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Joycianas João da Mata Costa Há vinte e seis anos é comemorado o Bloomsday em Natal. Participo das comemorações desde a prima volta como ouvinte, conferencista, curador e, sobretudo, como entusiasta desse grande-dia em homenagem a James Joyce. Para comemorar o Bloomsday 2012, reuni alguns textos escritos durante esse tempo. Onde misturo a Irlanda com Natal e vivo um John`s day em Natal. Finalizo esse ensaio homenageando Molly Bloom e o seu famoso monólogo lido por Marilyn Monroe (foto) e traduzido por muitos escritores. Esse monólogo foi traduzido ente outros por Borges e Haroldo de Campos ( texto em anexo). Selecionei também algumas cartas de Joyce á sua esposa Nora Barnacle, musa do Bloomsday. Em um dia do homem estão os dias do tempo, desde aquele inconcebível dia inicial do tempo, em que um terrível Deus estabeleceu os dias e agonias, até esse outro em que o onipresente rio do tempo terreno retorne à sua fonte, que é o Eterno, e que se apague no presente, o futuro, o ontem, o que agora é meu. Entre a aurora e a noite está a história universal. Da noite vejo a meus pés os caminhos do hebreu, Cartago aniquilada, Inferno e Glória. Dai-me, Senhor, coragem e alegria para escalar o cume deste dia. ( J. L. Borges em Elogio da Sombra, 1968) O Ulisses de Joyce é um romance caleidoscópico que dá margem a muitas interpretações. A revolução trazida por

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Joycianas

João da Mata Costa

Há vinte e seis anos é comemorado o Bloomsday em Natal.

Participo das comemorações desde a prima volta como

ouvinte, conferencista, curador e, sobretudo, como entusiasta

desse grande-dia em homenagem a James Joyce. Para

comemorar o Bloomsday 2012, reuni alguns textos escritos

durante esse tempo. Onde misturo a Irlanda com Natal e vivo

um John`s day em Natal. Finalizo esse ensaio homenageando

Molly Bloom e o seu famoso monólogo lido por Marilyn

Monroe (foto) e traduzido por muitos escritores. Esse

monólogo foi traduzido ente outros por Borges e Haroldo de

Campos ( texto em anexo). Selecionei também algumas cartas

de Joyce á sua esposa Nora Barnacle, musa do Bloomsday.

Em um dia do homem estão os dias

do tempo, desde aquele inconcebível

dia inicial do tempo, em que um terrível

Deus estabeleceu os dias e agonias,

até esse outro em que o onipresente rio

do tempo terreno retorne à sua fonte,

que é o Eterno, e que se apague no presente,

o futuro, o ontem, o que agora é meu.

Entre a aurora e a noite está a história

universal. Da noite vejo

a meus pés os caminhos do hebreu,

Cartago aniquilada, Inferno e Glória.

Dai-me, Senhor, coragem e alegria

para escalar o cume deste dia.

( J. L. Borges em Elogio da Sombra, 1968)

O Ulisses de Joyce é um romance caleidoscópico que dá

margem a muitas interpretações. A revolução trazida por

Joyce resgatou dois dos mais importantes legados dos gregos.

Homero (Ulisses) e o Movimento Circular ( Finnegans Wake).

Sua literatura é tão revolucionária quanto a física de Einstein.

Concordo com Auden que se a civilização grega não tivesse

existido ... nunca nos teríamos tornados plenamente

conscientes, o que significa que, para o melhor e para o pior,

nunca nos teríamos tornado humanos.

Joyce dessacraliza a literatura fundindo gêneros e épocas.

Misturando o erudito com o popular. È dos restos que sua

literatura é feita. Sua personagem principal um homem

comum com nós vivendo uma vida besta pode soltar um pum,

ao mesmo tempo que estuda a Grécia antiga. Para Joyce nada

é perdido. No Ulisses ouvimos muitos sons, sentimos cheiros ...

O cheiro de sebo derretido desprendeu-se dos pavios da vela

do deão, e se fundiu na consciência de Stephen, com o tinido

daquelas palavras: balde e lâmpada, lâmpada e balde. Molly

adora o barulho da bandeja quando Bloom traz o café da

manhã para ela. Associa palavras com vozes que escuta.

Utiliza o monólogo interior, que mistura com a voz dentro

dele, com as pessoas, os bichos, as línguas, os barulhos, etc.

Joyce fala com sons que sugerem sentidos a partir da carne da

palavra. Ouçamos o Ulisses. A verdadeira poesia nos alcança

antes de ter sido entendida, escreveu Eliot. O Ulisses é um

livro para poetas falou o meu amigo Chico Ivan, idealizador

do Bloomsday em Natal. Joyce é um escritor para quem tem

insônia. Para Lacan a palavra é um dejeto, e Joyce é um

escritor que fuça a carniça da linguagem.

A estética joyciana é a de Thomas de Aquino. Beleza é

verdade. Para atingir a beleza precisamos da integridade,

simetria e esplendor. A epifania é a harmonização dessas

coisas numa manifestação do criador. “ sou um cristo

desviado”.

I - O blue book das eclésias

O Ulisses de James Joyce – o “blue book das eclésias”- é também

um livro sobre o amor. Leopold Bloom, o protagonista do

romance que revolucionou a literatura universal, passa o dia

perambulando por uma Irlanda (terra da ira) decadente, e tem

consciência da traição de Molly Bloom. São dezesseis horas e o

relógio de cuco toca … e nessa hora vesperal Molly recebe o

amante em casa. “Eles são loucos para entrar de onde eles

saíram”, diz Molly. Oito de setembro é o aniversário de sua

amada e 16 de junho foi quando Joyce se apaixonou perdidamente

por ela. As datas são muito importantes para o aquariano Joyce

nascido no dia 02 de fevereiro. O tema do ciúme também está

presente na sua única peça “Exílio” e no último conto de

Dublinenses “The Dead”. Um dos maiores contos do século XX

foi levado às telas por John Huston com o título “Os Vivos e os

Mortos” (EUA 1987). No Ulisses, Joyce fala muito através dos

sons. O leitor sente prazer e dor ao ouvir o som da trombeta, o

suspiros das folhas, o ruído do mar e o som da água escoando no

ralo da pia em espiral. A polissemia das palavras valise, da

palavra montagem, da palavra ideograma encadeando novos

sentidos. Joyce é um alquimista da palavra e a linguagem é o

personagem principal desse imenso cipoal cheio de ruídos e

labirintos que é esse enciclopédico romance Ulisses. “Deus é um

barulho na rua”. “Todos esses ruídos convergiram numa única

sensação vital para mim: imaginava conduzir meu cálice

incólume, através de uma multidão de inimigos”. Durante o dia16

de junho Bloom chega a um estado mental que é mais abnegação

do que ciúme. Joyce evoluiu no tratamento desse tema desde suas

primeiras criações literárias. É com uma grande pulsão verbal

com que Joyce fala do amor numa feerie carnal pulsipulso.

“Ele beijou os fornudos ricudos amareludos cheirudos melões do

seu rabo, em cada fornido melonoso hemisfério, na sua riquêga

amarelêga rêga, com obscura prolongada provocante

melonicheirosa osculação”. Ao fim do episódio de Nausícaa

(cap.13), o “relógio de cuco” informa a Bloom que ele é agora um

corno. Cuco, cuco, cuco… cukoo-cloc; relógio de cuco e

cuckoldcorno.

No final, Ulisses “retorna” para casa (Ítaca) e encontra Penélope

(cama). A mulhervaginabismo onde o homem se perde e jamais

retorna. O romance encerra com um pungente monólogo de Molly

Bloom. “yes, I said yes I will Yes oui jái dit oui je veux bien. SIM

EU QUERO SIMS.

Vagueando por Natal tenho o meu Johnsday. No restaurante da

universidade converso sobre Flaubert. Um grande escritor

admirado por Joyce. Alguém que buscou a impessoalidade na sua

literatura. Em Joyce, impossível separar a vida do opus. No

cemitério do Alecrim entro no reino de Hades e rezo um

cantochão na igreja do Galo. Lanço as cartas do Tarot e tiro a

carta 15. Blake e “A Canção dos Loureiros” do Édouard Dujardin.

Sigo o fluxo de consciência. Caminho por suas ruas e vielas

esburacadas très bian aussi. Lembro-me da escola de pé no chão

nas Rocas e da fábrica de pregos das Quintas onde fui menino.

Depois olhar o Potengi e namorar na pedra do Rosário.

Em Ponta Negra bato uma brahma. Na Padre Pinto, saindo do bar

do coelho, olho o rio que parece o Liffey. Molly Bllom nessa hora

deve estar me traindo. Capitu also e Otelo coitado. São quatro

horas e nessa hora alguém está sendo chifrado. Tudo que é

proibido é bom. Clô telefona para falar de Shakespeare e de

Hamlet, a Monalisa da literatura : Words, words, words….cama

camisola ave Maria cheia de graxa. Lê em voz muito alta o

Finnegans Wake. Literatura de notívagos e bruxos. Fim again

Fim. Nunquam satis discitur. O eterno ciclo viquiano do

movimento circular divino. Só com compaixão, humor e lirismo

vamos conseguir sangrar os mares desse Potengi desmamado e

poluído numa das esquinas do mundo onde meu amigo “foi feliz e

se deu bem”. Parafraseando Stephen Dedalus no Retrato do

Artista quando Jovem, de James Joyce, referindo-se á Irlanda, eu

diria de Natal (eu que já sou meã: “Natal é uma porca velha que

devora suas crias”.

II - Joycircunvuluçõesbabélicas

O diacronismo cambiante da navelouca de Bloom–mente—fluxo

-feérie-carnal-verbal. Rio (Nossa Senhora) Corrente. Sinfonia de

signos. Da cappo. Fim-agains-Fim. Finneganswake. Novamente.

No meio da morte estamos com vida. Corrida sem vencedor.

Livro-cidade-mulher. Molly Bloom: eles são loucos para me

comer. Aíiiiiiiiiiiiii. Vai, segue, mete que a vida é só um dia

mares. Telemacus vagueia thalasses.

Introibo ad altere dei. Abre verunque as pernas. Porra de

des(esperta-dor). Cuco. Cukooo. Cucckolddddd. Sim, eu sei sou

corno. E daí!.Ela gostou. Que barulho é esse é Deus ninguém

entende. Como uma onda no mar que flui num jorro orgásmico.

Amo-te tântalo. Aligozou. Anna Lívia mais que bela Plurabelle.

Pausa. Depois glissando um chocolate quente. O amor corre

consciência. Ela me beijou com seus lábios carnudos.

Divagadamente as moscas copulam. Solidão. Livro-

surubalingüística.

Verdeargenteoceanico. Ulisses volta para Ítaca. Ela dorme e ronca

desafinadamente em staccato. Do pesadelo tento lentamente

despertar. É a história. Um dia todos os dias. Dimensão multi-

fractal. A cabeça junto aos pés: Dorme. Sim Thomas de Aquino.

Santo Agostinho e todos os filósofos da igreja pecadora. Imagens,

urdiduras, palavras nada além que palavras inventadas. O hades

esqueço, lotófagos seduzem, proteus bondemeuvelho Liffey. Não

sou quem navegabundo.

Joyceglosas Cila e Caribdes. Os caminhos do criador

Shakespearou. Flaneur Dublin. Puns popular e erudito. O todo em

um romance enigma. O caminho mais difícil são as curvas das

estradas sinuantes do corpo. Sinos tocam. É a hora do ângelus

Molly. Epifania. Eu sou o alfa-omega- alfa. O caminho e o fim do

romance cíclico dessacralizado. Chance?. Nenhuma... “a intuição

do amor é apanágio das mulheres”. RomanceAmor. Fraulein

Molly. Ema Flaubert Bovary c´est moi aussi don Quijote. I am a

yhwk Deus.

III- Uma Natal Joyciana

Natal como te amo: leviana? Nem tanto. Escrota? Menos. Muitos

disseram assim das suas cidades e mulheres. Natal banhada por

rio e mar também tem suas graças …. um certo charme na sua

decadência. Precisa de um grande escritor para traçar suas ruas e

becos. Reavivar sua memória esquecida. Salvador teve Jorge

Amado. Alexandria teve um Ptolomeu. A Irlanda entrou no mapa

do mundo com a escritura de James Joyce. A decadência de Natal

tem o rosto da modernidade. Natal sofre com as atuais

administrações e com as oligarquias. E são dos resíduos com que

se faz a grande literatura. Outros disseram de uma terra desolada.

O que Joyce escreveu sobre a Irlanda eu poderia transportar para

Natal. Mas, eu não sou Leopold Bloom e mesmo assim

comemoro o bloomsday. A Irlanda também é bebum e ruidosa.

“Terra de uma raça esquecida por Deus e oprimida pelos padres

… a raça mais atrasada da Europa”. Eu também poderia dizer isso

de Natal, mas eu não sou Joyce. Prefiro andar por suas vielas e

bares. Freqüentar o bar de Zé Reeira e tomar uma cerveja com

Zizinho, Ronnie Von e Celina Muniz. Adentrar na garçonnièri de

Abimael e conversar sobre o próximo lançamento. Tomar cerveja

em Maria Boa e lembrar de todos os porcos boêmios.

Aquela amiga que nunca gozou senão em Mary Good. Sim, eu

digo sim. No restaurante tenho pavor daquela mulher que fala

comendo. Com os amigos tenho uma grande discussão sobre

Flaubert. Um grande escritor admirado por Joyce. Alguém que

buscou a impessoalidade da literatura. Em Joyce, impossível

separar a vida do opus. No cemitério do Alecrim entro no reino de

Lete e rezo um cantochão na igreja do Galo. Lanço as cartas do

tarot e leio Blake e “ A Canção dos Loureiros” do Édouard

Duajardin. Sigo o fluxo de consciência. Caminho por suas ruas e

vielas esburacadas três bian aussi. Lembro da escola de pé no

chão nas Rocas e da fábrica de pregos das Quintas onde fui

menino.

Depois olhar o Potengi e namorar na pedra do Rosário. Em Ponta

Negra bato uma brahma. Da boulevard Padre Pinto olho o rio que

parece o Liffey. Molly Bllom nessa hora deve estar me traindo.

Capitu also e Otelo coitado. São quatro horas e nessa hora alguém

está sendo chifrado. Tudo que é proibido é bom. Clô telefona para

falar de Shakespeare e de Hamlet, a Monalisa da literatura :

Words, words, words....cama camisola ave Maria cheia de graxa.

Lembro do Finnegans Wake que deve ser lido em voz alta e por

notívagos. Fim again Fim . Nunquam satis discitur. O eterno ciclo

viquiano do movimento circular divino. Só com compaixão,

humor e lirismo vamos conseguir sangrar os mares desse Potengi

amado e poluído.

IV - O Opus Fin - Finnicius Revém do James Joyce

“ sangro á margem do negro riacho de meu ramo partido” JJ

FW, Finnicius Revém na feliz tradução de Haroldo de Campos

mantida pelo tradutor brasileiro Donaldo Schuler, que a traduziu

integralmente e foi editada numa edição primorosa pela editora

Ateliê em cinco volumes. Romance riocorrente concluído em

1939 por Joyce após dezessete anos de gestação e experimentação

quando foi utilizado mais de sessenta idiomas. Feito de longas

palavras “soundsenses” que devem ser lidas em voz alta e

calembours (trocadilhos). Enquanto o Ulisses é um livro diurno, o

Finnegans Wake é um romance da noite e dos sonhos. Nesse

romance Joyce utiliza a técnica labiríntica do celebre Livro de

Kells (em inglês : Book of Kells; em irlandês: Leabhar

Cheanannais), também conhecido como Grande Evangeliário de

São Columba, de Sir Edwward O´Sullivan. Um manuscrito

Ilustrado com belas iluminuras feito por monges celtas em torno

do 800 da nossa era.

O FW é um livro de difícil acesso e poucos conseguem vencer

esse imenso cipoal de signos, sons, palavras-valises, trocadilhos,

paródia, citações e muita erudição. Joyce é um grande leitor de

Giordano Bruno e seus mundos infinitos, do Vico e sua história

cíclica, do Alcorão, do Livro dos Mortos, da Cabala, do Livro de

Kells, etc, etc. É um livro que pretende traduzir o mundo e conter

todos os ensinamentos. Para o seu biógrafo S. L. Goldberg o livro

é um malogro literário artístico e não foram poucos críticos que o

execraram. Para penetrar nesse imenso labirinto é preciso ler a sua

exegese. Um dos livros que se encaixam nessa categoria é o

Skeleton Key to Finnegans Wake (NY 1944, Londres 1947 )

escrito por Joseph Campbell e Henry Morton Robinson. Escreve

Campbell e Robinson, na tradução e citação de Dirce Waltrick:

Além de ser um sonho confessional, Finnegans Wake é também

uma Fonte de Mito. Mitos, como sonhos, são um produto da

mente inconsciente (...). Finnegans Wake é o primeiro exemplo

literário da utilização do muito numa escala universal. Outros

escritores – Dante, Bunyan, Goethe – empregaram simbolismo

mitológico, mas suas imagens eram traçadas a partir do

receptáculo do Ocidente. Finnegans Wake penetrou no oceano

universal.

Um capítulo que resume o opus joyciano, um dos mais célebres e

divulgados do FW é o “Anna Lívia Plurabelle, ALP” ( Capítulo

VIII ). Uma tradução desse capítulo acompanhado de uma

introdução e estudo pode ser lido no livro da professora Diece

Waltrick do Amarante; para ler Finnegans Wake de James Joyce”

( Iluminuras 2009). Esse capítulo também foi traduzido pelos

irmão Campos e reproduzido na tradução brasileira do Castelo de

Axel de Edmundo Wilson. Enquanto o Ulisses é um livro diurno e

narra a peregrinação do Sr Flores durante 18h do dia 16 de junho,

o Finnegans Wake é um livro da noite, dos sonhos e

subconsciente que narra a morte e ressurreição do herói. A

história do morto que ressuscita é recorrente na literatura e pode

ser encontrada em Apuleio, Joyce, Jorge Amado e Ariano

Suassuna.

Finnegans é um pedreiro que morre e ressuscita reencarnado na

pele de um taberneiro, após ter sido borrifado por uma poção

mágica de uísque. Humphrey Chimpden Earwicker mais

conhecido pelas iniciais H. C. E., que ás vezes é traduzida como

Here Comes Everybody é o herói Mr. Todos Nós, ou Sr.

TodosNós de Finnicius Revém e percorre o ciclo viquiano do Fim

Again Fim ( wake, acordar depois do Fin, Fim ). Fragmentos do

FW foram traduzidos pioneiramente no Brasil pelos irmãos

Campos em “Panaroma do Finnegans Wake” (1962). Uma

tradução elogiada pela crítica especializada que proporcionou pela

prima volta o contato com essa obra inclassificável.

Ana Lívia Plurabelle é a esposa de um homem culpado e

caluniado, Sr Todos Nós HCE. Anna Lívia decide lavar a roupa

suja do marido para que ele ressuscite de consciência limpa. Mas

ALP transforma-se no rio que absorverá nossas máculas e que

depois desaguará no mar. Para alguns críticos Anna é uma

alegoria da história. Duas lavadeiras, sentadas em margens

opostas, conversam entre si, enquanto lavam a roupa suja. Falam

exatamente de ALP e do Sr. Todos Nós, o H. C. E. A medida que

o rio flui a história da humanidade deságua no mar e tudo

recomeça num ciclo de Vico ( ref. Giambattista Vico in “A

Ciência Nova”)

Conversa das lavadeiras:

Olha a camisa dele ! Olha que suja ela está ! Ele deixou em mim

toda a minh ´agua escura ... Sei de cor os lugares que ele gosta de

manchar, sujeito suujo (tradução de Dirce em obra citada).

À medida que o rio Liffey flui (rio Heraclitiano como metáfora da

mulher) as margens se afastam e as lavadeiras não mais podem se

ouvir. Por isso gritam uma à outra palavra em qualquer língua, em

todas as línguas. É o ruído branco da ciência moderna e da física

não linear, a junção de todos os ruídos e cores transformadas na

cor branca ou no arcoirissonico joyciano. As lavadeiras já foram

associadas como as bruxas de Macbeth, ou com os coveiros de

Hamlet. Joyce é um amante da literatura de Shakespeare e toda a

sua obra é permeada pelo bardo inglês.

As lavadeiras são mumificadas em Shaun (Pedra) e Shem

(árvore). Elas representam a dualidade de todo o ser humano, ou a

dualidade indissociável da onda-partícula. As árvores e a pedras

são recorrentes no Finnegans Wake e carregadas de simbolismo,

podendo significar entre outras coisas a vida e a morte. Joyce

gostaria de ter criado uma língua que fosse a junção de todas as

línguas e que todos pudessem decifrar... um dialeto da

humanidade. Sua última obra é repleta de enigmas instigantes que

dialogam com a literatura universal e continua a desafiar a nossa

compreensão. Ele não nos enganou quando disse que escreveu

uma obra para ser discutida nos próximos trezentos anos.

Dez anos antes de ser publicado o Finnegans Wake (1939)

nasceu o físico americano Murray Gell-Mann, ganhador do

premio Nobel de Física pela descoberta do quark, partícula

fundamental do átomo. O termo quark foi emprestado do FW e a

física assim como toda ciência e filosofia podem dialogar com as

artes como pensou o demiurgo e revolucionário James Joyce.

Cartas de Joyce A Nora Barnacle

- Eu odeio as mulheres que não sabem nada. Joyce

- Por que você nãos escreve livros que as pessoas possam ler -

Nora

No dia 10 de junho de 1904 Joyce conhece Nora Barnacle e se

apaixona loucamente. No dia 16 de junho Joyce passeia com

Nora e experimenta momentos de beleza e transcendência, suas

célebres epifanias. Por esse motivo o escritor escolheu esse dia

como o dia de Bloom, o Bloomsday. Dia em que transcorre toda

a ação do Ulisses. As famosas cartas de Joyce a Nora foram

publicadas pela Massao Ohno, com tradução da Mary Pedrosa.

Cartas muitas vezes picantes e que revelam um outro lado do

escritor genial que iria revolucionar a literatura com seu Ulisses,

em 1922. Um livro de amor. Um livro que também é uma

homenagem a Nora.

Selecionamos quatro dessas cartas ( trechos) para comemorar o

Bloomsday2010.

15 de agosto de 1904

Minha cara Nora. Neste instante soou uma hora. Cheguei em

casa às onze e meia. Desde então estou sentado numa poltrona

como um cretino. Não posso fazer nada. Não ouço nada a não

ser a tua voz. Estou como um cretino a ouvir-te chamar-me

querido. Ofendi duas pessoas hoje ao deixá-las com frieza.

Queria ouvir a tua voz, não a dos outros. Quando estou contigo

deixo de lado o meu temperamento desconfiado e desdenhoso.

Quisera estar sentindo agora tua cabeça sobre o meu ombro.

Penso que vou deitar-me.

Levei meia hora escrevendo isto. Vais escrever qualquer coisa

para mim? Espero que o faças. Como assinar esta carta? Não vou

assinar nada, porque não sei que nome usar.

7 de Setembro de 1909

Minha Norazinha silenciosa. Dias e dias se passaram sem carta

tua, mas creio que pensaste que eu já teria embarcado. Partimos

hoje à noite. Lá para o fim da semana ou no domingo havemos

de estar juntos, espero.

Agora, minha Nora querida, quero que releias e tornes a reler

tudo que te escrevi. Há uma parte feia, obscena e bestial, e há

uma parte santa e espiritual: tudo junto sou eu. E Penso que

agora compreendes o que sinto por ti. Não vais mais brigar

comigo, vais, querida? Estou cansado hoje, caríssima, e gostaria

de dormir em teus braços, não fazer nada, mas somente dormir,

dormir em teus braços.

Como vai ser longa a viagem de volta, mas que glória vai ser

nosso primeiro beijo. Não chores, querida, quando me vires.

Quero ver-te de olhos brilhantes e lindos. Qual será a primeira

coisa que me dirás, imagino?

La nostra bella Trieste!*

Tu me amas, não é verdade? Agora vais acalentar-me no teu

peito e abrigar-me e talvez ter pena de mim por meus pecados e

loucuras e guiar-me como a uma criança.

Naquele peito amigo estar eu queria.

(que é tão amigo e belo de verdade!)

Onde ia ficar a salvo da ventania.

Devido à amarga austeridade

Naquele peito amigo estar eu queria.”

A Nora Barnacle Joyce

22 de dezembro de 1909

Rua Fontenoy, 44, Dublin.

Nora, minha querida

Remeto pelo correio (expresso e registrado, com valor

declarado) um presente de Natal*. É a melhor coisa (mas afinal

muito modesta) que posso oferecer em retribuição ao teu amor

fiel, verdadeiro e sincero. Pensei em todos os detalhes nas noites

de insônia, ou nos carros em disparada ao redor de Dublin. Acho

que o presente acabou ficando bonito. Entretanto, mesmo que

vá causar somente breve rubor de prazer em teu rosto no

primeiro momento em que o vires, ou se fizer teu coração

amoroso, terno e leal dar um súbito salto de alegria, eu me

sentirei muito, muito bem recompensado de todos os meus

cuidados.

Talvez este livro, que agora te envio, sobreviva a nós ambos, a

mim e a ti. Talvez os dedos de algum rapaz ou moça (filhos de

nossos filhos) virem reverentes estas folhas de pergaminho,

quando os dois amantes cujas iniciais estão entrelaçadas na capa

tenham há muito desaparecido da terra. Nada há de restar,

então, minha querida, de nossos pobres corpos humanos

movidos pela paixão; e quem poderá dizer onde vão estar as

almas que em seus olhos contemplavam uma a outra. Eu pediria

que minha alma fosse espalhada no vento, se Deus me deixasse

apenas soprar suavemente, para sempre, em redor de uma flor

azul escuro, estranha e solitária, numa sebe agreste de Aughrim

ou Oranmore.

Jim.

16 de Dezembro de 1909

Minha doce queridinha. Até que enfim tu me escreves!. Deves

ter à tua bucetinha Levado uma esfregação feroz para me

escrever uma carta tão desconexa. Quanto a mim, querida, estou

tão esgotado que tu terias que levar uma hora a lamber -me para

que eu ficasse com o pau duro para meter nas bordas de tua

boceta, quanto mais para uma foda completa…

* O presente que ele Joyce enviou a Nora era manuscrito

encadernado do livro “Música de Câmara”

Em Trieste ( sua segunda pátria) -- norte da Itália - onde vive uma

quadra importante de sua tumultuosa vida. Nessa cidade nasce a

sua filha Lúcia e é em Trieste que Joyce começa a escrever O

Retrato do Artista quando Jovem. Na bela Triste ele leciona

Inglês e conhece o escritor de Senilidade, Ítalo Svevo.

MONÓLOGO DE MOLLY BLOOM (trecho Final)

Ulisses de James Joyce; trad. Haroldo de Campos.

o sol brilha para você ele me disse no dia em que estávamos

deitados entre os rododendros no cabo de Howth com seu terno

de tweed cinza e seu chapéu de palha no dia em que eu o levei a

se declarar sim primeiro eu lhe dei um pedacinho de doce de

amêndoa que tinha em minha boca e era ano bissexto como agora

sim há 16 anos meu Deus depois daquele longo beijo quase perdi

o fôlego sim ele disse que eu era uma flor da montanha sim certo

somos flores todo o corpo da mulher sim foi a única coisa

verdadeira que ele me disse em sua vida e o sol está brilhando

para você hoje sim por isso ele me agradava vi que ele sabia ou

sentia o que era uma mulher e tive a certeza de que poderia

sempre fazer dele o que eu quisesse e dei-lhe todo prazer que

pude para levá-lo a me pedir o sim e eu não quis responder logo

só fiquei olhando para o mar e para o céu pensando em tantas

coisas que ele não sabia em Mulvey e no Sr. Stanhope e Hester e

papai e no velho capitão Groves e nos marinheiros que brincavam

de boca-de-forno de cabra-cega de mão-na-mula como eles

diziam no molhe e a sentinela defronte à casa do governador com

a coisa em redor de seu capacete branco pobre diabo meio assado

e as moças espanholas rindo com seus xales e seus pentes

enormes e os pregões na manhã os gregos judeus árabes e não sei

que diabo de gente ainda de todos os cantos da Europa e na rua

Duke e o mercado de aves cheio de cacarejos em frente a casa de

Lalaby Sharon e os pobres burricos tropicando meio adormecidos

e os vagabundos encapotados dormindo na sombra das escadas e

as enormes rodas dos carros de boi e o velho castelo velho de

milênios sim e aqueles belos mouros todos de branco e de

turbante como reis pedindo a você que se sente em suas

minúsculas barracas e Ronda janelas velhas de pousadas olhos

espiando por detrás de rótulas para que seu amante beije as grades

de ferro e as tabernas semicerradas à noite e as castanholas e a

noite que perdemos o barco em Algeciras o vigia rondando sereno

com sua lanterna e Oh aquela terrível torrente profundofluente Oh

e o mar carmim às vezes como fogo e os poentes gloriosos e as

figueiras nos jardins da Alameda sim todas as estranhas vielas e

casas rosa e azul e laranja e os rosais e os jasmins e os gerânios e

os cáctus e Gibraltar quando eu era jovem uma Flor da montanha

sim quando eu pus a rosa em meus cabelos como as moças

andaluzas ou de certo uma vermelha sim e como ele me beijou

sob o muro mourisco e eu pensei bem tanto faz ele como outro e

então convidei-o com os olhos a perguntar-me de novo sim ele

perguntou-me se eu queria sim dizer sim minha flor da montanha

e primeiro enlacei-o com meus braços sim e puxei-o para mim

para que pudesse sentir meus seios só perfume sim e seu coração

disparando como louco e sim eu disse sim eu quero Sim.