José Tavares de Barros [=] Tormenta, um filme mineiro dos anos 30
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Transcript of José Tavares de Barros [=] Tormenta, um filme mineiro dos anos 30
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Jos Tavares de Barros
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(Um)
Cada filme pode ser analisado por meio de diversos cortes ou nveis de
leitura. Em se tratando de um marco histrico como Tormenta, lanado em Belo
Horizonte em 1931, com scenrio e direo de Arthur Serra1, a tendncia
natural seria a de avali-lo apenas como obra de pioneiros, realizada nas
circunstncias mais adversas, numa poca e num pas em que o mercado
exibidor cinematogrfico estava dominado pelos filmes estrangeiros. Surgiriam
as questes clssicas sobre as origens da ideia da produo, as influncias
recebidas, a motivao que conseguia reunir equipes de inevitveis amadores,
essas peripcias das filmagens e, para terminar, o destino quase sempre trgico
da cpia ou das poucas cpias que se aventuravam a percorrer o mundo
inacessvel das salas de projeo. E viria a necessidade dos depoimentos dos
pioneiros, nem sempre muito precisos, ou o recurso s memrias ainda menos
seguras dos seus descendentes. Fique bem claro que nossa inteno no a de
rejeitar essa metodologia, a nica possvel nos casos muito numerosos de
cineastas cujos filmes foram devorados pelo tempo e pelo descaso. Mas, quando
se dispe de cpias preservadas na sua quase total integridade, como no caso
presente, parece ser bem mais objetivo e funcional trabalhar sobre a realidade
do prprio filme, encarando-o sob um conjunto de pontos de vista capazes de
revelarem seus ntimos significados.
1 Tormenta ficha tcnica Juan Bal Piacenza Heitor de Assis apresentam este film da S.A.I.F.A. YARA Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil Scenrio e direo de Arthur Serra Protographia de Igino Bonfioli Montagens de Pedro Piacenza Atores: lvaro Santelmo, pseudnimo de Jos Americano (Daniel), Carlos Silva (Jacques) Alda Rios (Lcia), Carlos Neuron (Jlio Guimares), Severino Peixoto (delegado), Victorio Nunes, pseudnimo de Vittorio Tocaffundo (lvaro), C. Cavalcanti (Lauro) e Waldy Braga (Suzana), 1930/1931.
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Uma cpia de Tormenta, cuja existncia surpreendeu os participantes do
3 Encontro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro (Belo Horizonte, 1973), foi
doada pela famlia do falecido Igino Bonfioli filmoteca do Departamento de
Cinema da Escola de Belas Artes da UFMG, atravs de um termo datado de 30
de dezembro de 1975. Da sua parte, propunha-se a Universidade a cuidar da
preservao das seis bobinas originais, procurando inclusive a sua imediata
recuperao atravs da tiragem de cpias de segurana. Essas, alm de substituir
o material perecvel de nitrato de celulose, serviriam para a indispensvel
divulgao da obra ao grande pblico. Vencidas as dificuldades normais, foram
levantados os recursos necessrios para a recuperao de Tormenta no
laboratrio especializado da Fundao Cinemateca Brasileira, em So Paulo2.
No momento, j existe um contratipo de segurana tirado da cpia original,
tendo-se perdido apenas cerca de 60 metros da 4 bobina, irremediavelmente
melados por decomposio qumica. Resta, no entanto, a esperana de que os
negativos de uma das partes do filme, incorporados posteriormente ao acervo
da UFMG, correspondam exatamente ao trecho perdido. De qualquer forma, os
dois minutos que faltam no chegam a prejudicar a razovel compreenso da
trama, tratando-se de uma cena (sic) cujo desenvolvimento facilmente
previsvel. Resta, ainda, a soluo de pequenos problemas tcnicos, como o da
pouca durao do filme naqueles meios que o puderem apreciar devidamente:
escolas, cineclubes, centros de pesquisa. Numa etapa posterior, pretende a
UFMG organizar uma antologia crtica com a funo de levar as imagens de
2 Trata-se de laboratrio destinado basicamente a servios de preservao e de recuperao de filmes, sem finalidades lucrativas. Foi montado com recursos de rgos governamentais, destacando-se a participao do Ministrio da Educao e Cultura, atravs do DAC, da FUNARTE e da EMBRAFILME. Prope-se o laboratrio a restaurar filmes antigos de todas as procedncias, cobrando apenas o custo do material empregado desde que os originais e contratipos fiquem depositados em So Paulo.
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Tormenta a um pblico mais amplo: o do novo mercado de curta-metragem.
Dadas essas premissas, passemos anlise da obra na sua dimenso objetiva de
produto flmico.
(Dois)
O primeiro plano de leitura h de ser o da trama que se apresenta em
Tormenta, carregada de smbolos pouco sutis, com traos que revelam uma
mentalidade romntica, completamente alheia s ideias modernistas que se
difundiam na poca. Dominada pelo enredo, que chega ao espectador
principalmente atravs dos letreiros, a imagem funciona s vezes como mera
ilustrao das ideias transmitidas pela palavra.
A primeira informao sobre um velho compositor, Jacques Porto, nos d
a ideia do estilo que dominar nos letreiros, revelador tambm das limitaes
culturais de seus autores: H vinte anos j, que vi o que era viver naquele
recanto pacato para esquecer a dor da tremenda tragdia de sua vida, onde
perdera a esposa que lhe deixara um ente querido, fructo de um grande Amor
destrudo ainda em flor, pelo nefasto vcio do jogo3. O ente querido o filho
Daniel, caracterizado como esprito pragmtico, s voltas com as suas
emocionantes caadas, pouco atento partitura que o pai vai compondo:
Destino ser o nome dessa grande pea, emanada aqui destes velhos miolos.
A segunda situao do filme introduz um elemento propriamente
narrativo. Daniel (e agora vemos a inteno do roteirista de caracteriz-lo como
caador) afirmara que far as contas com quem me levar ao jogo. Apesar
disso, Jacques no consegue resistir aos apelos do vcio, reforados na passagem
3 Foram mantidas a grafia e a pontuao dos letreiros originais.
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pelo botequim e na fartura das garrafas de cerveja na mesa do jogo. Mas Daniel
surpreende os jogadores e os enfrenta. A bala que lhe destina o jogador
principal, Jlio Guimares, atinge Jacques e o derruba.
A terceira situao narra a morte de Jacques: Em sua mente delirante
pela aproximao da hora fatal, rodavam os compassos ainda melodiosos de sua
composio ainda sem terminar Ele tem foras para se levantar do leito e
compor os ltimos acordes da partitura. Mas logo cai morto sobre o piano, mal
tendo acabado de escrever o ttulo de sua obra: Destino.
A quarta sequncia corresponde informao verbal sobre o dio de
Daniel, numa elipse de gosto nitidamente teatral. Definidos os sentimentos do
rapaz (os lamentos doridos dos sinos em sua alma como punhais agudos, e o
desejo de vingana amargava-lhe os lbios agora sequiosos de vingana) e
insinuada a presena da morte pela superposio na imagem de uma trgica
caveira, h o corte sugestivo para a presena de um delegado de polcia, que se
confessa incapaz de descobrir crimes misteriosos que vm ocorrendo na regio.
E ele ameaa Daniel: J sabia que voc ia negar, mas um dia ainda o filo.
Ainda o recurso ao smbolo, desta vez com caractersticas nitidamente
romanescas: Numa noite em que os elementos ameaavam colricos,
Tormenta da Natureza e Tormenta de sua Alma.
Essa Tormenta simblica se transformar, na sequncia seguinte, em
pretexto narrativo bem realista para introduzir a figura de Lcia: pela primeira
vez uma mulher atravessa o caminho de Daniel. Trata-se do bloco discursivo
mais longo e, ao mesmo tempo, mais espontneo e mais rico do filme. A moa,
surpreendida pela tempestade iminente numa viagem de carro que fazia com o
irmo lvaro, pede refgio na casa de Daniel, numa reviravolta cmoda mas
bem pouco verossmil da trama. O rapaz os recebe, a princpio com
desconfiana, logo depois com entusiasmo. Lcia transforma os ambientes:
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No deu pouco trabalho: poeira e teia de aranha era um Deus nos acuda! Mas
veja agora! Nasce o amor, mas com complicaes bem dignas de um folhetim
da poca ou, se quisermos, das novelas da TV que nos agridem hoje em dia.
Para Lcia existe um amor no correspondido: Engana-se. O dono desta
(aliana) no possuir jamais meu corao. No caso de Daniel surge a brutal
paixo provocada em outra moa, Suzana, pela primitiva selvageria do rapaz.
interessante registrar aqui o recurso citao bblica, usado pelos autores com
a inteno evidente de reforar a credibilidade e sobretudo a seriedade do relato:
E a serpente, vendo inabalvel o esprito de Ananias, procurou seduzir a
Nathan, seu irmo mais novo. O impasse se resolver pela introduo, na
trama, desse irmo, personagem que permanecer pouco explicitada num fio
narrativo secundrio, claramente truncado. Resolvidos os impasses de ambos os
lados, consolida-se o amor de Lcia e Daniel nas caminhadas idlicas por
lugares cheios de sombra e de paz, nos passeios de barco, na imaginao de uma
nova casa que seria a deles, na alegria ingnua de uma festa na roa onde
violeiros descobrem e executam a partitura do velho Jacques.
A sexta sequncia introduz a tragdia definitiva. Daniel descobre que
Lcia pertence famlia Guimares, tem um mpeto de dio cego, apalpa o
revlver, fica lvido como um cadver. Na resposta de Lcia, introduzem os
autores um confronto bastante curioso: Perdo Daniel! por acaso um crime
ser-se filha de um jogador? A promessa feita diante do pai morto (o dio de
Filho orpho), e no o inevitvel castigo pelos crimes cometidos pelo rapaz,
que ser posta como obstculo contra o Amor doce e humano! Perdo meu
pai, j no poderei mais ving-lo, dir Daniel ao jogar no cho o punhal que
mataria a amada. Acho bastante curioso esse posicionamento dos autores do
enredo, na medida em que revela uma subordinao ao conceito de honra
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familiar a ser defendida a todo custo, encontrvel em certa literatura do sculo
passado e em determinados grupos sociais ainda contemporneos.
A sequncia final simplesmente desenvolve o clmax preparado pelas
situaes anteriores. Daniel resolve desaparecer, numa noite em que mais uma
vez se precipita a Tormenta l fora em convulses de urros roucos e gemidos
dilacerantes. interessante notar a preocupao dos letreiros em marcar a
presena, moralizadora, do irmo de Lcia, que j no comparece na ao:
Deixo com vocs a casa Por outro lado, fica bastante simplificada a reao
psicolgica da moa ao conhecer a verdade: Daniel diz que perdeu sua sede de
vingana, joga o revlver no cho e ela, simplesmente, deixa a cena. A retirada
de Lcia visvel pretexto narrativo para a chegada de Jlio e de lvaro
Guimares, que deparam com um Daniel indefeso e facilmente o atingem com
um tiro. Ao retornar Lcia, o rapaz ainda ter foras para encenar o beijo que
consagraria o amor, no tivesse ele condenado pela morte: Com os lbios
entumecidos (sic) pela dor, vendo a vida fugir-lhe pouco a pouco, ainda quis ele
prosseguir na comedia da Vida, da sua vida de Tormenta, dando quela a quem
amava, mais alguns minutos de esperana, aceitando dos lbios dela aquelas
palavras de um futuro dulcssimo que j era impossvel pela fora do destino.
Nossa exaustiva citao dos letreiros teve o propsito de oferecer ao leitor
o prazer de saborear e de avaliar criticamente a manifestao, nos autores do
scenrio de Tormenta, de um modo bastante curioso de encarar o cinema. O
projeto foi extremamente digno e srio, sem a menor dvida. Mas confundia-se
seriedade e necessidade de se sustentar a trama com rasgos de paixo e de
tragdia exacerbados, usando-se a tortuosidade dos textos como substitutivo de
uma inatingvel, embora visivelmente desejada, qualidade literria. Pode-se
concluir, sem receios, que os artesos do acanhado cinema mineiro daqueles
tempos eram obrigados a se valer dos poucos recursos culturais de que
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dispunham, no contando com o auxlio de quem se julgasse instalado em
esferas intelectuais mais altas. Os erros elementares de sintaxe e de pontuao,
que se notam nos letreiros, comprovam muito bem a afirmativa. Outra
concluso diz respeito ao final do filme. Por que no um final feliz, um happy-
end maneira dos filmes americanos que j invadiam o mercado exibidor da
poca?4 Acredito que seja possvel vislumbrar no desfecho do filme mais um
indcio da dignidade que poderia definir o projeto artstico dos autores. Parece
que no se inspiravam eles num cinema convencional e estereotipado, mas nas
propostas, certamente mais raras, dos filmes experimentais ou, pelo menos,
naturalmente engajados que chegavam s telas mineiras. A tragdia, no caso,
registra uma tomada de posio, mesmo que inconsciente. O estilo do filme,
como veremos em seguida, sugere a presena de uma certa influncia
expressionista, aproximando-se a proposta de Tormenta, sob esse prisma, da
experincia contempornea do Ganga Bruta, de Humberto Mauro.
(Trs)
Foi intencional a omisso, at esse ponto, do nome de Igino Bonfioli,
universalmente citado como o autor principal de Tormenta. Nos crditos de
abertura ele aparece como mero photgrapho, mas fcil imaginar que, na
consecuo do projeto, coube-lhe a verdadeira parte do leo. Antes de mais
nada, Bonfioli o fotgrafo profissional, dono de um conceituado estdio em
Belo Horizonte5, que, j em 1923, se interessa pela produo de filmes posados,
4 Um terreno muito frtil de pesquisa seria o da prospeco dos filmes exibidos nos cinemas de Belo Horizonte nos anos anteriores produo de Tormenta, objetivando-se a determinao das eventuais influncias sofridas por seus realizadores. 5 Uma pequena biofilmografia de Igino Bonfioli foi publicada no Boletim dos Pesquisadores do Cinema Brasileiro, 1976, setembro, n 6, ano V, pgs 18 a 21. Ele nasceu a 11 de
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tendo iniciado em torno de 1919 sua obra monumental de documentrio. fcil
tambm definir essa incurso nos domnios pouco lucrativos do filme de fico
como uma espcie de veleidade de homem teimoso, um prolongamento natural
da sua habilidade em restaurar e em construir equipamentos, em dominar todos
os segredos da imagem fotogrfica, desde os processos de revelao e copiagem
s estimulantes possibilidades oferecidas pelas trucagens de laboratrio6. Os
testemunhos de familiares confirmam tambm essa posio de Bonfioli como
dono da ideia, como responsvel pela captao e pela construo narrativa das
imagens. Ocupado com esse plano tcnico, natural que ele tenha se valido da
colaborao de outras pessoas, que julgava serem mais versadas nas artes da
redao de scenrio e na direo de atores.
De qualquer forma, dvidas que ainda pairam poderiam ser dirimidas por
meio do testemunho do ator lvaro Santelmo, sempre disposto a recordar sua
experincia de intrprete da personagem Daniel Porto, h quase quarenta anos.
Limitemo-nos, por enquanto, presena inegvel de Igino Bonfioli atrs da
cmera que filmou Tormenta.
Sua habilidade, aquilo que sem temor poderamos chamar de sentido de
cinema, revela-se antes de mais nada no modo de descrever, com a cmera, os
momentos de transio que se intercalam entre os blocos compactos da trama.
Em primeiro lugar, a abertura do filme, com longos movimentos de cmera que
passeiam por ruas de Belo Horizonte at enquadrarem a torre de uma igreja,
com sinos que soaro em diversos momentos da narrativa: para conotarem a
dezembro de 1886 em Negrar, provncia de Verona, Itlia, e morreu a 23 de maio de 1965, em Belo Horizonte. 6 Foram conservados alguns aparelhos usados e montados por Bonfioli. Acham-se armazenados no Departamento de Fotografia e Cinema da escola de Belas Artes da UFMG, enquanto se estuda um local adequado para sua exposio permanente ao pblico.
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presena da morte, como smbolo religioso; para marcarem a passagem do
tempo.
Encontramos um segundo exemplo da influncia expressiva de Bonfioli
no incio da sequncia que introduz a decadncia de Daniel, aps a morte do
pai. A cmera, posta altura do cho, enquadra apenas suas pernas, abaixo dos
joelhos, e acompanha em panormica sua trajetria do porto externo da casa
at a porta do alpendre. No plano seguinte, em contracampo, a caminhada
continua a mostrar apenas as pernas do rapaz at o momento em que ele se joga
sobre a poltrona da sala. O movimento agora ascendente para enquadrar a
personagem j sentada, numa atitude de aflio, acendendo um cigarro e
passando as mos pelos cabelos. Nada de extraordinrio nessa elaborao
flmica de Bonfioli, obviamente. Mas, sem dvida, uma intuio muito justa do
potencial expressivo do cinema e sua utilizao adequada, apesar da
precariedade dos recursos tcnicos disponveis. Na mesma linha, ainda mais
admirvel a sequncia que se insere um pouco adiante. O plano comea com
um detalhe de placa, meio torta, onde se l: Daniel Porto. A cmera inicia
longa panormica, descrevendo o mouro de uma cerca, at o nvel do cho.
Segue depois para a esquerda, encontra a cancela e sobe por ela, parando quando
enquadra uma caixa de correio, velha, num estado de abandono. O plano
seguinte uma caminhada subjetiva pelos j conhecidos assoalhos da sala,
interrompida quando surge o velho piano coberto de poeira e de teias de aranha.
No cho, papis jogados, sujeira. Depois, o escurecimento da cena que vem
completar a impresso de abandono que a Bonfioli interessava transmitir.
O domnio daquele que seria o cdigo comum da linguagem flmica, nos
anos 30, manifesta-se tambm na habilidade de Bonfioli em montar, ou melhor,
em decupar as cenas. Na base dessa arte, seu incrvel sentido de escolha dos
campos abarcados pela cmera de filmar. a presena da sua vocao de
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documentarista, de fotgrafo profissional, dimenso que adquire notvel nfase
se compararmos seu trabalho com o de cinegrafistas contemporneos, como
Joo Carrio, de Juiz de Fora. Em Bonfioli nunca h o enquadramento irregular,
descuidado, nem a imagem fora de foco ou mal exposta.
Passando analise da mencionada articulao dos planos, vejamos
apenas um exemplo. Depois que Lcia se instala na casa, a narrativa mostra-a
em diversas situaes como mulher preocupada com a limpeza. Na parede, um
relgio parado. Lcia entra no quadro, muito brejeira, toca numa cadeira
desmontada. No plano seguinte, entra pela direita, levanta uma pilha de papis
velhos, mexe nuns panos que esto debaixo de uma mesinha, at sair pela
esquerda. No prximo plano, Lcia j aparece direita do enquadramento, ao
lado do piano: faz um gesto na direo da cmera, passa um dos dedos sobre a
poeira espessa, quase sai pela direita do quadro. No momento seguinte, ela est
de p sobre uma cadeira: o plano mostra suas pernas, bem prximas, num toque
de erotismo; depois, a cmera sobe por elas at descobrir Lcia que acerta o
relgio de parede. O discurso prossegue ainda em vrias tomadas que
continuam a descrever as aes de Lcia num encadeamento de imagens muito
fluente, denotando uma conscincia perfeita de ritmo cinematogrfico.
Outro setor da realizao flmica, talvez o mais privilegiado por Bonfioli,
o das trucagens. Aqui ele se revela como o tcnico curioso, capaz de admirar
e de imitar os truques que v nos filmes aclamados pelo pblico. No fundo, o
velho rano do homem de provncia, disposto a provar que capaz de fazer em
Minas um trabalho digno do Cinema Mundial. claro que os resultados ficam
muito aqum da expectativa, do ponto de vista do domnio tcnico. Mas
inegvel a fora de imaginao que o possua. A um certo momento, Daniel
manipula uma espingarda, numa ao inocente de bom caador. Para introduzir
a ideia de dio e de tragdia, Bonfioli faz aparecer uma pequenina forma no
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centro do quadro, numa sobreimpresso que avana progressivamente sobre o
espectador at definir-se como uma caveira ameaadora. Num outro ponto,
Daniel debate-se em remorsos pelos crimes cometidos. Ouve rudos estranhos,
desespera-se, ergue uma cadeira e quebra os vidros de uma janela. Pelo vo
escuro, avana ameaadoramente o rosto carrancudo do inimigo Jlio
Guimares. Mais elaborado tecnicamente, apesar de cair num nvel de
artificialismo ingnuo, o recurso usado para sugerir a passagem do tempo. No
plano, um calendrio que se desfolha, um relgio com os ponteiros em
disparada, uma ampulheta funcionando. Ao fundo, a figura minscula de um
homem que se movimenta, num efeito que revela uma verdadeira proeza de
arteso. Tambm nessa linha das trucagens, h o uso bem mais funcional das
fuses como elementos explicitadores da narrativa; o caso da aspirao dos
namorados por um futuro feliz, consubstanciada na casa nova que se sobrepe
ao barco no qual passeiam.
So evidentes as qualidades de Bonfioli na construo cinematogrfica
de Tormenta, sobrepondo-se inclusive s deficincias do roteiro e postura
amadorstica dos atores. Elas o situam, com facilidade, como uma presena
significativa no panorama do cinema brasileiro, autor de uma obra que s agora
comea a ser realmente estudada7.
(Quatro)
Est claro que o presente artigo no esgota a riqueza de aspectos contidos
no filme. Seria preciso mencionar ainda a presena potencial da msica, numa
ntida inteno de incluir Tormenta no mbito do Cinema sonoro, a novidade
7 O Departamento de Fotografia e Cinema est ultimando a edio de um Boletim que conter o roteiro posteriori de Tormenta, alm de outras informaes sobre a obra de Bonfioli.
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da poca. No se tem notcia precisa de que Bonfioli tivesse procurado a
sonorizao; mas a aspirao ansiosa por essa dimenso est presente em cada
momento da narrativa. J ficou claro que a partitura Destino constitui o leit-
motiv do filme. Acrescente-se que o piano faz parte integrante da cenografia da
casa de Daniel, sublinhando os momentos de tragdia e de felicidade (os
violeiros na festa da roa). Na sequncia final, a partitura cair no cho e
marcar a morte inevitvel de Daniel. As experincias de Bonfioli na rea da
sonorizao tica da pelcula s aparecero nos anos seguintes, inclusive com a
construo de equipamentos prprios, mas desde ento j manifestava atitudes
de homem atualizado diante dos progressos de uma tcnica na qual se integrava
plenamente.
Seria preciso mencionar ainda a deliciosa expressividade das viragens do
filme. Realizado naturalmente em suporte preto e branco, a cpia existente foi
submetida a coloraes que tinham a funo precisa de marcar o tom dramtico
das sequncias, ou a de sugerir o efeito noturno, como o caso das cenas da
festa da roa. Assim, os tons vermelhos surgem para exprimir o amor ou o dio,
enquanto que a tonalidade verde expressa tranquilidade e paz. Mais um esforo
do Bonfioli-fotgrafo no sentido de conseguir um lugar ao sol para seu filme,
equiparando-o ao produto estrangeiro. Um esforo quase herico para que
Tormenta fosse exibido em Minas e no pas inteiro, vencendo a concorrncia.
E gerasse um retorno do capital empatado, possibilitando a realizao de novos
filmes. No h a menor dvida de que tenham sido estes os sentimentos e os
desejos do Igino Bonfioli de quarenta anos atrs. E essa postura, revista sob o
prisma de quatro dcadas de tentativas e de fracassos, transforma-o num homem
muito sintonizado com a problemtica de 1978, quando em Minas ainda se tenta
descobrir os caminhos de um cinema inexistente.
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(Cinco)
Uma informao complementar se impe. Os originais de Tormenta,
junto com o contratipo e com a cpia de segurana em 35mm, retornaram ao
laboratrio da Fundao Cinemateca Brasileira para a tiragem de uma cpia
definitiva, que incluir: a multiplicao dos letreiros demasiado curtos, o que
permitir sua leitura normal; a insero dos trechos encontrados aps a
execuo dos primeiros servios de copiagem, na medida em quem vierem a
coincidir com o material deteriorado; a reconstituio, em pelcula colorida, das
viragens originais. Depois de vencidas dificuldades de ordem financeira e
burocrtica que, certamente, ainda ho de surgir, teremos chegado ao termo
final de uma etapa de trabalho. Paradoxalmente, com um longo atraso, ter
incio a carreira de Tormenta: o filme ser oferecido ao domnio pblico, como
dizamos no incio do artigo. Nossa preocupao, que no envolve um bairrismo
ingnuo, mas a convico de que possumos em Minas instrumentos mais
adequados para avaliar e julgar o produto de nossos antepassados mineiros, a
de que surjam condies para uma abordagem sistemtica e o mais possvel
completa desse material indito. Que no paire sobre Minas o gosto meio
amargo da prospeco e da descoberta no conduzidas plenitude da pesquisa
terminada.
Jos Tavares de Barros (1936-2009) foi um dos fundadores do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro e um dos idealizadores da srie Cadernos de Pesquisa. Professor, crtico e montador de cinema, foi vice-presidente mundial da OCIC e organizador do Prmio Margarida de Prata da CNBB.
http://www.cpcb.org.br/
APEDEUTEKA GUINEFORT, 2015