8/2/2019 Joyeux Nol A Construo da Memria da Grande Guerra por uma Europa Unida

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Por Marcelo Carreiro1

Introduo

O general William T. Sherman conhecido por sua frase A guerra o Inferno2.

Sherman se referia Guerra Civil Americana mas a frase especialmente aplicvel Grande

Guerra.

Hobsbawm chama a Grande Guerra de uma mquina de massacre provavelmente sem

precedente na histria da guerra3. O carter indito de violncia da Grande Guerra ressoou por

toda a produo cultural da poca, marcando de maneira indelvel toda uma gerao e mudando

para sempre a auto-imagem europia. A estria da guerra total, associando a espantosaproduo industrial, a indstria de massa e linha de montagem com a guerra, foi marcante,

diferenciando a escala da Grande Guerra de todas as demais. Temos como resultante dessa

aplicao marcial da indstria inovaes que alteram para sempre a dinmica da guerra, como o

uso universal do arame farpado, essencial guerra de trincheiras, o emprego de gases

venenosos como arma, assim como a terrvel novidade da metralhadora tudo isto associado

para sempre Grande Guerra4.

Joyeux Nol, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 2005, conta a histria de

uma pausa no centro desse vrtice destrutivo que levou imprios, homens e ideais. Uma breve e

tocante vislumbre de fraternidade no centro do Inferno. Um motivo de esperana humana em

meio a algo degradante como a guerra.

Histria e Cinema

A relao entre Histria e memria conhecida e tratada por diversos autores5. A

presena do cinema como elemento de histria, atuando na construo de memrias, tema de

estudo mais raro, inaugurado por Marc Ferro no contexto de assimilao de novas fontes dosAnnales6.

1 Mestrando em Histria Comparada pelo programa Pr-Defesa (UFRJ).22CHARLTON, James(ed.) The Military Quotation Book. Nova Iorque: St. Martin Press, 1990.3 HOBSBAWM, Eric.A Era dos Extremos O Breve Sculo XX 1914-1991. So Paulo: Companhia das Letras,2002. 2 Edio.4 SILVA, Francisco Carlos T. da (org).Enciclopdia de Guerras e Revolues do Sculo XX.5

Nas obras de Jacques Le Goff e Pierre Nora dentre tantos outros.6 FERRO, Marc. Cinma et Histoire. Paris: Denol, 1976.

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Joyeux relevante no como documentrio do evento real do Cessar-Fogo do Natal de

1914 coisa, alis, que no se prope a ser mas como uma construo de memria,

romanceando um evento real e o delineando de forma espetacular e prenhe de significados.

um filme multinacional, possvel apenas pelo advento da Unio Europia. E celebra o

abandono de disputas territoriais menores, embora sofridas em nome da unio de povos to

comuns como escoceses, franceses e alemes. a unio, a irmandade de povos to prximos,

que deslocada no tempo e mostrada no natal de 1914.

A produo de Joyeux mostra em detalhe uma Europa unida uma produo franco-

alem-inglesa, com um diretor francs e msicas inglesas, filmada na Romnia, e com atores de

todas as nacionalidades. Mais ainda, com as lnguas nacionais respeitadas, ganhando

meticulosamente o mesmo tempo de projeo, alternando-se num bailar que deixa claro que

linguagem no mais barreira para o entendimento e a comunicao.

O Cessar-Fogo de 1914, nesse sentido, acena como o prottipo de unio, apresentando

uma unio de povos revelia de seus projetos mesquinhos de poder nacional. Um povo com a

mesma base cultural, a mesma religio, os mesmos valores vizinhos que se conhecem bem,

como os tenentes que conhecem a regio um do outro, ou o casal de cantores lricos alemes

conhecidos at pelo velho casal francs que tem sua casa secular transformada no QG alemo.

Na sua resenha do filme, o famoso crtico de cinema Roger Ebert comenta

Esses homens tm muito em comum uns com os outros. Eles vem dos mesmos tipos delares, iam ao mesmo tipo de escolas e adoravam os mesmos tipos de deuses. Eles eram

requisitados a lutar, e a maioria deles requeridos a morrer. Em um marcante momento deinteresse comum, eles trocam informaes sobre planos de ataque de artilharia e todos se

refugiam em uma trincheira enquanto a outra bombardeada. E ento, trocam de trincheirapara sobreviverem resposta.7

Mesmo as crianas entoando poesias ufanistas de carter claramente belicoso8,

apresentadas na abertura do filme, mais reforam essa igualdade todas so crianas, todos os

poemas parecidos, todas so peas de uma engrenagem poltica do que efetivamente reforam

quaisquer desigualdades naturais. O inimigo no algo dado naturalmente, mas construdo

e como ns.

A verdadeira face violenta da guerra surge em apenas em uma nica cena: a da intil e

mortal investida francesa contra as trincheiras alems, que mostra de maneira crua o horror da

guerra onde a metralhadora enfrentada com pistolas e fuzis. chocante especialmente o

horror dos moribundos na Terra de Ningum vivos, mas abandonados para a morte vista de

7 EBERT, Roger.Joyeux Nol. In Chicago Sun Times, edio de 10 de maro de 2006. Disponvel na Internet noendereo http://rogerebert.suntimes.com/apps/pbcs.dll/article?AID=/20060309/REVIEWS/603090304/1023 em

junho de 2006.

8 Referncia clara cultura do dio tambm denunciada por Erich Maria Remarque em outro poderoso libelopacifista sobre a Grande Guerra, o livroNada de Novo no Front.(REMARQUE, Erich Maria.Nada de Novo noFront. Porto Alegre: L&PM, 2005).

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todos, amigos e inimigos. a banalizao mxima da morte e a renncia a qualquer

humanidade e mesmo bom senso.

Mas excetuando-se esse nico quadro violento, o filme mostra uma Europa j unida em

esprito, pronta para uma integrao natural de sua gente comum e mantida dividida apenas

por seus obtusos dirigentes, cultivadores do patriotismo. Nas palavras do soldado-tenor

Nikolaus Sprink, essa gente parada e gorda bebericando champagne.

A resposta dessa pusilnime classe dirigente - representada pelo nervoso Kronprinz

alemo, pelo irado comandante escocs e pelo alheio pai-general francs o alerta do que

seria a Europa sem essa integrao natural de seu povo: a continuidade da agresso, a volta

guerra, o retorno ao pesadelo.

E o filme mostra o destino da Europa se essa classe dirigente permanece no controle a

paz, to espontnea e natural, fruto de um fim de tolerncia conjunto ao horror da guerra,

evitada e os que foram tocados pelo sonho da paz punidos e tratados como traidores.

Assim, o filme autntico documento histrico, se tomado como metfora de sua poca

de produo e no como narrativa de 1914 falando-nos da importncia basilar da Unio

como mtodo de superao de sectarismos artificiais e patriotismos covardes, que tm como

objetivo apenas projetos de poder pessoal s custas de vidas. A UE como opo barbrie da

continuidade das guerras europias fratricidas.

Acima disso tudo, Joyeux um enftico e poderoso libelo pacifista, que ressalta o

incrvel poder subversivo da paz e a repugnncia da guerra e seus perpetradores. A paz brota

naturalmente de uma camaradagem em armas e logo se torna uma cumplicidade, um

movimento com potencial de encerrar ali, no front, os sonhos de poder associados guerra e

dissociados de sua crua realidade disforme.

Nesse sentido, curioso notar a ressalva interpretativa de Stephen Holden, crtico de

cinema americano, em sua resenha do filme ao jornal The New York Times.Nela, Holden aceita

a validez da denncia da estupidez fratricida da guerra mas lembra que hoje as guerras sodiferentes:

Se os sentimentos do filme a respeito da loucura da guerra so impecavelmente altrustas,por que ento Joyeux Nol soa como farsa e vago como um bonito carto de natal desejando

paz na terra? Talvez porque as guerras sendo lutadas no sculo XXI envolvam diferenas dereligies, ideologias e economias, que so mais profundas e resistentes a solues que as

disputas territoriais e as brigas de poder europias que precipitaram a I Guerra Mundial.9

Em outras palavras, reconhecido o horror da guerra mas se excetuando os novos

contextos de conflitos, como a Guerra ao Terror na qual os EUA encontram-se envolvidos. A

9 HOLDEN, Stephen.Joyeux Nol. In The New York Times, edio de 3 de maro de 2006. Disponvel naInternet no endereo http://movies.nytimes.com/2006/03/03/movies/03noel.html em junho de 2008.

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guerra dos outros tola no entanto, a nossa guerra inevitvel e resultante de

incompatibilidades mais viscerais.

No entanto, na supresso do horror da guerra que o filme se sustenta a cena do incio

do cessar-fogo, corao temtico do filme, realmente tocante, levada pela trilha sonora

magistral de Philippe Rombi. Iniciando-se com as gaitas de fole escocesas e tomando fora com

o bartono alemo, logo a troca lrica se torna uma tmida confraternizao, que grita que

mesmo no horror da guerra de trincheiras ainda existe espao para a humanidade. O encontro

das tropas inimigas, onde pela primeira vez possvel ver o rosto do inimigo, numa guerra

ditada pela distncia dos combatentes, tocante e surpreendente eles so como ns. Citando

Shylock, da imortal pea The Merchant of Venice de Shakespeare: Alimentados da mesma

comida / feridos pelas mesmas armas / sujeitos s mesmas doenas / curados pelos mesmos

remdios / aquecido e gelado pelo mesmo inverno e vero10.

A mensagem de unio dos trs povos beligerantes, promovendo a paz,

reafirmada no cartaz promocional do filme, onde os tenentes das trs

foras caminham, lado a lado, juntos. A paz assegurada pelas potncias

caminhando no mais em competies territoriais, mas unidas em direo

ao futuro. Com uma Alemanha ainda sem fitar o horizonte e no

contrap, usando o p direito mas, afinal, a unio ainda teria de

aguardar uma Alemanha sem a Direita tambm a fitar no horizonte.

Trilha Sonora

Composta por Philippe Rombi, professor da Ecole Normale Suprieure de Musique de

Paris, a trilha sonora de Joyeux Noltem uma importncia singular, que deve ser tratada em

profundidade numa anlise do filme. a partir da msica, canes de natal tpicas de cada pas

(como a alem Stille Nachte a inglesaAdestes Fidles), que as tropas comeam a se comunicar

e se integrar. atravs da universalidade das msicas de natal, ainda que cantadas em suasverses nacionais, que nasce a trgua natalina.

Isso j nos fala muito sobre a generalidade humana acima do conflito a identidade que

nos une acima de diferenas locais. no eco de conhecidas msica de natal que os soldados

reconhecem o inimigo como pertencente mesma humanidade, com os mesmos valores. pela

msica que o universal harmonioso se impe ao nacional em conflito.

Philippe Rombi, comenta que

10 SHAKESPEARE, William. The Merchant of Venice. Londres: Penguin Books, 1994. Ato III, cena 1.

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a msica tem um papel muito importante no filme de Christian Carion. Escrev a partituraouvindo Christian me contar a histria real dos soldados alemes, escoceses e franceses

durante a noite de natal de 1914. Traduz musicalmente essa proposio11.

A trilha escolhida por Rombi composta de msicas tradicionais, natalinas e

tipicamente nacionais, o que auxilia a caracterizao das nacionalidades apresentadas, diferindo

musicalmente as tropas de nacionalidades diferentes. Mais ainda, os temas de natal compem o

esprito de conciliao, que o tema central do filme.

Mas na msica-tema que a fraternidade humana superando uma feroz guerra sem

sentido ou pessoalidade expressa de melhor forma. OHino das Fraternizaes (LHymne des

Fraterniss no original francs) alcana um lirismo que ajuda a compor as cenas mais

inspiradas e emocionantes do filme. Sobre a msica-tema, Rombi diz:

Meu tema principal, LHymne des Fraterniss, simboliza a confraternizao, a paz mas

tambm a saudade do pas que assola todos os soldados, tanto alemes, franceses ou

escoceses, que sonham em um dia voltar para casa.12

O filme pode ser encarado como um relato do poder da msica, sua universalidade e seu

poder de congregao humana. com o tocar das gaitas de fole escocesas que o bartono

alemo comea a cantar e da as canes se misturam, assim como os instrumentos e, de

sbito, todos aliados e inimigos esto unidos no pela msica, mas por sua prpria

humanidade, suas surpreendentes semelhanas.

Afinal, voltando a Shylock, no somos iguais? E toda diferena no mera ideologia,

meio de controle de covardes para conseguir mais poder atravs da morte de seus jovens?

Joyeux relata tudo isso. Mas acima de tudo mostra que mesmo no Inferno, pode nascer

uma rosa. Efmera como no poderia deixar de ser, mas que justifica continuarmos acreditando

na capacidade humana para o entendimento, para a paz.

Ficha Tcnica do Filme

Feliz Natal (Joyeux Nol)

Diretor Christian Carion

Pas de Origem Frana / Alemanha / Gr-Bretanha / Blgica / RomniaAno 2005Roteirista Christian Carion

Cinematografia Walther van den Ende

Produo Christophe Rossignon

Msica Philippe Rombi

Edio Judith Rivire Kawa / Andrea Sedlckov

Direo de Arte Vraciu Eduard Daniel

Atores Principais Diane Krger / Daniel Brhl / Benno FrmannDurao 116 min.

11 SIMONS, Roger.Joyeux Nol. Cinemaniacs. Disponvel na Internet no endereo

http://www.cinemaniacs.be/musique.php?id=9100 em junho de 2008.12 SIMONS, Roger.Joyeux Nol. Cinemaniacs. Disponvel na Internet no endereohttp://www.cinemaniacs.be/musique.php?id=9100 em junho de 2008.

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Resumo No natal de 1914, na Grande Guerra, as tropas francesas, escocesas ealems deixam o horror da guerra de lado e espontaneamente celebram

juntas o natal para a fria de seus superiores.

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