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1 UNIVERSIDADE PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS UNIPAC FACULDADE DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS DE BARBACENAFADI CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO MARCELO SEBASTIÃO DE PAULA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES BARBACENA 2011

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UNIVERSIDADE PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS – UNIPAC

FACULDADE DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS DE BARBACENA–

FADI

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

MARCELO SEBASTIÃO DE PAULA

JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS

PODERES

BARBACENA

2011

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MARCELO SEBASTIÃO DE PAULA

JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS

PODERES

BARBACENA

2011

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em

Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos –

UNIPAC, como requisito parcial para obtenção do

título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Esp. Rafael Francisco de Oliveira

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Marcelo Sebastião de Paula

JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Direito da Universidade

Presidente Antônio Carlos – UNIPAC, como requisito parcial para obtenção do título de

Bacharel em Direito.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Esp. Rafael Francisco de Oliveira

Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC

Prof. Esp. Fernando Antônio Mont‟Alvão do Prado

Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC

Prof. Esp. Colimar Dias Braga Júnior

Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC

Aprovada em _____/_____/_____

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Dedico esta monografia a todas as

pessoas que me incentivaram, que acreditaram

na minha capacidade e que torceram para que

eu jamais desistisse. Hoje me lembro de cada

um desses verdadeiros companheiros de luta.

Neste sentido, e especialmente,

dedico esta a José Vicente, meu pai (in

memorian), e a Maria Aparecida, minha mãe,

pois foram aqueles que mais lutaram por mim,

cada um de sua forma; ambos imprescindíveis.

Dedico-a também a todos aqueles que

são olhados com desconfiança, que são

desacreditados. O penhor da igualdade,

conseguiremos conquistar com força de

vontade, suor e com o Amor de Deus em

nossas vidas e na vida daqueles que amamos,

diariamente.

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AGRADECIMENTO

Agradeço aos queridos amigos de ontem, pois sonhamos, juntos, o sonho que ora se

concretiza.

Agradeço aos queridos amigos de hoje, porque travamos lado a lado as diversas

batalhas, que culminaram nesta vitória inesquecível.

Agradeço aos meus pais, irmãos e demais familiares, pois não tenho o menor resquício

de incerteza: sem cada um de vocês, contribuindo a sua maneira, não seria possível que eu

chegasse até aqui.

Agradeço aos meus professores, pelas diversas lições passadas, sejam estas inerentes

ao conteúdo acadêmico, sejam ao modo de encarar a vida.

Agradeço a Deus, porque se fez presente, através de cada uma das pessoas citadas

acima, iluminando meu caminho; caminhando junto de mim, hoje e sempre. Nosso tempo

junto não foi em vão.

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Se alguém procura a saúde, pergunta-lhe primeiro se está disposto a evitar no futuro

as causas da doença; em caso contrário, abstém-te de o ajudar.

Sócrates

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RESUMO

A concretização do direito à saúde, que foi elevado ao nível de direito fundamental de

segunda geração pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, por meio de

decisão proferida por órgão do Poder Judiciário, impondo ao Poder Executivo a prestação de

serviços ou o fornecimento de insumos relacionados ao setor de saúde, fere o principio

constitucional da separação dos poderes. Através da revisão bibliográfica, conclui-se que se

trata de um fenômeno social, que tem sido chamado de judicialização da saúde, exatamente

em razão da interferência do Poder Judiciário em função constitucionalmente atribuída ao

Poder Executivo, segundo as políticas públicas elaboradas no âmbito do Poder Legislativo.

Em busca de se conferir eficácia plena ao direito à saúde, muitos cidadãos brasileiros cada vez

mais têm exercido seu direito de ação, pleiteando judicialmente providências a serem tomadas

pela Administração Pública. Todo direito de segunda geração, os chamados direitos sociais,

necessitam de uma atuação concreta e onerosa do Poder Público, para que sejam efetivados.

Porém, os recursos financeiros do Estado são limitados, o que deu origem à teoria da reserva

do possível, que por sua vez, gerou a teoria da reserva do financeiramente possível. Elas

proclamam que não pode ser exigido do Estado a realização de algo impossível de ser

realizado, ou que, mesmo sendo passível de realização, não exista recurso financeiro

disponível para fazê-lo. Esta situação obriga o legislador a fazer escolhas a respeito de como,

onde e quando aqueles recursos deverão aplicados. São escolhas trágicas, porque muitas são

as obrigações de um Estado. Tais teorias, porém, devem ser demonstradas no caso concreto, e

não simplesmente alegadas, sob pena de se transformar os direitos de segunda geração, como

o direito à saúde, em meras promessas do constituinte originário. Este pensamento é

defendido por renomados mestres do Direito, em teorias que pregam a eficácia plena dos

princípios constitucionais, assim como, pelos defensores do neoconstitucionalismo

Inicialmente, no entanto, será abordada a conceituação do termo saúde, que por si só traz

dificuldade de ser efetivado, em decorrência de sua amplitude, além da acirrada controvérsia

existente ao seu redor.

Palavras-chave: Direito Constitucional. Judicialização da Saúde. Separação de Poderes.

Princípios constitucionais.

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ABSTRACT

The realization of the right to health, which was elevated to the level of fundamental right of

the second generation by the Constitution of the Federative Republic of Brazil in 1988, by

order made by the State Court, requiring the Executive Branch to provide services or supplies

inputs related to the health sector, it hurts the constitutional principle of separation of powers.

Through the literature review, we conclude that it is a social phenomenon which has been

called judicialization of health, precisely because of the interference of the judiciary as a

function constitutionally assigned to the executive branch, according to the policies developed

under the Power Legislative. In search of giving full effectiveness the right to health, many

Brazilian citizens increasingly have exercised their right of action, seeking judicial action to

be taken by the Public Administration. All right of the second generation, the so-called social

rights, require expensive real power of the Government, to take effect. However, the State

financial resources are limited, which led to the theory of possible reserves, which in turn led

to the theory of reserve financially possible. They can not claim that the State be required to

accomplish something impossible to accomplish, or even being capable of realization, there is

no financial resources available to do so. This situation forces the legislature to make choices

about how, when and where those resources should apply. They are tragic choices, because

many of the obligations of a state. Such theories, however, must be demonstrated in this case,

not just alleged, under penalty of becoming the second-generation rights, such as the right to

health in mere promises of the original constituents. This thought is championed by renowned

masters of law, theories that preach the full effectiveness of the constitutional principles, as

well as by advocates of neoconstitutionality Initially, however, will look at the

conceptualization of the term health, which in itself brings difficulties to be effected , because

of its breadth, and the fierce controversy around it.

Keywords: Constitutional Law. Judicialization of Health. Separation of Powers.

Constitutional principles.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9

2 DIREITO À SAÚDE ................................................................................................................ 14

2.1 Conceito .............................................................................................................................. 14

2.2 Formas de prestação do direito à saúde: políticas públicas ........................................... 17

2.2.1 Conceito de políticas públicas ....................................................................................... 18

2.2.2 Evolução histórica das políticas públicas de saúde no Brasil ....................................... 19

3 A TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL .......................................................................... 24

3.1 Origem e conceito ............................................................................................................... 25

3.2 Todo direito tem custo ....................................................................................................... 29

4 O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES ............................................................. 32

4.1 Evolução histórica .............................................................................................................. 32

4.2 A separação dos poderes no Brasil ................................................................................... 35

4.3 Sistema de freios e contrapesos na Constituição da República Federativa do Brasil

de 1988 ...................................................................................................................................... 37

5 JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE ........................................................................................... 42

5.1 A eficácia dos princípios e o neoconstitucionalismo: influenciadores da

judicialização da saúde ............................................................................................................ 45

5.1.1 A eficácia dos princípios ............................................................................................... 46

5.1.2 Neoconstitucionalismo .................................................................................................. 47

6 CONCLUSÃO ........................................................................................................................... 49

REFERÊNCIAS .......................................................................................................................... 53

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1 INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988 fez o direito à

saúde constar expressamente entre os direitos sociais, citados em seu Art.6º, caput, elevando

tal direito à condição de direito fundamental do homem. A mesma Carta Constitucional, que

pôs fim a um regime de governo autoritário, até então vigente no país, entendeu por bem

traçar os rumos da prestação de tão valioso direito juntamente com a assistência social e a

previdência social, que formam juntas a seguridade social, todas previstas no Título VIII, “Da

Ordem Social”, o qual está compreendido nos artigos 196 e 204. A saúde é tratada

especificamente entre os artigos 196 e 200, do documento retromencionado, sendo então

proclamado que:

Art.196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas

sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e

ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e

recuperação.

Muito foi feito em prol da saúde após a promulgação da Carta Magna vigente, como

a edição da lei que implementou o Sistema Único de Saúde (SUS), Lei nº 8080/1990, o que

certamente possibilitou o aumento da expectativa de vida do brasileiro, a diminuição da taxa

de mortalidade infantil, bem como, a realização anual de diversas campanhas de vacinação,

que mobilizam todo o país. Porém é inegável que existe ainda muita coisa a ser feita, até que

se atinja plenamente a eficácia que se espera de um direito fundamental de segunda geração,

como o é o direito à saúde.

Com o restabelecimento da democracia, após anos de ditadura militar, juntamente

com o fenômeno da globalização, o qual possibilitou uma divulgação nunca antes vista de

informações em grande escala, aliado ao acesso cada vez maior dos brasileiros ao

conhecimento e à educação, mais e mais cidadãos passaram a ter consciência de que possuem

direitos, dentre os quais inclusive se encontra o direito de acesso aos serviços de saúde, aí

inserido também o direito de receber medicamentos, disponibilizados pelo Estado, que

assumiu para si o dever de implementar políticas sociais e econômicas que visem à redução

do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços

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para sua promoção, proteção e recuperação, conforme anteriormente citado. Entretanto,

apesar de todos os avanços levados a efeito no decorrer dos anos pós-promulgação da

Constituição de 1988 e da atuação do SUS, a prestação de tais serviços acabou se revelando

insuficiente para o atendimento satisfatório da população brasileira.

Ocorre que uma população mais consciente e mais bem informada, é

proporcionalmente mais ativa e propensa a reivindicar seus direitos, nas mais diversas frentes

que lhe seja possível. Assim, as pessoas que procuravam assistência médico-hospitalar, e que,

por muitas vezes, se depararam com outras tantas pessoas, buscando aquela mesma

assistência, começaram a lutar por soluções para minimizar o mal que lhes afligia: o

funcionamento insatisfatório do órgão responsável pela gestão pública da saúde no Brasil. A

ineficiência do Estado-Administrador, aliada a grandes escândalos de desvio de verbas

destinadas à área da saúde, acabaram criando imensas filas de espera, não apenas para

tratamentos complexos, mas também, e até mesmo, para fornecimentos de medicamentos que

deveriam ser rotineiramente fornecidos pelos operadores do SUS.

Ante este cenário de busca por efetividade dos direitos fundamentais de segunda

geração em face de um Estado-Administrador com credibilidade e confiabilidade abaladas

perante a opinião pública é que diversas pessoas viram no direito de ação, assegurado a todos

os brasileiros, bem como a todos os residentes no país, a última esperança de verem

concretizado o direito à saúde, que lhes fora resguardado em norma constitucional. Surgia

nesse contexto absolutamente complexo, o fenômeno que se tem chamado judicialização da

saúde.

A busca por efetividade dos direitos sociais foi impulsionada pelo

neoconstitucionalismo, nova teoria a respeito da forma de se interpretar as normas

constitucionais, segundo a qual se deveriam valorizar mais os princípios, em detrimento das

regras inseridas no texto constitucional. Porém, muitas são as incertezas e controvérsias,

girando em torno desta nova visão do direito constitucional, bem como sua aplicação e

adequação ao ordenamento jurídico nacional, posto ser este formado não apenas de princípios,

mas também, de regras.

Entretanto, a mesma Constituição que atribui ao Estado o dever de prover as políticas

públicas direcionadas à área da saúde, determinou também que aquele mesmo Estado se

configuraria em Estado Democrático de Direito, conforme verbo do Art.1º, caput, da

CRFB/88:

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Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos

Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui‑se em Estado Democrático de

Direito e tem como fundamentos.

A Magna Carta trouxe ainda a previsão de que o Estado que então nascia, seria

dotado de três poderes, que deveriam ser exercidos com harmonia e independência:

Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o

Executivo e o Judiciário.

O constituinte originário, porém, inspirado na teoria do direito comparado, houve por

bem flexibilizar a regra retrocitada, curvando tal preceito a um sistema de controle recíproco

entre os poderes de Estado, baseado em teoria de origem americana, de freios e contrapesos

(checks and balances), prevendo expressamente meios para que cada um dos referidos

Poderes pudesse exercer, além da sua função precipuamente estabelecida, a função

constitucional atribuída originariamente a um dos outros dois Poderes, conforme se percebe

nas disposições contidas nos artigos 66, 84, 102, 103, dentre outros mais, presentes na Lei

Maior deste país, conforme transcrito exemplificativamente a seguir:

Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:

I – processar e julgar o Presidente e o Vice‑Presidente da República nos crimes de

responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha,

do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles;

II – processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do

Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o

Procurador‑Geral da República e o Advogado‑Geral da União nos crimes de

responsabilidade.

Não há que se olvidar também a respeito da relevância da teoria da Reserva do

Possível, posto que o modelo econômico constitucionalmente adotado pelo constituinte de

1988 foi o modelo capitalista. De fato, seguindo o capitalismo como sistema norteador da

economia nacional, tem-se que todos os serviços prestados, todos os bens transmitidos, seja

pelo Estado, seja pelo particular, têm valor pecuniário intrínseco a essa prestação ou

transmissão. Não se pode atribuir ao Estado obrigações impossíveis de serem atingidas

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faticamente. As obrigações passíveis de cumprimento têm que ser submetidas à capacidade de

pagamento do ente estatal, anteriormente prevista em sua lei orçamentária, sob pena de se

comprometer o ajuste fiscal e de se infringir a lei de responsabilidade fiscal.

Ocorre que a saúde é um bem por demais precioso para qualquer pessoa. Sem dela se

desfrutar, qualquer propriedade ou posse, de quaisquer bens materiais, tornam-se vazias de

significado. No âmbito da micro-política, indubitável que o direito à saúde, corolário do

direito a vida, deve prevalecer. Mas em se tratando de macro-política, não restaria

comprometida a organização do Estado/Administrador em decorrência da expedição de

ordens judiciais, obrigando aquele a fornecer medicamentos e serviços hospitalares aos

particulares, sem a devida previsão legislativa? E tal fato jurídico não ensejaria usurpação por

parte do Poder Judiciário, com relação à função que o constituinte originário atribuiu a outro

Poder de Estado? Eis algumas das questões que se pretende responder com a elaboração do

presente trabalho desenvolvido nas páginas seguintes.

Dessa forma, ante a necessidade de uma conscientização sobre o que vem a ser um

estado de saúde, procura-se definir o que é a saúde, através da utilização de alguns conceitos

emprestados da medicina e adotados por importantes órgãos a ela relacionados, como a

Organização das Nações Unidas (ONU). Neste diapasão, apresenta-se a conceituação de

políticas públicas, bem como evolução histórica destas no território brasileiro, levadas a cabo

no segundo capítulo.

A teoria da reserva do possível é exposta no terceiro capítulo, com sua origem, seu

conceito e sua evolução, posto ser de grande relevância para o tema ora proposto.

Interessante, ainda em referido momento, as colocações sobre a teoria da reserva do

financeiramente possível, espécie derivada da teoria da reserva do possível, que deve ser

considerada quando forem analisadas quaisquer ações estatais onerosas.

Conforme mencionado acima, o princípio da Separação de Poderes, cerne da

temática desenvolvida, também é analisado. Sua origem, conceituação, evolução histórica e

atual visualização pelos órgãos jurisdicionais, estão presentes no quarto capítulo, inclusive

com o novo enfoque que lhe é proposto pela teoria neoconstitucionalista.

Adentrando mais profundamente no assunto, o quinto capítulo trata da judicialização

da saúde propriamente dita, buscando apresentar seu conceito, sua origem e sua localização

dentro de um universo maior: a judicialização das políticas públicas. A atual posição dos

tribunais e da doutrina, o que significa judicializar, dentre outras idéias a ela afetas são

mencionadas neste capítulo.

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Encerrando o trabalho, a conclusão, levada a efeito no capítulo sexto, apresenta os

conhecimentos adquiridos, tendo em vista os objetivos propostos, as pesquisas realizadas e às

hipóteses cogitadas, bem como, a finalização da presente monografia, com as respostas à

problematização apresentada, quando da elaboração do projeto de trabalho de conclusão de

curso, juntamente com o posicionamento do autor a respeito do tema.

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2 O DIREITO À SAÚDE

A saúde é direito de todos e dever do Estado. Com esses dizeres, o constituinte

originário iniciou o Art.196, Seção II, Capítulo II, Título VIII, da Constituição da República

Federativa do Brasil, promulgada em 05-10-1988. Trata-se de direito fundamental social de

segunda geração, conforme disposto no Art.6º, caput, da referida Carta Política, que deverá

ser garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença

e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,

proteção e recuperação. É tratado ainda, resguardadas as devidas especializações, nos artigos

267 a 284 do Código Penal Brasileiro, sob o título “Crimes contra a Saúde Pública”, os quais

trazem tipificação de condutas que venham a atentar contra a prestação, prevenção e

recuperação da saúde, atribuindo-lhes caráter criminoso. É tratado, ainda, na Lei nº

8.080/1990, que foi editada para regulamentar as ações e serviços de saúde em todo o

território nacional, prestados por pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado,

através da instituição do Sistema Único de Saúde (SUS). Os artigos 746, 949, 1277 do Código

Civil de10 de janeiro 2002, também possuem normas que visam proteger a saúde do cidadão

no âmbito cível, dispondo este último artigo que “o proprietário ou o possuidor de um prédio

tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde

dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha.”

Poder-se-ia dizer que esse é o “ordenamento jurídico nacional da saúde”, juntamente

com a legislação esparsa e as demais normas infralegais, emitidas pelos órgãos da

Administração Pública, como por exemplo, as portarias e instruções do Ministério da Saúde,

dentre outros. Entretanto não se pode questionar que as normas citadas no parágrafo anterior

são aquelas que têm maior relevância e que devem nortear todos os operadores do direito, nos

assuntos e demandas, nos quais sejam discutidas questões e ações que objetivem concretizar

as políticas públicas voltadas à área da saúde.

2.1 Conceito

Inobstante a vasta legislação anteriormente citada, o legislador não trouxe o conceito,

a definição do que seja saúde, salvo melhor juízo. Quando se considera que um indivíduo está

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em pleno gozo da sua saúde? Ante a ausência de definição legal, há que se recorrer aos

ensinamentos da doutrina, da qual se extrai a definição infra colacionada:

Como ocorre com os direitos sociais em geral, o direito à saúde comporta duas

vertentes, conforme anotam Gomes Canotilho e Vital Moreira: „uma de natureza

negativa, que consiste no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenha

de qualquer acto que prejudique a saúde; outra de natureza positiva, que significa o

direito ás medidas e prestações estaduais visando à prevenção das doenças e o

tratamento delas.‟ (CANOTILLHO e MOREIRA, 1984, p.342 apud SILVA, p.309).

Há que se ressaltar a nota de rodapé, constante da página retrocitada, na qual o autor

consultado ensina que “prestações estaduais” é a expressão utilizada em Portugal para

designar a expressão “prestações estatais”, utilizada no Brasil, referindo-se ao Poder Público

em geral e não apenas ao Poder Público dos Estados Federados. Seguindo a esteira desse

mesmo ensinamento, o mesmo autor leciona que o direito à saúde é um direito positivo, que,

segundo Canotilho e Moreira (1984, p.342), “exige prestações de Estado e que impõe aos

entes públicos a realização de determinadas tarefas [...]”, de cujo cumprimento depende a

própria realização do direito do qual decorre um especial direito subjetivo de conteúdo duplo

[...] (SILVA, 2011, p.309).

Tanto as definições legais, quanto as definições apresentadas pela doutrina, abordam

a conceituação da saúde apenas sob o aspecto jurídico da questão, superficialmente. Por isso

torna-se imperativo dizer, apesar da inquestionável e imensurável cultura jurídica dos mestres

anteriormente citados, que a definição apresentada resta insatisfatória e incompleta, uma vez

que ainda não esclarecido e delimitado o que vem a ser saúde. Imperioso se faz considerá-las

insuficientes, principalmente quando se trata de um assunto tão controvertido e relevante nos

tempos hodiernos, em que muitos entendem que esse direito deva ser concedido de forma

plena e eficaz pelo Estado. Necessária é a delimitação para que possa ser ponderado os limites

da responsabilidade administrativa, devendo o Direito se socorrer de outras fontes, a fim de

que se tenha a exata limitação da responsabilidade estatal. Na busca por uma maior precisão

na delimitação do tema, há que se socorrer dos ensinamentos de outros ramos do saber.

Nesse afã, tem-se que o preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da

Saúde (OMS), órgão vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU), e da qual o Brasil é

signatário, traz importante conceituação, ao declarar que “a saúde é um estado de completo

bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de

enfermidade” e que “gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos

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direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo

político, de condição econômica ou social.”1(UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO).

Ocorre que essa definição já se encontraria ultrapassada, conforme lecionam Segre e

Ferraz2 (1997), “por ainda fazer distinção entre o físico, o mental e o social”, distinção essa

que não persistiria, ante a vivência psicanalítica, restando clara a impossibilidade de se

dicotomizar essas esferas da psique humana; bem como, por visar a uma perfeição inatingível,

atentando-se às próprias características da personalidade, e ainda porque, ao se utilizar da

expressão “completo bem-estar”, estar-se-ia a vislumbrar uma utopia, posto que impossível

caracterizar a perfeição. Só poder-se-ia, assim, falar de bem-estar, felicidade ou perfeição para

um sujeito que, dentro de suas crenças e valores, desse sentido de tal uso semântico e,

portanto, o legitimasse. Critica-se ainda o algo grau de subjetividade implícito na definição da

OMS, o que a torna deveras complicada de se determinar.

Há que se considerar ainda a Teoria Bioestatística da Saúde (TBS), elaborada pelo

americano Cristopher Boorse, professor de filosofia da medicina e de filosofia da biologia da

Universidade de Delaware, Estados Unidos da América, objeto de estudo de Naomar de

Almeida Filho e Vládia Jucá, segundo o qual “saúde é a ausência de doença”. Segundo

Boorse3 (1977 apud ALMEIDA FILHO e JUCÁ, 2002), doença é “o cumprimento deficiente

de uma função biológica que se encontra comprometida porque um dos componentes dessa

função acha-se fora da normalidade estatisticamente definida”. Após anos de exposição de

sua teoria às criticas do mundo da medicina, por diversas vezes Boorse reviu sua teoria, em

razão do surgimento de outros fatores que vieram a influenciar o aspecto sobre o qual

concebera aquela, fundada sobre critérios objetivos, principalmente dados estatísticos, para

conceituar a saúde, determinando se o indivíduo encontra-se, ou não, saudável. Tem-se que

Boorse (1997) veio a reconhecer a existência, na atualidade, de um movimento forte no

sentido da prevenção e promoção da saúde e da qualidade de vida, inclusive em níveis mais

coletivos. No entanto, referido autor claramente procurou evitar uma definição positiva de

saúde por entender que tal abordagem apresentaria sérias incompatibilidades com a sua TBS.

Em primeiro lugar, restaria a dificuldade em determinar um ponto no sentido do qual a saúde

deveria ser promovida não apenas por não haver qualquer meta fixa de perfeita saúde para se

alcançar, mas também porque não há uma única direção para se avançar. Em segundo lugar,

1 http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-

Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html 2 http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-89101997000600016

3 http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232002000400019

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qualquer concepção positiva substantivaria a saúde e, mais ainda, elevá-la-ia ao plano do

ideal.

Vale citar, dentre as principais críticas lançadas contra a teoria de Boorse, aquela

que se considera a mais relevante e contundente, segundo a qual a saúde precisa ser

considerada de modo positivo, pois é incomensurável, não podendo ser relacionada com a

doença, sob o argumento de que, na etimologia histórica, entre os gregos, havia deuses

distintos para a saúde e para a doença e, em acréscimo, que saúde e doença não têm nenhuma

relação etimológica (LADD, 1987 apud ALMEIDA FILHO e JUCÁ, 2002)4. Inobstante a

relevância do debate entre o ilustre norte-americano e seus opositores, importante notar que

há grande controvérsia orbitando em torno da definição a respeito do que se entende por

saúde, mesmo entre os especialistas desta matéria.

O conceito adotado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1948, longe de

ser uma realidade, simboliza um compromisso, um horizonte a ser perseguido, uma vez que

remete à idéia de uma “saúde ótima”, possivelmente inatingível e utópica já que a mudança, e

não a estabilidade, é que é a característica mais marcante na vida de modo geral. Saúde não é

um “ser”, que uma vez atingido possa ser mantido permanentemente, mas uma constante

busca pelo bem estar, é um verdadeiro “estar”. A própria compreensão de saúde tem alto grau

de subjetividade e determinação histórica, na medida em que indivíduos e sociedades

consideram ter mais ou menos saúde dependendo do momento, do referencial e dos valores

que atribuam a uma situação. Assim sendo, nenhum ser humano (ou população) será

totalmente saudável ou totalmente doente, pois, ao longo de sua existência, viverá condições

de saúde e de doença, de acordo com suas potencialidades, suas condições de vida e interação

entre umas e outras.

Além disso, os enfoques segundo os quais a condição de saúde individual é

determinada unicamente pela realidade social ou pela ação do poder público, tanto quanto a

visão inversa, nem por isso menos determinista, que coloca todo peso no indivíduo, em sua

herança genética e em seu empenho pessoal, precisam ser rompidos, porque interferir sobre o

processo saúde/doença está ao alcance de todos e não é uma tarefa a ser delegada, deixando

exclusivamente ao cidadão ou à sociedade o papel de objeto da intervenção, do poder público,

dos profissionais de saúde ou, eventualmente, de vítima do resultado de suas ações.

2.2 Formas de prestação do direito à saúde: políticas públicas

4 http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232002000400019

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Com fincas no Art.196 da CRFB/88, impõe-se a aceitação, utilizando-se da

interpretação literal daquele dispositivo, de que o direito à saúde deverá ser efetivado através

de políticas sociais e econômicas. Por isso, é de grande relevância para o deslinde da questão

proposta, trazer à cena a conceituação e demais informações pertinentes ao tema e que

possibilitem a cientificação e a conscientização sobre o que vem a ser essas tais políticas

públicas anteriormente citadas.

2.2.1 Conceito de políticas públicas

Muitas são as atividades estatais, devido à complexidade de se administrar um

Estado de modo geral, mais ainda um tão peculiar quanto o é o Estado brasileiro, o qual age

de diversas maneiras, seja pela edição de normas, leis, ou atos administrativos, sempre se

orientando por princípios jurídicos de direito e regras jurídicas. Entretanto, a definição e a

escolha entre agir desta ou daquela outra forma, que também se poderia adotar, é feita

mediante complexo processo: o Poder Legislativo define quais políticas publicas serão

adotadas, ao passo que é o Poder Executivo aquele que têm a missão de colocá-las em prática.

As ações realizadas por um Estado, na busca pelo bem-estar de seus cidadãos, é o

que se convencionou chamar de políticas públicas; são atos que vão além do campo abstrato,

posto que têm por finalidade gerar efeitos concretos na vida de todos que estão a elas sujeitos:

crianças, adultos, idosos, de todos os sexos e idades. Sua elaboração pode se dar

originariamente por iniciativa dos legisladores, que são os representantes do povo, uma vez

que o Brasil adotou o sistema político representativo; por iniciativa popular; ou nos demais

casos previstos na carta constitucional vigente, conforme expresso em seus artigos 59 e

seguintes, os quais tratam do processo legislativo. Todas essas pessoas que podem

implementar, direta ou indiretamente, políticas públicas são chamadas atores ou agentes

sociais. Esses podem ser definidos como a personalidade individual, ou conjunto de pessoas,

detentora de um mínimo de organização estável, e que sejam capazes de influenciar o

processo de concepção e implementação das políticas públicas, sempre na busca pela solução

de determinado problema, assim considerado aquela necessidade não satisfeita, desde que se

tenha consciência desta e o desejo de satisfazê-la.

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O campo de atuação das políticas públicas é muito abrangente, posto que tem por

destinação a fomentação dos mais diversos ramos da sociedade: educação, cultura, esporte,

saúde, etc. Segundo Bucci5 (2002 apud MACIEL, 2010), elas devem ser compreendidas:

[...] como arranjos institucionais complexos, expressos em estratégias formalizadas

ou programas de ação governamental, visando coordenar os meios à disposição do

Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente

relevantes e politicamente determinados, e resultam de processos conformados

juridicamente”(BUCCI, 2002).

Concluindo o trabalho retrocitado, Maciel6 (2010), ressalta que é principalmente

através das políticas publicas que os direitos fundamentais de caráter prestacional são

assegurados e efetivados, externando ainda que apenas o conhecimento jurídico é insuficiente

para se analisar e, consequentemente, bem compreender as políticas publicas, ante seu

inarredável caráter multidisciplinar, necessitando que se proceda ao estabelecimento de

diálogo entre as áreas econômica, administrativa e política. Considerando o trabalho que ora

se desenvolve, importante que as ciências anteriormente mencionadas venham também se

socorrer dos ensinos prestados pelas chamadas ciências da saúde, como a Medicina e a

Biologia, posto que de suma, senão essencial, relevância para que sejam concebidas políticas

públicas de saúde com a maior eficiência que se puder atingir, com a menor oneração possível

para o erário público, que é, no significado mais amplo da palavra, o dinheiro do cidadão,

ainda mais, o dinheiro de todos os cidadãos.

2.2.2 Evolução histórica das políticas públicas de saúde no Brasil

A questão dos serviços de saúde prestados no Brasil, inquestionável e inegavelmente

insuficientes, e, por muitos, tidos como ineficazes e ineficientes, trata-se de assunto recorrente

em nossa história. Até que se chegasse ao Sistema Único de Saúde (SUS), tão criticado pelos

cidadãos deste país, foram necessárias muitas mudanças, insatisfações, e, até mesmo, lutas e

revoltas. Levando-se em conta que as políticas públicas são frutos da ação dos atores sociais,

para se entender como se deram as escolhas que resultaram na criação dos serviços sanitários

5 http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7495 6 Idem.

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prestados pelo Estado brasileiro, impõe-se relembrar a evolução e as ações daqueles que

construíram tais políticas no decorrer dos anos, nesta outrora denominada Terra de Santa

Cruz. Isso porque a política de saúde de um país é o reflexo do momento histórico em que tal

política foi criada, da sua situação econômica, dos avanços do seu conhecimento científico, da

capacidade das suas classes sociais influenciarem a política.

Inicialmente, segundo o Acúrcio, há que se dizer que a saúde é um direito moderno,

uma vez que, na antiguidade, a doença era vista como uma forma de punição divina, não

havendo forma para discipliná-la, incumbindo apenas aos deuses definir quem era merecedor

ou não de qualquer doença. Posteriormente, com o final da Idade Média e a retomada das

pesquisas e estudos científicos, passou a se dar maior importância aos cuidados com os males

do corpo, que atingiam as pessoas. Porém tais cuidados eram tomados privativamente, não se

configurando como obrigação do Estado, que se limitava a proteção contra agressões externas

e garantia da ordem pública. Apenas após as duas Grandes Guerras Mundiais é que a saúde

passou a figurar entre o rol dos direitos constitucionais, nos países que signatários da

Organização das Nações Unidas.

No Brasil da República Velha (1889 – 1930), ainda sob as lições de Acúrcio, as

epidemias frequentemente atormentavam a população brasileira, principalmente os menos

favorecidos, raleando ainda mais o ainda escasso povo brasileiro. Esta situação obrigou o País

a adotar algumas medidas nesta área, como a criação e implementação de serviços e

programas de saúde pública em nível nacional, gravando-se, nos anais da história pátria, a

atuação de Oswaldo Cruz à frente da diretoria Geral de Saúde Pública, organizando e

implementando, progressivamente, instituições públicas de higiene e saúde no Brasil, além de

adotar o modelo das “campanhas sanitárias”, destinadas a combater as epidemias urbanas e,

mais tarde, as endemias rurais. Sua atuação ferrenha e de cunho “bélico” culminou na

famigerada Revolta da Vacina. Mais tarde com a promulgação da Lei Eloy Chaves, em 1923,

e que é o marco da Previdência Social para muitos autores, possibilitou-se a criação das

Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAP‟s), que eram organizadas por empresas, de

natureza civil e privada, responsáveis pelos benefícios pecuniários e serviços de saúde para os

empregados de empresas específicas, e financiadas com recursos dos empregados e dos

empregadores, além de administradas por comissões formadas de representantes da empresa e

dos empregados. Cabia ao setor público apenas a resolução de conflitos. Esse período ficou

caracterizado principalmente pelo elevado padrão de despesa.

Na era Vargas (1930 – 1945), conforme as pesquisas empreendidas por Acúrcio,

pode-se identificar um processo de centralização dos serviços, que objetivava dar um caráter

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nacional às políticas públicas de saúde. Uniformizou-se a estrutura dos departamentos

estaduais de saúde do país, havendo um relativo avanço da atenção à saúde para o interior,

com a multiplicação dos serviços de saúde. Em relação às ações de saúde coletiva, esta é a

época do auge do sanitarismo campanhista, tendo sido o Departamento Nacional de Saúde

reestruturado e dinamizado, articulando e centralizando as atividades sanitárias de todo o País.

Em 1942 é criado o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), com atuação voltada para as

áreas não cobertas pelos serviços tradicionais. As CAP‟s foram substituídas pelos Institutos de

Aposentadorias e Pensões (IAP‟s), de cunho eminentemente previdenciários, tendo havido

redução nos serviços de saúde.

O período da redemocratização (1945 - 1964), caracterizado pela criação de vários

órgãos de saúde, manteve a realização de medidas demagógicas em troca de apoio popular,

permanecendo a imagem dos governantes como “pais do povo”, os quais se mostravam mais

interessados em obter poder político, do que em solucionar os problemas do país. Dentre os

órgãos que foram criados, destaca-se o Serviço Especial de Saúde Pública, que visava,

principalmente, a assistência médica dos trabalhadores recrutados para auxiliar na produção

da borracha na Amazônia e que estavam sujeitos à malária. Neste período também foi criado

o Ministério da Saúde, em 1953, posto que as ações na área de saúde pública haviam sido

ampliadas a tal ponto, que exigiu uma estrutura administrativa própria. Os IAPs que possuíam

recursos suficientes construíram hospitais próprios. Surgiram também os primeiros serviços

médicos particulares contratados pelas empresas, insatisfeitas com o atendimento do Instituto

de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPI), tendo daí se originado os futuros

convênios das empresas com grupos médicos, conhecidos como 'medicina de grupo', que

iriam caracterizar a previdência social posteriormente. Esse período se caracteriza também

pelo investimento na assistência médica hospitalar em detrimento da atenção primária

(centros de saúde), pois aquele era compatível com o crescente desenvolvimento da indústria

de equipamentos médicos e da indústria farmacêutica.

Durante o governo militar (1964 – 1980), as verbas para o Ministério da Saúde

diminuíram significativamente. Os IAP‟s foram fundidos, resultando na criação do Instituto

Nacional de Previdência Social (INPS), que possibilitou a implementação de uma política de

saúde e o desenvolvimento de um complexo médico-industrial, em especial nas áreas de

medicamentos e equipamentos médicos. Generalizou-se a procura da sociedade por consultas

médicas em razão das graves condições de saúde; a medicina é tida como sinônimo de cura e

de restabelecimento da saúde individual e coletiva; inúmeras clínicas e hospitais privados são

construídos ou reformados, com financiamento da Previdência Social; multiplicam-se

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faculdades particulares de medicina por todo o país, assim como, a organização e a

complementação da política de convênios entre o INPS e os hospitais, clínicas e empresas de

prestação de serviços médicos, sendo essas as orientações principais da política sanitária da

conjuntura do “milagre brasileiro”. Predominou um sistema de atenção médica de massa em

detrimento da medicina social e preventiva, surgindo e crescendo um setor empresarial de

serviços médicos, constituídos por proprietários de empresas médicas centradas mais na

lógica do lucro do que na lógica da saúde ou da cura de sua clientela; desenvolveu-se um

ensino médico, que se distanciou da realidade sanitária da população, aproximando-se da

especialização e da sofisticação tecnológica, dependente das indústrias farmacêuticas e de

equipamentos médico-hospitalares, o que resultou na consolidação de uma relação autoritária,

mercantilizada e tecnificada entre médico e paciente, bem como entre serviços de saúde e

população. O INPS enfrentou forte crise financeira, sendo criado em 1978 o Sistema Nacional

de Previdência e Assistência Social (SINPAS), o Instituto Nacional de Assistência Médica da

Previdência Social (INAMPS) e o Instituto de Arrecadação da Previdência Social (IAPAS),

tendo como objetivo disciplinar a concessão e manutenção de benefícios e prestação de

serviços, o custeio de atividades e programas, a gestão administrativa, financeira e patrimonial

da previdência, além de integrar os órgãos já existentes.

As décadas de 80 e 90 foram marcadas por buscar reduzir os gastos e

simultaneamente ampliar os serviços médicos para os setores ainda não cobertos. Busca-se a

descentralização, articulada à regionalização e à hierarquização dos serviços de saúde e à

democratização do sistema, através da extensão de cobertura. Pregava-se a priorização do

setor público, aliada à necessidade de racionalizar os gastos com saúde. Sob essa óptica são

criados o Conselho Consultivo da Administração da Saúde Previdenciária (CONASP) e as

Ações Integradas de Saúde (AIS), com o intuito de melhorar a qualidade da assistência,

através de modificações no modelo privatizante de compra de serviços médicos, tais como a

descentralização e a utilização prioritária dos serviços públicos federais, estaduais e

municipais na cobertura assistencial da clientela. Buscava-se também estabelecer a idéia de

integração da saúde pública com a assistência médica individual. Em 1986, foi realizada a

VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), um marco na formulação das propostas de

mudanças para o setor de saúde brasileiro, consolidadas na Reforma Sanitária nacional, que

serviu de diretriz para a Assembléia Nacional Constituinte de 1988, a qual trouxe pela

primeira vez, uma seção sobre a Saúde, incorporando, em grande parte, os conceitos e

propostas daquela conferência, podendo-se dizer que, na essência, a Constituição adotou a

proposta da Reforma Sanitária e do SUS, apesar de haver aqueles que defendiam a

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manutenção do sistema então vigente ou a adoção de um seguro-saúde semelhante àquele

adotado pelos norte-americanos.

A CRFB/88, reconhecidamente uma das mais avançadas do mundo, quando se refere

ao direito à saúde, acabou por aprovar a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), que é um

sistema formado por várias instituições dos três níveis de governo (União, Estados e

Municípios), e pelo setor privado, contratado e conveniado, como se formasse um mesmo

corpo. Ele deve ser descentralizado, eficaz, eficiente, democrático e racional, além de atender

a todos, atuar de forma universal. As mudanças por ele propostas são muitas e complexas,

assim como os interesses e objetivos que almeja alcançar. Por isso, tem-se que o SUS é um

processo que estará sempre em aperfeiçoamento e adaptação. Não há que se olvidar que está

vinculado aos princípios da universalidade, integralidade e igualdade na assistência de saúde,

orientação programática e participação da comunidade, dentre outros princípios

expressamente previstos no Art.7º da Lei 8080/90.

Tantas mudanças verificadas nas políticas públicas do Brasil demonstram as grandes

dificuldades, pelas quais a sua população tem passado no decorrer de todos esses anos. Muitas

disputas, derrotas, sofrimentos e algumas conquistas, estas inestimáveis, tanto quanto as vidas

perdidas ao longo desta caminha; seja de nacionais doentes em busca de serviços de saúde de

boa qualidade; seja daqueles que arregaçaram as mangas e foram à luta, participando do

processo político, cobrando as promessas feitas em campanhas eleitorais. Entretanto, como já

dito anteriormente, em um sistema capitalista como o nosso, a concretização das políticas

públicas tem um custo para o Estado, que só poderia, ou pelo menos deveria, gastar nos

limites de sua riqueza.

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3 A TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL

O direito à saúde é um direito humano fundamental social de segunda geração, como

visto anteriormente, e, como tal, importa em uma obrigação de fazer, uma conduta e uma

atuação positiva do Estado. Assim sendo, toda vez que este não presta os serviços

relacionados à saúde de forma satisfatória, infringe aquele direito, mesmo quando atua

insuficientemente. Da mesma forma, há afronta ao debatido princípio quando, tendo a

obrigação de executá-lo, não o faz, pecando omissivamente, uma vez que deixa de atuar. A

inconstitucionalidade pode ocorrer tanto mediante ação governamental, quanto por inércia

estatal. Dito isto, importante se torna determinar direitos humanos, que, segundo Vaz (2009,

p.10), poderiam ser definidos “como o conjunto de direitos e garantias que têm por finalidade

básica o respeito à dignidade humana, por meio da proteção desta contra a ação arbitraria do

Estado, e o estabelecimento de condições mínimas de vida humana digna que exigem

prestações estatais positivas.”

Ocorre que todas as ações estatais no sentido de efetivação destes direitos significam

gastos, dispêndios de bens e/ou valores por parte do Estado, e, consequentemente, a assunção

de obrigações financeiras que deverão ser suportadas por este mesmo Estado, ou seja, a

efetivação desses direitos depende de recursos financeiros orçamentários. Nesse sentido,

importante é a citação dos ensinamentos de Trindade (1997 apud VAZ, 2009, p.26), que,

lecionando sobre a exigibilidade dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais

(DHESC), dentre os quais se encontra o direito à saúde, “explicita uma série desses direitos

que podem e devem ser exigidos de imediato”, relacionando amplo rol de obrigações dessa

espécie, merecendo destaque a “[...] e) obrigação de prestar um padrão mínimo de direitos

humanos e, em caso de não cumprimento, provar que o máximo de recursos foi utilizado de

forma absolutamente eficiente [...]” De fato, a consideração da questão financeiro-

orçamentária é de grande relevância para o debate ora empreendido. Importante a colação do

ensino, transcrito a seguir:

A excessiva importância dada aos recursos financeiros, na verdade tem

impossibilitado a realização de muitos direitos humanos, econômicos e sociais e

culturais, mediante a acomodação dos estados nos seus diversos níveis, às situações

de vulnerabilidade de amplos setores sociais. O argumento da mera escassez de

recursos financeiros, usado com freqüência pelos administradores públicos, resulta

na postergação da realização prática dos DHESC. ”(LIMA JÚNIOR apud VAZ,

p.26)

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A própria Constituição traz como pressuposto essencial à compreensão do Estado de

Direito a realização de um Estado Orçamentário. Ela mesma normatiza o equilíbrio entre

receitas e despesas. Nesse sentido, mostra-se interessante e importante a lição transcrita

abaixo

O Estado Orçamentário, que pelo orçamento fixa a receita fiscal e a patrimonial,

autoriza a entrega de prestações de educação, saúde, seguridade e transportes e

orienta a promoção do desenvolvimento econômico, o equilíbrio da economia e da

redistribuição de renda, é um Estado de Planejamento. (TORRES, apud VAZ, 2009,

p.27)

É nesse contexto que ganha importância a teoria da reserva do possível, que passa a

ser estudada a seguir.

3.1 Origem e conceito

A doutrina e expressão denominadas “reserva do possível” foram criadas na

Alemanha, em 1972, em sua Corte Constitucional, quando foi proferido acórdão

paradigmático, através do qual ficou decidido que os direitos sociais de natureza prestacional,

que envolvessem custos efetivos ao Estado, ficariam sujeitos à reserva da lei e à

disponibilidade de recursos. Nesse julgamento foi discutido o direito de acesso ao ensino

público superior, por não existirem vagas suficientes, apesar de pedido fundamentado em

garantia de lei federal alemã de liberdade de escolha da profissão. O Tribunal Constitucional

alemão julgou improcedente o pedido, acabando por firmar jurisprudência no sentido de que a

prestação reclamada deve equivaler ao que, razoavelmente, pode o indivíduo exigir da

sociedade, de maneira que, mesmo o Estado dispondo dos recursos, não se poderia falar em

uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável. Assim sendo, o

Estado não deve ser obrigado a prestar assistência social a alguém que não faça jus ao

benefício, por dispor, ele próprio, de recursos suficientes para seu sustento. De acordo com a

referida decisão, e em conformidade com parte considerável da melhor doutrina alemã, o

“razoável” depende da ponderação por parte do legislador, uma vez que tal discricionariedade

encontrar-se-ia localizada dentro de seu campo de decisões governamentais e no campo de

discricionariedade dos parlamentos, através da composição dos orçamentos públicos.

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A teoria da reserva do possível é construção teórica, segundo a qual, o Estado,

mesmo reconhecendo a existência de um direito social, defende a impossibilidade fática e/ou

prática de efetivá-lo, devido às limitações decorrentes da escassez de recursos para

implementação de tais direitos, que importam em obrigações prestacionais por parte daquele.

Essa teoria é utilizada, na prática, como defesa estatal a fim de tentar se eximir do

cumprimento de obrigações legais que lhe são impostas, ao fundamento da incapacidade

financeira, já que ninguém pode ser obrigado a realizar algo impossível. Isso porque, diante

da limitação dos recursos financeiros, os entes políticos normalmente não conseguem cumprir

todas as obrigações impostas pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, a teoria da reserva do

possível serve como argumentação, no sentido de justificar tal descumprimento. A partir desta

consideração, tem-se que essa teoria biparte-se em outros dois conceitos: o da teoria do

possível e o da teoria da reserva do financeiramente possível, sendo esta espécie, da qual

aquela é gênero.

A teoria da reserva do possível retrata todos os eventos, formais ou materiais, que

impedem a concretização de direitos, incluindo-se entre estes os direitos sociais, seja em razão

da não disponibilidade, ou mesmo da inexistência, de determinado bem, no mercado, que

concretizaria o direito em questão; seja ainda em razão da concessão de prazo evidente e

claramente exíguo para a concretização de referido direito ou para concessão de algum

bem/objeto. Um exemplo seria uma determinação do Poder Judiciário ao Poder Público, para

construir escolas, fixando-se prazo de poucos dias para cumprimento de tal obrigação, ainda

que com a finalidade de se privilegiar o direito fundamental social à educação. Neste caso,

plenamente aceitável que se aplique a teoria da reserva do possível, porque não se pode, por

vezes, dobrar a natureza ou as contingências da vida, ainda que em nome dos direitos

humanos sociais.

Já a teoria da reserva do financeiramente possível, também chamada teoria da

reserva orçamentária, apóia-se na inexistência de recursos financeiros disponíveis para a

efetivação dos direitos humanos. Seria o caso, por exemplo, do cidadão que requisita

medicamentos disponíveis no mercado, mas que ainda não se encontram entre aqueles

relacionados na lista de distribuição de medicamentos da rede pública. Parte da doutrina

entende que tal teoria não se sustenta, porque ofenderia a obrigação de o Estado planejar seus

gastos a longo e médio prazo, não podendo, dessa forma, alegar a própria torpeza, para furtar-

se às obrigações que lhe são impostas pela Constituição. Segundo Vaz (2009, p.27), “Se o

Estado alega falta de recursos para a efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais, o

erro é duplo: desrespeito aos direitos humanos e desrespeito às normas constitucionais de

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planejamento orçamentários.” Apesar de se reconhecer a perspicácia de tal manifestação de

pensamento, não se pode olvidar que a torpeza em questão, se comprovada, seria do

administrador/legislador, não podendo ser atribuída ao Estado a torpeza de outrem, o que seria

o mesmo que transferir aquelas irresponsabilidades, em última analise, a toda a sociedade.

Apesar desse entendimento de parte da doutrina, a jurisprudência tem aceitado a alegação da

teoria da reserva do financeiramente possível, como se pode observar no voto proferido no

julgado colacionado a seguir, de lavra da Exmª. Srª. Desª. Albergaria Costa:

Número do processo: 1.0000.06.443869-0/000(1). EMENTA: MANDADO DE

SEGURANÇA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. PROVA DO DIREITO

LÍQUIDO E CERTO. LEGITIMIDADE PASSIVA DO ESTADO. AUSÊNCIA DE

ILEGALIDADE OU ABUSO DE PODER. [...] A segunda objeção esbarra no

reconhecimento da efetiva disponibilidade, pelo Estado, de recursos materiais e

humanos para serem alocados na área da saúde em detrimento dos demais direitos

sociais prestacionais - tais como a educação, a moradia, a assistência social - o que

se apresenta como limite fático relevante submetido ao que se denominou "reserva

do possível". Além disso, por se tratar de recursos públicos, estariam eles

submetidos a uma "reserva parlamentar em matéria orçamentária", donde se extrai

que a competência para decidir sobre a alocação desses recursos cabe

exclusivamente ao Poder Legislativo, sem possibilidade de ingerência do Judiciário,

por respeito aos princípios constitucionais da democracia e da separação dos

poderes. O ilustre professor e Doutor em Direito pela Universidade de Munique,

Ingo Wolfgang Sarlet, elucida com propriedade o tema: "Embora tenhamos que

reconhecer a existência destes limites fáticos (reserva do possível) e jurídicos

(reserva parlamentar em matéria orçamentária) implicam certa relativização no

âmbito da eficácia e efetividade dos direitos sociais prestacionais, que, de resto,

acabam conflitando entre si, quando se considera que os recursos públicos deverão

ser distribuídos para atendimento de todos os direitos fundamentais sociais básicos,

sustentamos o entendimento, que aqui vai apresentado de modo resumido, no

sentido de que sempre onde nos encontramos diante de prestações de cunho

emergencial, cujo indeferimento acarretaria o comprometimento irreversível ou

mesmo o sacrifício outros bens essenciais, notadamente - em se cuidando da saúde -

da própria vida, integridade física e dignidade da pessoa humana, haveremos de

reconhecer um direito subjetivo do particular à prestação reclamada em Juízo. [...]

Cabe lembrar, neste contexto, que, nesta linha de entendimento, um direito subjetivo

a prestações não poderá abranger - em face dos limites já referidos - toda e qualquer

prestação possível e imaginável, restringindo-se, onde não houver previsão legal, às

prestações elementares e básicas. Neste sentido, cumpre ferir paradigmática

formulação enunciada pelo Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, ao

lembrar que o particular poderá reclamar do Estado apenas algo que seja razoável.

Assim, por exemplo, não parece razoável compelir o Estado a pagar tratamento

dentário de cunho não imprescindível, ou mesmo fornecer determinado

medicamento, quando existe outro similar em eficácia, mas de custo menor.7

7http://www.tjmg.jus.br/juridico/jt_/inteiro_teor.jsp?tipoTribunal=1&comrCodigo=0&ano=6&txt_processo=443

869&complemento=0&sequencial=0&palavrasConsulta=reserva do

possível&todas=&expressao=&qualquer=&sem=&radical=

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Por mais controvertido que seja o tema em questão, não pode haver discordância

sobre o fato de que a realidade não se curva à vontade humana, ainda que esta vontade esteja

contida e expressa na norma jurídica fundamental. O legislador e o administrador, ainda que

estivessem imbuídos das melhores intenções, não poderiam simplesmente ordenar, ainda que

expressamente, a solução de todos os problemas de uma sociedade, ainda que não fosse esta

complexa. Partindo dessa premissa, extrai-se que a teoria da reserva do possível impõe dois

condicionamentos à concretização dos direitos sociais, como o direito à saúde, que são de

implantação sempre onerosa, conforme lição de peso, trazida a lume pelo Eminente Ministro

do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello (2004), externada em sua brilhante exposição

de pensamento, transcrita a seguir:

EMENTA: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO

FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO

CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE

IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA

HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA

DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO

TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À

EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS.

CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO

LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA

"RESERVA DO POSSÍVEL". NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR

DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO

NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO "MÍNIMO EXISTENCIAL".

VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO

NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS

(DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO). [...] É que a

realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se pela

gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um

inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do

Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-

financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a

limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da

Carta Política. [...]"Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência

que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum

bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu

fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do

Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação

de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos

fundamentais da Constituição. [...]Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos,

pela cláusula da "reserva do possível", ao processo de concretização dos direitos de

segunda geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio

que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social

deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade

financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas.

Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental de tornar efetiva a

aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos

componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade

financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de

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cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á

a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos.8

Considerando tudo que foi dito anteriormente, compreende-se que o cidadão que

requerer a concretização de um direito social, seja saúde, educação, moradia ou saneamento

básico, deverá comprovar sua incapacidade para arcar com a despesa na aquisição do bem e a

disponibilidade financeira do Ente estatal competente para cumprir com tal ônus. Esta pode

até ser presumida, no caso concreto e levando-se em conta apenas um indivíduo a ser

atendido; aquela, porém, deve ser demonstrada, para que se possa cogitar da possibilidade de

que o Judiciário imponha um dever não previsto na lei orçamentária ao administrador público.

3.2 Todo direito tem custo

Importante para a questão da reserva do financeiramente possível é a classificação

dos diretos sociais, conforme a sua aplicabilidade imediata ou não-imediata. Segundo Silva9

(2000 apud SIQUEIRA, 2010),

“aplicabilidade significa qualidade do que é aplicável”, de maneira que,

juridicamente, diz-se que a “norma que tem possibilidade de ser aplicada” é “norma

que tem capacidade para produzir efeitos jurídicos”, não se cogitando “saber se ela

produz efetivamente esses efeitos”, posto que isso diria respeito a uma análise

sociológica.

Dessa forma, tem-se que as normas de aplicabilidade imediata seriam aquelas

relacionadas aos direitos ligados às liberdades sociais, também conhecidos como direitos

negativos, assim nomeados por não exigirem, a princípio, nenhuma atuação do Estado, mas

apenas uma posição de respeito e abstenção por parte dos poderes públicos. Já as normas de

aplicabilidade não imediata seriam aquelas referentes aos direitos sociais programáticos,

também chamados direitos positivos, uma vez que são considerados como sendo de

aplicabilidade diferida, por demandarem uma atuação positiva do Estado, ao adotar uma

8 http://www.aldemario.adv.br/reservadopossivel.htm

9http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/revista_do_tribunal_de_contas_do_estado_de_minas_g

erais_763_2010_45_0.pdf

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postura ativa, em busca da promoção da igualdade; sendo direitos sociais de aplicabilidade

diferida, apenas esses suscitariam a questão da reserva do possível.

Todavia, Marcílio (2009, p.154-159) defende que todos os direitos são positivos, pois

todos exigem uma atuação positiva e efetiva do Estado, mesmo os de aplicabilidade imediata,

tidos como unicamente negativos, já que imprescindem de uma prestação estatal positiva,

pressupondo uma cooperação social organizada pelo Estado. Baseando-se nas idéias de

Holmes, Steven e Sunstein, o autor anteriormente citado ensina que mesmo os direitos tidos

como negativos, necessitam que o Estado atue de forma efetiva, visando sua concretização e

proteção; quer seja através da definição do conteúdo do direito negativo pelo legislador, para

que possa ser concretizado; quer seja pela disponibilização pelo Estado de meios para que o

cidadão possa defender seus direitos, como os serviços de corpo de bombeiros e da autoridade

policial, os cartórios de registro e guarda de documentos, bem como a possibilidade de se

recorrer ao Poder Judiciário em busca da tutela jurisdicional no caso de violação ou ameaça a

um direito, para impor e obrigar o cumprimento destes. Todas essas citações seriam exemplos

da atuação positiva e efetiva do Estado, o que conduziria à conclusão de que todos os direitos

fundamentais seriam positivos, necessitando de uma atuação, ainda que indireta, do Poder

Público, mesmo que esta viesse a se dar pela criação de infra-estrutura básica, possibilitadora

do exercício dos direitos, podendo-se afirmar que não há Direito sem Estado.

Corolário dessa declaração é a conclusão de que a efetivação e a concretização dos

direitos precisam que recursos financeiros sejam dispendidos, que os direitos sejam custeados

pelo erário público, o que significa, em última análise, que a sociedade deve arcar com esses

gastos, através da captação de dinheiro da coletividade por meio da tributação, para que se

promova o seu desenvolvimento e bem-estar. Ou seja, os direitos têm custos, a serem supridos

por meio da arrecadação de impostos. De fato, todos os órgãos e serviços disponibilizados ao

cidadão, como os parlamentares, juízes, administradores, servidores públicos, etc., traduzem-

se em gastos financeiros, ainda que não sejam utilizados de fato, no mundo concreto, posto

que passíveis de utilização. Os direitos também ensejariam custos sociais, já que existe

correspondência entre direitos e deveres: ao passo que aqueles são criados para uns, ao

mesmo tempo, estes são impostos a outros. Por isso, o orçamento e o erário público seriam

limitados, o que torna impossível a concretização imediata de todos os direitos, ante a

escassez de meios financeiros suficientes para tal.

O Poder Público então deve administrar, adequada e eficientemente, os recursos

sociais, que são escassos, ao passo que busca realizar o maior bem social possível, sendo

forçoso aceitar que os direitos não são absolutos, mas limitados pela reserva do

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financeiramente possível, posto que limitados também são os recursos do Estado. Portanto,

este deverá escolher e decidir quais direitos protegerá, ou não, conforme os interesses da

sociedade, concretizando uns em detrimentos de outros direitos, através das políticas públicas,

que se revelam como sendo escolhas trágicas, quando analisadas neste contexto.

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4 O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

O Art.2º da Constituição Federal de 1988 traz a tipificação do princípio da separação

dos três poderes, quando preceitua que o Executivo, o Legislativo e o Judiciário são poderes

da União, harmônicos e independentes entre si. Neste mesmo diapasão, a Lei Maior do Estado

brasileiro erigiu tal princípio ao status de cláusula pétrea, quando o constituinte originário o

inseriu no Art.60, §4º, estabelecendo que a proposta tendente a abolir a separação dos poderes

não será objeto de deliberação. Por estas normas constitucionais tem-se que as funções de

Estado jamais poderão ser concentradas exclusivamente nas mãos de apenas uma única

pessoa, mas sim, deverão ser distribuídas e exercidas por diferentes cidadãos. Tão relevante é

tal princípio, que nem mesmo o poder constituinte reformador poderá excluí-lo.

Porém, a prática revelou que a rigidez na interpretação de tal princípio oferece mais

dificuldades que soluções, tendo sido criada, então, a teoria dos freios e contrapesos, na busca

por maior efetividade e racionalidade no exercício das funções soberanas do Estado, quais

sejam, a legiferante, a administrativa e a judicial. De tudo que cerca esse princípio, não restam

dúvidas de que se trata de princípio fundamental do Estado Democrático de Direito,

juntamente com a soberania popular, o pluralismo político, o respeito e garantia dos direitos

fundamentais e submissão à vontade da lei. Eis o que se pretende compreender durante este

capítulo.

4.1 Evolução histórica

O princípio da separação dos poderes e sua evolução revelam-se como tentativas de

controlar o exercício do poder político, sendo essa sua doutrina e finalidade. Muitos atribuem

sua gênese e sua concepção a Aristóteles, que teria lançado a noção de constituição mista, em

sua obra, Política, como sendo aquela constituição em que muitos grupos ou classes sociais

participam do exercício do poder político, exercendo a soberania ou o governo, e não apenas

uma única parte constitutiva da sociedade. Revela-se como aquela que atenderia de forma

mais satisfatória às desigualdades e diversidades existentes na sociedade, com o objetivo de

compô-las na organização constitucional, para que nenhuma classe adquirisse predominância

sobre outra. Remonta daí a idéia da necessidade de equilíbrio entre classes, através da

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participação de todas elas no exercício do poder. Entretanto, muitos acreditam que não foi

Aristóteles o genitor destes pensamentos, posto que seus textos encontram-se demasiado

adiantados nesta questão, remontando a tempos pretéritos a ele o mérito pela concepção do

princípio.

Já em Roma, Políbio e Cícero adotaram a premissa aristotélica de constituição mista,

porém, atribuíram a ela caráter de separação, já que cada classe apenas teria acesso ao órgão

constitucional que lhe fosse destinado, ao passo que em Aristóteles todas as classes poderiam

ter acesso a todos os órgãos constitucionais, “misturando-se” em todos eles. À criação romana

denominou-se caráter interno.

Durante toda a idade média foi desenvolvida e aplicada a idéia de constituição mista,

na Inglaterra, obrigando os senhores feudais e o Rei a repartirem entre si o poder político,

limitando-se assim o poder real por intermédio do direito contido nas ordens ou estamentos.

Dessa atividade surgiu a idéia do rule of law (governo pelas leis), primeira forma histórica do

que viria a ser o Estado Constitucional, ou de Direito, que tem como um dos seus elementos

essenciais a separação dos poderes.

Contrapondo-se a estas idéias, foram desenvolvidos ideais absolutistas, que

procuravam justificar filosoficamente a concentração dos poderes nas mãos de uma só pessoa,

o soberano, inspirados nas noções de soberania, do filósofo Bodin, e na doutrina de Thomas

Hobbes, expressas em seu livro, O Leviatã. O soberano apenas encontraria limites no direito

natural. Porém, o que se viu, no caso concreto, foi a aplicação única e exclusiva de sua

vontade, governando a seu bel prazer, sem lançar mão do direito. Nada se viu, senão

degeneração, arbitrariedades e abuso de poder.

Nesse cenário, que se fez presente em toda a Europa continental, com realce da

ascensão econômica da burguesia, é que novamente foi possível revitalizar os ideais de

separação dos poderes, do modo como haviam sido pensados por gregos e romanos, com o

fito de colocar fim aos desmandos dos reinados absolutistas, mediante as formas liberais de

contenção da autoridade e as garantias jurídicas da iniciativa econômica. Isso se deu com as

publicações das obras de dois grandes nomes do pensamento ocidental: a do inglês John

Locke, em seu livro, Segundo tratado das leis civis (1690); e a do francês, Charles-Louis de

Secondar, mais conhecido pela alcunha de barão de Montesquieu, em seu livro festejado livro,

O espírito das leis (1748). Locke foi o primeiro a lançar mãos da formulação do que viria a

ser chamado de Estado Liberal, relacionando a separação dos poderes com a rule of law. Ele

defendeu a necessidade de que fossem diferentes e diversas a pessoa que faz a lei e a pessoa

que aplica a lei. Para ele, o Poder Legislativo era o poder por excelência, do qual seriam

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derivados o Executivo e o Federativo, que era diverso do Executivo, mas deste não podia ser

separado.

Contudo, foi Charles de Secondar, mais conhecido como Barão de Montesquieu,

quem mais se destacou e mais foi aceito, no que concerne à separação de poderes, com a

inclusão da função de julgar entre as funções soberanas do Estado, um dos poderes

fundamentais deste, conforme explicitado no trecho que segue:

Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo

está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o

mesmo monarca ou mesmo o senado crie leis tirânicas para executá-las

tiranicamente. Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do

legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a

vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se

estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo

estaria perdido se o mesmo homem, ou um mesmo corpo dos principais, ou dos

nobres, ou do povo, exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as

resoluções públicas, e o de julgar os crimes ou as querelas dos particulares.

(MONTESQUIEU, 1748, traduzido por MURACHCO, 1996, p.168).

Montesquieu, entretanto, relegava maior valoração ao poder legislativo em

detrimento do judiciário. Para os povos europeus, adeptos do parlamentarismo, o poder

legislativo era, e ainda é, o poder mais proeminente. Ironicamente, foi o temor de um

legislativo excessivamente poderoso, que pudesse chegar às vias da tirania, que levou os

americanos Madison, Hamilton e Jay, a conceberem um modelo de separação dos poderes que

diminuísse a predominância do poder legislativo, conferindo maior equilíbrio na relação entre

os poderes constituídos, mirando o fortalecimento do poder executivo, afastando, desta forma,

o modelo europeu que conferia maiores poderes ao legislativo. Esses autores, então,

propuseram um projeto, um mecanismo ou, ainda um sistema, que equilibrasse as forças

soberanas, balanceando o peso entre os poderes soberanos de um Estado, no caso, os Estados

Unidos da América, buscando um equilíbrio entre eles. Deu-se então a teoria dos freios e

contrapesos (check and balances).

Também foi um americano, John Marshal, chief-justice da Suprema Corte Norte

Americana, o responsável por situar o judiciário no mesmo nível que os outros dois poderes,

inaugurando o poder da revisão judicial, segundo o qual se atribuiu ao judiciário a função de

dizer o que se considera lei, ou não, conforme as produções legislativas se encontrem de

acordo, ou não, com as disposições do texto constitucional. Isso se deu com sua memorável

decisão no caso MARBURY versus MADISON (1803), que deu início ao que se conhece

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hodiernamente por sistema de controle da constitucionalidade, também chamado controle

difuso de constitucionalidade das normas.

Eis a configuração do Estado moderno, composto por três poderes, harmônicos e

independentes entre si. A exigência desta tripartição atingiu tamanho destaque, que a

declaração universal dos direitos do homem e do cidadão, promulgada em 1789, a estampou

em seu texto, no artigo XVI, dizendo que “toda sociedade, na qual a garantia dos direitos não

está assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não existe constituição.”

4.2 A separação dos poderes no Brasil

O Brasil tradicionalmente tem adotado o princípio da separação do poderes em suas

normas constitucionais. Desde a Constituição Imperial, outorgada em 1824, já se encontra

presente o reconhecimento da necessidade de controle do poder político. Esta Carta previa a

existência de quatro poderes de Estado: o Legislativo, o Executivo, o Judiciário e o

Moderador. A separação de poderes encontra-se claramente distante da clássica tripartição

idealizada por Montesquieu nesta constituição, principalmente em razão da inserção do Poder

Moderador, que mitigava a independência e a harmonia do instituto. De fato, o Imperador,

que era o titular privativo deste poder, era irresponsável por seus atos, inviolável, sagrado,

restando configurada a não divisão dos poderes, mas sim a submissão de todos à vontade do

Rei, o que reveste a quadripartição desta Carta de um caráter meramente formal, não se

vislumbrando concretamente qualquer divisão de poder. Interessante, porém, a citação do

objetivo da partição do poder político, constante da Constituição de 182410

, que preleciona:

“Art. 9. A Divisão, e harmonia dos Poderes Politicos é o principio conservador dos

Direitos dos Cidadãos, e o mais seguro meio de fazer effectivas as garantias, que a

Constituição offerece.” (Constituição Política do Império do Brasil – 25 mar.1824)

Tem-se que esse é o objetivo maior de se atribuir as funções essenciais do Estado a

pessoas diferentes: garantir a efetividade dos direitos dos cidadãos. Isso obviamente tende a

não acontecer quando o poder se encontra concentrado nas mãos de um governante apenas.

10

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm

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Porque o poder corrompe. E, se não houver outra pessoa, em igualdade de condições para

limitá-lo, as regras que editar somente serão promessas, vazias de qualquer significado e

possibilidade de concretização.

A constituição posterior à Imperial foi a Constituição da primeira República, que, ao

repudiar a monarquia, favorecendo o presidencialismo, claramente influenciada pelo modelo

norte-americano, privilegiou a tripartição dos poderes políticos na forma concebida por

Charles de Secondar. De fato, trouxe efetivamente a divisão de poderes, além da distribuição

de competências entre a União e os Estados-membros, de onde decorrem novas limitações e

novos instrumentos de freios e contrapesos, privando por um mecanismo de equilíbrio dos

poderes, com a atuação recíproca de cada um sobre os demais, na contenção de excessos,

tendente a atuar no âmbito dos três poderes, bem como, nos três níveis em que se desdobra a

federação, quais sejam: União, Estados-membros e Distrito Federal e Municípios.

Esta Carta vigorou até o ano de 1934, ano em que foi promulgada nova Constituição,

a menos duradoura da história brasileira, mas que privilegiou a organização tripartite do poder

político, inscrevendo-a em seu artigo 3º. Trouxe grandes mudanças, especialmente no

legislativo. O Senado deixou de ter ampla iniciativa legislativa, a qual ficou a cargo da

Câmara dos Deputados, para exercer competências importantes, relativamente aos assuntos de

interesse dos Estados-membros, e, ainda, a supremacia para exercitar o sistema de freios e

contrapesos. Restou ao Senado a incumbência de coordenar os poderes de estado, manter a

continuidade administrativa e velar pela Constituição. Já a Câmara passou a ser composta

também pela chamada representação classista, passando a ser integrada por representantes de

determinadas classes sociais, revelando a clara adoção de um modelo corporativista, de

inspiração européia.

Então, no ano de 1937, Getúlio Vargas outorgou novo texto constitucional, de clara

influência nazi-facista, conhecido pela alcunha de constituição “polaca” (por ser inspirada na

Constituição Polonesa), ainda e também, influenciada pelo modelo vigente em Portugal à

época, donde retirou, seu mentor, o termo “Estado Novo”. Esta Constituição nada apresentou

de novo sobre o tema em estudo neste tópico, apesar de trazer a previsão da existência de um

poder legislativo, porém submisso à autoridade suprema do presidente da república,

expressamente constante de seu Art. 73, o que, por si só, inviabilizava a existência de poderes

harmônicos e independentes. De fato, dispunha o chefe do executivo de poderes como: a

dissolução da Câmara dos Deputados, em caso da não aprovação por aquele órgão de medidas

tomadas durante estado de guerra ou emergência e possibilidade de submeter novamente ao

exame do Parlamento uma lei declarada inconstitucional por órgão judicial, apesar de,

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aparentemente, haver a possibilidade de o Judiciário declarar a inconstitucionalidade de lei, de

modo terminativo. O Senado Federal foi substituído por um Conselho Federal, formado por

representantes dos Estados-membros e por dez representantes indicados pelo presidente. Foi

criado ainda um Conselho de Economia, para “colaborar” com o Legislativo. Refletia-se nesta

constituição o estado autoritário de exceção, que ora se instalava.

Em 1946, reconciliando-se com a democracia, mediante a promulgação de nova carta

magna, retorna-se à tripartição do poder político. A técnica de redação nela utilizada,

substituindo a idéia de coordenação, inserida pela constituição de 1934, por harmonia, persiste

até os tempos hodiernos, tendo resistido inclusive ao terrível período do governo militar. Há

que se destacar o retorno do sistema legislativo bicameral e a expressa vedação ao exercício

concomitante de funções estatais soberanas distintas, por um mesmo cidadão.

As constituições que sucederam à Carta de 1946, referentes ao período militar,

mantiveram a idéia de “separação” dos poderes, inserindo apenas a figura do decreto-lei, que

conferia, na prática, competência legislativa ao presidente, e principalmente porque previa a

aprovação tácita de textos legislativos, caso o Congresso Nacional, dentro de sessenta dias,

não houvesse deliberado sobre o tema, sem, contudo, poder emendá-lo. Este instituto poderia

versar sobre: segurança nacional; finanças públicas, inclusive normas tributárias; e criação de

cargos públicos e fixação de vencimentos, desde que não importasse em aumento de despesa e

fossem feitos em casos de urgência ou de interesse público relevante.

A Constituição atualmente vigente, chamada cidadã, reforçou o princípio da

separação dos poderes, apesar de ter permitido ao presidente da república editar medidas

provisórias e ter alargado a competência legislativa federal, em razão da competência vertical.

Isso porque adotou o sistema de controle jurídico do poder, centro de gravidade daquele

princípio, além de ter reforçado o papel do Poder Judiciário. Aumentou a esfera de ação do

Ministério Público, atribuindo-lhe a tutela dos interesses coletivos e difusos, a defesa da

ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

4.3 Sistema de freios e contrapesos na Constituição da República Federativa do Brasil de

1988

A própria definição de Estado Democrático de Direito pressupõe, não apenas a

existência de diferentes pessoas exercendo as funções inerentes ao Estado, mas também, a

possibilidade de controle recíproco entre os poderes estatais. Partindo dessa premissa, é que se

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concebeu a teoria dos freios e contrapesos, pois o poder deve ser exercido de forma separada,

mas complementar. Originada juntamente com a idéia da separação de poderes, mas apenas

revelada posteriormente, a teoria dos freios e contrapesos busca impedir também o

enrijecimento do governo, devido a uma interpretação restritiva e literal, que se poderia ter

daquela idéia, o que acabaria por inviabilizar o desenvolvimento das funções soberanas.

Assim sendo, tem-se que a teoria dos freios e contrapesos é o mecanismo de interferência e

interpenetração dos poderes de estados entre sí, originada na necessidade de aperfeiçoamento

da separação dos poderes estatais, flexibilizando-se o relacionamento entre eles. Ressalte que

é o principal elemento caracterizador do princípio da separação dos poderes no Direito

Contemporâneo.

O instituto tem sua origem, segundo muitos, em Aristóteles, quando previu a

necessidade de que a nobreza e o povo se controlassem mutuamente. Há aqueles outros que

defendem a origem inglesa desse sistema, a partir da ação da Câmara dos Lordes (nobreza e

clero), buscando equilibrar os projetos de leis emanados da Câmara dos Comuns (originados

do povo), a fim de conter estes, principalmente contra as ameaças aos privilégios da nobreza.

Montesquieu, em seu célebre “O Espírito das Leis”, manifesta a necessidade de existência do

bicameralismo (Câmara Alta e Câmara Baixa), para que as pessoas eminentes por nascimento,

riqueza ou honra, participassem da legislação, formando um corpo com poder de frear as

iniciativas do povo, e vice-versa. Da evolução da democracia inglesa surgem as primeiras

ferramentas caracterizadoras do instituto, quais sejam: o veto, ato do rei ou presidente, que

impede a entrada em vigor da legislação; e o impeachment, ato do parlamento para controlar

os atos do executivo, controlando o exercício desta função. Já o “check and balance” surge no

famigerado caso Marbury x Madison, decidido quando o Juiz Marshal, declara que o

Judiciário é o guardião da Constituição, devendo zelar pela constitucionalidade dos atos do

Congresso, devendo declarar nulos os atos manifestamente em desacordo com as normas

constitucionais.

Importante esclarecer que o Poder é uno. O que se reparte são as competências ou as

funções essenciais à organização e desenvolvimento do Estado, sempre tendo em mente a

garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos. Nesse sentido, mostra-se de extrema

relevância a lição transcrita a seguir:

O poder é um fenômeno sócio-cultural. Quer isso dizer que é fato da vida social.

Pertencer a um grupo social é reconhecer que ele pode exigir certos atos, uma

conduta conforme com os fins perseguidos; é admitir que pode nos impor certos

esforços custosos, certos sacrifícios; que pode fixar, aos nossos desejos, certos

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limites e prescrever, às nossas atividades, certas formas. Tal é o poder inerente ao

grupo, que se pode definir como uma energia capaz de coordenar e impor decisões

visando à realização de determinados fins. O Estado, como grupo social máximo e

total, tem também o seu poder, que é o poder político ou poder estatal. A sociedade

estatal, chamada também sociedade civil, compreende uma multiplicidade de grupos

sociais diferenciados e indivíduos, os quais o poder político tem que coordenar e

impor regras e limites em função dos fins globais que ao Estado cumpre realizar. Daí

se vê que o poder político é superior a todos os outros poderes sociais, os quais

reconhece, rege e domina, visando a ordenar as relações entre esses grupos e os

indivíduos entre si e reciprocamente, de maneira a manter um mínimo de ordem e

estimular um máximo de progresso à vista do bem comum. Essa superioridade do

poder político caracteriza a soberania do Estado (conceituada antes), que implica, a

um tempo, independência em confronto com todos os poderes exteriores à sociedade

estatal (soberania externa) e supremacia sobre todos os poderes sociais interiores à

mesma sociedade estatal (soberania interna). Disso decorrem as três características

fundamentais do poder político: unidade, indivisilidade e indelegabilidade, de onde

parecer impróprio falar-se em divisão e delegação de poderes, o que fica esclarecido

com as considerações que seguem. (SILVA, p.106/107, 2010) (destaques no

original).

Nesse mesmo sentido, importante também a lição do proeminente Celso de Barros11

,

sobre o tema:

Vale, entretanto, notar que, qualquer que seja a forma ou o conteúdo dos atos do

Estado, eles são sempre fruto de um mesmo poder. Daí ser incorreto afirmar a

tripartição de poderes estatais, a tomar essa expressão ao pé da letra. É que o poder é

sempre um só, qualquer que seja a forma por ele assumida. Todas as manifestações

de vontade emanadas em nome do Estado reportam-se sempre a um querer único,

que é próprio das organizações políticas estatais. (BARROS, apud

ALBUQUERQUE).

Importante considerar mais algumas definições, partindo do conceito de poder,

anteriormente citado. Dessa forma, tem-se, a partir das incalculáveis lições de Silva (2010, p.

106-112), que governo é o conjunto de órgãos supremos que formulam, expressam ou

realizam as vontades do Estado, posto que incumbido do exercício das funções do poder

político. Uma vez que o Estado não possui vontade real ou própria, sua vontade é a vontade

de seus órgãos, os quais atuam segundo suas vontades. Supremos são os órgãos incumbidos

de exercer o poder político, ao passo que dependentes são aqueles que não possuem tal poder,

encontrando-se em nível hierárquico inferior, exercendo atos administrativos. O conjunto

desses atos forma a Administração Pública, área de atuação do poder executivo. Conclui-se

dessa forma que o poder político é composto por várias funções, dentre as quais se destacam,

por sua fundamentalidade, as funções legislativa, executiva e judicial. São exercidas pelos

11

http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9886

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poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, respectivamente, via de regra, para os quais estas

funções são típicas. Todavia, quando exercerem função que a Constituição não lhes atribuiu

originariamente, mas a outro poder, o exercício de tal função será tida como uma função

atípica.

Portanto não pode haver preponderância entre os poderes, sob pena de se ferir o

princípio da separação dos poderes. Porém, não se quer dizer que eles possam agir

indiscriminada e arbitrariamente, uma vez que devem controlar-se reciprocamente, dentro dos

limites e formas determinados pela Lei Maior. Necessário que atuem com equilíbrio,

independência e harmonia, aceitando-se que se controlem; vigiem-se, verificando-se uns aos

outros, no que tange ao cumprimento de suas obrigações constitucionais. Desse jeito,

resplandece a idéia de controle entre eles. Pode-se entender controle como o resultado e o

exercício de funções específicas, que são desenvolvidos com o fito de contenção e realização

do poder do Estado, seja qual for sua manifestação, dentro do quadro constitucional que lhe

seja adscrito (MOREIRA NETO apud MALDONADO)12

. Ainda segundo ele, utilizando

critério objetivo de análise das funções estatais, há quatro tipos de controle: controle de

cooperação, controle de consentimento, controle de fiscalização e controle de correção.

Controle de cooperação ocorre quando um poder, dito interferente, exerce função

que lhe é atípica, de forma específica, desempenhando função típica de outro poder, dito

interferido, com a finalidade de assegurar-lhe a legalidade e/ou a legitimidade do resultado

por ambos visado. Controle de consentimento será aquele em que o poder interferente,

exercendo função que lhe é atípica, permite que o poder interferido realize, ou não, no todo ou

em parte, determinado ato, configurando tal aquiescência, uma condição constitucional de

eficácia ou exigibilidade do ato a ser praticado por este segundo poder. Controle de

fiscalização é o que ocorre sempre que o poder interferente é obrigado pela constituição a

verificar a prática funcional do poder interferido, com a finalidade de verificar a ocorrência de

ilegalidade ou ilegitimidade na atuação deste. Por fim, tem-se o controle de correção toda

vez que o poder interferente tiver atribuição constitucional para suspender a execução, ou para

desfazer, atos do poder interferido, que venham a ser considerados viciados de legalidade ou

de legitimidade.

Assim sendo, haverá controle de cooperação exercido pelo executivo em relação ao

legislativo, por exemplo, nas previsões constitucionais das possibilidades de veto deste em

relação à elaboração legislativa, bem como, nas possibilidades de iniciar o processo

legislativo ou editar medidas provisórias. Exerce mesmo tipo de controle com relação ao

12

http://www.al.sp.gov.br/web/instituto/sep_poderes.pdf

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judiciário, quando exercer poder de veto nas propostas de lei originadas deste e também ao

propor perante o supremo tribunal federal, ação declaratória de constitucionalidade diante da

existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação de norma, principalmente em

razão do efeito vinculante da declaração de constitucionalidade, ocorrendo neste caso controle

de fiscalização.

Já o judiciário exercerá controle de correção sobre o legislativo quando se utilizar do

controle de constitucionalidade sobre as leis por ele criadas e quando iniciar o processo

legislativo, nos casos em que a norma maior lhe atribuir competência para fazê-lo. No

primeiro caso, também exercerá controle sobre o executivo, porque será obrigado a adotar as

medidas que sejam de sua competência, a fim de conferir plena eficácia à norma

constitucional em trinta dias, pena de responsabilidade. Legislativo e Judiciário exercerão

controle sobre o executivo nos casos de impeachment: o Senado, julgando, através do controle

de correção; o Supremo Tribunal Federal, exercendo controle de fiscalização, assegurando-lhe

a legalidade e a legitimidade.

Por fim, o Legislativo exercerá controle sobre o Executivo nos casos de

impeachment ou quando resolver definitivamente sobre tratados e acordos internacionais, ou

autorizar o presidente da república a declarar a guerra, celebrar a paz, permitir ingresso e

trânsito de forças estrangeiras no território nacional (controle de consentimento), bem como,

nos demais casos enumerados no Art.49 e incisos da Magna Carta de 1988 (na maioria destes

incisos, há controle de consentimento). Destaque-se também o fato de dois membros do

Senado, e outros dois da Câmara dos Deputados, integrarem o Conselho da República, que é

um órgão do Executivo, exercendo aí controle de cooperação. Exercerá controle sobre o

Judiciário nos casos em que deliberar sobre os projetos de Lei, cuja iniciativa provenha deste,

nos casos em que as comissões parlamentares de inquérito tiverem por objeto o Judiciário,

quando então, exercerá controle de fiscalização sobre este.

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5 JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

Os serviços de saúde prestados pelo Estado brasileiro não atendem plenamente a toda

sua população nos dias atuais. Inobstante as evoluções ocorridas nas políticas públicas

voltadas ao combate dos diversos males que afligem o ser humano no Brasil, é inegável que

muito ainda há que se fazer, até que se atinja um bom nível de satisfação perante a sociedade.

Ocorre que, como já exposto anteriormente, a Constituição Federal inscreveu o direito à saúde

dentre os direitos fundamentais de seus cidadãos, conforme artigo 6º, caput. Além disso,

instituiu o Sistema de Jurisdição Única, ao estipular “que a lei não excluirá da apreciação do

Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, inscrevendo-o no artigo 5º, XXXV, da CRFB/88.

Segundo este sistema, quaisquer atos, inclusive os administrativos, emanados de órgãos ou

entidades públicas, podem ser questionados perante o poder Judiciário, a quem compete

decidir todas as controvérsias de forma definitiva, em homenagem direito de ação,

resguardando a legitimidade e a constitucionalidade do direito de agir de todo e qualquer

cidadão.

É com amparo principalmente nesses ditames constitucionais, aliados à interpretação

de que os direitos de segunda geração têm eficácia plena, fortemente influenciada pelos ideais

neoconstitucionalistas, que se apóia o fenômeno social em questão, ao qual tem sido atribuído

o nome de judicialização da saúde, e que se tem verificado em todo o país, em situações como

a seguinte:

[...] um idoso ouve de seu médico o diagnóstico de uma doença grave e que

necessita de tratamento caro e imediato, que foge às suas possibilidades. E o Sistema

Único de Saúde (SUS) não fornece esse tratamento? E os medicamentos não podem

ser conseguidos no posto de saúde? As perguntas se repetem em inúmeros leitos.

Enquanto isso, em um hospital, o diretor recebe uma ordem judicial para internar

imediatamente em leito de UTI um paciente com quadro grave e se queda, perplexo,

com uma situação insolúvel: todos os seus leitos estão ocupados com casos graves e

teria que tirar um paciente em estado grave para atender à ordem judicial. Casos do

dia a dia forense, realidade que deve trazer reflexão ou exceções que não devem

osbtar a judicialização da saúde?[...] (ANDRADE, p.1, 2011)

Eis o contexto em que se apresenta o tema em debate, bem colocado nos trechos

transcritos anteriormente, e que revelam a gravidade do problema enfrentado pelos operadores

e gestores do tão criticado Sistema Único de Saúde (SUS), maior sistema público de cobertura

e prestação de serviços de saúde do mundo. Acrescente-se a isto o fato de que, não raro e a

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fim de ver cumprida sua determinação, o Juiz de Direito, por vezes, entende por bem impor

pesada pena pecuniária (multa) e/ou, até mesmo, pena privativa de liberdade, caso os

operadores do sistema, geralmente secretários de saúde e chefes do executivo municipal, não

cumpram a ordem proferida. Interessante nesse sentido o trecho que segue:

Tais casos demonstram que deve ser discutida a judicialização da saúde, que se

mostra necessária quando há omissão nas políticas públicas, mas não pode servir de

entrave a elas, nem se traduzir em dificuldades intransponíveis ao administrador

público. O Judiciário não pode nem quer administrar, mas não pode ser omisso

quando necessária a sua intervenção. (ANDRADE, p.1, 2011)

Por oportuno, importante também o conceito de judicialização, que, segundo

Andrade (2011, p.1), “ocorre quando se busca perante o Poder Judiciário a obtenção de

soluções que são omitidas pelas políticas públicas”, sendo “uma exceção à regra da separação

dos poderes, prevista na própria Constituição da República [...] E como exceção deve visar a

atender ao exercício pleno da cidadania, mas sem ceder a abusos e tentativas de exercícios

irregulares de direitos.” Pode-se conceituá-la, a partir dessas considerações, como sendo o

processo de realização, pelo Poder Judiciário, dos objetivos, originariamente relegados aos

Poderes Legislativo e Executivo, exatamente em decorrência da inércia destes ou da

insuficiência de suas ações, no sentido de concretizar os direitos fundamentais, conferindo-

lhes efetividade, a qual é tida como a materialização da norma no mundo dos fatos, a

realização do direito, o desempenho concreto de sua função social, a aproximação, tão íntima

quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social.

A questão da judicialização da saúde configura verdadeira área de atrito entre

normas-princípios (princípios de direito, retratados em normas escritas, tipificados): de um

lado, o direito subjetivo inalienável do cidadão brasileiro à saúde; de outro, a separação dos

poderes políticos, verdadeiro sustentáculo da democracia. Na solução de tão árduo e intrigante

conflito, o juiz deve se limitar pela reserva de consistência, a reserva do possível (já tratada

anteriormente) e o princípio da proporcionalidade, para que extraia das normas

constitucionais a máxima eficácia jurídica sem, contudo, ultrapassar os limites que lhes são

impostos pela própria Constituição.

O princípio da proporcionalidade tem sua origem na Corte Constitucional alemã.

Decorre da premissa verdadeira de que todos os princípios, mesmos os fundamentais, são

limitados. Não há direitos absolutos, pois até os direitos fundamentais limitam-se

mutuamente, podendo sê-lo também pelo legislador ordinário, como quando admite ofensa ao

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direito à vida, quando for feita em estado de necessidade ou em legítima defesa. Dessa forma,

o critério da proporcionalidade impõe três requisitos a fim de solucionar conflitos entre

direitos ou princípios que, inicialmente, se equiparam: a adequação, que se traduz em saber se

o meio escolhido foi o meio mais adequado e pertinente para atingir o resultado almejado; a

necessidade, ou vedação de excesso, revelada na definição de que a forma escolhida foi a

menos onerosa entre as opções existentes; e, finalmente, a proporcionalidade em sentido

estrito, que é determinar se o benefício alcançado com a adoção de determinada medida teve

por fim preservar direitos fundamentais mais importantes (axiologicamente) do que os direitos

que foram por ela limitados. Em sendo coerentemente resolvidas tais questões, quando da

subsunção das normas em conflito, ter-se-á por válida a limitação, mesmo dos princípios

fundamentais. A submissão das decisões a esses critérios confere-lhes legitimidade.

A reserva de consistência é teoria de origem norte-americana, que leciona a

necessidade de que o Judiciário apresente razões consistentes, quando suas interpretações

vierem a se sobrepor às interpretações legislativas, posto não ter, segundo magistério de

Moro13

(2004, p. 221 apud JORGE NETO, 2007), como promover os mesmos debates

realizados no âmbito do legislativo e muito raramente poder desenvolver estudos técnicos tão

amplos quanto os desenvolvidos pelo executivo, além de não ter acesso à totalidade dos dados

de que dispõe o administrador público, bem como, em razão do argumento democrático,

principalmente em sede de controle de inconstitucionalidade por ação, quando então

proclamará a incompatibilidade do ato normativo impugnado frente à Constituição. Em se

tratando de inconstitucionalidade por omissão, há que se realçar ainda mais a necessidade de

explanação de tais motivos, vez que não há decisão legislativa à qual o Judiciário deva

sobrepor-se, principalmente em virtude da carência de legitimidade democrática do Judiciário,

que é o único dos três poderes, cujo cargo não é preenchido pelo escrutínio popular. Assim

sendo, quando intervém em assuntos que não lhe são dados originariamente conhecer, os

magistrados devem utilizar-se ainda mais da reunião de argumentos e elementos

suficientemente convincentes para demonstrar o acerto do resultado que se pretende alcançar.

Quando decidirem segundo esses critérios, os órgãos do Poder Judiciário estarão

conferindo legitimidade ao seu ato jurídico. Isto porque, inobstante a preponderância e

resplandecência de determinados princípios, não se pode admitir ou aceitar a supremacia

incondicional de uns em detrimento de outros. Esta deverá ser avaliada sempre no caso

concreto.

13

http://maranhensidadejuridica.blogspot.com/2007/08/nagibe-de-melo-jorge-neto-das-questes.html

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45

5.1 A eficácia dos princípios e o neoconstitucionalismo: influenciadores da judicialização

da saúde

Todas as questões, até este momento suscitadas na elaboração deste trabalho de

revisão bibliográfica e pesquisa, nasceram da atual tendência jusfilosófica e jurisprudencial de

se conferir eficácia plena aos princípios fundamentais, que encontram-se estampados no corpo

da Constituição Federal. De fato, o constituinte originário entendeu por bem elaborar um

texto, que preservasse muitos dos direitos de quaisquer cidadãos, obviamente influenciado e

marcado pelos ecos do regime autoritário que se encerrava com a promulgação de tão

eminente documento, mas que ainda espreitava a democracia nos corredores do Congresso

Nacional, onde a Assembléia Constituinte laborava. Hodiernamente há forte pensamento de

que os princípios constitucionais não são normas meramente programáticas. Tem-se

entendido que essas normas devem ser concretizadas de imediato, pois geram direitos e

obrigações, conforme pensamento que segue:

EMENTA: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO

FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO

CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE

IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA

HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA

DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO

TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À

EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS.

CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO

LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA

"RESERVA DO POSSÍVEL". NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR

DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO

NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO "MÍNIMO EXISTENCIAL".

VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO

NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS

(DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO). [...] Essa

eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evidência, de

modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição constitucional

conferida a esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar

efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais - que se identificam, enquanto

direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ

164/158-161, Rel. Min. CELSO DE MELLO) -, sob pena de o Poder Público, por

violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a

integridade da própria ordem constitucional [...] Cabe assinalar, presente esse

contexto - consoante já proclamou esta Suprema Corte - que o caráter programático

das regras inscritas no texto da Carta Política "não pode converter-se em promessa

constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas

expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o

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cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade

governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado" (RTJ

175/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO)[...] (MELLO, 2004)14

.

O neoconstitucionalismo, nova visão lançada sobre o Direito Constitucional, é outro

agente influenciador do fenômeno social judicialização da saúde, que encerram este estudo.

5.1.1 A eficácia dos princípios

Princípios são normas jurídicas generalíssimas e multifuncionais, pois tem maior

amplitude que as regras e desempenham diversas funções, dentre as quais se destacam as

funções de fundamentação, de interpretação e de fonte subsidiária. São normas de textura

aberta, uma vez que possuem substância política ativa e estrutura dialógica; ao passo que as

leis são normas de textura fechada. Quando inseridos na Constituição, possuem também as

importantes funções de revogar as normas pretéritas incompatíveis com eles; e de invalidar

aquelas normas que lhes são posteriores, porém impossíveis de serem conciliadas com eles.

Terão eficácia positiva, quando servirem de inspiração hermenêutica; e normativa, na busca

por soluções, quando da aplicação do direito ao caso concreto, conforme a finalidade

almejada. Já a eficácia negativa ocorrerá quando invalidarem regras, decisões ou sub-

princípios, que forem incompatíveis com eles, em razão de contraste normativo. Importante

também sua função de conferir legitimidade aos atos praticados pelos aplicadores do direito,

porque limitam sua vontade subjetiva de atuação.

A função fundamentadora é manifestada quando um princípio é usado para dar

legitimidade à ordem jurídica criada, e, consequentemente, às relações por esta alcançadas.

Isso por que os princípios são idéias básicas, que conferem fundamento ao direito positivo.

São normas das normas, fontes das fontes, já que influenciam desde o constituinte originário

até o legislador ordinário, e se localizam no ponto mais alto da pirâmide normativa. Quando

um deles é ofendido, ofende-se toda a estrutura jurídica construída ao seu redor.

Já a função orientadora dos princípios constitucionais revela-se quando lhes é

atribuído o caráter de fim a ser alcançado pelos operadores do direito, norteando o desenrolar

de toda e qualquer atividade jurídica. Dessa forma, eles devem orientar todo o ordenamento

14

http://www.aldemario.adv.br/reservadopossivel.htm

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jurídico, devendo submeter as leis aos seus ensinamentos; jamais eles deverão ser submetidos

aos desígnios delas. A interpretação de lei que contrariar os princípios constitucionais é

inválida. Sendo uma regra passível de ser interpretada de formas diversas, deve-se adotar

aquela que melhor se adequar aos ensinamentos contidos nos princípios, vez que as normas

genéricas (leis), podem levar a injustiças.

O enfoque de fonte subsidiária dos princípios constitucionais encontra-se superado,

pois estes trazem em si conquistas éticas, alcançadas no decorrer de séculos e séculos de

evolução do pensamento humano, o que lhes conferem caráter de norma cogente, aplicável a

quaisquer casos concretos. Esse pensamento se conclui a partir do próprio texto

constitucional, ao declarar que os direitos e garantias nele assegurados não excluem outros

decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição. Portanto, os princípios

constitucionais geram direitos.

5.1.2 Neoconstitucionalismo

Trata-se de corrente doutrinária surgida após a Segunda Guerra Mundial, nos países

da península ibérica e na Itália, influenciada pela obra do mexicano Miguel Carbonell,

intitulada “Neoconstitucionalismo(s)”, de onde se denota a indefinição sobre este tema.

Destaca-se a simples reunião de pontos comuns e relevantes de certas correntes filosófico-

jurídicas, apesar de aglutinar em si posicionamentos jusfilosóficos distintos, tais como o

positivismo e o pós-positivismo agrupados num mesmo conceito. Sua grande característica,

promulgar constituições cheias de normas axiologicamente densas no ordenamento europeu,

aliadas a direitos individuais e políticos, mais os sociais de natureza prestacional, revelam

tendências normativas de textura aberta.

Dessa forma, buscam possibilitar que os tribunais realizem interpretações mais

flexivas, extensivas e abrangentes, do que até então se adotava. Decorre tal possibilidade,

além da textura aberta, também de indeterminações semânticas proeminentes, o que acarretou

forte tendência de se utilizar técnicas de ponderação e proporcionalidade. Em busca de

conferir legitimidade aos julgados sob tais métodos, os adeptos do neoconstitucionalismo

buscaram apoio na argumentação jurídica, embasada nos conceitos morais e no empirismo

normativo. Ocorre que, de outro lado, tal teoria prega a utilização de amplas restrições ao

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poder legislativo em nome dos direitos fundamentais e da proteção das minorias, olvidando

justificar, por conseguinte, a fiscalização dos Poderes públicos por um Judiciário, que, como é

sabido, compõe-se de membros não eleitos pelo povo.

O embasamento teórico do neoconstitucionalismo encontra-se em diversos

doutrinadores e juristas, como Robert Alexy, Ronald Dworkin, Peter Härbele, Gustavo

Zagrebelsky, Luigi Ferrajoli e Carlos Santiago Nino. E é dessa diversidade de pensamentos,

de autores diversos, a causa da grande diversidade de elementos, perspectivas e enfoques

incidentes sobre essa teoria, que prega, em apertada síntese, a centralização de toda a

hermenêutica jurídica na Constituição. Seu marco filosófico é o pós-positivismo, que focaliza

o Direito sob o aspecto da Moral, adotando, como finalidade, ir além da legalidade estrita. Seu

marco teórico tem no reconhecimento da normatividade da Constituição, na extensão da

jurisdição constitucional e na nova interpretação constitucional (mais ponderação que

subsunção), seus mais contundentes argumentos. Ensinam ainda que os princípios

constitucionais devem ser mais valorizados que as regras constitucionais, em razão do

conteúdo material e axiológico que aqueles irradiam, com força normativa, por todo o sistema

jurídico; pregam a coexistência de pluralidade de valores, a expansão dos poderes do

judiciário para conformação dos princípios constitucionais, através do ativismo judicial,

substituindo a autonomia do legislador, além da judicialização de questões políticas e sociais.

Em termos gerais, eis a teoria neoconstitucionalista, tida por muitos como sendo um

movimento jurídico e não teoria, justamente por causa de sua generalidade e indeterminação.

Juntamente com aqueles que pretendem conferir eficácia aos princípios constitucionais, os

neoconstitucionalistas defendem grande interferência nas políticas públicas, em nome da

concretização dos direitos assegurados nos princípios gravados no Texto Maior. Inobstante

suas nobres intenções, não são aceitos unanemente no Brasil, posto que nossa Constituição

possui tanto regras quanto princípios, sendo estes mais raros que aquelas, bem como, porque

as mudanças propostas ofenderiam as instituições já existentes, abalando a segurança jurídica.

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6 CONCLUSÃO

A judicialização da saúde é um fato social e jurídico, que ganha relevância e

importância diariamente, a cada vez que um magistrado impõe ao administrador público o

cumprimento de alguma obrigação de fazer ou de prestar, que não estava prevista na

legislação orçamentária. Trata-se de situação peculiar, porque a jurisprudência é assente com

relação à impossibilidade de se deferir pedidos de concretização dos demais direitos

fundamentais sociais de segunda geração. A mensagem transmitida é a idéia de que educação,

moradia, saneamento básico, dentre outros direitos sociais, não podem ser prestados pelo

Poder Público sem prévia autorização legislativa, necessitando-se da existência de

programação orçamentária, o que pressupõe anterior elaboração da política pública

competente, sob pena de irreparável ofensa ao princípio da separação dos poderes. Em se

tratando de questão relacionada à saúde, porém, o posicionamento adotado pelos tribunais é

favorável à concessão do pleito, sob o argumento de que o direito à saúde é corolário do

direito à vida, o qual integra o princípio da dignidade da pessoa humana, devendo este

princípio prevalecer quando da ponderação com o princípio da divisão de poderes. Admite-se,

desta forma, a violação deste princípio, que é uma das cláusulas pétreas da Constituição

atualmente vigente no Brasil, e também, pressuposto de existência da própria Constituição e,

consequentemente, de existência do próprio Estado Democrático de Direito.

Inobstante as balizadas vozes defensoras desta visão da judicialização da saúde,

entende-se que esta não é a melhor solução frente ao grave problema por que passa o sistema

de saúde do Brasil, que é mais de cunho institucional. O mau-funcionamento do SUS revela o

grau elevado da crise de instituições que assola esta nação. Isto porque combate o efeito do

problema, mas não ataca a sua causa, não resolve a crise na sua origem. A solução dos

problemas relacionados às políticas de saúde não será alcançada de forma unilateral, por

apenas um, dentre os vários agentes sociais, qual seja o Poder Judiciário. A questão é tão

ampla, que, por si só, demanda interrelacionamento dos demais atores da sociedade, inclusive

do próprio cidadão, que não pode ser isentado ou excluído da sua obrigação de lutar por seus

direitos, sendo privado de participar das decisões a respeito da organização e direcionamento

de tão relevante setor da vida política nacional. Se a causa do mau-funcionamento do Sistema

Único de Saúde é a corrupção, deve-se atacá-la, combatê-la, seja exercendo pressão para

aprovação de leis mais rígidas contra os políticos e funcionários corruptos, seja com apuração

mais célere das denúncias de irregularidades, seja ainda com condenações mais pesadas para

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os crimes que forem provados, mas sempre nos limites legais. Porém, usá-la como

embasamento fático para exclusão de cláusula pétrea, que é o princípio da separação dos

poderes, não é admissível.

Revela-se deveras incoerente inclusive, respeitadas as sábias opiniões em contrários,

considerar que o direito à saúde é o único dos direitos de segunda geração a integrar o

princípio da dignidade da pessoa humana, de tal forma a ser o único, dentre aqueles, que deva

ser efetivado de imediato. Significaria adotar a política popularmente conhecida como a

política do quanto pior, melhor. O cidadão precisa da atuação imediata e efetiva do Estado,

apenas para evitar que morra? De forma alguma. O Estado deve atuar de modo a possibilitar o

desenvolvimento do ser humano em todas as esferas que o compõe, e não apenas na esfera

física. Muitas são as ações que devem ser desenvolvidas, para que as pessoas possam atingir

este objetivo. No entanto, o Estado não dispõe de recursos financeiros suficientes, que lhe

permita implementar todas as políticas públicas, necessárias para se concretizar os direitos

fundamentais sociais, o que lhe obriga a tomar decisões trágicas, uma vez que nem todos os

setores serão atendidos de forma desejável. Diz-se, ainda, que nenhum setor poderá ser

atendido de forma plena, seja pela ausência de verbas, seja pela amplitude do direito que se

pretende efetivar, o que obriga a adoção da teoria do possível e da teoria do financeiramente

possível, sob pena de se inviabilizar a própria existência de um Estado sustentável.

O direito a saúde não poderá ser plenamente efetivado, porque a saúde é um estado da

vida do homem. Ainda que seja plenamente alcançado, em algum momento de sua existência,

não é um bem que, uma vez atingido, possa ser capturado, preservado e mantido. A

fragilidade e a variação da saúde humana é que é a regra; a plenitude da saúde é exceção.

Infelizmente, a morte é um fato natural inevitável. Não se quer dizer, com essas afirmações,

que a responsabilidade da Administração seja menor do que a responsabilidade a ela atribuída

por aqueles que pensam de forma favorável ao processo de judicialização da saúde. Diz-se, ao

contrário, que o objetivo primeiro do magistrado não pode ser evitar a morte do paciente,

porque estaria, assim, lutando uma batalha que não poderá ser vencida. Deve-se, outrossim,

buscar propiciar-lhe as condições materiais disponíveis, para que possa restabelecer sua saúde

ou mesmo, para que possa prevenir os diversos tipos de patologias que cercam os cidadãos

brasileiros. Mesmo sendo estes seus objetivos, não são dos mais fáceis de serem atingidos,

principalmente, por causa da amplitude de significado destes termos, conforme a definição

trazida pela Organização Mundial de Saúde, segundo a qual, saúde é o pleno bem-estar físico,

mental e afetivo. Este estado não poderá ser atingido de forma plena e no caso concreto, ainda

que se utilizassem todos os recursos disponíveis. Isso porque se trata de conceito

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demasiadamente amplo e subjetivo, que precisa ser delimitado, delineado, quando se falar em

conferir-lhe eficácia plena.

Por outro lado, o princípio da separação dos poderes é o primeiro direito fundamental

social do ser humano, conhecido na História. É um direito de primeira geração, tal qual o

princípio da dignidade da pessoa humana, e pressuposto desta, vez que se entende não ser

possível existir dignidade da pessoa humana, sem que lhe seja assegurada as garantias para

efetivá-lo. Uma vez que seja permitido ao magistrado mitigar a separação das funções

soberanas, ainda que em nome do objetivo final de todo ordenamento jurídico, que é a

dignidade humana, quem estabelecerá os limites para atuação daquele. O juiz é uma pessoa

que pode vir a cometer erros, como qualquer outra pessoa. No entanto, seus erros atingem um

número maior de pessoas do que os erros de pessoas comuns. E ele não está isento de ser

seduzido pelo poder.

A judicialização da saúde revela-se como um mecanismo salvador para aqueles que

conseguem o amparo do Judiciário, em um momento de dor. Analisando cada caso concreto, é

irrefutável sua argumentação, tanto moralmente, quanto no campo da capacidade financeira

do Estado. Tal aspecto de análise é o que se chama visão micro política. Desse ponto de vista,

é quase desumano pensar que o medicamento, ou tratamento, pleiteado seja indeferido, pois é

a vida e a dignidade humanas que estão em cheque. No entanto, como fica a situação todas as

pessoas que não recorreram às barras da tutela jurisdicional, pelos mais variados motivos:

desconhecimento de seus direitos, confiança no sistema ou, até mesmo, medo de agir contra o

Poder Público? Caso se responda que não é papel da magistratura responder a esta questão, ou

que não lhe importa aquelas pessoas que não ingressem em juízo, estar-se-á legitimando a

irresponsabilidade deste para com a sociedade como um todo e pela qual existe. A dignidade

destas pessoas humanas, seu direito de ser saudável, têm que ser colocados na balança do

magistrado sempre que decidir impor obrigação à Administração, não lhe sendo legítimo

“fazer graça com o chapéu dos outros”, pois o dinheiro que será gasto não será o dele, mas

sim, o dinheiro de todos os cidadãos.

A judicialização da saúde é questão de macro política. A cada ano que passa,

aumentam os impactos que ela causa no orçamento dos entes públicos, pois sempre haverá

uma conta a ser paga. Quanto mais pessoas ingressarem em juízo, e quanto mais pessoas

conseguirem seus intentos, mais relevância ganhará a atuação dos tribunais em áreas

constitucionalmente reservadas ao administrador e ao legislador, o que significa dizer que

cada vez menos o povo decidirá os rumos da política pública, incidente em sua própria vida.

Frente a tais argumentos, conclui-se que este fenômeno jurídico anormal só é admissível em

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casos de grande necessidade, quando atestados por profissionais médicos, responsabilizando-

se estes em caso de má-fé. Devem ser adotados critérios claros, como o anteriormente citado,

para que se possa cogitar a aceitação de uma afronta à cláusula pétrea que é o princípio da

separação dos poderes. Critérios como a razoabilidade e a existência de insumos disponíveis

no mercado nacional.

Portanto, judicializar a saúde não parece ser a melhor solução para o problema que

atinge o sistema de saúde que se pretendeu instalar no Brasil. Permitir que o juiz revogue a

Constituição em nome da própria Constituição, como propõe os adeptos da judicialização,

configura-se como a abertura de um precedente que dificilmente passará pela história

nacional, sem causar mais males que benefícios. E não se diga que não é isso o que realmente

acontece quando, supostamente em nome da dignidade da pessoa humana, se permite ofender

o princípio da separação dos poderes. Tem-se aí uma conduta judiciária fazendo algo que o

constituinte originário não permitiu nem mesmo ao constituinte derivado. Antes de se permitir

tamanha atrocidade, faça-se com que todas as instituições públicas funcionem corretamente,

nos moldes estipulados pelos representantes do povo. Se ainda assim, reinar o caos na saúde,

que se judicialize o país.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS

SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE

CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA

DA "RESERVA DO POSSÍVEL". NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR

DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO

CONSUBSTANCIADOR DO "MÍNIMO EXISTENCIAL". VIABILIDADE

INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE

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