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So Paulo, 18 de Novembro de 2010
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JUZO E O TEATRO DA JUSTIA: narrativa e performance1 Autora: Clara Leonel Ramos2 Orientador: Henri Pierre Arraes de Alencar Gervaiseau 3 Linha de pesquisa: Histria, Teoria e Critica Resumo: O texto apresenta anlise do filme Juzo (Maria Augusta Ramos, 2007), documentrio que trabalha predominantemente no modo observacional e aborda a vida de menores infratores no Rio de Janeiro, tendo como foco a questo da performance dos sujeitos filmados e a tenso que se estabelece entre o desejo destes sujeitos de se auto-representar e as estratgias narrativas utilizadas pela autora. Palavras-chave: Juzo; documentrio brasileiro; auto-representao
O objetivo deste trabalho analisar o filme Juzo (Maria Augusta Ramos,
2007), um documentrio que trabalha predominantemente no modo observacional e
aborda a vida de menores infratores no Rio de Janeiro, tendo como foco a questo da
performance dos sujeitos filmados e a tenso que se estabelece entre o desejo destes
sujeitos de se auto-representar e as estratgias narrativas utilizadas pela autora.
exemplo do longa-metragem anterior da autora, Justia, o filme mescla
situaes de tribunal, onde estes menores so julgados na primeira instncia de uma
Vara de Menores do estado do Rio de Janeiro e a observao do cotidiano do Instituto
Padre Severino, uma casa de recolhimento de menores infratores. Para lidar com a
impossibilidade legal de mostrar o rosto dos menores que participam dos julgamentos
e que esto internados, Maria Augusta opta por uma estratgia narrativa hbrida. As
situaes de tribunais reais so todas filmadas num plano frontal em relao aos juizes
(quase sempre geral), onde o menor aparece de costas, sem ser identificado. No
entanto, um contra-plano, onde vemos o rosto destes menores e ouvimos suas
1 Trabalho apresentado na I Jornada Discente do PPGMPA USP, promovido pelo Programa de Ps-Graduao em Meios e Processos Audiovisuais, da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo (Eca-Usp), no dia 18 de novembro de 2010. 2 Possui graduao em Jornalismo pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (2000), mestrado no Departamento de Cinema da Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo, com a pesquisa As mltiplas vozes da Caravana Farkas e a crise do modelo sociolgico (2007) e desenvolve pesquisa de doutorado no mesmo departamento enfocando as estratgias de auto-representao de pesoas reais no documentrio. documentarista e produtora audiovisual. 3 Possui graduao em Historia - Universit de Paris VII (1975), mestrado em Etnologia - Universite de Paris VII (1977), doutorado em Comunicao pela UFRJ (2000), e professor livre docente pela Universidade de So Paulo (2008). pesquisador do Centro de Estudos da Metrpole e atual Presidente da Associao Video nas Aldeias. Tem experincia na rea de Artes, com nfase em Documentrio.Tambm realizador de documentrios. [email protected]
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respostas s interpelaes dos juzes, simulado. Em lugar dos sujeitos reais, vemos
atores representando-os. Os mesmos atores so usados tambm em seqncias
encenadas de cotidiano, que mimetizam a esttica de observao do cinema direto.
Estas encenaes se misturam na montagem a outras imagens inteiramente
documentais da instituio de recolhimento de menores.
O filme foi captado em duas fases. Inicialmente, Maria Augusta acompanhou
durante quatro dias audincias da juza Luciana Fiala numa Vara de Menores do Rio
Janeiro. Das 55 audincias filmadas, 10 foram selecionadas e editadas. A partir da a
realizadora foi buscar os atores sociais selecionados entre adolescentes que viviam
em situao social semelhante a dos personagens reais que representariam os
menores infratores, para ento filmar os contra-planos e as seqncias encenadas de
cotidiano. De sada, esta opo por trabalhar num registro duplo, utilizando recursos
documentais e ficcionais, parece inserir Maria Augusta numa tradio que encontraria
suas razes nas etnofies de Jean Rouch, e na idia de que inexistente a fronteira
entre estes dois gneros. Ser que estamos falando aqui de uma realidade que
construda pelo filme, a partir do encontro de cineasta e dos sujeitos retratados?
No caso de Juzo, contudo, o uso de atores e da fico parece estar mais ligado
a uma restrio legal do que a uma premissa enunciativa. O que aparenta estar em
jogo, desde o incio do filme apesar do uso de atores garantir um coeficiente de
realidade do filme, atravs de uma forte preocupao com sua dimenso indicial.
Neste sentido, o filme se utiliza de estratgias formais e textuais para garantir uma
leitura documentarizante4 das imagens que apresenta, como se observa desde sua
cartela inicial, que funciona como uma espcie de atestado de realidade: A lei
4 Roger Odin distende as fronteiras entre documentrio e fico ao propor a existncia de diferentes modos de leitura e de significao entre eles o documentarizante e o ficcionalizante que se estabelecem, de maneira dinmica, na relao entre filme e espectador. Cada um desses modos se caracteriza de um lado por diferentes posturas do espectador e de outro por uma srie de indicaes fornecidas pelo filme do modo que desejaria ver utilizado para sua leitura. Uma das que questes centrais para a caracterizao dos diferentes modos a maneira como a figura do enunciador construda, como colocado por Odin: "Parece-nos, com efeito, que o que constitui a leitura ficcionalizante no tanto a construo de um 'eu-origem fictivo' mas, mais radicalmente, a recusa pelo leitor de construir um 'eu-origem'". (ODIN, 1984, p. 263-277.). Num outro texto, ele retoma a questo: Se o modo documentarizante pede a construo de um enunciador real, mas deixa quase livre a escolha dos outros processos (podemos construir ou no um mundo, construir ou no uma narrativa, produzir ou no um efeito de colocao em fases, etc.), ao contrrio, o modo ficcionalizante responde a uma organizao fixa, muito estrita, que coloca no comando dois processos dos quais tudo provem: a narrao (...) e um processo enunciativo: a fictivizao (construir uma fico supe, em primeiro lugar, que o narrador seja institudo como enunciador fictcio). ODIN, 2005, p.34
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brasileira probe a exposio da identidade de adolescentes infratores./ Neste filme
eles foram substitudos por jovens de trs comunidades do Rio de Janeiro habituados
s mesmas circunstncias de risco social. /Todos os outros personagens esto no
desempenho de seu verdadeiro papel social./ Todas as dependncias de instituies,
operadores de justia e familiares deste filme so verdicos.
Logo aps esta cartela passamos primeira das oito audincias que o filme ir
retratar e conhecemos Luciana, juza que est frente de sete destas audincias e que
acaba assumindo ou tomando fora, como veremos adiante o papel de
protagonista do filme. Nesta primeira cena, ela analisa o caso de um roubo de
bicicleta por um adolescente, em que o acusado diz que foi coagido. Ela no se
comove com a desculpa e d uma grande bronca nele. Assim, j em seus primeiros
minutos, o filme apresenta uma srie de aspectos tanto de caracterizao das
personagens como formais e narrativos que vo se repetir por toda sua durao,
funcionando como pontos estruturantes do projeto de Maria Augusta.
Neste projeto, h, em primeiro lugar, um dilogo imediato e evidente com o
cinema direto norte-americano. Com exceo dos planos encenados, Maria Augusta
respeita todas as premissas do cinema observacional clssico, adotando um cmera de
postura no interferente, rejeitando o uso da narrao, das entrevistas e da msica. Ela
privilegia planos abertos, com pouco ou nenhum movimento e de longa durao. Mais
precisamente, o filme dialoga com Frederick Wiseman, conhecido por se trabalho de
documentao de instituies norteamericanas. Segundo David Stewart, mais do que
retratar instituies, Wiseman documenta situaes de interao entre pessoas e
ambientes institucionais, j que so elas que acrescentam complexidade a instituies
que so muitas vezes planejadas de maneira pobre para os propsitos a que servem5.
No caso de Juzo, a inteno da realizadora parece ser a de ter como
personagem principal algo um pouco mais abstrato do que uma instituio que possa
ser identificada com um lugar fsico: a Justia do Menor, personificada pela Vara
Criminal carioca que Maria Augusta observa e que tem como duplo o Instituto Padre
Severino. O que est em jogo a representao de um sistema de interaes e no de
um personagem especfico. O representao do sistema da Justia se constri a partir
5 Ver STEWART, 1998
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da forma como os atores sociais se relacionam com ela e, como contrapartida, os
atores sociais interessam ao filme somente na medida desta interao.
Muito embora em entrevistas a diretora costume dizer que queria humanizar a
figura do menor infrator, no nesse sentido que o filme se constri. De um lado, os
menores, nos so apresentados de acordo com seu contato com as institui