Jose - O Absurdo Da Agricultura 2001

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Jose - O absurdo da agricultura 2001

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  • O ABSURDO DA A GRICULTURA

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    AGRICULTURA foi inventada entre 10 e 15 mil anos atrs, e nos ltimosdois ou trs mil anos evoluiu para belas culturas camponesas, localmenteadaptadas e sustentveis em muitas regies do mundo, especialmente na

    Europa, na sia, no Mxico, na Amrica Central, nos Andes, e em algumas regiesda frica.

    Desde o incio da colonizao, agricultores americanos, apesar de muitosdesastres, tambm desenvolveram belos sistemas agrcolas, que estavam se tor-nando sustentveis. Muitas dessas culturas ainda estavam intactas at o final daSegunda Guerra Mundial. As poucas remanescentes atualmente esto sendo deses-truturadas.

    A indstria tem conseguido sucessivamente se apropriar de uma parte cres-cente das atividades dos agricultores, tomando deles tudo o que gera lucros se-guros, deixando-lhes diversos riscos, entre os quais o de m colheita devido amau tempo e o risco de perder dinheiro devido crescente dependncia de insumosagrcolas, adquiridos a preos cada vez mais altos e tendo que vender seus produtosa preos cada vez mais baixos.

    O argumento convencional em favor dos mtodos da agricultura moderna que eles constituem a nica maneira eficiente de resolver o problema da fomemundial e da alimentao das massas que ainda esto por vir com a explosopopulacional. Mas isto uma iluso.

    certo que os mtodos agrcolas tradicionais poderiam ser aperfeioadoscom o conhecimento cientfico atual, principalmente o de como as plantas cres-cem, o da estrutura, da qumica e da vida do solo, bem como o do metabolismodas plantas. Mas o aperfeioamento no precisa ser direcionado para monoculturasgigantescas, altamente mecanizadas, com toda a parafernlia dos fertilizantescomerciais e venenos sintticos, com a produo agrcola sendo transportadapelo mundo todo. A grande monocultura foi uma inveno do colonialismo.

    Os poderes coloniais no podiam extrair muito do campesinato tradicionalcuja produo esteve concentrada em safras altamente diversificadas, voltadaspara a subsistncia e eventualmente direcionadas para os mercados regionais elocais. Eles os poderes coloniais queriam grandes quantidades de algodo,acar, caf, ch, cacau entre outros produtos. Isto conduziu marginalizaomilhes de pessoas e tambm esteve na raiz do trfico de escravos da frica paraas Amricas, uma das maiores calamidades da histria da humanidade.

    O absurdo da agriculturaJOS A. LUTZENBERGER

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    O problema fundamental com a agricultura moderna que ela no sustentvel. Mesmo se fosse to produtiva quanto afirmado, o desastre seriaapenas postergado e, ento, muito pior. Se quisermos alimentar as massas cres-centes evidente que devemos encontrar tambm maneiras de controlar nossosnmeros teremos de desenvolver mtodos de produo agrcola sustentveis.

    Os agricultores chineses, por exemplo, por trs mil anos obtiveram altaprodutividade dos seus solos sem comprometer a fertilidade. Ao contrrio, elesdesenvolveram e obtiveram uma fertilidade mxima do solo. Os agricultoresregenerativos modernos esto aprendendo a se tornar cada vez mais sustentveis,com colheitas otimizadas e mtodos localmente adaptados, enquanto recuperame mantm a biodiversidade nos seus cultivares e na paisagem circundante.

    Vamos cham-los agricultores regenerativos, e no biolgicos, orgnicosou alternativos. Quando se trata de vida, seja bom ou mau, tudo biolgico, orgnico; alternativo tem apenas a concepo de diferente. Mas regenerativosignifica regenerao do que tem sido perdido ou destrudo. A agricultura modernatem se desligado da lgica dos sistemas vivos naturais.

    Todos os ecossistemas naturais possuem retroao interna automtica que,desde o comeo, tal como quando um novo pedao de terra estril digamos, aencosta de um vulco conquistado, faz as condies ambientais melhoraremat que um clmax de atividade biolgica mxima e sustentvel seja atingido.Nossos ecossistemas de agricultura moderna fazem exatamente o oposto ao imporretroaes (agroqumica, agresso mecnica ao solo) que gradualmente degradamo meio ambiente e empobrecem a biodiversidade.

    Infelizmente, a agricultura moderna obtm sucesso exaurindo o solo esubstituindo a fertilidade perdida mediante nutrientes que vm de fora: fertilizantescomerciais, tais como os fosfatos provenientes de minas que estaro brevementeesgotadas. As minas de potssio so mais abundantes; mas o nitrognio, o maisimportante elemento, embora venha da atmosfera uma fonte virtualmente ines-gotvel e para l acaba voltando obtido pela sntese de amonaco Haber-Bosch,um processo que consome enormes quantidades de energia proveniente de hidro-eltricas, eletricidade que poderia estar economizando combustveis fsseis emoutro lugar. Alm disso, todos os outros insumos, tais como os agrotxicos e,cada vez mais, pesado maquinrio, so tambm grandes consumidores de energia.

    Mas a agricultura, se a olharmos de uma perspectiva holstica, ecolgica, um esquema para colher energia solar via fotossntese. Enquanto todas as formasde agricultura tradicional tm um balano de energia positivo, a agriculturamoderna perverte at mesmo este aspecto fundamental. Em sua maior parte,tem balano de energia negativo.

    Quase todas as suas operaes, supostamente de alta produtividade, reque-rem mais energia fssil nos insumos do que est contido em seu produto. Para

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    usar uma metfora adequada, isto tem se tornado um poo de petrleo no qualo motor que aciona a bomba consome mais combustvel do que ela pode extrair.Este tipo de operao s pode sobreviver com subsdios.

    Sustenta-se que a agricultura moderna to eficiente que apenas em tornode 2% da populao pode alimentar a populao mundial. At a virada do sculo,na Europa, nos Estados Unidos e na maioria dos pases, quase 60% da populaotrabalhava no campo. No final da Segunda Guerra Mundial ainda eram quase 40%.

    Atualmente, nos EUA, menos de 2% da populao trabalha na agricultura.Na maioria dos pases europeus essa proporo tambm est se aproximando de2%, visto que ainda continua a marginalizao de agricultores. Agora, quando seafirma que nas economias modernas somente 2% das pessoas podem alimentar apopulao total, em comparao a 60 ou 40% do passado, isto ou uma ilusopara os que acreditam ou uma mentira para os que sabem, baseada numa falsacomparao.

    No contexto da economia como um todo, o antigo campesinato era umsistema de produo, manipulao e distribuio de alimento que tambmproduzia seus prprios insumos. A fertilidade do solo era mantida com esterco,rotao de cultivos, plantas companheiras, adubao verde, composto, coberturamorta e descanso da terra.

    As sementes eram selecionadas do melhor de cada safra; animais de carga etrao supriam a energia; os moinhos usavam vento ou gua como fonte de ener-gia. Tudo era energia solar. A pouca manipulao ou beneficiamento que osalimentos sofriam era feita na propriedade ou na aldeia, cujos artesos tambmeram contados como populao rural. O mesmo se aplicava aos utenslios, arados,enxadas, carretas etc. A maior parte da produo agrcola era entregue quase nasmos do consumidor na feira semanal. Em nossa lngua sobra uma linda relquiadaqueles tempos: segunda, tera, quarta-feira...

    O agricultor moderno apenas uma pequena engrenagem em uma enormeinfra-estrutura tecnoburocrtica que at mesmo requer legislao especial e pesadossubsdios. Comparado com seus antecessores que faziam quase tudo o que estivesserelacionado com a produo, o processamento e a distribuio de alimentos, eleno muito mais do que um tratorista e um espalhador de veneno.

    Depois da Segunda Guerra Mundial, quando a Alemanha estava totalmentedevastada, os habitantes das cidades podiam se espalhar pelo campo e fazerhamstern, isto , trocar qualquer coisa de valor: um relgio, um anel, um piano...por alimento. Os camponeses tinham comida; tinham cereais, feijo, batata,verduras, frutas, leite, queijo, frango, gansos... e muito mais.

    Hoje, no seria necessria uma guerra para colocar os agricultores europeusem uma posio em que eles prprios teriam de fazer hamstern! Nenhuma bomba

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    precisaria cair, um simples colapso na energia, no transporte, especialmente naimportao de fertilizantes minerais e rao para gado, no sistema bancrio emesmo nas redes de computadores e comunicaes, seria suficiente para tanto.

    Centenas de milhares de agricultores tiveram que desistir e partir para as cidades ....

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    Espantoso, que os militares no paream estar preocupados. Fundamental-mente, a segurana nacional depende de uma agricultura sadia e sustentvel.

    O sistema atual de produo e distribuio de alimentos (incluindo fibras ealguns outros itens no-comestveis) comea nos campos de petrleo e continuanas minas, passa pelas refinarias, siderrgicas, plantas de alumnio, indstriasqumicas, de maquinrio, de embalagens, pelo envolvente sistema de transporte(consumindo principalmente combustveis fsseis), alm de computadores,supermercados e um totalmente novo complexo de indstrias que no existia nopassado: a manipulao de alimentos que mais mereceria ser chamada de indstriade desnaturao e contaminao de alimentos (com aditivos e resduos deagrotxicos). Se quisermos comparar o agricultor de hoje com o tradicional,ento todas as horas de trabalho precisam ser adicionadas; desde indstrias, comidafast food (que bem merecem o qualificativo de junk food comida entulho), dis-tribuio de alimentos, at outros servios que, direta ou indiretamente,contribuem para a produo e manipulao de alimentos.

    Deveriam at mesmo ser includas as horas de trabalho que corresponderiamao dinheiro que, em outras profisses, precisa ser ganho para pagar os impostosque financiam os subsdios. significativo que a maior parte dos subsdios vai,no para o agricultor, mas para o complexo industrial. O agricultor sempremantido beira da falncia.

    Um balano completo deste tipo certamente mostraria que, atualmente,numa economia moderna, tambm em torno de 40% ou mais de todas as horasde trabalho, vai para a produo, manipulao e distribuio da comida.

    Os economistas convencionais de hoje, aqueles que nossos governantesouvem em sua viso no-holstica tratam as fbricas de tratores e colheitadeiras,a indstria de maquinrio, as fbricas de fertilizantes qumicos e agrotxicos, aindstria qumica, e assim por diante, como se nada tivessem a ver com alimentos.

    O que temos, ento, com raras excees, redistribuio de tarefas e certasformas de concentrao de poder nas grandes corporaes, e no mais eficinciana agricultura.

    Ao analisar em detalhe alguns dos aspectos decisivos do moderno sistemade produo e distribuio de alimentos, conclui-se que, alm de no ser maisprodutivo em termos de eficincia de mo-de-obra, tampouco mais eficaz emtermos de produtividade por hectare. Em muitos casos, como na criao intensade animais, tal sistema at mesmo destrutivo, consumindo mais alimento doque produz.

    No Sul do Brasil, durante a ltima metade do sculo XX a grande florestasubtropical do vale do Uruguai foi completamente devastada, deixando apenasalgumas pequenas relquias. A floresta foi derrubada e queimada com a quase

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    total destruio da madeira, para abrir espao para a monocultura de soja. Istono foi feito para aliviar a fome nas regies pobres do Brasil, mas para alimentaro gado do Mercado Comum Europeu, enriquecendo uma minoria sem tradioagrcola. As plantaes de soja esto entre as mais modernas, maiores, altamentemecanizadas e com os habituais insumos qumicos. Essas plantaes no so, demaneira alguma, atrasadas quando comparadas ao mesmo tipo de plantao nosEstados Unidos.

    No nosso clima subtropical o agricultor tem a vantagem suplementar depoder plantar trigo, cevada, centeio ou aveia, mas tambm de fazer feno e silagemsobre o mesmo solo no inverno, mas poucas vezes o faz. Comparado ao que osnossos colonos faziam em solos similares, a produtividade baixa, raramentemais do que trs toneladas de gros (total, vero e inverno) por hectare. O cam-pons, que trabalhava para alimentar a populao local, facilmente produzia 15toneladas de comida por hectare, diversificando com mandioca, batata-doce, batatainglesa, cana-de-acar e gros, mais verduras, uvas e todos os tipos de frutas,feno e silagem para o gado, alm de criar porcos e galinhas. Mas ele no produziaPIB. O PIB s reflete fluxo de dinheiro, no leva em conta auto-suficincia emercado local. A conta do PIB interessa ao banqueiro, ao governo, s grandescorporaes transnacionais, e nada tem a ver com o bem-estar da populao.

    Quando estatsticas das Naes Unidas declaram que quase a metade dapopulao mundial vive com menos de US$ 2 por dia, isso leva a falsas concluses.Ningum viveria com US$ 2 por dia se tivesse que comprar sua comida, suasroupas, seus utenslios no supermercado ou shopping center.

    No perodo ureo de nossa colnia no Rio Grande do Sul, anos 30, ocolono poderia no ter um tosto no bolso, mas sempre tinha mesa farta, viviamuito bem. No obstante esta realidade, a poltica agrcola oficial tem sempreapoiado os grandes s custas dos camponeses. Centenas de milhares deles tiveramque desistir e partir para as cidades, freqentemente para as favelas, ou mais parao Norte, em direo floresta amaznica.

    Uma devastao tremenda foi feita com dinheiro do Banco Mundial noestado de Rondnia, e os pequenos agricultores que l foram assentados, nosabendo como cultivar nos trpicos, sem apoio, em geral fracassaram, deixandopara trs devastao, enquanto novas reas da floresta eram desmatadas. No BrasilCentral, o Cerrado, o equivalente sul-americano da savana africana, est hojesendo quase totalmente destrudo para dar lugar a mais plantaes de soja, umadas quais cobrindo centenas de milhares de hectares contguos. Na sua bio-diversidade o Cerrado to valioso quanto a floresta tropical e, eventualmente,at mais.

    Num exemplo concreto, argumenta-se que os ndios camponeses emChiapas, Mxico, que h alguns anos esto lutando por sua sobrevivncia

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    rebelando-se contra o Mercado Comum norte-americano (NAFTA), so atrasados.Eles produzem somente duas toneladas de milho por hectare, comparando-secom as seis produzidas nas plantaes mexicanas modernas. Mas isso somenteparte do quadro, as plantaes modernas produzem seis toneladas por hectare, eapenas isso.

    Os ndios produzem uma colheita mista: entre seus ps de milho, que tam-bm servem para suporte de variedades de feijo (que so trepadeiras), eles plan-tam legumes, abbora, morangas, batata doce, batata inglesa, tomate e todo tipode vegetais, frutas e ervas medicinais. A partir do mesmo hectare eles tambmalimentam seu gado e galinhas. Facilmente produzem 15 toneladas de alimentospor hectare, tudo sem fertilizantes comerciais ou pesticidas, e sem a assistnciade bancos, governos ou corporaes transnacionais.

    A marginalizao de tais pessoas a continuao de um dos maiores desastresdos tempos modernos. Ao chegar s favelas das cidades tero de comprar comidacultivada em monoculturas que so menos produtivas do que as delas. Em ltimaanlise, existe menos comida e mais pessoas para alimentar. Existe excesso emalguns lugares e escassez noutros. Freqentemente a terra tomada por criadoresde gado que raramente produzem mais do que 50 kg de carne por hectare ao ano.Centenas de histrias similares poderiam ser contadas. Acima de todas as calami-dades pessoais, quando a terra perde seus camponeses, temos genocdio cultural!

    No caso da criao em massa de animais para carne e ovos, os mtodos soabsolutamente destrutivos: muito mais alimento para humanos destrudo doque produzido. As galinhas em seus tristes campos de concentrao ou fbricasde ovos, eufemisticamente chamadas de granjas, so alimentadas com raescientificamente equilibradas, consistindo em gros de cereais, soja, torta deleo de palma ou de mandioca, muitas vezes com farinha de peixe.

    Conhecemos casos no Brasil nos quais sua rao contm leite em p,proveniente do Mercado Comum Europeu! Isto coloca essas aves ento numaposio de competio com os humanos: ns as alimentamos com nossas lavouras.Um absurdo total se o propsito contribuir para resolver o problema da fomemundial. Na agricultura tradicional as galinhas comiam insetos, minhocas, esterco,ervas, capim e restos de cozinha e de colheita, desta maneira aumentando acapacidade de sustento das terras dos agricultores para humanos. Agora elas adiminuem.

    Nestes esquemas, o coeficiente de transformao da rao em alimentohumano prxima de 20 para 1. preciso levar em conta que metade do pesodos animais vivos (penas, ossos, intestinos) no consumida por ns. Tambm preciso considerar que as raes desidratadas e concentradas tm um alto consumode energia, atingindo o mximo de 12% de gua, enquanto a carne contm at80%. Nos galpes de engorda, as operaes mais eficientes usam em torno de 2,2

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    kg de rao para obter 1 kg de peso vivo, metade da qual alimento humano.Ento, 2,2 para 1 se torna 4,4 para 1. Corrigindo-se o contedo de gua, 4,4vezes 0,88 e 1 vezes 0,2 obtm-se 3,87 para 0,2, igual a 19,36 para 1. Quando setrata de gado bovino confinado, como nos feed lots de Chicago, a relao cercade cinco vezes maior.

    Mais recentemente, algumas de nossas granjas aperfeioaram ainda maiseste coeficiente, incluindo na rao rejeitos de galinhas abatidas, desta maneiraforando-as ao canibalismo!

    Outro aspecto absurdo diz respeito s raes cientificamente equilibradasque no contm nada verde, o mesmo acontecendo com as dos porcos. As galinhase os porcos so vorazes consumidores de ervas, gramneas, frutos, nozes e razes.Em nossos experimentos com agricultura sustentvel na Fundao Gaia tambmos alimentamos com plantas aquticas, com grande sucesso animais saudveis,sem antibiticos, sem drogas, sem veterinrios.

    Alm disso, nos campos de concentrao de galinhas e fbricas de ovos,assim como nos modernos calabouos de porcos, as pobres criaturas vivemsob condies de extremo estresse.

    tempo de acabar com a mentira de que apenas a agricultura promovidapela tecnologia pode salvar a humanidade da inanio. O oposto verdadeiro. preciso uma nova forma de balano econmico que, medida que soma o que chamado produtividade ou progresso na agricultura, tambm deduza todosos custos: as calamidades humanas, a devastao ambiental, a perda da diversidadebiolgica na paisagem circundante e, ainda, a mais tremenda perda, a biodiversi-dade em nossos cultivares.

    Este segundo aspecto ser agora enormemente agravado com a biotecno-logia dominada pelas grandes empresas, como veremos adiante. E, mais importantee decisivo: a no-sustentabilidade disso tudo. Temos o direito de agir como sefssemos a ltima gerao?

    No caso de operaes industriais envolvendo galinhas fcil ver como taismtodos destrutivos se desenvolveram. Estou falando do que observei no Sul doBrasil o Brasil um grande exportador de carne de galinha, principalmentepara o Oriente Mdio e o Japo.

    A partir de esquemas muito simples, nos quais pequenos empresriosindividuais confinavam galinhas num galpo e as alimentavam com milho, o sistemacoalesceu e cresceu at um ponto em que, atualmente, existem em torno de meiadzia de companhias muito grandes e umas poucas pequenas. Os grandes aba-tedouros processam at centenas de milhares de galinhas por dia; operam deacordo com regras impostas por eles, chamadas integrao vertical. Oprodutor assina um contrato, comprometendo-se a comprar todos os seus

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    insumos pintinhos, rao e drogas do abatedouro. Mesmo que ele seja agri-cultor e tenha uma grande produo de gros, est proibido de us-la para ali-mentar suas galinhas. obrigado a comprar a rao pronta, mas pode vender oseu milho para a fbrica de rao que pertence mesma companhia proprietriado abatedouro e da incubadeira que produz os pintos. Estes operam um tipodiferente de campo de concentrao de galinhas, onde os prisioneiros so galose poedeiras, havendo um galo para cada dez galinhas. As galinhas no ficam empequenas gaiolas, como nas fbricas de ovos, elas podem se mover livrementedentro do galpo e pular para dentro de amplos ninhos para pr os ovos.

    Nas operaes de esteiras rolantes das fbricas de ovos, chamadas baterias,as pobres poedeiras esto confinadas, trs em cada gaiola, sobre uma grade dearame, onde os ovos rolam para fora. Os pintos produzidos nestas incubadeirasno so mais de raas tradicionais de galinceos: so de marcas registradas ehbridos. Assim como o milho hbrido, eles no podem ser reproduzidos commanuteno de caractersticas raciais.

    Aps comprar todos os seus insumos da companhia com a qual assumiucontrato, o campons obrigado a vender somente para a mesma. Ele no autorizado a vender para empresas concorrentes, pois estas no comprariam suaproduo. Assim, ele pode ter a iluso de ser um pequeno empresrio autnomo,mas sua situao real a de um operrio com horas de trabalho ilimitadas, semfins-de-semana, feriados, nem frias e ainda tem que pagar sua prpria previdnciasocial.

    Se a grande companhia trabalhasse com empregados de carteira assinada,ela no seria to lucrativa: sairia muito caro e correria riscos. Desta maneira,deixam todos os riscos com o produtor: perda por doenas ou custos adicionaiscom drogas e antibiticos, choque de calor um desastre comum durante os diasquentes de vero, quando centenas ou milhares de galinhas morrem nosabarrotados e mal ventilados galpes e perdas durante o transporte. As galinhasque morrem nos caminhes da companhia no trajeto at o abatedouro so tambmdescontadas.

    Os lucros do produtor tambm diminuem constantemente com o crescentepreo dos insumos e a queda do faturamento com as vendas. A margem doprodutor muito pequena, mesmo se tudo correr bem. Mas, se for preciso ali-mentar os animais durante mais alguns dias, o lucro pode evaporar ou at mesmose transformar em perda. Esta uma ocorrncia comum. O abatedouro agendasuas viagens de entrega de galinhas prontas de acordo com sua prpria conve-nincia. Mas se a companhia obtm lucros excepcionais no mercado de exportao,nada vai para o produtor?...

    Portanto, os campos de concentrao de galinhas nada tm a ver commaior produtividade para ajudar a salvar a Humanidade de inanio de fato,

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    eles contribuem para o problema mas concentram capital e poder pela criaode dependncia.

    Estes mtodos no foram inventados pelos agricultores. impensvel queum agricultor numa cultura camponesa sadia tivesse a idia de alimentarmaciamente suas galinhas com gros, a menos que fossem gros estragados, eisol-las de sua fonte natural de alimentos, desta maneira desperdiando parte dacapacidade de sustentao do solo para humanos, destruindo ao mesmo tempoparte de sua colheita.

    Tais mtodos tambm no so o resultado concatenado de uma conspiraopela tecnocracia. Tais esquemas crescem naturalmente a partir de uma sementeinicial que pode ter tido uma inteno completamente diferente. Neste caso,como foi tambm na agroqumica, era o esforo de guerra. A conspirao cresceuao longo do tempo.

    Durante a Segunda Guerra Mundial, o governo estadunidense iniciou osistema de subsdios para a produo de gros, o qual conduziu a enormesexcedentes. Assim, as autoridades da rea agrcola procuraram consumo no-humano para os gros. Integrao vertical era somente um estgio momentneono processo de concentrao de poder. Em breve eles encontraram maneiras debanir por meio de legislao especial a criao de galinhas soltas (caipiras) poragricultores independentes. J foi tentado, sem sucesso, mas, por dispositivoslegais especiais, conseguiu-se tornar muito difcil para pequenos agricultores avenda de ovos no mercado aberto.

    No caso do milho hbrido tambm no existia conspirao no incio, elaveio mais tarde. Geneticistas descobriram que pelo cruzamento de duas variedadessuper puras de milho variedades obtidas aps oito a dez geraes deautofecundao eram obtidas plantas de alta produtividade e uniformidadeperfeita. Deve ter sido uma decepo quando descobriram que as variedades noeram estveis. Aps ressemeadura, as variedades dessegregaram, de acordo comas Leis de Mendel. A nova colheita era catica ps de milho pequenos e grandes,com uma s espiga, com muitas espigas, cores, formas e qualidades de grosdiferentes. Mas, do ponto de vista do vendedor de sementes, continuava sendouma verdadeira vantagem!

    O agricultor no mais poderia guardar sua prpria semente, tinha quecomprar sementes novas a cada ano. O vendedor no precisava sequer da proteode uma patente. Felizmente na maioria dos cultivos, especialmente gros comotrigo, cevada, centeio e aveia, este tipo de hibridizao ainda no economi-camente vivel para os geneticistas. Eles esto tentando com todas as culturasque podem. Funciona com galinhas.

    No Sul do Brasil foi necessrio fundar uma associao com o objetivo depreservar as raas tradicionais de galinhas. A maioria agora est em perigo de

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    extino. Algumas j se foram. Somente as cepas registradas de galinhas hbridasno esto ameaadas (enquanto durar a loucura dos campos de concentraode galinhas e fbricas de ovos). Quanto ao milho, quase todas as variedadestradicionais j no existem. Se um agricultor quiser plantar uma delas, no obtmo crdito do banco. Apenas as variedades registradas so aceitas.

    Atualmente, a manipulao gentica direta, chamada biotecnologia, queopera em nvel de cromossomos, permite que o especialista assuma o controle,tirando-o do agricultor. Mas, como a maioria dos produtos resultantes da mani-pulao gentica direta no dessegregam na reproduo, como no caso doshbridos naturais, preciso cair nas patentes.

    Como nasceu a agroqumicaAt o final dos anos 40, a pesquisa em agricultura visava a solues biolgicas.

    A perspectiva era ecolgica, embora mal se falasse em ecologia. Se esta tendnciativesse podido continuar, teramos hoje muitas formas de agricultura sustentvel,localmente adaptadas e altamente produtivas.

    Comeando nos anos 50, a indstria conseguiu fixar um novo paradigma,nas escolas, na extenso e na pesquisa agrcola. Vamos cham-lo paradigma NPK+ V. NPK que corresponde a nitrognio, fsforo, potssio, o V significando veneno.Os fertilizantes comerciais tornaram-se um grande negcio depois da PrimeiraGuerra Mundial. Logo no comeo da Guerra, o bloqueio Aliado cortou o acessodos alemes ao salitre chileno, essencial para a produo de explosivos.

    O processo Haber-Bosch para a fixao de nitrognio a partir do ar eraconhecido, mas ainda no tinha sido explorado comercialmente. Os alemesmontaram ento uma enorme capacidade de produo e conseguiram lutar porquatro anos. O que seria do mundo se esse processo no tivesse sido conhecido?A Primeira Guerra Mundial no se teria realmente desencadeado, no teriaacontecido o Tratado de Versalhes e, portanto, no teria havido Hitler! incrvelcomo a tecnologia pode mudar o curso da histria!

    Quando a guerra acabou existiam enormes estoques e capacidade de pro-duo, mas no havia mais um grande mercado para explosivos. A indstria,ento, decidiu empurrar os fertilizantes nitrogenados para a agricultura. At entoos agricultores estavam bastante satisfeitos com seus mtodos orgnicos de manu-teno e aumento da fertilidade do solo. O guano e o salitre chileno eram usadosde maneira muito limitada, e principalmente em cultivos muito especiais, entreeles a jardinagem intensiva.

    Fertilizantes nitrogenados, na forma de sais quase puros e concentrados,fertilizantes base de nitrato e amnia, de certa forma viciam: quanto mais se usamais se precisa usar. Ento eles se tornaram um grande negcio. A indstriadesenvolveu um espectro completo, incluindo fsforo, potssio, clcio, micro-

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    elementos, mesmo sob a forma de sais complexos, aplicados na forma granulada,algumas vezes lanados de avio.

    A Segunda Guerra Mundial deu um grande empurro para uma pequena equase insignificante indstria de pesticidas e, realmente, projetou-a para umaproduo em grande escala. Hoje, o equivalente a centenas de bilhes de dlaresem venenos espalhado nas terras de todo o Planeta.

    Durante a Primeira Guerra Mundial gs venenoso, como arma txica, foiusado apenas uma vez, com efeitos devastadores para ambos os lados, levando sua total proibio. Durante a Segunda Guerra Mundial, gases no foram utilizadosem batalha, mas muitas pesquisas foram desenvolvidas. A Bayer, entre outrasempresas, estava neste jogo, desenvolvendo os steres do cido fosfrico. Depoisda guerra essas empresas tiveram grande capacidade de produo e de estoques,e concluram que o que mata gente tambm mata insetos. Fizeram novas frmulase as comercializaram como inseticida.

    O DDT era conhecido como uma curiosidade de laboratrio, quandoMuller, na Geisy, descobriu que o produto matava insetos sem, aparentemente,afetar pessoas. Comunicou o fato ao exrcito dos EUA que, nesse momento,sofria com a malria no Pacfico, enquanto lutava contra os japoneses. Usaram-no de forma totalmente descuidada. Convencidos de que era inofensivo, o espa-lharam sobre paisagens inteiras e at dentro de casas e sob a vestimenta das pessoas.Pouco antes do fim da guerra, um cargueiro estadunidense estava a caminho deManila com uma carga de potentes fitocidas (biocidas que matam plantas) dogrupo 2,4-D e 2,4,5-T. A inteno era matar de fome os japoneses, destruindosuas colheitas mediante a pulverizao do veneno desde o ar. Tarde demais. Obarco recebeu ordem de voltar, antes mesmo de chegar. Os EUA tinham acabadode jogar as bombas atmicas sobre Hiroshima e Nagasaki.

    Mesma histria: grande capacidade de produo, enormes estoques semcompradores. A substncia foi reformulada como herbicida e descarregadanos agricultores. Depois, durante a Guerra do Vietn, as foras armadas estadu-nidenses impiedosamente espalharam o que eles chamaram de Agente Laranja(e outras cores) sobre milhes de hectares de floresta tropical, pretendendo quefosse somente um desfolhante para tornar visveis as foras inimigas. De fato,estas formulaes continham grandes concentraes de 2,4,5-T que destruamtotalmente as florestas.

    A indstria, querendo preservar em tempo de paz o que tinha sido umgrande negcio em tempo de guerra, conseguiu dominar quase completamentea pesquisa agrcola, redirecionando-a para seus prprios objetivos. Conseguiucooptar a pesquisa e a extenso agrcola oficial, assim como as escolas. Fazendolobby a favor de legislao ou regulamentao adequadas e criando esquemasbancrios de crdito fcil, colocaram o agricultor numa posio na qual dificilmentesobravam outras alternativas.

  • O ABSURDO DA A GRICULTURA

    ESTUDOS AVANADOS 15 (43), 2001 73

    Atualmente, o paradigma agroqumico aceito quase sem questionamentonas escolas agrcolas, na pesquisa e na extenso. Os agricultores, em sua maioria,acreditam nele e, freqentemente, quando marginalizados, culpam a si mesmospor sua incapacidade para competir.

    Tudo isso veio a existir no como uma conspirao deliberada por pessoasde mentes diablicas, mas desenvolveu-se e estruturou-se de oportunismo emoportunismo. medida que uma nova tcnica, processo ou regulamentao davavantagem a algum ou a alguma instituio, a respectiva tecnologia era promovidae ideologicamente consolidada. Alternativas que no se encaixavam com ascrescentes estruturas de poder eram combatidas, ignoradas ou desmoralizadas.

    Agora sim, no caso da implementao da biotecnologia na agricultura, con-trolada por grandes corporaes transnacionais, parece que temos uma verdadeiraconspirao e que os danos sero mais irreversveis do que os sofridos at ento.O principal problema aqui no tanto se nossos alimentos se tornaro de qualidadeinferior e at nocivos apesar de que isso possa vir a ocorrer mas, novamente,trata-se de adicionar mais estruturas de dependncia e dominao sobre os agricul-tores que ainda restam e impor uma limitao de escolhas para o consumidor.

    A fantstica diversidade de cultivares que tnhamos, e ainda temos hoje,depois das tremendas perdas causadas pela Revoluo Verde durante as ltimasdcadas, o resultado da seleo, consciente e inconsciente, por parte dos cam-poneses ao longo dos sculos. Pensemos somente na famlia das crucferas repo-lho, couve chinesa, rabanete, nabo, mostarda, couve-flor, brcolis, colza, entremuitas outras. Nenhum destes agricultores jamais solicitou patentes, registro oucertificao.

    Agora, indstrias como a Monsanto querem que aceitemos sua manipulaodesta riqueza preexistente, como a soja Roundupready, com o argumento de queelas apenas esto dando prosseguimento e acelerando este processo, contribuindoassim para a soluo dos problemas alimentcios da Humanidade. Insistem emque no h outra sada, mas sabem muito bem que existem outras alternativas,melhores, mais saudveis e mais baratas.

    de conhecimento geral que a agricultura deve encontrar caminhos parase afastar dos venenos. Possumos todos os conhecimentos necessrios. Milharesde agricultores orgnicos em todo o mundo so prova disto.

    Com cultivares resistentes e herbicidas, a indstria quer vender pacotes:semente + herbicida, obrigando o agricultor a usar produtos qumicos mesmoque no necessite e a utilizar o herbicida da prpria empresa.

    No caso de cultivares com o infame gen Terminator a conspirao aindamais bvia. Com esse tipo de semente eles nem precisam se incomodar em solicitarpatentes. Tudo isto nada tem a ver com aumento de produtividade, a culminao

  • JOS A . LUTZENBERGER

    ESTUDOS AVANADOS 15 (43), 200174

    do gradativo processo de desapropriao dos agricultores, para transformar ossobreviventes em meros apndices da indstria. Isto agravar a marginalizao, adesestruturao social, a devastao ambiental, aumentando a perda da biodiver-sidade em nossos cultivos e aguando o problema da fome.

    Jos A. Lutzenberger, ambientalista e escritor, foi secretrio Nacional de Meio Ambiente.