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MANA 20(2): 307-330, 2014 BRIGAS DE FAMÍLIA E A DINÂMICA DO PARENTESCO ENTRE JUDEUS DO SURINAME Thiago Niemeyer Na varanda de sua casa em Paramaribo, um rabino sul-africano que reside no Suriname conversava comigo sobre a casualidade com a qual os conflitos eram tratados na comunidade judaica local. Para ele, isso implicava sérios riscos à existência dos judeus no país. O rabino, que acabara de chegar de San Antonio, no Texas, onde comandava uma comunidade ortodoxa, não via problema algum em que as pessoas brigassem; nos Estados Unidos elas o faziam tanto ou mais do que ali. O que o preocupava era a manutenção de certa frequência à sinagoga, que garantiria que a comunidade “funciona- ria”. Mesmo que determinadas pessoas brigassem ou ficassem cansadas de frequentar os serviços, deveria ser possível manter o templo sempre cheio, promovendo atividades “interessantes” para garantir uma “boa frequência”. Comecei por esse desvio um tanto anedótico porque meu ponto é precisa- mente investigar o quanto as brigas de família afetam a frequência aos serviços religiosos no país, geram “brigas” e reafirmam ou desautorizam determinadas parentelas. “Quando os judeus não brigam com os outros, brigam uns com os outros” — foi o que um senhor, com quem tinha mais contato, falou acerca da retórica de união aventada nas falas de alguns dos judeus da “comunidade”. Frases como “somos todos uma comunidade” e “todos aqui buscam se ajudar”, para ele, teriam valor apenas na medida em que “deveriam ser seguidas”. Fa- talmente, para meu interlocutor, os judeus irão brigar, pois é assim há séculos no país e, por sua experiência vivendo na Holanda, “em todo lugar”. Dessa maneira, pretendo discutir aqui a criação de afinidades tomando como pista principal “brigas” de família (mas também outros processos, como o compartilhamento de determinados espaços ou nomes). Baseado no material obtido ao longo de aproximadamente dez meses de trabalho de campo com as famílias judaicas do Suriname, procuro analisar a maneira como as brigas relacionam pessoas e quais são os seus efeitos concretos. Parece produtivo investigar também o vocabulário utilizado para descrever essas situações e a maneira como esses conflitos são entendidos pelos judeus do país.

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  • MANA 20(2): 307-330, 2014

    BRIGAS DE FAMLIA E A DINMICA DO PARENTESCO ENTRE JUDEUS DO SURINAME

    Thiago Niemeyer

    Na varanda de sua casa em Paramaribo, um rabino sul-africano que reside no Suriname conversava comigo sobre a casualidade com a qual os conflitos eram tratados na comunidade judaica local. Para ele, isso implicava srios riscos existncia dos judeus no pas. O rabino, que acabara de chegar de San Antonio, no Texas, onde comandava uma comunidade ortodoxa, no via problema algum em que as pessoas brigassem; nos Estados Unidos elas o faziam tanto ou mais do que ali. O que o preocupava era a manuteno de certa frequncia sinagoga, que garantiria que a comunidade funciona-ria. Mesmo que determinadas pessoas brigassem ou ficassem cansadas de frequentar os servios, deveria ser possvel manter o templo sempre cheio, promovendo atividades interessantes para garantir uma boa frequncia.

    Comecei por esse desvio um tanto anedtico porque meu ponto precisa-mente investigar o quanto as brigas de famlia afetam a frequncia aos servios religiosos no pas, geram brigas e reafirmam ou desautorizam determinadas parentelas. Quando os judeus no brigam com os outros, brigam uns com os outros foi o que um senhor, com quem tinha mais contato, falou acerca da retrica de unio aventada nas falas de alguns dos judeus da comunidade. Frases como somos todos uma comunidade e todos aqui buscam se ajudar, para ele, teriam valor apenas na medida em que deveriam ser seguidas. Fa-talmente, para meu interlocutor, os judeus iro brigar, pois assim h sculos no pas e, por sua experincia vivendo na Holanda, em todo lugar.

    Dessa maneira, pretendo discutir aqui a criao de afinidades tomando como pista principal brigas de famlia (mas tambm outros processos, como o compartilhamento de determinados espaos ou nomes). Baseado no material obtido ao longo de aproximadamente dez meses de trabalho de campo com as famlias judaicas do Suriname, procuro analisar a maneira como as brigas relacionam pessoas e quais so os seus efeitos concretos. Parece produtivo investigar tambm o vocabulrio utilizado para descrever essas situaes e a maneira como esses conflitos so entendidos pelos judeus do pas.

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    A histria que me foi contada durante o perodo em que estive no pas a de que os judeus foram o primeiro grupo no autctone a colonizar o Suriname. Sua chegada data do sculo XVII, quando, expulsos do Recife, um grupo de ju-deus, liderados por David Nassy, migrou para Caiena, na atual Guiana Francesa, depois para Barbados e, finalmente, se estabeleceu em Joden savanne1 (literal-mente savana judaica), territrio autnomo concedido pelos ento governantes ingleses. L, distantes da perseguio inquisitorial, alguns desses judeus, de origem sefardita2 portuguesa e, em menor escala, espanhola, se converteriam em plantocratas e senhores de escravos. Foi durante o sculo XVIII tambm que comearam a chegar judeus de origem asquenazita3 alto-germnica, falantes do idiche, que fundaram sua prpria comunidade, separada e de relao diversas vezes conflituosa da comunidade sefardita.

    Os judeus do pas se consideram remanescentes desses primeiros co-lonos ou descendentes de famlias asquenazitas chegadas nos sculos seguintes e congregam hoje na sinagoga de Neve Shalom, no centro histrico de Paramaribo. Atualmente, a populao judaica no pas estimada entre 200 e 300 habitantes e, em 2004, as duas comunidades se uniram sob a rubrica de Surinaamse Joodse Gemeente (Comunidade Judaica Surina-mesa), de denominao oficialmente liberal.4 A antiga sinagoga portuguesa foi alugada e hoje abriga uma lan house e loja de computadores, sendo o aluguel utilizado na manuteno do outro templo. Rivalidades permanecem, contudo: egressos da comunidade portuguesa de tendncias mais liberais e da alto-germnica, mais ortodoxa, divergem constantemente em torno de suas ideias sobre a judaicidade (jodendom) dos sujeitos e dos procedimentos litrgicos. Durante os servios do shabbat5 h a regra tcita, que opera como soluo intermediria, de que metade dos assentos mista maneira liberal e a outra metade exclusivamente masculina ao modo ortodoxo.

    Quando falo em comunidade judaica (joodse gemeente), utilizo o termo pelo qual os prprios judeus se denominam. No tenho a pretenso de delimitar um grupo mais ou menos fechado definido por esse ou aquele trao tnico e/ou identitrio comum, no sentido de limitar o escopo de minha pesquisa. Ao contrrio, procuro ser o mais fiel possvel forma pela qual os judeus do pas tendem a representar a si prprios e a seus pares, rastreando as referncias e os modos de fabricao da gemeente. Obviamente, a gemeente pode ser mais ou menos inclusiva, de acordo com uma lgica de situao que no pode ser formulada a priori. Sendo assim, nem sempre possvel afirmar com segurana quem parte da gemeente e em que situao, j que seus limites esto a todo momento sendo redefinidos, de acordo com as formas bastante dinmicas de negociar o que chamo (utilizando uma traduo inevitavelmente empobre-cedora do termo Jewishness ou Jodendom) judaicidade.

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    H modos diversos de compreender o que seja uma comunidade, quando os interlocutores a mencionam como o grupo do qual fazem parte. possvel pensar nela como uma ordem dos fenmenos da vida social: o indivduo, enquanto unidade, pressuporia a participao em uma plura-lidade. A pessoa como individual, necessariamente parte de um grupo mais amplo, sempre menos que o todo (Strathern 1994:209). Noes como indivduo e sociedade no sero utilizadas ao longo do trabalho e penso que, para tal, sejam necessrias algumas consideraes tericas.

    Outras figuras de pluralidade, como identidade, tambm sero evi-tadas, em busca de outras noes possivelmente produtivas no dilogo com o material etnogrfico. A prpria natureza da digresso a seguir justifica a possvel falta de profundidade ou a carncia de consideraes prprias: reflexes originais e ensaios bibliogrficos de muito maior flego foram produzidos nas duas ltimas dcadas, todos buscando rediscutir a dicotomia indivduo/sociedade como nica possibilidade de entendimento dos coleti-vos humanos. Em The fractal person, Roy Wagner chama a ateno para a natureza ideal implicada na distribuio desses conceitos:

    A oposio entre indivduo e sociedade, produto da jurisprudncia e da ideologia

    poltica ocidentais, no s coincide com a hegemonia do pensamento social,

    como idntica a ele. Ela se baseia na noo necessariamente ideal, e pratica-

    mente irrealizvel, do conceito de social, bem como na noo necessariamente

    substantiva, fsica e material da pessoa como objeto (Wagner 1991:84).

    Se no entendermos comunidade ou famlia como subsistema da sociedade (cf. Strathern 1994), possvel descrev-las prestando ateno ao modo como se tornam operacionalizadas como artefatos manipulveis e utilizveis nas buscas das pessoas por seus interesses e em sua construo de relacionamentos (Strathern 1996). A comunidade feita de parentesco e ancestralidade. Quando perguntamos a um judeu do que ela se trata, a chance de que a resposta seja um grupo de famlias bastante grande. Pode-se esperar outras explicaes, mas nunca ouvi uma que exclusse a linguagem da famlia e do parentesco.

    As brigas de famlia

    Voltando s brigas de famlia, justamente por seu potencial em relacionar pessoas que chamo a ateno para as reflexes de Carsten (2004) em After kinship acerca da noo de relacionalidade como alternativa s reflexes

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    clssicas sobre parentesco. Essa relacionalidade (ou relatedness) implica um enfoque nas relaes que nos obriga a entender o que ser parente para alm das categorias preestabelecidas do parentesco ocidental, ampla-mente baseado em ideias de consanguinidade. Determinados espaos, como a casa, nos permitiriam analisar uma dimenso processual do parentesco, na qual este constantemente produzido.6 Em sua experincia etnogrfica com comunidades de pescadores malaios, a coabitao implicava a inser-o dos sujeitos em um ambiente de trocas que relaciona e cria parentes, permitindo que se observasse, no s o domnio das formas, mas tambm um parentesco feito.

    Sua reflexo acerca do espao da casa como criadora de afinidades tributria da noo de Lvi-Strauss de socit maison, como a prpria Carsten destaca na coletnea que editou com Stephen Hugh-Jones em 1995, intitulada About the house: Lvi-Strauss and beyond. Sua viso, contudo, procura explorar de maneira crtica o rendimento da noo de Lvi-Strauss afora o das sociedades para as quais ele a pensou. Nessas sociedades, para Lvi-Strauss, uma casa uma pessoa moral que possui uma propriedade feita de riqueza material e imaterial que se perpetua atravs de transmisso de seu nome por uma linha real ou imaginria, considerada legtima en-quanto essa continuidade possa se expressar na linguagem do parentesco ou da afinidade e, mais comumente, ambos (Lvi-Strauss 1982:174). Trata-se de reconhecer, dessa forma, a natureza processual tanto da construo da casa quanto das relaes de parentesco (Carsten 2004:44).

    O termo briga (vechten/familievette) empregado por meus interlo-cutores para descrever um ambiente de hostilidade entre pessoas ou grupos de pessoas. O uso do termo bastante amplo, e as hostilidades podem ser abertas ou no. As duas comunidades, assim, vivem brigando desde que se uniram, e j brigavam antes. Um imbrglio judicial que presenciei no campo sobre a venda de um terreno, por exemplo, ao envolver afastamento de grupos de pessoas, tambm uma briga. Nesse caso, entretanto, trata--se de hostilidades abertas, e no veladas.

    As brigas (vechten) podem envolver famlias (gezinnen) ou apenas as pessoas. O segundo caso menos grave e compreende a maior parte das brigas. comum destacar que essa ou aquela briga apenas uma questo pessoal, para sinalizar que no se trata de uma briga de famlia. Dadas as tenses latentes, qualquer briga pode se tornar uma briga de famlia, na opinio de interlocutores. A agresso em uma briga de famlia, embora normalmente seja mais grave do que nas brigas corriqueiras (que envolvem apenas as pessoas), no difere em princpio de uma agresso qualquer. Muitas vezes so a manifestao de uma tenso latente, e a

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    agresso, por menor que parea, apenas o estopim para a manifestao do descontentamento de um partido em relao ao outro. Esses partidos so, quase invariavelmente, divididos em famlias.

    possvel que uma pessoa da famlia A,7 que est em uma briga com a famlia B, tome partido da segunda. As histrias que ouvi a esse respeito, no entanto, sempre relacionam a pessoa que est alinhada com outra famlia a uma ancestralidade diferente: pode-se, para efeito da briga, dizer que ela estaria agindo como algum da famlia C (a de sua me, de sua av etc.), ou que, para ela, essa apenas uma briga pessoal. comum listar os motivos prticos que levam algum a fazer isso perda de dinheiro, propriedades, questes relativas a negcios etc. ou mesmo argumentaes que apelam racionalidade daquele que briga: ele no levou isso como algo fami-liar, ele preferiu agir com a razo etc. Enfatiza-se, em geral, que a pessoa no estaria colocando a unidade familiar em risco, e esta retrica, por mais contestvel que seja, s foi refutada, em minha experincia, no contato com os jovens. A ambos os lados envolvidos na briga parece interessar a ma-nuteno dessa retrica: a famlia do dissidente busca ressaltar a unio de sua famlia e a que recebe seu apoio evita acus-lo de estar indo contra a sua famlia, o que implicaria, em ltima instncia, trair seu sangue.

    sempre possvel, contudo, que algum resolva alinhar-se volunta-riamente (s) outra(s) contra sua prpria famlia. Conversando com meus interlocutores sobre essa possibilidade, ouvi falar de casos em que isso ocor-reu. importante notar que brigas na famlia, as brigas internas, so comuns e, se so vistas como ameaa unidade familiar, no so entendidas como uma traio. No caso de unir-se outra famlia contra a sua, alguns informantes sugeriram que, se acontecesse com eles, o membro do grupo que fizesse isso no seria judeu ou da famlia. Ser judeu no Suriname , sobretudo, enfatizar certa ancestralidade sobre outra, e o expediente aventado por meus interlocutores seria o de considerar que algum optou por destacar outra ancestralidade. Um exemplo concreto me foi dado, em forma de smile sociolgico, utilizando pessoas com as quais eu convivia:

    [...] se X [membro da famlia A] resolvesse ficar do lado da famlia B em uma

    briga que no tem nada a ver com ele, falando mal da sua famlia, dizendo que

    ela no presta, porque X indiano, e no judeu, entendeu? Ele no da famlia

    de verdade. Por que ele iria brigar com a sua famlia s para falar mal dela?

    No se admite, dessa forma, que algum possa ir contra sua famlia sem interesses concretos. Caso isso acontea, o expediente utilizado no entendimento de uma situao como esta destacar que a pessoa optou

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    por uma ancestralidade no judaica: no parece haver judeus que no te-nham descendentes no judeus e, caso haja, pode-se enfatizar que a pessoa em questo optou por tomar o lado de outra famlia que no aquela com a qual ele se identifica. Este caso, no entanto, foi visto como absolutamente distante e hipottico quando levantado junto a um interlocutor: ele no conseguiu imaginar algum 100% judeu e, ainda por cima, disposto a trair o seu sangue. Sua resposta foi: no sei, acho que no... faz sentido, mas impossvel, ou quase impossvel... mas no. Portanto, uma possibilidade estrutural de direito, mas no de fato.

    Esta situao ilustra a ao combinada entre possibilidade e escolha, constitutiva do que ser judeu no pas. Analogamente, os crioulos de Nova Orleans tambm optam por se identificar como crioulos quando, na grande maioria dos casos, como mostrou Dominguez (1986), poderiam optar por outras ascendncias:

    Crioulos de cor podem reconhecer muito mais as misturas do que os Crioulos

    brancos. Mas a realidade da herana mista tem as mesmas implicaes para

    ambos: autoidentificao como Crioulo implica um elemento de escolha de fi-

    liao a um grupo e no simplesmente o corolrio da ancestralidade. Algum

    escolhe ressaltar uma conexo com um ancestral em particular no lugar de

    outras possveis (Dominguez 1986:188).

    Brigar na famlia normal e, at certo ponto, aceitvel. Embora as famlias sejam entendidas como unidades harmnicas, existe o sentido de que inevitvel que dentro delas ocorram brigas. Pode-se querer mais poder (macht), entendido aqui como maior participao em processos decisrios ou reconhecimento como algum com direito de falar em nome da famlia, ou pode haver razes aventadas como prticas: heranas, dinheiro e brigas com parentes por afinidade, como sogras, cunhados etc.

    Deve-se evitar brigar na famlia, j que a briga coloca em jogo uma unidade entendida com primordialmente estvel. Quando se briga na fa-mlia, importante que a briga fique na famlia: uma famlia que briga vista como uma famlia menos harmoniosa do que as demais. Reconhe-cendo-se, no entanto, a inviabilidade de no brigar com familiares, vrios interlocutores enfatizaram a importncia da discrio e de um cdigo que pressupe que as brigas devam ser resolvidas sem envolver outras pessoas. O que acontece na famlia, fica na famlia.

    Ao mencionar este ditado, contudo, o interlocutor pode faz-lo de duas maneiras distintas: ao se entender famlia como ncleo familiar (pai, me, filhos), diz respeito a uma sabedoria mais amplamente difundida; ao se falar

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    em famlia no sentido de nome, refere-se a uma tica especfica utilizada para resolver problemas minimizando o estremecimento nas relaes entre os diversos membros da famlia e mantendo o nome intocado. H um trnsito constante entre os sentidos da palavra famlia, e esse lema, por exemplo, vale para os dois. As implicaes aventadas para o vazamento de uma briga de famlia, contudo, so diferentes quando se fala em ncleo fami-liar e na famlia como nome: no primeiro, trata-se de evitar que estranhos saibam de problemas que, apesar de toda famlia ter (como alcoolismo, dvidas, uma gravidez indesejada ou vcio em determinada droga), no diz respeito aos outros. No segundo o vazamento de uma briga na fa-mlia estaria em xeque a unio familiar, sua judaicidade, a capacidade de resolver seus prprios problemas etc. A natureza dos problemas, como procurei descrever, tende a ser diferente.

    Apesar do fato de os judeus brigarem ser tomado como um dado por grande parte dos meus interlocutores a despeito da retrica de unio invariavelmente acionada em um primeiro contato espera-se que eles saibam resolver seus conflitos. As brigas no devem colocar em jogo o futuro da comunidade e aquelas consideradas possivelmente daninhas neste sentido tendem a ser largamente reprovadas: preciso que se tenha uma razo para brigar. Essa necessidade explicada em funo de que, quando h uma razo para a briga, h espao para o estabelecimento de uma trgua. Em um plano ideal, a briga no deve envolver os outros (pessoas ou famlias), entendidos aqui como partes no implicadas. A desa-gregao pela qual a comunidade estaria passando derivaria, assim, da falta de unio, promovida por constantes brigas sem propsito. O fenmeno relativamente recente da emigrao, especialmente para a Holanda, tem o cansao de brigar diversas vezes aventado como uma de suas razes. O processo decisrio que envolve o abandono do pas passaria, dessa for-ma, pela falta de unio e a desintegrao da comunidade judaica, que fariam com que no valesse a pena para os que partiram a permanncia no pas; em geral, essas razes so elencadas ao lado de outras, como falta de empregos, instituies de estudo etc.

    Os judeus que deixaram o pas continuam sendo contados, em con-textos especficos, como membros da comunidade. Seu poder decisrio sempre colocado em xeque pelo fato de eles terem ido embora, mas membros respeitados podem ser procurados para conselhos, e a vida dos que vivem na antiga metrpole assunto cotidiano, j que eles fazem parte da famlia ou da comunidade. Em sua etnografia sobre sindicatos de trabalhadores rurais na zona da mata de Minas Gerais, John Comerford observa que:

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    [...] importante notar tambm que o fluxo para fora e eventualmente de

    volta para dentro das localidades acompanhado com cuidado e interesse

    pelo pblico da localidade, de modo que deslocar-se para fora da localidade

    no significa imediata ou necessariamente sair do campo de observao/in-

    formao/julgamento do crculo social ao qual pertence a famlia. As pessoas

    sabem para onde foram seus parentes e os parentes dos outros, avaliam seus

    sucessos, fracassos, dramas, retornos. [...] Dessas pessoas e famlias em lugares

    distantes cuja localizao a cada momento se acompanha com interesse, se fala

    com orgulho, desdm, tristeza, maldade (Comerford 2003:43-44).

    H tambm os judeus que retornam, e aqui se destacam dois grupos distintos: os que voltam jovens, depois de estudarem no exterior, de expe-rincias de trabalho frustradas ou de simplesmente no se adaptarem a outro pas, em geral a Holanda, e os que retornam j velhos, em geral depois de terem trabalhado a vida inteira fora e acumulado dinheiro suficiente para se aposentarem em seu pas natal. A Holanda corresponde, como na sociedade surinamesa de forma mais ampla, ao destino preferencial para emigrao (at porque alguns de meus interlocutores eram cidados holandeses), mas h pessoas indo viver nas Antilhas, nos Estados Unidos, na Austrlia ou em Israel, entre outros. Os que retornam jovens, em geral no so alvo das mesmas crticas dirigidas queles que o fazem em um momento mais tardio de suas vidas: estes so alvo de comentrios, por vezes desdenhosos, de que no conhecem mais a realidade do pas, a comunidade, ou que simplesmente a comunidade mudou muito desde que eles foram embora.

    Os que voltam velhos encontram maior resistncia na participao de processos decisrios que envolvam a comunidade. Embora haja um senhor retornado no comit da Sinagoga, sua influncia limitada pelo fato de existir sempre a possibilidade de que, por ter passado sua vida inteira fora do pas, suas decises ou propostas sejam desautorizadas. Os que ficaram (depois da independncia e da guerra civil) alegam ter maior conhecimento sobre a comunidade, j que puderam acompanhar o seu percurso. Alm disso, sendo um problema para os judeus a possibilidade de sua extino no pas, os emigrantes corroborariam para o desaparecimento da comunidade, j que no podem participar, efetivamente, de sua vida cotidiana.

    Os judeus que vivem fora do pas (mais uma vez, especialmente na Holanda), contudo, no esto excludos do que Comerford chamou de ma-peamentos: sua vida alvo de intensa curiosidade, o contato com familia-res permanece forte, por vezes envolvendo envio de dinheiro, e espera-se, na mesma medida em que se permite, que os mais velhos intervenham em impasse e brigas de famlia. Pelo que pude perceber em meu contato

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    com famlias judaico-surinamesas na Holanda, a recproca , de certa forma verdadeira. H uma enorme curiosidade sobre o que se passa na comuni-dade: desde questes familiares at a frequncia aos servios religiosos, as pessoas esto em constante comunicao com suas famlias no Suriname.

    possvel, no entanto, abandonar esse circuito de informaes e curio-sidades, e isto se mostra particularmente comum em geraes mais novas, pouco interessadas em questes referentes comunidade. Um interlocutor muito jovem, levado para a Holanda com meses de idade, destacou que este tipo de assunto interessava sua me e que, embora j tenha visitado o Suriname e ficado feliz em conhecer sua famlia e sua cultura, no se interessa por estas questes. Em sua opinio, tratava-se alm disso, de fofocas (roddel), e ele relatou ter ficado descontente quando parentes no Suriname quiseram saber demais sobre sua vida e problemas pessoais que ele considerava ntimos. O episdio foi interpretado como uma invaso de privacidade... eu no quero saber da vida deles, s quero que eles estejam bem. Ento, no gosto que fiquem querendo saber da minha vida pessoal.

    Desse modo, perfeitamente possvel sair da comunidade, no sentido de se afastar do circuito de informaes cujos membros so simultaneamente objeto de curiosidade e curiosos. Muitos judeus que conheci enfatizam que ser judeu foi uma escolha: poderiam ser indianos, chineses etc. Algum que pare de frequentar os crculos sociais das famlias judaicas, a sinagoga (mesmo nas datas festivas, quando ela costuma ficar bastante cheia), que pare de buscar informaes acerca de outras pessoas e famlias, ou comece a se relacionar excessivamente com o lado no judeu de sua famlia pode ser rapidamente identificado como no judeu. Caso a pessoa no tenha nascido de ventre judaico, e a opo por ser judeu tiver sido fruto de uma escolha que deve ser reafirmada em face das constantes evocaes das regras da Hallakah,8 o processo ainda mais fcil.

    Uma jovem que conheci durante uma de minhas viagens, nas reunies de quinta-feira, havia perdido o interesse pelo judasmo, segundo alguns interlocutores. Ainda que a prpria jovem continuasse a se considerar judia ela era filha de uma me identificada como crioula e de um pai dougla,9 filho de um judeu, mas frequentador de uma denominao protestante sua falta de interesse fazia com que a maior parte de meus interlocutores, mesmo os que aceitavam sua judaicidade, em funo de sua inclinao liberal, no a considerassem mais judia, j que ser judeu (especialmente neste caso) era uma escolha.

    ***

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    possvel optar, em uma briga, pelo lado contrrio quele com que sua famlia (ou a maior parte dela) se alinhou. Alguns interlocutores des-creveram, em querelas mais ou menos graves do passado, situaes em que o corao apoiava um familiar, mas a razo (encarnada em um dever de ofcio ou princpio moral) obrigava-os a apoiar a outra famlia, ou abster-se da questo. A despeito da retrica de unio, as famlias no so, assim, partidos a priori em determinada contenda. Cada vez em que h uma briga existe uma lgica que implica tomar lado, ou manter-se neutro; a famlia exerce papel fundamental na escolha do lado a ser tomado, mas no impede que se tome o partido de quem est brigando com sua famlia.

    H, entretanto, um preo a ser pago ao se ir contra a prpria fam-lia, mesmo que as razes sejam as mais justificveis e compreensveis. possvel esperar retaliaes, at quando os envolvidos na briga j tenham entendido seu posicionamento contrrio ou neutro ao da maioria da fa-mlia. A rede de solidariedade a partir da qual se espera que os familiares se ajudem pode tornar-se menos acessvel para aquele que no apoiou sua famlia em determinada briga (ainda que a retrica seja aceitvel, como, por exemplo, o dever de ofcio de certos funcionrios pblicos ou agentes do Estado). Ironicamente, a falta de apoio (ou mesmo a neutralidade) capaz de ser aventada como razo futura para um eventual apoio a outro lado, ou como justificativa para manter-se neutro.

    Permanecer neutro implica, como o nome sugere, no tomar partido deste ou daquele. Essa atitude, em primeiro lugar, precisa de uma desculpa aceitvel que permita que a pessoa se mostre solidria famlia, ao mesmo tempo em que no se envolve no conflito. Outra maneira de se manter neu-tro, segundo meus interlocutores, buscando se afastar, ou mantendo-se incomunicvel. Um deles, em uma de minhas viagens, comemorava o fato de estar visitando a famlia na Holanda durante uma briga familiar que ele considerava frvola, mas que o obrigaria a tomar o lado de sua famlia. Dessa maneira, sempre que a histria rememorada, ele nunca citado. Caso seja, tudo de que se lembra que ele estava fora e no pde ajudar sua famlia (pressupe-se, no mais das vezes, que ele o faria).

    Evitar os seus familiares alegando ter compromissos de trabalho, questes de ordem pessoal (que se pretenda que sejam acreditadas, de-vem ser explicadas) ou de sade tambm requer justificativas aceitveis, no sentido de minimizar ou anular o risco de desgaste familiar. Quando uma briga comea, e h o consenso de que ela envolve a famlia, uma rede de informaes acionada no sentido de deixar os familiares cientes do que se passa. Telefonemas, visitas para um caf, uso de skype (no caso

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    de parentes na Holanda) e outras ferramentas eletrnicas, como redes sociais (especialmente no caso dos mais jovens), so acionadas no sentido de descrever a briga e angariar o apoio familiar esperado, mesmo que em forma de simpatia.

    importante destacar que os parentes que vivem na Holanda so en-tendidos como mais prximos, no sentido de mais capazes de atuar e intervir em questes familiares, do que os que vivem em outras partes do mundo. Aqueles que residem nas Antilhas, especialmente em Curaao, so consi-derados relativamente acessveis, ainda que menos do que os holandeses: para efeito de questes familiares, os que vivem nos Estados Unidos, em Israel ou na Austrlia, por exemplo, so considerados quase fora do mapa, no por sua acessibilidade, mas por uma pressuposio de que eles tenham perdido, ainda que temporariamente, o conhecimento de causa no que tange aos assuntos da comunidade.

    Do ponto de vista sociolgico, embora os interlocutores descrevam as brigas quase unicamente atravs do idioma do parentesco, este apenas mais um dos componentes que envolvem o ato de brigar. H razes, tan-to prticas quanto emocionais, que transcendem as famlias, ainda que os conflitos sejam quase sempre colocados nestes termos. Este fato no puramente retrica: envolve efeitos positivos na realidade, j que muitas vezes se adere a um dos lados simplesmente por se tratar de sua famlia. comum, na fala de interlocutores, a sugesto de que a manifestao de apoio se deu apenas por se tratar de um familiar. A indisposio desnecessria com outros membros da comunidade raramente desejada.

    Por mais multilaterais que os conflitos sejam, eles so sempre entendi-dos como se tivessem dois lados: o lado A, que envolve tais e tais famlias e o lado B, que envolve outras famlias, alm dos dissidentes. Ainda que as motivaes para entrar em uma briga sejam as mais diversas possveis, so aventados dois objetivos: o lado A pretende fazer determinada coisa, e o lado B, outra. Na fala dos interlocutores, percebe-se que h desde a pura vontade de brigar com pessoas das quais no se gosta at questes financeiras delicadas. Pode haver tambm ressentimento em funo de uma briga anterior ou inteno de ganhar influncia ou vantagens com pessoas especficas, de forma completamente alheia lgica familiar (alguns mem-bros da comunidade so empresrios ricos, oficiais do governo etc.), de modo que o motivo para entrar ativamente em uma briga seja um emprstimo ou um novo emprego, por exemplo. Embora tudo isso possa ser interpretado como fofoca (roddel), a esttica da disputa supe dois lados, em geral encabeados por duas famlias e famlias amigas, brigando em torno de uma questo central.

  • BRIGAS DE FAMLIA E A DINMICA DO PARENTESCO ENTRE JUDEUS DO SURINAME318

    Dentro e fora das famlias

    Na seo anterior, mencionei o fato de meus interlocutores distinguirem briga entre famlias de briga na famlia, sendo a primeira entre fam-lias distintas e a segunda no seio de uma mesma famlia-nome ou ncleo familiar. Todo esse vocabulrio supe que as famlias tenham um dentro e um fora. A experincia etnogrfica mostra que essa oposio antes rela-cional do que dada; com o parentesco sendo feito constantemente a partir de brigas ou compartilhamento de nomes de famlia comuns (ainda que no haja compartilhamento de substncia), no possvel conhecer o dentro e o fora das famlias a priori. Outro complicador o fato de famlia ter sentidos diversos, o que faz com que o termo briga em famlia possa ser utilizado para descrever tanto violncia domstica quanto uma querela entre descendentes de um mesmo ancestral, portadores do mesmo nome. No obstante, meus interlocutores tratam a famlia como portadora de um dentro e um fora certas brigas devem ser mantidas fora da famlia. Uma primeira maneira de acessar essa distino buscando entender o que se considera dado e o que se toma como construdo nesse contexto etnogrfico. A residem as primeiras pistas das sempre movedias fronteiras do dentro e fora do artefato famlia.

    As famlias nucleares so entendidas como dadas, mas em intensi-dades diferentes. A dade me e filho particularmente naturalizada; uma me que se distancia do filho inevitavelmente algum que abandonou a famlia. No caso paterno, muito mais comum, o abandono do ncleo fami-liar destri gradualmente a afinidade, retirando o homem, pouco a pouco, do circuito de relaes da famlia de sua esposa; de imediato ele deixa de ser contado como parente pela famlia da esposa, embora se entenda que sua relao ainda implique obrigaes (como ajudar no sustento do filho), quase sempre baseadas em metforas de substncia: a noo de que o pai concebeu o filho, que o filho sua carne e seu sangue etc.

    Em relao ao filho, o pai que abandona a casa e evita os contatos com sua antiga famlia, mesmo sendo considerado algum que partilha o sangue do filho, pode ser gradualmente tido como um no parente, j que se afasta em demasia do conjunto de relaes que constituem o que meus interlocutores chamam paternidade (vaderschap). A opo pelo nome ma-terno, embora diversas vezes aluda vontade de afirmar uma ancestralidade judaica, pode tambm destacar o distanciamento do pai de um conjunto de obrigaes implicadas na noo de paternidade, at o ponto em que a substncia tudo o que resta da relao pai e filho:

  • BRIGAS DE FAMLIA E A DINMICA DO PARENTESCO ENTRE JUDEUS DO SURINAME 319

    Meu pai, meu pai no vale a pena falar dele, a nica coisa que ele fez foi

    me fazer [...] Ele tratava minha me como se fosse lixo, e a mim tambm. Sem-

    pre fomos muito ricos, mas ele tinha tantas buitenvrouwen10 que mal sobrava

    dinheiro para nos sustentar [...] quer dizer, no me faltava comida, mas eu era

    o nico da famlia que no podia fazer faculdade. Isso era em 1969, mas

    meu pai nunca estava em casa, e estava to preocupado com as suas mulheres

    que quando chegava l, bbado, era para arrumar um motivo para me bater.

    Depois ele foi embora de casa, e ningum nunca sabia onde ele estava. Eu fui

    o nico dos C a trabalhar com 16 anos... Donald B me arrumou um emprego

    no escritrio comercial dele no centro. Acabei conseguindo ir para a faculdade,

    porque meus parentes fizeram um fundo, viram o meu esforo [...] fiquei triste

    em deixar minha me aqui, mas ela pediu para eu fazer isso. Sempre estava

    em contato com ela de l (da Holanda), mas nunca mais falei com meu pai.

    Para meu interlocutor, seu pai o havia apenas gerado. Formalmente, tratava-se de seu pai, mas do ponto de vista das obrigaes que a paternida-de implica, ele estava excludo da rede de relaes que constituem a noo idealizada do ncleo familiar. Embora provesse a casa com o mnimo, no deixando meu interlocutor e sua me passarem fome, gastava seu dinheiro com outras mulheres e famlias, nunca estava em casa e tratava-os de maneira agressiva e distante. Do ponto de vista processual, para ele, o que os mantinha minimamente ligados era o ato de t-lo gerado, j que seu pai o fez. Alm disso, ele tem seu sangue; ainda que faa sempre questo de frisar as qualidades do sangue de sua me, precisamente as que teria herdado, como honestidade, obstinao e dedicao famlia.11 No raro menciona, entretanto, em rodas de amigos, que herdou de seu pai um jeito para lidar com mulheres, no sentido de possuir habilidade para seduzi-las. Este senhor, j casado algumas vezes sempre com mulheres que ele qualifica como bonitas est casado com uma mulher trinta anos mais nova, graas, segundo ele, s habilidades herdadas de seu pai.

    A palavra famlia aqui tambm usada indistintamente para designar dois conjuntos de relaes completamente distintos. Ao mencionar o descaso de seu pai com as obrigaes inerentes ao ofcio da paternidade, ele o faz no sentido de ncleo familiar. Aludindo s buitenvrouwen de seu pai e aos filhos que tinha com elas, tambm alude famlia no sentido nuclear, embora os considere ilegtimos por uma srie de razes. Quando menciona que no pde, em oposio a seus familiares, ir para a faculdade ao concluir a escola, estes familiares tm o sentido amplo de parentes, tanto paternos quanto maternos, consanguneos e afins. Por fim, explicando que foi o nico da famlia C a trabalhar desde os 16 anos, utiliza o termo famlia no sentido

  • BRIGAS DE FAMLIA E A DINMICA DO PARENTESCO ENTRE JUDEUS DO SURINAME320

    de nome. Buitenvrouw deve ser entendido como relacional: um interlocutor cuja me era apontada por alguns como fruto de um relacionamento entre um judeu e sua amante; no entanto, no considerava que sua av fosse uma buitenvrouw, mas sim esposa de seu av. Ele lembra com carinho do av na infncia e se refere av como a segunda mulher de meu av.

    Voltando concepo nativa de dado e construdo, a substncia sangue implica a herana de qualidades, pelo menos em potencial. Aqueles unidos pelo mesmo sangue so destacados como parentes, a despeito do que possa acontecer. A noo de parente, aqui, no representa necessariamente obrigaes mtuas, mas o compartilhamento de substncia. Dessa forma, irmos, filhos, netos dos mesmos avs, sobrinhos e primos em primeiro grau sero sempre considerados parentes. Os filhos desses primos/primas, assim como o parentesco deles com os seus filhos, so referidos como primos. importante notar que a lngua holandesa utiliza a mesma palavra para primo/prima e sobrinho/sobrinha, respectivamente, neef e nicht. Nesse sentido, os parentes de sangue so seus irmos (broers, zusters), pai, me e avs (vader, moeder, oma e opa), filhos e filhas (zonen e dochters), alm do uso amplo do termo primos para descrever desde sobrinhos at primos em terceiro grau.

    Para parentes mais distantes, pode-se utilizar o termo primos ou parentes. Mas o sangue, em geral, no mais obriga a consider-los membros da famlia. No raro, contudo, esses parentes so includos em relaes familiares, especialmente quando tm o mesmo nome ou clamam ancestralidade pela mesma famlia-nome (ex: Arnold Wereldens judeu por ser da famlia C, logo, parente de Anthony C). Muitas vezes o espao da sinagoga onde alguns desses judeus recm-aparentados se conhecem e estreitam suas relaes. Espera-se desde o apoio em situaes de briga at a incluso em redes de solidariedade que procuram ajudar a estabelecer parentes no exterior, arrumar empregos ou emprestar dinheiro em caso de necessidade. Dessa forma, passam a ser reconhecidos como familiares e se criam relaes de obrigao mtua, assim como uma maior intimidade, no sentido de visitas ocasionais e convivncia mais estreita entre os filhos, que passam a ser criados como primos.

    Muitos primos de interlocutores so amigos prximos, e contam hist-rias de como seus pais se descobriram parentes no espao do Mahamad12 ou a partir de pesquisas genealgicas. Alguns deles, note-se, so considerados parentes prximos, mas sua ancestralidade comum diverge h at seis gera-es, de acordo com suas stambomen.13 Um interlocutor disse ter um parente muito prximo em Curaao, do qual guarda excelentes memrias de infncia; ambos so judeus da famlia D. Contudo, a chegada do primeiro ancestral de seu primo data do sculo XVIII, quando da construo de um hospital

  • BRIGAS DE FAMLIA E A DINMICA DO PARENTESCO ENTRE JUDEUS DO SURINAME 321

    em Paramaribo, enquanto seu ancestral mais antigo, com o mesmo nome D, chegara sessenta anos mais cedo, ainda em Jodensavanne. Trata-se, assim, de dois troncos absolutamente distintos, no havendo consanguinidade alguma, e vale ressaltar que D um sobrenome comum nas listas judaicas de imigrantes dos sculos anteriores. No obstante, seu primo um parente prximo, membro da mesma famlia-nome. Seus filhos, que tm aproximadamente a mesma idade (ambos casados e um deles j com filhos) so grandes amigos e tambm primos e foram criados juntos, como irmos.

    Meu interlocutor em momento algum referiu-se ao parentesco entre ele e seu primo como fictcio. Inclusive, ao mencionar algumas qualidades que a famlia D possua, vindas do sangue, inclua seu primo. A distino entre afinidade e consanguinidade no faz sentido aqui; h apenas relaes, embora meus interlocutores configurem, eles prprios, uma distino entre parentes de sangue/nome e aqueles que casaram na famlia. Supor que esta oposio seja como a nossa, no entanto, absolutamente improdutivo, e impediria um entendimento de como as categorias de relacionalidade so construdas no plano processual. Seramos forados a entender que o caso dos primos D uma forma de parentesco fictcio. Tratando-se as famlias D de famlias homnimas, seria natural consider-las D1 e D2 e entender que h um parentesco fictcio que une membros das duas. Entretanto, isto iria contra a noo de parentesco de meus interlocutores, que no operam tal distino. O exemplo de Carsten sobre as relaes do uso da linguagem do parentesco em uma comunidade gay de So Francisco, retirado da etnografia de Weston, sugere categorizar essas amizades como parentesco fictcio, em oposio a um parentesco real derivado da procriao sexual no qual essas amizades so vistas como to reais quanto qualquer parentesco (Carsten 2004:146).

    importante destacar que sangue (bloed) e nome (naam) tm co-notaes parecidas. Tendo os membros da mesma famlia-nome qualidades similares, herdadas de seus ancestrais, o nome desafia, em certa medida, as divises clssicas que pressupem a oposio entre um parentesco baseado na reproduo sexual e outro fictcio. Isto no quer dizer que, do ponto de vista nativo, no haja relaes de parentesco consideradas no naturais; padras-tos e madrastas, quando queridos, so referidos como um pai/uma me, no sentido de que, a despeito de no haver um parentesco outro alm daquele implicado no casamento, o(a) enteado(a) considera a pessoa em questo um parente de verdade. A recproca verdadeira para o caso de padrastos/ma-drastas especialmente apegados(as) aos(s) filhos(as) de seus(suas) esposos(as) e companheiros(as). Todos, ao fim e ao cabo, so famlia; a maior parte dos interlocutores traa, contudo, uma diferena entre famlia de sangue (e, por extenso, nome) e parentes que se uniram famlia por casamento.

  • BRIGAS DE FAMLIA E A DINMICA DO PARENTESCO ENTRE JUDEUS DO SURINAME322

    Conflitos, trgua e novas formas

    H toda uma rede de comunicaes (que pode envolver parentes na Ho-landa) no sentido de avaliar quando determinados parmetros foram violados. Um de meus interlocutores, com o qual tinha certa proximidade, certa vez me pediu licena para ligar para seu tio na Holanda, pois ele saberia resolver uma situao que parecia estar ficando fora de controle (uit de hand). A questo envolvia a maneira de calibrar seu prprio com-portamento diante de pessoas das quais ele no gostava: parecia, para ele, que algo drstico poderia acontecer se um dos lados no abaixasse as armas. Seu tio, no entanto, poderia lhe dizer se aquele era ou no o mo-mento para brigar. A partir de uma descrio minuciosa da situao e dos atores envolvidos, apresentar-lhe-ia os possveis desfechos e aconselharia se valeria a pena, ou no, brigar ou tentar contemporizar a situao, ainda que esta ltima sada acarretasse a necessidade de no ser orgulhoso (wees niet trots op).

    Seu tio, mesmo no vivendo mais no pas, morou por muitos anos l; muito experiente e viu a comunidade, de alguma forma, sobreviver, mesmo que os conflitos tenham muitas vezes ditado o rumo da convivncia cotidia-na (especialmente aps a juno das sinagogas). Sabe negociar, conhece o momento de brigar e o momento de engolir o orgulho, considerado mais capaz de estabelecer o parmetro no qual esse ou aquele comportamento deve ser acionado. Nas palavras de meu interlocutor,

    [...] meu tio logo vai voltar pra c, ele sabe a hora de brigar, de fazer as pazes [...]

    l [na Holanda] conseguiu um dinheiro bom, mas agora vir para casa.

    Eu fico mais tranquilo ligando para ele, porque todo mundo respeita ele [...] se

    hoje ele me diz para no brigar, mesmo que essas pessoas estejam se gabando

    mesmo sem ter nada, isso no mexe no meu orgulho. Eu deixo eles l, depois

    eu falo a verdade e eles no aparecem mais na sinagoga, o culpado vou ser eu...

    meu tio j passou por isso com essa famlia, s vezes melhor ir l, apertar a

    mo, fingir que nada aconteceu.

    O diagnstico do seu tio foi, para minha surpresa, o de que, caso seu sobrinho partisse para a confrontao aberta, as pessoas com as quais ele estava tendo problemas poderiam no aparecer mais na sinagoga, e a culpa seria toda dele. Alm disso, por mais irritantes que as pessoas sejam, todos anseiam por ver a sinagoga cheia, e lamentam o fato de que os servios re-ligiosos tm estado vazios. Uma das perguntas de seu tio foi como andam os servios das sextas-feiras?, qual meu interlocutor respondeu: vazios.

  • BRIGAS DE FAMLIA E A DINMICA DO PARENTESCO ENTRE JUDEUS DO SURINAME 323

    Ningum quer ser o bode expiatrio (zondebok) nessas situaes, diria o senhor a meu interlocutor. Isto foi determinante para que ele no devolvesse com ironia ou sarcasmo os constantes comentrios desse pequeno grupo que alardeava suas viagens ao exterior e as recentes aquisies materiais, na sua opinio, com a inteno de se colocar acima dos outros judeus.

    H todo um clculo para saber o momento propcio para iniciar uma briga. No tive nenhum contato com os judeus que, segundo meu interlocu-tor, se gabavam de suas aquisies materiais, mas (ainda segundo ele) eles tinham conscincia de que o momento era favorvel a este tipo de comentrio, ou seriam advertidos por seus familiares caso no o fosse.

    Muitas pessoas que conheci no frequentam a sinagoga regularmente. Esto sempre informadas, entretanto, sobre como est a frequncia. Caso esteja baixa demais, podem ocasionalmente visit-la para atender aos ser-vios e encontrar outras pessoas e famlias. O boca a boca constante, h sempre informao sobre o que est havendo, quais famlias esto frequen-tando e quais s comparecem em festas. Mesmo os judeus que optaram por abandonar completamente a vida na sinagoga (por terem se aborrecido com brigas passadas) parecem nutrir certa curiosidade em relao ao que se passa nos servios, nas reunies de jovens etc. H nessa rede de comentrios uma srie de canais de informao.

    E interessante examinar, nessas contendas, todos os desfechos aven-tados pelos atores como possibilidade de conduo e soluo dos conflitos. Embora estes no se atualizem, aparecem como desfechos possveis; algo que poderia ter acontecido caso outra opo tivesse sido descartada.

    Muitas de minhas conversas com meus interlocutores tratavam da forma como as coisas poderiam ter sido:

    [...] se ele estivesse disposto a brigar, como quando o av dela era vivo, as coisas

    iam ser diferentes, eu acho [...]. Ele podia ter simplesmente dito a ela que seu

    av deixava de cumprir suas obrigaes com a comunidade para beber. Acho

    que ele preferiu ficar calado por isso [...]. Talvez ele tenha preferido fingir que

    no entendeu a insinuao, mas se tivesse falado do seu av... [...]. Ou ento

    porque no se fala assim dos mortos... no sei se ficaria bem para ele.

    Quando os atores falam sobre questes familiares, aludem, eles pr-prios, aos desfechos possveis, baseados, na maior parte das vezes, em suas observaes dos resultados de contendas passadas. O que poderia acon-tecer , neste caso, de grande interesse. No importa que um lado seja considerado por alguns vitorioso, ou que o conflito esteja arrefecido, j que o interessante que o outro lado poderia tambm ter vencido, ou a diver-

  • BRIGAS DE FAMLIA E A DINMICA DO PARENTESCO ENTRE JUDEUS DO SURINAME324

    gncia ter prevalecido em lugar do apaziguamento dos nimos. Toda a sorte de palpites sobre como a questo poderia ter sido conduzida vem tona:

    Ele preferiu desaparecer [da Sinagoga] [...]. Eu teria dito o que eu achava.

    Todo mundo ia ficar do lado dele, claro... Todo mundo ia ficar do meu lado, no

    ia? Imagine! E olha que foi ele quem organizou o retiro, e os tios dele, os avs

    dele, eram todos gente importante. Eu no teria ficado calado. Para mim, ele

    perdeu porque quis...

    ***

    importante chamar a ateno tambm para o que Bateson (1972:294) denominou rudos. Segundo ele, tudo que no informao, redundn-cia, forma ou restrio - rudo, a nica fonte possvel de novos padres. Torna-se fundamental aludir s reflexes de Deleuze e Guattari sobre as diferenas entre as ordens molar e molecular: a primeira correspon-dente s estratificaes que dizem respeito a sujeitos, objetos e sistemas de referncias, enquanto a segunda se refere ordem dos fluxos, das intensi-dades, dos devires (cf. Guattari & Rolnik 1988; Deleuze & Guattari 1994). Os constrangimentos que se impem s brigas familiares e s querelas, em geral em funo de determinados tipos de resoluo, com padres ticos, estticos e polticos relativamente delimitados, no colmatam por inteiro os fluxos e as intensidades envolvidos nas insatisfaes.

    Bateson fala em possibilidade de novos padres. No entanto, ao invs de padro, neste caso, os termos representaes, formas, sistemas de referncia seriam mais apropriados. Tomemos a dissidncia de alguns jovens que pretendem adotar um estilo de vida mais kosher, por exemplo; se assumi-mos que as formas no atualizadas no esto absolutamente perdidas, qual o seu status de existncia? Talvez as ordenaes necessrias para que esse ou aquele conflito seja resolvido dispersem necessariamente possibilidades que podem trazer tona novas formas. As possibilidades plausveis no atu-alizadas continuam existindo enquanto possvel. Nas palavras de Paul Veyne (1984:157), h espao [...] para objetivaes no imaginadas. Sua existncia no detectvel no plano das formas institudas, mas pode se manifestar nos mais diversos modos; quando essa excrescncia da autorregulao do sistema encontra outros rudos, estes podem objetivar-se em formas originais.

    A linha kosher parece diretamente relacionada resoluo de uma srie de questes que negligenciaram por completo as vontades de alguns. Ou, para se desfazer do indivduo como categoria analtica, negligenciaram

  • BRIGAS DE FAMLIA E A DINMICA DO PARENTESCO ENTRE JUDEUS DO SURINAME 325

    foras de tendncias mais ortodoxas, agenciadas na imanncia biopoltica. Esta opo pelo descarte do indivduo a priori se justifica na medida em que o jovem que encabeava a linha kosher quando de minha primeira viagem apresentava-se como mais para liberal; reclamava da malcia de alguns em relao aos comentrios feitos sobre a judaicidade e Hallakah e no parecia se importar com as questes de ordem que se impunham na organizao dos servios. Meses depois, contudo, estava profundamente descontente e j pensava em criar uma nova linha: muitas de suas recla-maes ecoavam as de outras pessoas, que aparentavam satisfao com o modo com que a tenso entre liberalidade e ortodoxia era conduzida.

    A despeito de alguns se apresentarem como liberais ou ortodoxos e de esta informao ter grande relevncia do ponto de vista descritivo, do ponto de vista analtico seria inocente crer que demandas classificadas como liberais e ortodoxas partem dos atores que se classificam como tais. H uma disputa de foras que sempre ordenada de maneiras distintas. Essas foras no se originam necessariamente dos indivduos, j que eles prprios so atravessados por elas. Entender as motivaes do jovem mais para libe-ral que se tornaria, meses depois, um dos mais ortodoxos da comunidade no passaria, neste ponto de vista, pela anlise de um processo psicolgico de influncias internas e externas, mas sim por um exame de como deter-minadas foras so agenciadas. Esse mesmo jovem viria a me dizer:

    [...] por mais que eles [alguns outros judeus] se digam ortodoxos, sempre aca-

    bam fazendo as coisas de um jeito que no nem um pouco ortodoxo, para no

    arrumar briga com os outros. Para mim d no mesmo, se voc divide a mesma

    sinagoga em liberal e ortodoxa, ela liberal. Tudo o que eu queria era uma

    comunidade [ortodoxa] como ela deveria ser. Mas a gente sabe que isso nunca

    vai acontecer, nunca.

    Ele tende a crer que as solues acomodadas para administrar a tenso entre tendncias liberais e ortodoxas impossibilitam completamente a resoluo de questes muito caras a ele pela via que considera mais correta: a adoo dos costumes ortodoxos; a tendncia a evitar o conflito impede, para ele, que se faam as coisas do jeito certo [op de juiste manier]. Ciente de que os arranjos acabaram por acomodar liberalidade e ortodoxia em um mesmo espao (e.g. como na questo dos assentos mistos), o sentimento de que, qualquer que seja a questo, ela ser resolvida de maneira pouco satisfatria para seus desgnios. A excluso dessas possibilidades, que para ele seria a soluo ideal, viria a gerar certa dose de frustrao (no s nele, como tambm em certos amigos), at que, em uma visita a Israel,

  • BRIGAS DE FAMLIA E A DINMICA DO PARENTESCO ENTRE JUDEUS DO SURINAME326

    Meu primo me mostrou que eu posso comear alguma coisa nova aqui. No

    preciso aceitar o que os outros me impem. Estou tentando me tornar o mais

    ortodoxo possvel, Brian tambm, dentro dos limites dele. Rony quer participar.

    Podemos trazer famlias de Israel para c e o governo ainda nos ajuda, pagan-

    do pra eles ficarem aqui. Para mim seria melhor, isso que eu estou tentando

    fazer. [...] J tem gente na Holanda interessada nisso, acho que pode dar certo.

    Seu descontentamento encontrou reverberao em outras pessoas e experincias, enredando uma srie de pessoas no Suriname e na Holanda na busca por uma cooperao com o governo de Israel, no sentido de trazer colonos que ajudariam a difundir o judasmo ortodoxo no pas. Da a sua ideia de restabelecer o estilo de vida kosher no pas.

    A cada soluo de uma questo ou conflito, certo descontentamento persiste. Pode esvanecer por completo, ou mesmo manifestar-se em pequenas reclamaes. possvel, entretanto, que traga tona novas formas, outros modos de ordenao, ou mesmo crie novas cises; uma das contradies fundamentais nessa maneira de evitar conflitos que um lado (ou ambos) sempre sai (saem), ainda que ligeiramente, insatisfeito. A explicao nativa mais comum sugere que essa insatisfao tem efeito cumulativo: no caso, ouvi que certas pessoas pararam de frequentar a Sinagoga porque essa ou aquela afronta foi a gota dgua (Druppel die de emmer doet overlopen).

    Essa insatisfao, contudo, no somente cumulativa, mas h relao com todo um campo de possveis que no so completamente eliminados quando uma deciso tomada. Em nome da trgua, um dos lados sai, em geral, insatisfeito por ter cedido vontade do outro. O acmulo gradativo dessas insatisfaes (que vo desde uma dvida financeira at uma conduta considerada errada durante os servios), alm da reverberao destas com outras possibilidades de objetivao (como no caso da Linha Kosher), justamente onde reside a formao de novos cismas, fenmenos e formas.

    ***

    Essas brigas entre famlias aparecem, aqui, como fenmeno eminente-mente positivo: ao mesmo tempo em que rompem relaes, reafirmam laos familiares ou criam novos a partir da adeso de uma ou outra famlia ou pessoa a um dos lados do conflito. Essas tomadas de partido, aproximaes (e evitaes), mobilizaes de mltiplas concepes de famlia e seus limites (e de distines entre pessoal e familiar, j que a briga pode ser ou no uma questo de famlia) so alguns dos efeitos observveis do fenmeno

  • BRIGAS DE FAMLIA E A DINMICA DO PARENTESCO ENTRE JUDEUS DO SURINAME 327

    das brigas entre famlias judaicas do pas. Alianas so constantemente firmadas e rompidas, expectativas so criadas e descontentamentos latentes so atualizados atravs de manifestaes observveis, enquanto outros emer-gem de resolues consideradas insatisfatrias por alguns. A distribuio local das dimenses do dado e do construdo aparece na mobilizao de categorias como nome e sangue para explicar comportamentos, quali-dades pessoais ou afinidades. Muito mais do que uma ameaa unidade, a briga surge como lugar privilegiado para investigar os processos atravs dos quais parentesco e afinidades so produzidos.

    Recebido em 12 de agosto de 2013

    Aprovado em 25 de julho de 2014

    Thiago Niemeyer professor colaborador do Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da UFJF, com bolsa de ps-doutorado da CAPES. E-mail:

    Notas

    1 Para facilitar a leitura, utilizo itlico em palavras estrangeiras, exceto substantivos prprios, como de costume. Palavras em lngua holandesa so assinaladas com itlico e sublinhado se forem substantivos comuns, e s com sublinhado se substantivos prprios.

    2 A palavra sefardita tem origem no termo hebraico Sepharad, que designa a Pennsula Ibrica.

    3 O termo asquenazita vem de ashkenaz, denominao do hebraico medieval para a atual Alemanha.

    4 Os judeus residem, em sua maioria, na capital Paramaribo, embora haja algumas excees. Ad de Bruijne tem, pelo menos, dois estudos (ambos em lngua holandesa) sobre demografia e os padres de ocupao da cidade, que mencionam - ainda que lateralmente e de maneira muito breve - a presena judaica na capital surinamesa (ver De Bruijne 1976 e De Bruijne & Schalkwijk 1997).

    5 Dia de descanso semanal no judasmo. Observado do pr do sol de sexta-feira ao pr do sol de sbado.

  • BRIGAS DE FAMLIA E A DINMICA DO PARENTESCO ENTRE JUDEUS DO SURINAME328

    6 Carsten chama a ateno para o fato de que antroplogos que trabalham na ndia e em Papua (Nova Guin), entre outros lugares, adotaram substncia como forma de compreender o parentesco em termos mais processuais, observando como pessoas so constitudas atravs de suas relaes umas com as outras (Carsten 2004:109)

    7 Os nomes de famlias que aparecem ao longo do texto foram substitudos por letras (A, B, C, G, S etc.) e os que aparecem por extenso so fictcios, o mesmo ocorrendo com os prenomes.

    8 Termo utilizado para o conjunto de leis da religio judaica.

    9 Expresso do Srnan Tongo, crioulo local. Termo usado para designar herana mista.

    10 Termo utilizado para mulheres com as quais se tem relao fora do casamento.

    11 Parece significativo que entre os judeus sefarditas de Curaao, at a dcada de 1940, fosse comum a prtica de os homens manterem concubinas, as keridas. Os filhos dessas unies eram conhecidos como yu de judio filho de judeu e os netos, nieto di judio neto de judeu (Abraham-Van der Mark 1993:46). Ao contrrio do caso surinams, no entanto, as crianas nascidas fora do casamento pertenciam sempre religio da me, em geral o catolicismo romano (Abraham-Van der Mark 1993:46). Dizer que algum tem sangue judeu (tin sanger di judio) no sendo filho ou neto, mas relacionado de alguma forma uma maneira de destacar determinadas quali-dades, como as de bom negociante ou algum que aprende lnguas com facilidade.

    12 O termo Mahamad alude, historicamente, ao conselho judaico local, tam-bm conhecido como os regentes. Para maiores informaes sobre a histria do Mahamad e seus processos decisrios, ver The Jewish Nation in Surinam: Historical Essays (1982), de Robert Cohen; Creole Jews (2010), de Wieke Vink. H referncias importantes tambm em outros trabalhos de Robert Cohen (1982a, 1991) e Vink (2001).

    13 Literalmente traduzido como rvores genealgicas. No contexto etnogr-fico em questo, contudo, esses artefatos podem adquirir as mais diversas formas e desempenham um papel importante na produo da ancestralidade e do parentesco. No poderei, contudo, desenvolver o material obtido em campo no presente artigo, sobretudo por questes de espao.

    14 O termo kosher refere-se ao conjunto de leis alimentares do judasmo.

  • BRIGAS DE FAMLIA E A DINMICA DO PARENTESCO ENTRE JUDEUS DO SURINAME 329

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  • BRIGAS DE FAMLIA E A DINMICA DO PARENTESCO ENTRE JUDEUS DO SURINAME330

    Resumo

    O artigo a seguir trata, do ponto de vista etnogrfico, das brigas (familievete/vechten) entre famlias judaicas em Pa-ramaribo, capital do Suriname. A briga entendida, no contexto etnogrfico em questo, como momento no apenas de ruptura, mas de surgimento de novas alianas atravs da tomada de lados (partij kiezen /deel te nemen). Parentelas no atualizadas so acionadas, e pessoas se tornam parentes (relatief), da mesma forma que certas relaes arrefecem, dis-tanciando os sujeitos e mudando a forma de se referir a estes. As brigas, alm disso, trazem tona a distino nativa entre o dado e o construdo: alguns, por se omitirem nessas contendas ou tomarem outro lado, tornam-se parentes apenas de sangue (bloed) ou nome (naam). Buscar-se-, dessa forma, explorar a dimenso positiva dessas brigas, enten-dendo-as no apenas como provocadoras do que chamaramos rompimento, mas produtoras de novas alianas e obrigaes.Palavras-chave Famlia, Caribe, Surina-me, Judasmo, Relacionalidade.

    Abstract

    The article is an ethnography of the feuds (familievete/vechten) between Jewish families in Paramaribo, Suri-name. In this ethnographic context, the feud is understood not only as a moment when alliances are broken, but also as an event where new alliances arise, since individuals have to choose sides (partij kiezen/deel te nemen). Non-actualized kinship relations thus appear, as people become relatives (relatief), while other relations lose their intensity, rendering people apart and changing the terms they use to refer to each other. The feuds bring up local distinctions between biological and social: some individuals, by choosing not to take part in these disputes or choosing a different side, become merely blood (bloed) or name (naam) relatives. The focus is therefore on the positive dimension of feuds, which are not only the cause of a rupture, but active producers of new relations and obligations.Key words Family, Caribbean, Suriname, Judaism, Relatedness.