Juan José Saer, O Visível

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    JUAN JOS SAER

    O VISVEL

    TRADUO DE SUSANA GUERRA

    APRESENTAO DE EDUARDO PELLEJERO

    JUAN JOS SAER: A LITERATURA COMO ANTROPOLOGIA ESPECULATIVA

    EDUARDO PELLEJERO

    Juan Jos Saer sempre ser para mim aquele que nos recordou que a fico no constitui a recusa de

    toda a tica da verdade, ma s apenas a procura de u ma menos rudimentar. A lucidez e o compromisso

    com que encarou essa tarefa o colocam incontestavelmente entre os escritores mais importantes do

    sculo XX. A sua leitura nos convida a um recomeo perptuo, fiel opacidade do real, avesso

    atitude ingnua que pretende saber de antemo como est constitudo o real e quais so as formaseficazes da sua representao.

    No falo apenas das linhas programticas de uma literatura de tese. A obra de Saer , pelo

    contrrio, de uma sensualidade perturbadora, que o obsessivo trabalho sobre a linguagem enrarece

    at esvazi-la da matria perecedora, de qualquer trao individual, de todo o atributo humano.

    Escrever era um tateio no escuro para ele, uma imerso sem reservas nas tu rbulncias da subjetividade,

    que no pressupunha imagens de um objeto ou um fim a alcanar. Como nos sonhos, a sua escrita

    nos revela uma realidade familiar sob as formas de uma inquietante estranheza. Costumava dizer

    que o ofcio da narrativa devia ter lugar intemprie, e a verdade que os seus textos colocam

    entre parntese os artifcios que habitualmente utilizamos para dar um sentido experincia e uma

    perspectiva histria, desvelando aquilo que as coisas so intimamente.

    O texto que apresentamos aqui u m dos ltimos contos escritos por Saer coloca em jogo,

    com rigor e sobriedade insuperveis, essa espcie de fenomenologia potica. O visvel e o invisvel se

    entrelaam na sua tra ma numa reflexo arrepiante sobre a inumanidade do universo e a precariedade

    da existncia, deixando entrever, como dizia Nietzsche, que qui vivamos suspendidos pelos nossos

    sonhos sobre o lombo de um tigre.

    O VISVEL1

    JUAN JOS SAER

    TRADUO DE SUSANA GUERRA

    A trinta quilmetros da central, uma semana, quinze dias depois do incndio e da exploso do rea

    era proibido estar e at passar por l quando mais no fosse rapidamente, mas pouco a pouc

    vigilncia foi abranda ndo e um ms depois ns, os velhos, demo-nos conta e o comentva

    rindo que aos jovens o que os tin ha feito empreender a fuga no era tanto o medo como a espera

    da qual ns, h j algum tempo, estamos resguardados. Assim, sem nos pormos de acordo, seguicada um por sua conta o mesmo raciocnio, um por um, fomos voltando a instalar-nos nes

    povoaes onde tnhamos nascido, essas povoaes pelas quais tnhamos visto passar os czare

    guerra civil, a revoluo, as purgas, as invases, a tirania, a morte, mas tambm os casamentos

    partos, a infncia, as festas, os comboios, as colheitas.

    Mais tarde, os jovens tambm comearam a regressar, mas ns os velhos fomos os primei

    e ainda que tal como antes (ainda que por l, entre trinta e zero quilmetros do sarcfago que co

    o reator, por muitssimo tempo ou talvez nunca mais nada voltar a ser como antes) respirvamo

    mesmo ar e caminhvamos sobre a mesma terra, entre ns e eles existia uma diferena de peso:

    eles lhes custava acreditar na realidade mortfera do invisvel que a exploso havia desencadead

    ns essa realidade era-nos indiferente. J nos sabamos condenados muito antes da exploso, a c

    e a longo prazo. Assim, como havamos evacuado a povoao contra nossa vontade, passados ape

    quinze dias regressmos. Depois de andar tantos anos a sobreviver, j estvamos habituados a se

    como, do escuro, a ponta do invisvel perfurava o tempo e as coisas.

    Dizem que aos bombeiros que foram nas primeiras horas combater o incndio, os pou

    minutos em que cruzaram pelo ar cheio at corromper do invisvel bastaram para os desintegra

    aos que estiveram a cinquenta metros, poucas horas depois no lhes ficava, nem por dentro nem

    1[N.T.] Juan Jos S aer. Lo visible. In: Juan Jos Saer. Cuentos Completos. Barcelona: El Aleph, 2012.

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    fora, nenhum atributo humano. Mas a trinta qu ilmetros, a ao do invisvel assemelha-se ao desgnio

    habitual do exterior, que d e retira, edifica e derruba, e com a mesma obstinao imperturbvel

    coalha as formas repetindo-as at nusea com o nico fim de, um pouco mais tarde, desfigur-lase desagreg-las, moendo-as to fino que acabam sendo outra vez irreconhecveis, misturadas ao p

    cinzento e annimo do tempo abolido.

    Quando apenas ns, os velhos, regressmos, foram dias verdadeiramente felizes. Conhecamo-

    nos todos desde a infncia; tnhamos trabalhado nas mesmas fbricas, nos mesmos campos,

    combatido nas mesmas trincheiras, da nado e bebido nas mesmas festas, e muitos membros da nossa

    gerao, em tempo de guerra por exemplo, haviam partilhado at a mesma morte e ainda o mesmo

    tmulo apressado e annimo. E pela primeira vez desde a nossa infncia, j no havia czares, no

    havia partido, no hav ia destacamento militar, nem superiores, nem espies, nem chefes, nem oraes

    sinceras, nem palavras de ordem paternais, nem comissrios polticos, nem instrutores militares ou

    civis, nem monges nem popes: tnhamos atravessado a linha para a lm da qual reinava, omnipresente

    e mortal, o inv isvel, internando-nos numa rea que ao que parecia nenhuma hierarquia nem nenhum

    discurso eram vlidos, e essa situao indita nos conferia uma liberdade incomparvel.

    Tudo nos pertencia, casas, hortas, jardins, mercearias e tabernas. Como tnhamos conhecidono poucas vezes a escassez e tambm a fome, no ignorvamos o va lor da abundncia, e pela primeira

    vez soubemos o que era gozar desta. Bastava agachar-nos para recolher a salada, os tomates, os morangos

    que nem sequer tnhamos plantado os que o tinham feito estavam longe, na cidade, na casa de

    algum parente, no hospital, no cemitrio, talvez, agora. Tudo isso era secundrio porque, para dizer a

    verdade, e ainda que durante incontveis geraes os seus antepassados tivessem vivido na regio, eles

    nunca mais regressariam. Nas tabernas, as garrafas de vodca, de vinho, e at de champanhe na casa

    de alguma personagem importante, se alinhavam, oferecidas, esperando-nos. As vacas davam mais

    leite do que podamos tomar, as galinhas mais ovos do que requeria qualquer omelete, e os frangos, os

    patos, os porcos e os cordeiros que sacrificvamos, antecipando-nos aos soldados que tinham ordem de

    mat-los e de enterr-los ou queim-los, e que pnhamos a assar nos jardins (no h que esquecer que

    estvamos na primavera), mais abundantes que em qualquer festa qual, na nossa v ida j demasiado

    longa, tivssemos assistido. De maneira que os ces e os gatos que se tinham dispersado pelo campo,

    porque tambm a eles os soldados deviam mat-los onde quer que os encontrassem, regressaram coma confiana restaurada, e se nos primeiros dias estavam ainda um pouco ariscos, quase em seguida se

    apaziguaram. Assim nos encontrava, nesse perodo feliz, o fim do d ia; reunidos em redor de uma mesa

    bem posta, brindando e conversando, cantando as mesmas canes que contavam velhas histrias

    acontecidas h sculos na regio, falando de vivos e de mortos, e todos esses animais que se tinham

    aliado a ns, parecendo-se um pouco conosco no facto de que, por ignor-la, eram to indiferentes

    morte como tnhamos chegado a s-lo ns mesmos, resignados de sab-la to inevitvel e prxima.

    No tnhamos sido na nossa juventude apenas operrios, camponeses, soldados. Alguns,

    nossos momentos livres, tocvamos violino, escrevamos versos ou memrias, montvamos u

    ou outra obrinha de teatro. Eu, por exemplo, nos anos vinte, tinha ido um tempo escola de bartes de Vitebsk, e ainda que o meu talento seja muito inferior minha paixo pela pintura, de

    ento, quando me dava a vontade, desenhava alguma coisa ou distribua um pouco de tinta so

    uma tela. O meu professor tinha nascido no muito longe da regio, e tinha brincado em criana

    lugares parecidos com os meus. Era capaz de observar as linhas ideais e as correspondncias secre

    do visvel, at esvazi-lo da matria perecedora, a que hoje atacada e corrompida pelo invisv

    a pintar a sua forma inaltervel e eterna. Quando procurava os contrastes, eram sempre os m

    despojados e subtis, negro sobre negro, cinzento sobre cinzento, branco sobre branco. Ao regressa

    formas e s figuras, depois da sua passagem pelo despojamento extremo, as suas personagens tinh

    perdido qualquer trao individual e no poucos dos seus atributos humanos. Os que o repreend

    por pintar essas formas incompletas camponeses sem cara, sem braos, criaturas vagam

    familiares e ao mesmo tempo to estranhas ignoravam o elemento proftico que as justific

    porque poucas dcadas mais tarde nos mesmos jardins da sua infncia, por causa da propaga

    do invisvel, comeariam a proliferar seres sem cara, sem braos, formas caprichosas e vivas

    quais uma espcie nova e diferente da nossa parecia estar a encarnar-se. Talvez atravs dessas for

    genricas, humanas e inumanas ao mesmo tempo, tratava de imaginar tambm o que o nosso sc

    estava a fazer das criatur as que se agitavam nele e do lugar no qual haviam surgido e as tinha abrig

    Quando os que mandavam queriam estender o trabalho, o meu professor reivindicava a pregui

    onde outros pretendiam impor a qualquer custo o contedo edificante, ele explicava o esquema i

    do universo, celebrando a lio inesgotvel da forma e do seu cintilar colorido. Da sua proximid

    rigorosa e mgica ficou-me o gosto exaltante do visvel.

    Nos meus momentos de cio, ento, aqueles que me deixaram as interrupes causa

    pelo trabalho, a guerra, o exlio, a minha vida familiar tambm, a minha mulher, os meus fil

    os meus amigos e inimigos, o estudo do visvel, as fases diferentes de um mesmo objeto ou de

    mesmo lugar em diferentes horas do dia ou em diferentes estaes do ano, foram a minha maneir

    procurar um sentido no mundo. Esse sentido simplesmente a justaposio, na memria, dos estasucessivos de uma presena qualquer, interna ou exterior, passagem dos minutos, das horas,

    meses ou dos anos. Tomar conscincia dessa sucesso o que d sentido ao mundo, no o sentido

    preferiria o nosso desejo, mas o das coisas como elas so. Nenhum objeto consta ntemente idn

    a si prprio. Um tomate, por exemplo, nunca nica e verdadeiramente vermelho. Se acreditam

    que vermelho e nica e verdadeiramente vermelho, esse preconceito impede-nos de entende

    seus estados sucessivos e por isso, ao cegar-nos para aquilo que as coisas so intimamente, cega-

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    tambm para entender o sentido da nossa existncia. O mesmo tomate muda muitssimo com a

    passagem dos dias desde que aparece na planta at que arrancado e depositado num prato, mas no

    mais do que muda nesse prato durante a s horas do dia ou em uns poucos de segundos, cada vez que omeu olhar se fixa nele e me permite tomar conscincia da sua presena. Na min ha memria continua

    a mudar atravs de infinitas e imprevistas transformaes. Tanto como no exterior, muda de forma,

    de cor, de estado, e por ltimo de sentido. Nos meus momentos livres, com os meus modestos meios

    de expresso, dedicava-me a pintar a mesma coisa muitas vezes um tomate, uma cadeira, um

    jardim ou uma rvore, uma cara, uma colina, s empre os mesmos se possvel, a mesma cadeira, a

    mesma colina, a mesma cara (a minha) durante cinquenta anos. Saber que as coisas so e no so ao

    mesmo tempo: isso o que pe de manifesto o sentido do mundo. Uma coisa qualquer, mas tambm

    a sua imagem pintada, ainda que paream fixas e em repouso, so apesar dessa firmeza aparente, o

    teatro discreto onde se representa a cada instante uma cena vertiginosa.

    A exploso, ativando o inv isvel, acabou com essa descri o benvola que, se no fim de contas

    terminava tambm por dissociar-nos, graas lentido com que nos derrua, nos permitia certa

    iluso de permanncia. A exploso veio expulsar-nos da nossa ptria comum, que o visvel. Apenas

    ns, os velhos, por causa do pouco tempo que nos restava, podamos desafiar o invisvel, j que os

    seus estragos se confundiam com os termos habituais que foram combinados conosco. Quando se

    ignora a esperana, a adversidade, por obra desse desdm forado, fica de imediato abolida. Ento

    ao comearmos, um a um, a desabar, a evidncia desse final, inscrito h j muito tempo nos nossos

    planos, no nos permitia esbanjar as poucas foras que nos ficavam com o gasto suprfluo da

    prudncia. O certo que durante certo tempo, nesse territrio que todos haviam abandonado, pela

    primeira vez na nossa longa vida o mundo esteve feito medida exata dos nossos desejos. Foi um

    perodo breve de prazer e de calma, durante o qual sem deveres, sermes ou ameaas, gozvamos

    do mundo adverso e precrio. verdade que as coisas, durante essa primavera a exploso tinha

    sido em abril eram, pelo seu t amanho, a sua cor ou a sua forma, um pouco diferentes do que

    sempre haviam sido, como se por causa da exploso um novo mundo, colateral ao primeiro, mas

    que acabaria suplantando-o por completo, tivesse comeado a proliferar. Pouco tempo depois,

    tambm ns formvamos parte dele, porque o invisvel nos tinha alcanado, infiltrando-se nonosso corpo, e quando o exrcito veio para evacuar-nos, os soldados, que contudo atuavam com

    firmeza no isenta de compaixo, evitavam dentro do possvel o nosso contato, e mesmo a nossa

    proximidade, porque ramos cidados desse mundo novo que eles acreditavam circunscrito a um

    raio determinado mas que na verdade, graas a essa exploso providencial, tinha comeado uma

    expanso talvez j infinita. Por outro lado, se fomos os pioneiros desse mundo desconhecido, as

    multides seguiram-nos, porque pouco tempo depois as leis que anatematizavam o espao proibido

    abrandaram, e a circulao permanente entre esse espao e o de fora foi-se tornando a cada

    mais banal. J no se sabe quem est dentro ou fora dessa germinao formigante.

    Os militares e os homens de cincia tratavam-nos como objetos ou criaturas de essncuso desconhecido, isolando-nos em quartos vazios e brancos depois de queimar a nossa roupa

    resto dos nossos pertences, e de fazer-nos tomar vrios duches dos quais saa uma chuva enrg

    em cuja composio era evidente que entravam, para alm da gua, alguns aditivos que me t

    sido impossvel identificar. Mas por acaso a gua que conhecemos apenas gua, sempre idnti

    si mesma, sempre da mesma cor, da mesma temperatura, composta pelos mesmos elementos? T

    o que chamamos mundo, a sua totalidade ou cada um dos objetos que o compem so, j o sabem

    um e mltiplos ao mesmo tempo, como a luz , por exemplo que, presente at nos mais remotos con

    do universo, brilhante ou transparente, invisvel ou dourada, branca ou multicolorida.

    Custa-me cada vez mais levantar-me da cama, mas creio que esse desnimo se deve me

    a uma suposta enfermidade que obrigao que se me imps de no sair jamais do meu qu

    branco, no qual apenas h uma cama metlica, uma cadeira metlica e uma mesinha metlica. En

    fico na cama deitado de costas, olhando o teto branco. Uma vez por semana trocam os leni

    roupa branca, e levam para queimar. Creio que faro o mesmo comigo: muito em breve, esperme ntimas, radicais, inconcebveis transformaes. Por agora, o visvel, concentrando-se no

    branco, permite-me entrever, nos diferentes estados do remoinho vivaz que ferve debaixo

    superfcie impassvel, da instabilidade essencial do universo, e das terrveis dores que me prediz

    certos vislumbres de compaixo no olhar de alguma enfermeira, no so mais do que um inst

    passageiro nas mudanas que se avizinham. Deixo a minha ptria viva e colorida por uma escuri

    talvez menos enganosa. mais que provvel que, privado de exaltao mas tambm de pena, vist

    algum impossvel exterior, o mundo seja neutro e branco.