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A CICATRIZ NA PALAVRA: MELANCOLIA EM ULISSES, DE JAMES JOYCE SEITEL, Girvâni Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI. Frederico Westphalen – RS. Mestrado em Letras. Área de Concentração: Literatura Comparada. Apoio e financiamento CAPES. [email protected] RESUMO: Publicado em 1922, o romance Ulisses, de James Joyce, se insere ao rol das obras literárias canonizadas pela literatura universal. Leopold Bloom, personagem protagonista da obra, faz da sua trajetória de um dia por Dublin um momento de reflexão acerca da sua existência, em que a dualidade vida/morte assumem relevância para que se compreenda o descentramento do sujeito moderno quando este se questiona sobre o seu estar-no-mundo. Nessa perspectiva, o objetivo do estudo prende-se à uma análise de Ulisses que revele elementos voltados à melancolia de Leopold Bloom em sua odisseia pela cidade moderna. Palavras-chave: Romance. Ulisses. Representação. Melancolia. 1 INICIANDO A ODISSEIA (PREPARANDO O RETORNO) O tema da viagem é sobremaneira intenso na literatura grega. Na Odisseia de Homero, o retorno de Ulisses a Ítaca é exemplar por revelar um herói que rivaliza com manifestações adversas da natureza, e não apenas a natureza exterior, mas também com sua natureza interior. Ulisses sobrevive ao canto das sereias por saber reprimir seus desejos e por meio de um sacrifício contínuo sobrevive. Na literatura ocidental, o tema da “viagem de Ulisses” é retomado pela tradição literária após a Odisseia, seja para confirmar o ideal do herói nostálgico, seja para representar o afã do retorno à pátria. O romance Ulisses, publicado em 1992, pelo escritor irlandês James Joyce, configura como uma ficção literária considerada uma das maiores expressões do modernismo e da literatura universal. Considerada como uma espécie de epopeia do homem moderno, a volumosa obra, que toma por base a Odisseia de Homero, narra o caminho traçado por Leopold Bloom num dia comum, 16 de junho de 1904, em Dublin, na Irlanda. Olgária Matos expressa que a “viagem de Ulisses é a viagem metafórica que a humanidade precisou realizar para efetuar a passagem da natureza à cultura, do instinto à sociedade, da auto-repressão ao autodesenvolvimento” (MATOS, 1987, p. 145). O herói homérico é a figuração do sujeito que busca uma vida independente das vicissitudes do acaso e das tentações do cotidiano. O traçado oscilante da longa viagem feita por Ulisses

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A CICATRIZ NA PALAVRA:MELANCOLIA EM ULISSES, DE JAMES JOYCE

SEITEL, Girvâni

Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI. Frederico Westphalen – RS.Mestrado em Letras. Área de Concentração: Literatura Comparada.Apoio e financiamento [email protected]

RESUMO: Publicado em 1922, o romance Ulisses, de James Joyce, se insere ao rol das obrasliterárias canonizadas pela literatura universal. Leopold Bloom, personagem protagonista da obra, fazda sua trajetória de um dia por Dublin um momento de reflexão acerca da sua existência, em que adualidade vida/morte assumem relevância para que se compreenda o descentramento do sujeitomoderno quando este se questiona sobre o seu estar-no-mundo. Nessa perspectiva, o objetivo doestudo prende-se à uma análise de Ulisses que revele elementos voltados à melancolia de LeopoldBloom em sua odisseia pela cidade moderna.

Palavras-chave: Romance. Ulisses. Representação. Melancolia.

1 INICIANDO A ODISSEIA (PREPARANDO O RETORNO)

O tema da viagem é sobremaneira intenso na literatura grega. Na Odisseia de

Homero, o retorno de Ulisses a Ítaca é exemplar por revelar um herói que rivaliza com

manifestações adversas da natureza, e não apenas a natureza exterior, mas também com

sua natureza interior. Ulisses sobrevive ao canto das sereias por saber reprimir seus

desejos e por meio de um sacrifício contínuo sobrevive.

Na literatura ocidental, o tema da “viagem de Ulisses” é retomado pela tradição

literária após a Odisseia, seja para confirmar o ideal do herói nostálgico, seja para

representar o afã do retorno à pátria. O romance Ulisses, publicado em 1992, pelo escritor

irlandês James Joyce, configura como uma ficção literária considerada uma das maiores

expressões do modernismo e da literatura universal. Considerada como uma espécie de

epopeia do homem moderno, a volumosa obra, que toma por base a Odisseia de Homero,

narra o caminho traçado por Leopold Bloom num dia comum, 16 de junho de 1904, em

Dublin, na Irlanda.

Olgária Matos expressa que a “viagem de Ulisses é a viagem metafórica que a

humanidade precisou realizar para efetuar a passagem da natureza à cultura, do instinto à

sociedade, da auto-repressão ao autodesenvolvimento” (MATOS, 1987, p. 145). O herói

homérico é a figuração do sujeito que busca uma vida independente das vicissitudes do

acaso e das tentações do cotidiano. O traçado oscilante da longa viagem feita por Ulisses

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para chegar a Ítaca traz, além da cicatriz que Odisseu busca esconder dos que lhe recebem,

outra marca: a do reencontro e do reconhecimento, que advém da volta à pátria, o nostos.

Nostos vem do grego, e significa decorrente do regresso, do retorno, vontade de

retornar (MIRANDA, 2003, p. 49). O Ulisses homérico sente uma vontade demasiada grande

e profunda em regressar para junto dos seus entes queridos. Corajoso e astuto, ele enfrenta

as inúmeras adversidades da natureza e provações postas pelos deuses. Já Leopold Bloom,

com seu nostos - retorno para sua casa -, demarca o território da observação e da

linguagem no que tange a suas múltiplas referências de suas sensações e impressões

sobre a urbe moderna.

Ulisses (1922) pode ser lido de um viés que revele elementos que corroboram para

que se tenha uma representação dos sintomas de Leopold Bloom em sua viagem de um dia

por Dublin até retornar à sua casa, à noite, completando seu nostos. Como sintomas, tem-se

anseios, dúvidas, medo, ironia, prazer, euforia, desencantamento do mundo. Sentimentos

próprios do sujeito que se quer total, inteiriço, mas que sente seu universo fragmentado e

artificial, mimetizando os sintomas da personagem.

Nesse sentido, Ulisses é trazido a lume da tessitura da narrativa através de uma

experiência da linguagem que se quer apoteótica, descortinando, a partir da peripécia

urbana deste herói moderno, a expressão de um sujeito descentrado, em suas vivências no

corte temporal de um dia fazem com que se perceba alguém melancólico.

2 QUEM EM LUGAR ALGUM JAMAIS LERÁ ESTAS ESCRITAS PALAVRAS?: AMELANCOLIA DE LEOPOLD BLOOM

Ao escrever Ulisses, James Joyce estava sujeito às influências científicas e

psicológicas de sua época, dentro de um momento de mudanças que foi o Modernismo na

literatura. O escritor fez uso dos ensinamentos de Freud e Jung, psicólogos, Vico e

Splengler, filósofos-historiadores, Einstein, cientista, para dar alicerce à sua produção

literária. Com base nos textos e pensamentos destes expoentes, o escritor lança mão do

fluxo de consciência para dar à sua ficção um viés existencial, preocupando-se com o

funcionamento psíquico do sujeito moderno, em especial o que ele é e não com aquilo que

ele faz (SILVA, 2005, p. 189).

“Quem em lugar algum jamais lerá estas escritas palavras?” (JOYCE, 1983, p. 51). O

discurso literário pode empreender uma representação que revele a subjetividade do ser

humano a partir da sua visão de mundo. Maria Ivonete Santos Silva argumenta que o

romance é um monumento literário, cujo trabalho de investigação vem ocupando muitos

estudiosos da literatura. Na narrativa, tem-se a técnica do monólogo interior que, sutilmente,

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“desliza até o fluxo de consciência para descobrir os pensamentos e os sentimentos das

personagens” (SILVA, 2005, p. 188).

Ulisses é tecido sobre a tábua rasa de uma natureza cosmopolita, em que o autor se

presta a observar e a escrever sobre a condição humana na esfera da modernidade, que é

uma experiência vital através do tempo e espaço e que sugere possibilidades e oferece

perigos (BERMAN, 1986, p. 15). Mas esta experiência é, no entender de Marshall Berman

(1986), paradoxal, pois “despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e

mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia” (BERMAN, 1986, p. 15), o que

caracteriza sujeitos descentrados.

No romance, esta experiência paradoxal é marcada quando Leopold Bloom revela

visão melancólica, às vezes irônica, dos acontecimentos que fazem parte da constelação da

modernidade. Um desses acontecimentos é a morte. No pensamento da personagem, a

ideia de morte acompanha seu itinerário pela urbe. Enquanto o sacerdote reza em frente ao

caixão fúnebre, o diálogo entre personagens caracteriza a incerteza e a precariedade que

caracteriza o sujeito moderno perante à ideia de algo além desta vida terrena: “In

paradisum. Disse que ele está para ir para o paraíso ou está no paraíso. Diz isso para cada

um. Espécie de trabalho mais para o cansativo. Mas ele tem de dizer alguma coisa”

(JOYCE, 1983, p. 105).

Vida. Morte. “Em meio à morte estamos com vida. Os extremos se tocam” (JOYCE,

1983, p. 51). Esta dualidade vem ao encontro das palavras de Zygmunt Bauman (2009), que

expressa que viver numa sociedade líquida-moderna é estar envolvido no bojo das relações

que oscilam sob o signo da incerteza e da precariedade. Tudo é precário e incerto, e, nesta

esteira, a fragmentação das relações humanas é reflexo de uma modernidade em que o

equilíbrio é inconstante. Nessa direção, ninguém melhor que a figura de Leopold Bloom para

representar o arquétipo desse sujeito descentrado que busca um sentido para seu estar-no-

mundo.

Os questionamentos de Leopold Bloom acerca da existência mostram que ele não é

inteiriço como o Ulisses de Homero. A personagem de James Joyce é fragmentada em sua

subjetividade. No romance, não mais há mais aquele abrigo comum da epopeia, para onde

o herói retornava após suas andanças e lutas; não há mais aquele “lar” para resgatar o

sentido da sua vida e restauração da sua existência. Se na epopeia o herói homérico

enfrenta as sereias e figuras míticas, o sujeito Bloom transita por sua cidade em que os

elementos da modernidade se apresentam aos seus olhos. O que viu ele?

Música, literatura, Irlanda, Dublin, Paris, amizade, mulher, prostituição,dieta, a influência da luz de gás ou luz de arco ou lâmpada de filamento nocrescimento de árvores para-heliotrópicas adjacentes, latas de lixo deemergência da prefeitura expostas, a igreja católica romana, o celibato

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eclesiástico, a nação irlandesa, educação jesuítica, carreiras (...) (JOYCE,1983, p. 619).

A justaposição dos elementos postos em tela configura como integrantes de um

mundo moderno fragmentado, em que tudo é visto de maneira caleidoscópica pela

personagem. Ao passo que Ulisses homérico transita por um mundo em que o objeto da

representação é o passado absoluto dos deuses e dos heróis, o herói moderno, Leopold

Bloom, faz suas andanças num tempo transitório. A esta altura, já é possível perguntar onde

teria ocorrido a perda de Leopold Bloom? O que perdeu o sujeito que circula pela escritura

das páginas do romance? Lendo a narrativa joyceana, percebe-se que suas perdas são

interiores, e que se avolumam e ganham forma em seu pensamento. A personagem sofreu

perdas consideráveis: a morte de seu amigo Paddy Dignam e a explícita rejeição da mulher.

Leopold Bloom faz da sua trajetória pela cidade moderna um momento de reflexão

acerca da sua existência. Em seus pensamentos, a dualidade vida/morte revela o

descentramento do sujeito moderno, que faz das interrogações um modo de questionar o

sentido da vida e também da morte: “E o que é a morte, a de sua mãe ou a sua ou a minha?

(...) Eu as vejo cada dia na Mater ou em Richmond pipocar e na sala de dissecção pôr as

tripas à mostra. É uma coisa animal e nada mais (JOYCE, 1983, p. 11). No diálogo com seu

amigo, logo ao principiar da sua odisseia, Leopold Bloom comenta sobre a morte de sua

mãe. A morte é um enigma aos olhos da personagem – E o que é a morte? – ressoa sua

voz na narrativa.

As indagações da personagem protagonista vêm ao encontro do exposto por

Sigmund Freud em Luto e melancolia (1974). Segundo ele, os dois termos mostram que a

melancolia trata de uma reação à perda de um objeto querido. O melancólico denota um

sentimento doloroso, associado à indiferença em relação ao mundo e ao retraimento do eu.

No pensamento de Leopold Bloom, a morte “tudo vê”, é ela que o investiga através dos

olhos do morto, à espreita:

Seus olhos perscrutadores, fixando-se-me da morte, para sacudir e dobrarminha. alma. Em mim somente. O Círio dos mortos a alumiar sua agonia.Lume agonizante sobre face torturada. Seu áspero respirar ruidosoestertorando-se de horror, enquanto todos rezavam aos seus pés. Seusolhos sobre mim para redobrar-me (JOYCE, 1983, p. 13).

Enquanto Leopold Bloom e seus amigos observam o ritual de encomendação da

alma de Dignam – Et ne nos inducas in tentationem – feito pelo sacerdote da igreja, o

narrador tece digressões sobre a morte que ocupa o corpo do ser humano. A morte, na

visão da personagem, habita o homem, nasce com ele e o acompanha durante sua

existência. Irônico, à beira do túmulo, a personagem divaga:

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Teu coração talvez mas que é que vale para o sujeito entre quatro tábuascomendo margaridas pela raiz? Não tocante isso. Sede das afeições.Coração partido. Uma bomba ao cabo de tudo, bombeando milhares degalões de sangue todo dia (JOYCE, 1983, p. 106-7).

Nesta passagem, de linguagem imagética, o coração é comparado a uma máquina –

uma bomba ao cabo de tudo – que, “um belo dia ela se entope e eis tudo. Porções deles

jazendo aí em redor: pulmões, corações, fígados. Velhas bombas enferrujadas: tudo mais é

uma história” (JOYCE, 1983, p. 106-7). A melancolia toma ares de ironia, pois o narrador

põe em xeque a aura de esperança que a todos encobre. Esta atitude condiz à raiz do

romance moderno, em que narrar requer uma atitude irônica diante do efêmero e do

contraditório.

A ressurreição e a vida. Uma vez que estás morto, estás morto. Essa ideiado juízo final. Pipocando todos de suas tumbas. Levanta-te, Lázaro! E elechegou em quinto e perdeu o lugar. Levanta! Dia final! Então cada gajo aesquadrinhar em torno por seu fígado e por seus olhómetros e pelo restode sua traquitanda (JOYCE, 1983, p. 107).

Em Leopold Bloom a elaboração da perda não se completa, pois o sujeito

melancólico não sabe exatamente o que se perdeu, o que sugere que “a melancolia está de

alguma forma relacionada a uma perda objetal retirada da consciência” (FREUD, 1974, p.

168), o que pode ser uma pessoa amada, um ideal, um sonho ou até mesmo a pátria.

Na narrativa, lê-se que Leopold Bloom perdeu um amigo. E, olhando o corpo do

amigo depositado no caixão, desabafa “Pobre Dignam! Seu último jazer sobre a terra na sua

caixa. (...) Bem, é um longo repouso. Não sentir mais. É no momento que se sente. Deve

ser infernalmente desagradável” (JOYCE, 1983, p. 111) Não mais sentir, não mais ver.

Melancolicamente, o narrador afirma que não há redenção na morte: “Não se pode crer no

início” (JOYCE, 1983, p. 111), não há reinício, só fim, pois como escreveu Freud, “o objetivo

de toda a vida é a morte” (FREUD, 1976, p. 56).

No romance, a matéria-prima em que se prende à escritura se origina das pulsões de

que trata Freud no texto Além do princípio do prazer (1976), em que Eros (pulsões de vida)

e Thanatos (pulsões de morte) denotam a dualidade originada de uma escrita altamente

imagética que compõe o romance. Em Ulisses é notório a relação das pulsões vida/morte.

Nesta relação, Thanatos sobressai nos movimentos cíclicos do dia. Mas, mesmo sabendo

que a morte é a única certeza que guia o homem no curso da existência, no romance a

perda não é reconhecida. Há uma identificação do ego com algo que se perdeu no curso do

tempo, do qual fala Freud, e assim, “devido ao processo de identificação do ego com o

objeto perdido, no caso da melancolia, a perda objetal é equivalente a uma perda do próprio

ego” (FREUD, 1974, p. 166).

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Descentrado e tomado de desalento, Leopold Bloom lamenta que não pode crer mais

nos reinícios que o cotidiano da vida moderna enseja. E sendo a morte a única certeza, a

personagem quer dela fugir, esconder-se: “Se nos tornássemos todos de repente outros

quaisquer” (JOYCE, 1983, p. 111), enfatiza. Isto corrobora com que Freud destacou em

Reflexão para os tempos de guerra e morte (1996), ao escrever que “no fundo ninguém crê

em sua própria morte, ou, dizendo a mesma coisa de outra maneira, que no inconsciente

cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade” (FREUD, 1996, p. 299).

No romance joyceano é possível notar a presença de um sentimento em forma de

alegoria, em que Eros e Thanatos, forças antagônicas, duelam no embate psicológico que

emana do discurso da obra. Esse “descobrir” da dualidade denota que as pulsões

freudianas de morte e de vida se relacionam através do pensamento de Leopold Bloom ao

refletir a respeito da vida e da morte. A passagem: “se nos tornássemos todos de repente

outros quaisquer” (JOYCE, 1983, p. 111) caracteriza o desânimo e baixa estima da

personagem, atitudes que são próprias do sujeito melancólico (FREUD, 1974, p. 166).

Alternando ironia com uma capacidade de compaixão, o narrador sente que sair da

vida para entrar na morte é somente uma mudança de lugar, nada mais:

Estamos rezando agora pelo repouso de sua alma. Desejando que sejaseterno e não no inferno. Bela mudança de clima. Da frigideira da vida para ofogo do purgatório. (...) A terra caía mais leve. Começa a ser esquecido.Longe dos olhos, longe do coração (JOYCE, 1983, p. 111).

Em outra passagem do romance, o sentimento de perda é combatido com uma ácida

ironia. O narrador busca suavizar a aura de melancolia que encobre o momento funesto. Em

tom sarcástico, ele comenta que “os mortos mesmos, pelo menos os homens, gostariam de

ouvir uma piada salgada ou as mulheres de saber qual é a moda. (...) Precisa-se de rir por

vezes, assim é melhor fazê-lo dessa forma” (JOYCE, 1983, p. 110).

Na epopeia de Homero há sempre a ânsia do retorno, daí a jornada arquetípica feita

por Ulisses para retornar a sua Ítaca. Na terceira parte da Odisseia, denominada Nostos, lê-

se um sentimento de nostalgia pela terra adorada. No romance também há um capítulo

denominado Nostos, que caracteriza o desejo de regresso e corresponde a um desejo

erotizado, pleno de Eros, o qual conduz a energia da vontade de vida, da ação de ir ao

encontro de si mesmo (MIRANDA, 2003).

A representação no romance de James Joyce contempla o mito do eterno retorno, do

qual fala Mircea Eliade (1985). Neste mito, o tempo cósmico é cíclico, pura repetição, o

eterno retorno, que vem do sujeito arcaico e se revela, substantivamente, no sujeito

moderno. A trajetória de Leopold Bloom em seu nostos é própria do sujeito moderno que

não encontra repouso em si mesmo, e suas andanças são simbólicas, pois revelam “como o

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fim está no início e o início no fim; ou de como uma aventura – por exemplo, a vida – é um

ciclo, isto é, algo que se desdobra formando como um roteiro em círculo que se fecha”

(HOUAISS, 2005, p. 60). O Ulisses de James Joyce caminha sobre um terreno pantanoso

que é o chão da modernidade, em que a personagem oscila entre contradições extremas e

limites, demarcando seu descentramento.

Ao teorizar a respeito da obra romanesca, Mikhail Bakhtin fala sobre o tema interior

do romance, que é a “inadequação de um personagem ao seu destino e à sua situação”

(BAKHTIN, 1998, p. 425). Leopold Bloom não consegue se adequar ao seu destino. Para o

Ulisses de Homero, a melancolia traz em seu âmago a nostalgia em retornar à sua cidade. E

para sanar a saudade só há um remédio: Ítaca (MATOS, 1987, p. 154). Já para Leopold

Bloom, o retorno à sua casa caracteriza a perda de algo inominável, daí sua reflexão sobre

a existência, o que substantiva, sobremaneira, seu estado melancólico.

A personagem sente que algo mudou. “O que poderia mudar num ser humano num

curto espaço de tempo de um dia?” Perguntar-se-á o leitor. Sim, mudam as pessoas, haja

vista que a ciclicidade do Cosmos e a velocidade do tempo demarcam relações que

ocasionam perdas, rupturas e fragmentações, não só nos relacionamentos, mas também na

própria concepção de tempo que os homens fazem desta convenção.

Num corte temporal, Leopold Bloom reflete acerca das suas perdas. Estando em

casa depois da jornada por Dublin, a personagem se sente um “homem-criança cansado, o

criança-homem no ventre” (JOYCE, 1983, p. 762). Deitado, seu corpo interioriza a

experiência da morte. Ele vê Paddy Digman, como se a imagem do amigo morto estivesse

registrada na retina dos seus olhos.

O nostos de Leopold Bloom deixou uma cicatriz diferente que aquela que o Ulisses

homérico escondeu ao retornar a Ítaca. A cicatriz de Leopold Bloom é o corte na alma. Em

pensamento, ele contabiliza todos que com ele convivem: Jack Power (na cama), Simon

Dedalus (na cama), Ned Lambert (na cama), Tom Kernan (na cama), Joe Hynes (na cama),

John Henry Menton (na cama) [...], Paddy Dignam (no túmulo)” (JOYCE, 1983, p. 729). O

reconhecimento de que Paddy só pode ser reavivado na memória, desenovela a melancolia,

pondo a personagem a repensar a “cota” da vida diária, contada minuto a minuto.

Descentrado, Leopold Bloom busca reconstruir sua personalidade num mundo

desfigurado. Sente “a necessidade da ordem, um lugar para cada coisa e cada coisa no seu

lugar” (JOYCE, 1983, p. 662). A personagem necessita que as coisas e humanos em seu

entorno estejam ordenadas. Contudo, a órbita desordenada do mundo moderno impossibilita

ao herói a relação de completude com ele mesmo e com a natureza, pois não tem

consciência do abandono pelos deuses, nem do caráter ínfimo da vida cotidiana na urbe

moderna.

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Em seu retorno para casa, Leopold Bloom não teve espaço e tempo para feitos

grandiosos, posto que o descentramento do sujeito moderno resume-se na aporia da

individualização. A leitura de Ulisses de um ângulo que revele o descentramento de Leopold

Bloom e, consequentemente, sua melancolia, revela que o heroísmo moderno advém da

busca pela sobrevivência numa constante situação de conflito interior. Ulisses instaura a

anulação das distâncias entre o fato narrado e sua verossimilhança. Tem-se, pois, como

enfatiza Bakhtin, a destruição da distância épica, em que o objeto da representação artística

se dá ao nível de uma realidade imediata, inacabada e fluída (BAKHTIN, 2009, p. 427), em

que o processo de evolução do romance não está concluído, pois é esta a sensação que se

tem ao ler a narrativa.

O filósofo Heráclico de Éfeso, pré-socrático da Grécia, comentou em certa

explanação que ninguém entra num mesmo rio uma segunda vez, pois quando isso

acontece já não se é o mesmo, assim como as águas que já são outras. Leopold Bloom, em

seu nostos, não é mais o mesmo dentro do movimento cíclico do universo moderno, pois

sua viagem de um dia refez a jornada que o homem faz em si mesmo para encontrar

respostas para seu “inacabamento” como ser pensante. Viajar, sair, retornar a si mesmo:

condição primeira do sujeito para encontrar respostas para os enigmas da existência. Ainda

que Leopold Bloom faça da sua viagem por Dublin uma jornada de reconhecimento, ao final

da peregrinação descobre que o homem nunca consegue fugir de si mesmo, pois “quando

você pensa que está escapando você volta para si mesmo” (JOYCE, 1983, p. 413).

Ao cabo da odisseia do herói moderno, mister esclarecer que a melancolia que

caracteriza a personagem protagonista se dá através da linguagem. É pela e através da

linguagem e pelo pensamento que o sentido de perda se instaura em sua existência. O

sentido de perda vai além do corpóreo, não é possível tocar, sentir. A trajetória de Leopold

Bloom é a representação do sujeito descentrado, que sente que a unicidade não é mais

possível e o descentramento é a regra.

Leopold Bloom faz do seu itinerário pela metrópole uma constante interpretação da

vida, buscando, assim, explicações para seu estar-no-mundo. Partir, sim, retornar sempre,

pois “em meio à morte estamos com vida. Os extremos se tocam” (JOYCE, 1983, p. 109),

sentencia o narrador. Leopold Bloom expressa sua melancolia em linguagem, denotando um

estado de contemplação, de perplexidade (indagações, questionamentos, reflexões) diante

da realidade contingente. Esta questão joga luz sobre aquilo que Bakhtin expressou ao se

reportar ao romance, em que um dos “principais temas interiores do romance é justamente o

tema da inadequação de um personagem ao seu destino e à sua situação” (BAKHTIN, 1998,

p. 425).

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A representação dos traços da melancolia de Leopold Bloom é própria da

personagem romanesca, que não é unívoco e imutável como o herói epopeico, que partindo

do pensar seu conflito com o universo que o cerca, redimensiona sobremaneira sua

subjetividade através de pensamentos e palavras diante do seu estar-no-mundo. A

melancolia da personagem reveste-se de um sentido metafísico, cujas reflexões sobre a

existência deságuam na ideia da morte.

Em Ulisses vislumbra-se que vida e texto literário são o locus onde o homem se

encena consciente ou não da sua cisão com o mundo, deixando-se sempre habitar pela

linguagem da narrativa. O texto joyceano é o lugar onde o sujeito moderno se inscreve e se

escreve.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: O FIM CHEGA DE SÚBITO

Com a leitura de Ulisses percebe-se que é através da linguagem que as

personagens saem de si para encontrar no outro a experiência melancólica que é o estar-

no-mundo. – O que sentiu Bloom? – ressoa a voz ao final da narrativa. E a indagação se

dirige ao próprio leitor do romance, o qual viveu com Leopold Bloom a odisseia e que no

final do livro (final da página da vida?) sai da linguagem pictórica impressa na branca página

para retornar a si mesmo.

Fechar o livro é abrir a possibilidade de outra odisseia. E se o leitor entrou na porta

da frente do romance pensando que sairia igual após a viagem da leitura, está enganado.

Ao ler-se o texto joyceano ninguém sai sem uma marca particular: a cicatriz deixada pela

linguagem e subjetividade do romance.

O homem que transita nas páginas de Ulisses desconhece a totalidade do mundo

grego. Não há a certeza do absoluto, do amanhã, há apenas a melancólica constatação que

o homem de ciência, como constata o narrador: “como o homem da rua tem de enfrentar

factos obstinazes que não podem ser escamoteados e de explicá-los como melhor possa.

Pode aí haver, é verdade, algumas questões a que a ciência não saiba responder - no

presente” (JOYCE, 1983, p. 415). Certamente, a racionalidade técnica e a evolução dos

aparatos tecnológico-científicos não oferecem explicações convincentes e confortantes

acerca da constituição do sujeito moderno, que feito o Odisseu de James Joyce caminha a

esmo e descentrado na órbita acelerada da cidade moderna, em que “o fim chega de súbito”

(JOYCE, 1983, p. 419).

Acredita-se que ao lançar mão da melancolia em Ulisses, o tema em tela não esteja

explorado totalmente. Mas, o caminho optado pode ser produtivo para a compreensão de

um dos muitos ângulos que a leitura do romance possibilita.

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REFERÊNCIAS

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