates no ciberespao.Assim, Portugal rene condies privilegiadas para o exercci o do duplo-esmaga-mento: 1.) O medo difuso anterior est a transferir-se para os comportamentos deansiedade diante da possibi lidade da excluso - ansiedade difusa tambm, queredobra' o medo interiorizado vindo da ditadura; 2.) O medo di fuso, que ficou sem, objecto depois'do 25 de A bril, continuando no entanto activo (por inrcia, e porquevrias vezes reactivado), ao combinar-se com a nova angstia da sociedade deexcluso em que estamos a entrar, fixou-se precisamente nesse novo sentimento: agora medo da angstia, medo do medo, terror pressentido da eventualidade dejno se sabe o qu (que esconde o que desapareceu: o no existir, no no espao daexcluso).

    O duplo-esmaqarnento de que hoje sofre o portugus decorre naturalmente desteprocesso: Portugal saiu do salazarismo com medo, quer dizer, saiu com medo de sai r.A suavidade do "processo revolucionrio", a complacncia que se manifestou com osdignitrios e os sicrios do antigo regime, a maneira como se obliterou a guerracolonial , etc., etc., testemunham esse medo. O refluxo ou normalizao que seseguiu aos excessos "revolucionrios" instalou-se em nome do, bom sensodemocrtico. E o medo, sedimentado, invisvel, permaneceu. L ogo depois veio aentrada na comunidade europeia e a rnundiali zao (cujo rosto primeiro foram osfLagelos planetrios - sida, violncia criminal, droga, desemprego - antes dosbenefcios que nos tornaro iguais aos outros), que trouxeram com elas um outrognero de medo.O medo de sair (da sociedade autoritria do medo) fez com que nunca realmentese sasse do medo. Como se voltou velha tendncia nacional para a no confLitua-lidade social e pol tica, ela inf iltrou-se naturalmente na ausncia de confl ito iner-ente sociedade globalizada de controlo. O salazarismo havia obtido a supressodos conf li tos com a represso; a passagem actual para a mundializao reactiva atendncia, mas f-lo democraticamente, graas existncia da norma nica (que ausncia de norma e de autoridade visveis).O duplo-esmagamento est em curso: apaga-se o medo com o medo, todos osmedos antigos que o 25 de Abri l no exorcizou desaparecem quando neles se enxer-

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    ta o medo da excluso, tanto mais incompreensvel quanto ele surge numa sociedadelivre, democrtica, que se edificou contra o antigo regime autoritrio. Como dizFerenczi, uma siderao que apaga as representaes, mesmo inconscientes. A ssimnos vamos livrando dos restos de salazarismo que se apegavam aos corpos; assimnos redimimos dos antigos medos da ditadura.A usncia de excessos.' mediania em tudo, limitaes legitimadas pelos "cos-tumes", quer dizer, pela prpria coeso da sociedade civil - tudo isto, que era sus-tentado pelo regime de Salazar, hoje suportado pela norma nica invisvel do bomsenso. No h outra via. O medo de perder todos os benefcios materiais que a entra-da na Unio Europeia proporcionou, enxertou-se no sedimento de temor quej exis-tia, transformando-o. Nasceu um novo objecto em que se investiu, inconsciente-mente, o medo do medo, o terror: a excluso, o prprio terror de ser excludo, ou devir a ser objecto de conf li to (que comporta a ameaa de excluso). E sta existe dis-seminada no interior do real, sem que se saiba quem o responsvel, e sem que o.real se desrealize. pois sempre mais conveniente continuarmos a no assumirresponsabilidades, a no afrontar opinies contrrias, a fugir aos problemas e a nopensar mais alm das solues que entram no quadro de todas as integraes.Sobretudo, recusar os conflitos.Tudo isto define o centro, o espao nuclear da norma invisvel , da moral idadeaceitvel, a esfera do possvel e do desejveL . O espao da "auto-estima" (autocom-placente), para alm do qual s h excesso e violncia.Esse centro ocupa toda a superfcie social, desde o governo vida privada. Detal maneira se revela forte e evidente a norma nica que, se uns populares ameaamcortar estradas em forma de protesto, o governo aparece logo na televiso, indig-nado, como se fosse ele a vtima de uma injustia.A auto-estima esconde hoje, nos portugueses, um duplo terror: o de no con-segui r entrar nesse centro da normalizao, e o de ser dele expulso. A ssim, oprprio centro que constitui os seus limites - por isso estes so invisveis.A auto-estima festi va esconde o verdadeiro "principio de aco": o terror do ter-ror, terror inconsciente, sem representao, mas i ni bi dor da aco l ivre. Como se aeuforia existisse para esconjurar a apatia, e a auto-estima o terror insidioso, semrosto, que destri a conf iana do indivduo e lhe dita a boa conduta. Porque umacoisa certa: dentro do espao normali zado do autocontentamento no se estoformando novas relaes, novas unidades sociais ou uma nova "comunidade", ne-nhuma prtica real correspondente ao discurso humanista que, em Portugal, acom-panha a globalizao. Pelo contrrio, eroso das prticas comunitrias da velhasociedade portuguesa, das sol idariedades, do associativismo, da entreajuda, queassistimos, ao mesmo tempo que acelerao da competitividade, dos desaf iosameaadores, do desemprego da excluso. E se outras formas de coeso socialnascem aqui e ali, a eroso do arcaico dez vezes mai s rpi da do que a formaoque tende a substi tu -to. Enquanto tudo se desmorona no interior de ns, vamosdanando no palco televi si vo e no espao meditico dos grandes feitos (desdeL isboa-capi tal da cul tura ao Prmio Nobel). M as o terror (branco, invisvel) do ter-

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    ror (negro, reconhecvel) continua a minar-nos o inconsciente, a inibir-nos, aacautelar-nos, a proteger-nos do exterior (que j no existe seno no interior), aimpedir-nos de criar outras formas de pensar e de existir.O "branco psquico" inconsciente: a sociedade portuguesa no um espaovisvel de terror. Decerto modo, o terror no se vive sequer, pois os medos traumti-cos foram varridos por um outro trauma. Mas, se no se sente o terror como umagrande atmosfera envolvente, ele irrompe em inmeros afloramentos locais, desa-parecendo aqui para reaparecer noutro momento e noutras circunstncias. ondeante, rpido - e vai estando cada vez mais ali , quotidiano e no banal , cons-tante na sua irrupo imprevisvel. O seu carcter aparentemente espordico,aparentemente excepcional, s ajuda a compreender melhor a sua natureza,necessria ao sistema de "auto-estima" e de excluso que est actualmente a moldara sociedade portuguesa. Terrores quotidianos, mltiplos, como bubes de uma pesteanunciada que arrancam a pele. " *1 J oo Fiadeiro, in Theaterschrift, nmero especial sobre Intensificao: performance contem-pornea portuguesa, Dez. 1998, p. 61.2 H. A rendt, Le Systme totalitaire, Seuil Points, p. 207.3 Idem, p. 205.4 Sandor Ferenczi, J oumol clinique, Janv -Oet. 1932 Payot, p. 78.5 S. Ferenczi Rflexions sur le traumati sme, i n Psychananaiyse IV, Oeuvres Completes. Payot, p.143.6 H . A rendt, op cit., p. 212.

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