JUÍZO E O TEATRO DA JUSTIÇA: narrativa e performance1 · JUÍZO E O TEATRO DA JUSTIÇA: narrativa...

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São Paulo, 18 de Novembro de 2010 ______________________________________________________________ 1 JUÍZO E O TEATRO DA JUSTIÇA: narrativa e performance 1 Autora: Clara Leonel Ramos 2 Orientador: Henri Pierre Arraes de Alencar Gervaiseau 3 Linha de pesquisa: História, Teoria e Critica Resumo: O texto apresenta análise do filme Juízo (Maria Augusta Ramos, 2007), documentário que trabalha predominantemente no modo observacional e aborda a vida de menores infratores no Rio de Janeiro, tendo como foco a questão da performance dos sujeitos filmados e a tensão que se estabelece entre o desejo destes sujeitos de se auto-representar e as estratégias narrativas utilizadas pela autora. Palavras-chave: Juízo; documentário brasileiro; auto-representação O objetivo deste trabalho é analisar o filme Juízo (Maria Augusta Ramos, 2007), um documentário que trabalha predominantemente no modo observacional e aborda a vida de menores infratores no Rio de Janeiro, tendo como foco a questão da performance dos sujeitos filmados e a tensão que se estabelece entre o desejo destes sujeitos de se auto-representar e as estratégias narrativas utilizadas pela autora. À exemplo do longa-metragem anterior da autora, Justiça, o filme mescla situações de tribunal, onde estes menores são julgados na primeira instância de uma Vara de Menores do estado do Rio de Janeiro e a observação do cotidiano do Instituto Padre Severino, uma casa de recolhimento de menores infratores. Para lidar com a impossibilidade legal de mostrar o rosto dos menores que participam dos julgamentos e que estão internados, Maria Augusta opta por uma estratégia narrativa híbrida. As situações de tribunais reais são todas filmadas num plano frontal em relação aos juizes (quase sempre geral), onde o menor aparece de costas, sem ser identificado. No entanto, um contra-plano, onde vemos o rosto destes menores e ouvimos suas 1 Trabalho apresentado na I Jornada Discente do PPGMPA – USP, promovido pelo Programa de Pós- Graduação em Meios e Processos Audiovisuais, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (Eca-Usp), no dia 18 de novembro de 2010. 2 Possui graduação em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2000), mestrado no Departamento de Cinema da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com a pesquisa “As múltiplas vozes da Caravana Farkas e a crise do modelo sociológico” (2007) e desenvolve pesquisa de doutorado no mesmo departamento enfocando as estratégias de auto- representação de pesoas reais no documentário. É documentarista e produtora audiovisual. 3 Possui graduação em Historia - Université de Paris VII (1975), mestrado em Etnologia - Universite de Paris VII (1977), doutorado em Comunicação pela UFRJ (2000), e é professor livre docente pela Universidade de São Paulo (2008). É pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole e atual Presidente da Associação Video nas Aldeias. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Documentário.Também é realizador de documentários. [email protected]

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    JUZO E O TEATRO DA JUSTIA: narrativa e performance1 Autora: Clara Leonel Ramos2 Orientador: Henri Pierre Arraes de Alencar Gervaiseau 3 Linha de pesquisa: Histria, Teoria e Critica Resumo: O texto apresenta anlise do filme Juzo (Maria Augusta Ramos, 2007), documentrio que trabalha predominantemente no modo observacional e aborda a vida de menores infratores no Rio de Janeiro, tendo como foco a questo da performance dos sujeitos filmados e a tenso que se estabelece entre o desejo destes sujeitos de se auto-representar e as estratgias narrativas utilizadas pela autora. Palavras-chave: Juzo; documentrio brasileiro; auto-representao

    O objetivo deste trabalho analisar o filme Juzo (Maria Augusta Ramos,

    2007), um documentrio que trabalha predominantemente no modo observacional e

    aborda a vida de menores infratores no Rio de Janeiro, tendo como foco a questo da

    performance dos sujeitos filmados e a tenso que se estabelece entre o desejo destes

    sujeitos de se auto-representar e as estratgias narrativas utilizadas pela autora.

    exemplo do longa-metragem anterior da autora, Justia, o filme mescla

    situaes de tribunal, onde estes menores so julgados na primeira instncia de uma

    Vara de Menores do estado do Rio de Janeiro e a observao do cotidiano do Instituto

    Padre Severino, uma casa de recolhimento de menores infratores. Para lidar com a

    impossibilidade legal de mostrar o rosto dos menores que participam dos julgamentos

    e que esto internados, Maria Augusta opta por uma estratgia narrativa hbrida. As

    situaes de tribunais reais so todas filmadas num plano frontal em relao aos juizes

    (quase sempre geral), onde o menor aparece de costas, sem ser identificado. No

    entanto, um contra-plano, onde vemos o rosto destes menores e ouvimos suas

    1 Trabalho apresentado na I Jornada Discente do PPGMPA USP, promovido pelo Programa de Ps-Graduao em Meios e Processos Audiovisuais, da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo (Eca-Usp), no dia 18 de novembro de 2010. 2 Possui graduao em Jornalismo pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (2000), mestrado no Departamento de Cinema da Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo, com a pesquisa As mltiplas vozes da Caravana Farkas e a crise do modelo sociolgico (2007) e desenvolve pesquisa de doutorado no mesmo departamento enfocando as estratgias de auto-representao de pesoas reais no documentrio. documentarista e produtora audiovisual. 3 Possui graduao em Historia - Universit de Paris VII (1975), mestrado em Etnologia - Universite de Paris VII (1977), doutorado em Comunicao pela UFRJ (2000), e professor livre docente pela Universidade de So Paulo (2008). pesquisador do Centro de Estudos da Metrpole e atual Presidente da Associao Video nas Aldeias. Tem experincia na rea de Artes, com nfase em Documentrio.Tambm realizador de documentrios. [email protected]

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    respostas s interpelaes dos juzes, simulado. Em lugar dos sujeitos reais, vemos

    atores representando-os. Os mesmos atores so usados tambm em seqncias

    encenadas de cotidiano, que mimetizam a esttica de observao do cinema direto.

    Estas encenaes se misturam na montagem a outras imagens inteiramente

    documentais da instituio de recolhimento de menores.

    O filme foi captado em duas fases. Inicialmente, Maria Augusta acompanhou

    durante quatro dias audincias da juza Luciana Fiala numa Vara de Menores do Rio

    Janeiro. Das 55 audincias filmadas, 10 foram selecionadas e editadas. A partir da a

    realizadora foi buscar os atores sociais selecionados entre adolescentes que viviam

    em situao social semelhante a dos personagens reais que representariam os

    menores infratores, para ento filmar os contra-planos e as seqncias encenadas de

    cotidiano. De sada, esta opo por trabalhar num registro duplo, utilizando recursos

    documentais e ficcionais, parece inserir Maria Augusta numa tradio que encontraria

    suas razes nas etnofies de Jean Rouch, e na idia de que inexistente a fronteira

    entre estes dois gneros. Ser que estamos falando aqui de uma realidade que

    construda pelo filme, a partir do encontro de cineasta e dos sujeitos retratados?

    No caso de Juzo, contudo, o uso de atores e da fico parece estar mais ligado

    a uma restrio legal do que a uma premissa enunciativa. O que aparenta estar em

    jogo, desde o incio do filme apesar do uso de atores garantir um coeficiente de

    realidade do filme, atravs de uma forte preocupao com sua dimenso indicial.

    Neste sentido, o filme se utiliza de estratgias formais e textuais para garantir uma

    leitura documentarizante4 das imagens que apresenta, como se observa desde sua

    cartela inicial, que funciona como uma espcie de atestado de realidade: A lei

    4 Roger Odin distende as fronteiras entre documentrio e fico ao propor a existncia de diferentes modos de leitura e de significao entre eles o documentarizante e o ficcionalizante que se estabelecem, de maneira dinmica, na relao entre filme e espectador. Cada um desses modos se caracteriza de um lado por diferentes posturas do espectador e de outro por uma srie de indicaes fornecidas pelo filme do modo que desejaria ver utilizado para sua leitura. Uma das que questes centrais para a caracterizao dos diferentes modos a maneira como a figura do enunciador construda, como colocado por Odin: "Parece-nos, com efeito, que o que constitui a leitura ficcionalizante no tanto a construo de um 'eu-origem fictivo' mas, mais radicalmente, a recusa pelo leitor de construir um 'eu-origem'". (ODIN, 1984, p. 263-277.). Num outro texto, ele retoma a questo: Se o modo documentarizante pede a construo de um enunciador real, mas deixa quase livre a escolha dos outros processos (podemos construir ou no um mundo, construir ou no uma narrativa, produzir ou no um efeito de colocao em fases, etc.), ao contrrio, o modo ficcionalizante responde a uma organizao fixa, muito estrita, que coloca no comando dois processos dos quais tudo provem: a narrao (...) e um processo enunciativo: a fictivizao (construir uma fico supe, em primeiro lugar, que o narrador seja institudo como enunciador fictcio). ODIN, 2005, p.34

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    brasileira probe a exposio da identidade de adolescentes infratores./ Neste filme

    eles foram substitudos por jovens de trs comunidades do Rio de Janeiro habituados

    s mesmas circunstncias de risco social. /Todos os outros personagens esto no

    desempenho de seu verdadeiro papel social./ Todas as dependncias de instituies,

    operadores de justia e familiares deste filme so verdicos.

    Logo aps esta cartela passamos primeira das oito audincias que o filme ir

    retratar e conhecemos Luciana, juza que est frente de sete destas audincias e que

    acaba assumindo ou tomando fora, como veremos adiante o papel de

    protagonista do filme. Nesta primeira cena, ela analisa o caso de um roubo de

    bicicleta por um adolescente, em que o acusado diz que foi coagido. Ela no se

    comove com a desculpa e d uma grande bronca nele. Assim, j em seus primeiros

    minutos, o filme apresenta uma srie de aspectos tanto de caracterizao das

    personagens como formais e narrativos que vo se repetir por toda sua durao,

    funcionando como pontos estruturantes do projeto de Maria Augusta.

    Neste projeto, h, em primeiro lugar, um dilogo imediato e evidente com o

    cinema direto norte-americano. Com exceo dos planos encenados, Maria Augusta

    respeita todas as premissas do cinema observacional clssico, adotando um cmera de

    postura no interferente, rejeitando o uso da narrao, das entrevistas e da msica. Ela

    privilegia planos abertos, com pouco ou nenhum movimento e de longa durao. Mais

    precisamente, o filme dialoga com Frederick Wiseman, conhecido por se trabalho de

    documentao de instituies norteamericanas. Segundo David Stewart, mais do que

    retratar instituies, Wiseman documenta situaes de interao entre pessoas e

    ambientes institucionais, j que so elas que acrescentam complexidade a instituies

    que so muitas vezes planejadas de maneira pobre para os propsitos a que servem5.

    No caso de Juzo, a inteno da realizadora parece ser a de ter como

    personagem principal algo um pouco mais abstrato do que uma instituio que possa

    ser identificada com um lugar fsico: a Justia do Menor, personificada pela Vara

    Criminal carioca que Maria Augusta observa e que tem como duplo o Instituto Padre

    Severino. O que est em jogo a representao de um sistema de interaes e no de

    um personagem especfico. O representao do sistema da Justia se constri a partir

    5 Ver STEWART, 1998

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    da forma como os atores sociais se relacionam com ela e, como contrapartida, os

    atores sociais interessam ao filme somente na medida desta interao.

    Muito embora em entrevistas a diretora costume dizer que queria humanizar a

    figura do menor infrator, no nesse sentido que o filme se constri. De um lado, os

    menores, nos so apresentados de acordo com seu contato com as instituies. No

    sabemos nada sobre eles antes da audincia, suas falas esto limitadas a respostas

    lacnicas s interrogaes da juza, suas informaes biogrficas surgem apenas

    atravs do que lido dos processos, e sua vida para alm da audincia sintetizada na

    seqncias de planos finais, conforme analisaremos adiante. No h espao para

    qualquer tentativa de penetrar na subjetividade destes menores, ou de criar uma

    empatia entre espectador e personagens. Alm disso, o alheamento destes menores em

    relao ao ritual da justia e a seus cdigos, os deixa em posio de desvantagem no

    que diz respeito a construo de uma voz audvel. Sua presena se constri justamente

    a partir da oposio entre quem fala e quem escuta, quem sabe e quem no sabe,

    quem julga e quem julgado e, em ltima instancia, entre ao e inao.

    Em termos de mtodo, os operadores da lei tambm esto sujeitos a esta

    moldura institucional. Nada que exista neles para alm daquele contexto e das

    situaes filmadas interessa ao filme. No entanto, audincia aps audincia, a juza

    parece disputar com a Justia do Menor o lugar de centro de gravidade do filme.

    revelia de sua autora, a juza ocupa a tela com sua personalidade e se revela uma

    personagem de mltiplas dimenses. Um fator fundamental para que isso ocorra que

    no apenas ela o centro do teatro da Justia, como sua subjetividade e sua viso de

    mundo so determinantes e catalisadoras dos acontecimentos.

    H aqui um claro conflito entre o papel que o filme parece querer impor

    juza de pea da engrenagem jurdica e que existe somente nesta relao e seu

    desejo como atriz natural de se colocar em cena e de domina-la, criando o que

    Santeiro chamaria de crise da representao6. David MacDougall, em De quem

    6 A noes de ator natural e dramaturgia natural foram apresentadas por Srgio Santeiro, no artigo Conceito de Dramaturgia Natural, publicado em 1978, na revista Filme Cultura. Para Santeiro, a partir do som direto, o documentrio adotou a encenao do drama ficcional. Mas, no documentrio, ao invs de representar uma personagem fictcia, o sujeito filmado lana mo de recursos expressivos para representar o seu prprio papel, funcionando assim como ator natural. Segundo Santeiro, a pessoa filmado encarna uma tripla personalidade: ele o sujeito real, determinado socialmente e que fala de uma posio social concreta; ele o personagem dramtico que idealiza o sujeito real,

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    esta estria?, aborda tambm a questo dos limites do controle sempre parcial

    que o realizador possui sobre o filme. Ele se questiona sobre como o material a partir

    do qual um trabalho feito age para definir e controlar seu significado. Afinal, se um

    filme visto como um encontro entre o realizador e a pessoa filmada, eles seria at

    certo ponto produzido por esta. Assim, a forma do texto incorpora caractersticas da

    personagem graas exposio ao mesmo como em uma chapa fotogrfica7. O

    autor comenta que existem muitos exemplos de documentrios onde o ser fsico e

    espiritual de uma pessoa parece transbordar o filme que se prope a conte-lo. O filme

    transmite a presena, mas como se ele fosse consumido por ela.

    Nesta mesma linha, Sergio Santeiro atribui uma autonomia imagem

    documentria, a despeito do desejo do autor de manipul-la. Ele acredita que a

    gravao sonora anti-seletiva, anotando toda a expresso sonora contida na tela e

    no exclusivamente o que percebido pelo autor. Assim o registro obedeceria a uma

    organizao que prpria do personagem, nem prevista nem desejada pelo filme, que

    antecede escolha e permanece mesmo com a seleo posterior na montagem. Trata-

    se de um conjunto de expresso autnoma em que podemos ver manifestaes

    conscientes e inconscientes do sujeito filmado.8

    A questo que emerge aqui como se d a construo do personagem

    documentrio, seja do ponto de vista da performance e da irredutibilidade do sujeito

    filmado, ou das estratgias enunciativas do filme. MacDougall se refere a uma

    mltipla identidade do personagem. Se para Santeiro essa multiplicidade interna ao

    sujeito filmado, para MacDougall a questo se desloca para o jogo entre personagem,

    realizador e espectador. O personagem a pessoa que existe fora do filme; tambm

    a pessoa que se constri na interao com o realizador; e, finalmente, a pessoa

    construda na interao do espectador com o filme.

    selecionando suas caractersticas a partir de seus valores reais; e ele o ator natural, que atualiza o personagem dramtico criado por ele mesmo em um novo confronto com a realidade, no qual a espontaneidade d lugar encenao. Desta forma, a fiel representao do personagem dramtico depende do bom desempenho do ator natural. Assim como na fico, na dramaturgia natural, muitas vezes, o mau desempenho do ator acarreta o fracasso da encenao. Santeiro chama de crise da representao os momentos em que o despreparo cnico do ator natural, a interferncia da realidade na cena ou uma motivao contraditria a do cineasta, colocam em risco toda a encenao. 7 Ver MACDOUGALL, 1997 p. 97 8 Ver SANTEIRO, 1978

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    Para MacDougall, no esforo de construir a personagem, alguns

    documentaristas escolhem enfatizar aspectos selecionados da personalidade ou do

    comportamento dos sujeitos filmados como elementos funcionais no filme; outros

    tentam sugerir uma imagem mais complexa em miniatura. Esta seria a diferena entre

    uma caricatura e um retrato. Mas j que no h medio objetiva do eu, como avaliar

    o quo bem representada uma pessoa?. Na prtica, para MacDougall, em termos

    narrativos, um personagem definido por suas aes9. o que os atores sociais fazem

    ou tem potencial para fazer que os fixa em constelaes dramticas, muitas vezes em

    pares se definem mutuamente como opressor/ oprimido, o que ama/ o que amado,

    doador/ recptor, caador/ caado, etc10. So estruturas que ao mesmo tempo os

    cineastas podem utilizar e as quais esto subordinados.

    Ao falar de Wiseman, por exemplo, Mac Dougall comenta que em seus filmes

    os trabalhadores de escolas, hospitais e outras instituies esto sempre sob a ameaa

    de se fundirem s instituies, apesar dos esforos do diretor no sentido contrrio.

    Isso revela como a colocao das pessoas dentro de estruturas dramticas e

    ideolgicas poderia ser mais importante do que outros fatores para a caracterizao do

    personagem. Neste sentido, em Juzo, a estrutura dramtica inerente ao poder

    judicirio funciona como uma moldura inevitvel, que serve realizadora tanto

    quanto a oprime. Maria Augusta Ramos se refere em entrevistas ao teatro da justia11.

    Este teatro tem uma dramaturgia e uma mise-en-scne prprias, que vo desde o

    posicionamento espacial dos atores sociais, at os papeis dramticos ocupados por

    cada um dos operadores jurdicos e seu roteiro de aes.

    Se hoje tanto em termos da antropologia visual como do fazer

    cinematogrfico soa ultrapassado falar em uma realidade objetiva que possa ser

    filmada sem ser modificada pela presena do cineasta, vale levar em conta que alguns

    contextos so mais favorveis que outros opo por uma postura observacional. Ao

    9 Indo um pouco alem do que Mac Dougall prope, acredito que possamos pensar a ao tanto como um elemento narrativo controlado pelo cineasta, como tambm em sua dimenso performativa, inteiramente nas mos do sujeito filmado. 10 MACDOUGALL, 1998 p. 43 (traduo minha) 11 Por isso que eu digo que ali, no teatro da justia, a sociedade brasileira est representada. No s um ritual, e neste filme o ritual da justia infantil, mas tambm o que leva esses adolescentes a cometerem delitos, a entrarem em conflito com a lei. Entrevista de Maria Augusta Ramos ao site Plula Pop (http://www.pilulapop.com.br/ressonancia.php?id=95)

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    contrario da idia rouchiana do fazer flmico como catalisador, Wiseman busca

    retratar acontecimentos que teriam acontecido mesmo que o filme no estivesse sendo

    realizado. Para ele no interessam situaes e performances criadas para a cmera. Se

    ele tem a sensao, durante uma filmagem, de que algum esta atuando para ele, para

    de filmar imediatamente12. Neste sentido, as instituies de maneira geral e em

    especial o universo jurdico servem muito bem a este tipo de abordagem, porque

    ainda que a performance dos sujeitos filmados seja alterada pela presena da cmera,

    ela est inserida num teatro que antecede e prescinde da presena do cineasta. Do

    ponto de vista da performance dos operadores da lei, ao retratar as audincias a mise-

    en-scne do filme acaba sublinhado a auto-mise-en-scne13 proposta pelos prprios

    personagens, que tm um conhecimento do protocolo jurdico do qual o cineasta no

    pode se apropriar. J do ponto de vista da performance dos menores, como veremos, a

    relao entre mise-en-scne e auto-mise-en-scne adquire outros contornos.

    Voltando ao filme, logo aps os crditos iniciais, so fornecidas algumas

    indicaes que situam o espectador no universo judicirio. Vemos uma imagem de

    um arquivo de processos, com pastas e mais pastas empilhadas. Em seguida um plano

    mais aberto, onde ao redor de mesa grande, funcionrias lem processos. Depois uma

    imagem da fachada, onde se l Tribunal de Justia Vara da Infncia e da Juventude

    e Auditoria da Justia Militar do Rio de Janeiro. Em seguida um camburo entra de

    r na garagem do Frum (cena que vai se repetir algumas vezes ao longo do filme), e

    menores de quem no vemos os rostos descem. Um menor levado para a sala.

    Nas seqncias de observao do cotidiano tanto do frum quanto do

    Instituto - a cmera assume uma postura de observao distanciada, onde existe

    sempre uma restrio ou interdio do olhar. A cmera espia as situaes, 12 Vale destacar que, no entanto, na crtica que se faz a postura observacional do trabalho de cineastas como Wiseman, confunde-se a crena numa realidade objetiva que pode ser acessada, com a crena numa transparncia cinematogrfica que garantiria um contato no mediado com o real. Esta iluso de transparncia no endossada por Wiseman, que se refere ao seu prprio trabalho como reality fictions. Em entrevista ele elabora esta idia: "A documentary is just another form of fiction. It is arbitrary ... made up. It doesn't follow the natural order. Its major sequences are shorter than they are in real time. They acquire meaning they wouldn't have in isolation. What's magical about a good film is magical about a good play or a good novel." (STWEART, 1998) 13 Do ponto de vista da antropologia, a idia de auto-representao est presente na noo de auto-mise-en-scne forjado por Claudine de France. A auto mise-en-scne seria a maneira como o processo observado se apresenta ao cineasta. Isto , a maneira autnoma com que o personagem real escolhe mostrar suas aes e suas atividades corporais, materiais e rituais. Com suas aes, o sujeito filmado prope uma organizao da cena que pode ou no ser reforada pela mise-en-scne do cineasta.

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    registrando-as de um ngulo especfico, quase sempre frontal, em que os rostos nunca

    so permitidos. Para alm de reforar uma suposta no interferncia, esta distncia se

    confirma aqui como estratgia discursiva. O espectador colocado de fora, numa

    posio anloga a da prpria autora. Assim, a restrio do olhar acaba funcionando

    no como uma perda, mas como ndice de realidade. s porque a situao

    verdadeira e os menores so pessoas reais, que no podemos v-los de fato.

    Por outro lado, h sempre a busca de uma continuidade espao-temporal a

    chegada dos garotos no Frum, por exemplo, mostrada em todos as suas etapas,

    numa seqncia de planos que pode ou no respeitar a cronologia da filmagem que

    cria um efeito de narrativizao. Da mesma forma, as oito audincias do filme so

    supostamente mostradas integralmente, da chegada do menor at ele ser dispensado

    pela juza. No entanto, evidente que nada garante que no haja nenhum corte. O que

    importa aqui a busca de uma esttica observacional de no interferncia e de um

    aparente respeito da montagem a durao do evento14. De sada, sabemos que esta

    sensao de continuidade produzida nos episdios de audincia atravs de uma

    montagem baseada na estrutura de plano (real) e contra-plano (encenado), que

    mimetiza o naturalismo do cinema narrativo dramtico. No entanto, embora o

    espectador saiba que tratam-se de plano gravados em momentos absolutamente

    distintos, ele a todo o momento se esquece disso, sendo envolvido pela montagem.

    Logo aps a seqncia de imagens que apresentam o contexto jurdico, o filme

    entra em sua segunda audincia, que ocupa seus prximos 06 minutos. A situao tem

    incio com a juza perguntando ao garoto se verdade que ele teria participado de

    uma tentativa de assalto a mo armada. O menino diz que estava l, mas que foram os

    outros dois garotos que mandaram ele segurar a arma. A juza fica indignada:

    chegam dois caras que voc no conhece, te mandam segurar uma arma e voc

    segura?. Mais adiante ela diz: J parou para pensar na conseqncia dos seus

    atos?. A audincia montada combinando planos da juza, do menor, da promotora,

    e do defensor. A edio de som busca criar uma iluso de continuidade entre os

    14 possvel traar aqui um dialogo com a critica feita por Trinh T. Minh-Ha, em When Te Moon Waxes Red, a uma esttica da objetividade que busca o naturalismo atravs de diversos elementos da tecnologia cinematogrfica, como o microfone direcional e o som direto sincrnico como regra. Um dos pontos deste conjunto de propostas a idia de que o tempo real mais verdadeiro que o tempo flmico e o plano longo, com o mnimo de cortes, mais apropriado para evitar distores. (MINH-HA, 1991 p.34)

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    planos reais e os planos encenados. A juza muito assertiva, fala rpido e no se

    deixa levar por nenhuma das justificativas do menor. Misturado ao seu vocabulrio

    jurdico, que quase sempre os menores entendem apenas parcialmente, est um

    linguajar informal (Quem que vai tomar o pipoco? Canelo? (...) Numa dessas

    voc morre. Tu quer morrer?). Nesta audincia, assim como nas outras, existe uma

    precariedade na performance destes adolescentes, que se configura num

    distanciamento e numa apatia que possivelmente tem a ver com a timidez em atuar.

    No entanto essa precariedade funciona a favor do discurso que o filme constri,

    compondo um retrato de alheamento dos menores em relao ao teatro da justia.

    H um hiato entre a fala da juza e a postura, por exemplo, de um menino que diz no

    saber sua data de nascimento, e este descompasso um dos motivos que retorna

    diversas vezes ao longo do filme.

    Em seguida, o filme traz um segmento de 13 minutos de imagens do cotidiano

    do Instituto Padre Severino, que mostram a chegada de um grupo de menores ao

    local: camburo abre as portas, eles descem, andam em fila, fazem registro e ganham

    nmero de matrcula, um funcionrio pede que eles tirem a roupa e vistam o uniforme

    da unidade. Entre os planos documentais, dois planos mais prximos de adolescentes

    tendo sua cabea raspada, onde vemos o rosto de um dos adolescentes atores. A partir

    da, os planos documentais se fundem com planos encenados, para construrem uma

    narrativizao, em que as aes seguem uma cronologia diegtica. H um impulso

    contraditrio entre a vontade de criar distanciamento como vimos anteriormente e

    o desejo de levar o espectador a imergir no universo diegtico15. Nos planos

    encenados, a cmera permanece esttica, mas esta observao passa a ser mais

    prxima, dando rosto aos adolescentes que eram apenas uma massa no identificada.

    Seguimos vendo o cotidiano do Instituto: o corredor azulejado para onde do os

    quartos/ celas; um quarto grande com muitos meninos; planos mais prximos de

    alguns meninos (atores ) deitados, olhando, de perfil. No ptio, uma srie de meninos

    de costas formam filas e andam por um corredor, pegam comida no refeitrio e assim

    15 Em entrevista ao Plula Pop Maria Augusta Ramos disse: Eu tento retratar a realidade de maneira que leve o pblico a pensar, a refletir sobre ela por si s. Por isso, um cinema que observa, mais reflexivo, que exige uma distncia entre o pblico e os personagens retratados. E essa distncia criada pelo trabalho de cmera, de edio. Tem um tempo, um ritmo: a cmera nunca se aproxima muito, sempre esttica, frontal, sem planos subjetivos dos personagens.

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    por diante. curioso que na maior parte dos planos encenados vemos os adolescentes

    em situaes de pouco movimento, numa postura silenciosa e contemplativa, como se

    houvesse uma busca estetizante de criar instantneos fotogrficos desses jovens.

    possvel que uma instituio como a Padre Severino, com normas rgidas de conduta,

    imponha um silncio. Mas esse silncio sugere tambm uma marca autoral. Os atores

    sociais so colocados em cena, a fim de construir uma imagem idealizada pela

    realizadora. No parece haver margem de manobra para eles em termos de improviso.

    Neste sentido, ao incorporar o uso da fico, Maria Augusta Ramos, trabalha

    com a performance dos atores sociais de maneira bem distante do trabalho de Rouch

    nas etnofies, que partem do princpio de uma criao compartilhada entre cineasta e

    os sujeitos filmados. Para Rouch no h diferena entre fico e realidade e

    impossvel, ao analisar sua obra, pretender separar o real e o imaginrio, j que para

    ele a dimenso ritual no est separada da vida material. Ao contrrio de um

    distanciamento dos sujeitos filmados, segundo Mxime Scheinfeigel, Rouch busca um

    encontro fusional, em que ele quer estar no lugar do outro filmado, neste lugar

    imaginrio. Ao mesmo tempo atravs de um princpio de reversibilidade, o filmado

    torna-se tambm um observador, um pseudo-etnlogo, um pseudo-cineasta, como se

    v claramente em Jaguar (1954).16

    Este dilogo com Rouch, problematiza um pouco as opes feitas por Maria

    Augusta, ao substituir os menores por atores. Qual a participao destes atores no

    filme? O que que eles trazem para o filme, para alm de sua presena fsica? Ser

    que existiria algo de nico e peculiar na maneira como os verdadeiros personagens

    agiriam? o contedo da fala original, reproduzido com exatido que importa?

    Dentro do esquema de enunciao proposto pela autora, a resposta parece ser sim. O

    16 Jaguar a primeira fico de Rouch e conta a histria de trs jovens do Niger que emigram para Gana. O filme acompanhando esse deslocamento atravs das viagens, dos encontros, das experincias na cidade e na volta para casa. Rodado antes do som direto sincrnico e sem roteiro prvio, foi improvisado numa colaborao entre Rouch e os trs personagens. Dez anos depois, quando o filme foi montado, os personagens improvisaram uma narrativa ao ver o filme. Assim a banda sonora do filme consiste em dilogos lembrados, brincadeiras e comentrios sobre o que se v. O filme, mais do que retratar a misria da migrao, se prope a retratar o ideal da migrao, fabulado pelos personagens. A partir deste ponto de sua obra, os filmes de Rouch se tornam progressivamente criaes coletivas, que partem de um encontro que inteiramente assumido. Dentro desta antropologia compartilhada idealizada por Rouch, todos os procedimentos buscam a aproximao: o uso da cmera na mo, filmar com equipe reduzida, trabalhar com uma operador de udio que fale a lngua nativa, estabelecer contato anterior prolongado e a necessidade do feedback.

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    sujeito filmado definido pelo contato com a instituio e no existe para alm desta

    dimenso. O que ele diz ali o que saberemos dele. Por outro lado, os adolescentes

    substitutos no so atores comuns. So garotos e garotas que vem do mesmo

    background que os personagens reais. Esta condio, mais do que uma questo de

    mtodo, indica a busca do que seria uma inscrio verdadeira17, gerando uma maior

    impresso de realidade. O verossimilhana no se daria ento pela performance em si,

    mas pela presena de marcas do real. Neste sentido, a cartela inicial justifica o

    procedimento de substituio do filme, reiterando seu compromisso com a realidade.

    Endossando esta hiptese, ao falar sobre osatores, Maria Augusta afirma:

    Eu no considero os adolescentes que substituram, digamos assim, menos atores do que repeties, dubls, de uma realidade que se repete anualmente no Brasil. Qualquer jovem de favela no Rio de Janeiro vive situaes muito prximas s retratadas ali e pode vir a cometer delitos. Todos esses adolescentes substitutos poderiam estar ali na frente da juza. Eles sabem disso e ns tambm. Por isso, o desempenho deles muito crvel. No fundo, tambm sobre essa gerao de jovens que, pela primeira vez, a gente v de frente. Eu sempre trabalhei o texto com eles no sentido de que no atuassem, mas que fossem eles mesmos. Como eles falariam aquele texto se estivessem ali sentados, passando pelo que aquele menino ou menina passou. (...) Em alguns momentos, essa fronteira entre o ator e o menor infrator muito tnue. E eu fao isso de propsito porque essa repetio tem significado.18

    Um pouco mais adiante, logo aps a quarta audincia, temos um segmento de

    10 minutos de cotidiano do Instituto Padre Severino, divididos em trs situaes: a

    visita de uma representante da Vara da Infncia e da juventude que est fazendo uma

    inspeo para checar as condies do lugar; planos encenados da convivncia de

    alguns internos num quarto/ cela e o dia de visitas. O dia de visitas comea com a fila

    do lado de fora, passando pela revista das mes na entrada e depois pelo encontro com

    os filhos no refeitrio lotado, todos sentados nos bancos. A representao das mes

    segue o mesmo esquema dos menores nas imagens puramente documentais, com

    17 Jean-Louis Comolli Comolli critico do argumento que reduz o mundo da imagem ao mundo do discurso, igualando fico e documentrio como construes discursivas sobre o real, sem explorar as diferenas ntidas entre estas duas formas de agenciamento. Comolli insiste na relao entre imagens e a cena profilmica. A inscrio verdadeira seria assim a ligao indissolvel permitida e testemunhada pela mquina do cinema entre discurso, corpos filmados e o lugar onde os eventos ocorrem. Trata-se da durao partilhada entre quem filma e quem filmado. O mundo deixa seus vestgios nas imagens, nos sons e nas falas. (GUIMARES & CAIXETA, 2008, p. 44) 18 Plula Pop (http://www.pilulapop.com.br/ressonancia.php?id=95)

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    planos que via de regra no revelam seus rostos e priorizando planos gerais ou planos

    detalhes (como por exemplo, o das mos das mes que entregam coisas para a

    revista). Ao chegarmos ao refeitrio, onde elas vo esperar seis filhos, alguns poucos

    rostos comeam a ser vistos. Vemos algumas mes que choram esperando seus filhos.

    neste ponto, que o filme atinge sua maior inflexo emocional. At aqui,

    ainda que a realidade do Instituto Padre Severino seja deprimente e chocante,

    mimetizando a dinmica de um presdio, a abordagem de Maria Augusta rejeita o

    apelo emocional destas cenas. As condies so horrveis, as celas nojentas, a relao

    de funcionrios e internos brutal e absolutamente despersonalizada. Atravs de

    recursos j descritos, a maneira como cmera e autora se posicionam em relao

    instituio provoca de fato um distanciamento que supostamente, deixa ao

    espectador com espao para elaborar seus prprios julgamentos. No entanto essa

    tentativa, faz com que paradoxalmente, no se crie a possibilidade de empatia com os

    sujeitos filmados. Claramente, o fato destes menores serem, a maior parte do tempo,

    corpos sem rostos est na raiz dessa impossibilidade de identificao. Ao longo da

    histria do cinema, muitas vezes, a fonte primaria de identificao do espectador com

    o filme foi pensada como estando estreitamente ligada ao close-up do rosto.19 Assim,

    somente nessa espera das mes, que a emoo vem tona no filme. Nos rostos que

    choram e depois nos ombros e nos braos que acolhem os filhos. aqui que estes

    corpos ganham humanidade, colocados assim como crianas pequenas que buscam o

    conforto e a segurana da me no sentido mais sensorial possvel, com seu cheiro,

    seu rosto e seu corpo e que a brutalidade da instituio se faz mais evidente.

    Este ponto de inflexo nos leva a quinta audincia, que a mais longa e

    emocional do filme. Tudo fica um pouco mais a flor da pele e a juza, que parecia

    insensvel a todos os lamentos e sempre assertiva, muda o tom. Aps o menino

    confirmar que matou o pai esfaqueado porque ele batia nela e na me, a juza vai

    questionando o menino sobre detalhes diversos da histria, de forma tranquila e

    delicada. A me interrogada e confirma o discurso do filho. A juza fala para o

    menino que ela quer que ele saiba que vai lembrar disso que aconteceu para sempre, e

    19 Em The fate of the cinema subject, MacDougall desenvolve a questo do rosto como fonte de identificao entre espectador e personagem. Ver MACDOUGALL, 1998 p. 51 a 54

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    que saber se ele devia ou no ter feito isso uma reflexo que ela vai deixar para a

    conscincia dele. a primeira vez no filme em que ela no se sente capaz de emitir

    um juzo moral sobre o acontecido. Ela concede a liberdade provisria assistida, mas

    diz que no quer v-lo em baile funk, fliperama, etc. Estamos entendidos?. A

    audincia seguinte, a sexta, a continuao deste caso e deste hiato de personalizao

    do filme, agora com um outro juiz, interrogando o irmo no menino acusado. O irmo

    evasivo e curioso como neste ponto o espectador talvez tora por uma resposta do

    irmo (que acaba no acontecendo), que ajude a salvar o menino.

    Apos est audincia, seguindo sua lgica estrutural, o filme volta ao Instituto

    Padre Severino, para um segmento que mescla planos documentais e encenados. Em

    seguida, a stima audincia encerra o que seria o corpo principal do filme, fechando a

    estrutura bem marcada que conduziu o espectador at aqui. O caso de um menino

    que foi pego passando cocana. Depois de interrogar um policial que identifica o

    menino, a juza questiona o prprio adolescente. A primeira informao chocante de

    que ele no sabe a prpria data de nascimento. Sabe s que tem 14 anos. A juza

    pergunta se os traficantes no iro atrs dele para cobrar a droga que ele perdeu, e ele

    diz que no. Bem ao estilo de dar lies de vida, a juza diz que se ele estivesse em

    casa ou na escola com certeza no teria sido pego entregando cocana. E pergunta:

    Valeu? Sem entender direito a pergunta, mas querendo dar a resposta certa ele

    responde: Valeu. O defensor se apressa a dizer que ele no deve ter entendido e a

    juza explica: Valeu, ter ficado fora da escola, etc?. Da ele d a resposta correta,

    dentro da dramaturgia do ritual jurdico: No valeu. A juza concede um Criam, que

    significa que ele vai poder voltar para casa nos finais de semana, e diz para o menino:

    encare o Criam como uma chance que eu estou te dando e honre esta oportunidade.

    A partir da o filme entra em sua etapa final, com uma srie de com cenas

    cotidianas filmadas nas casas dos meninos e meninas que atuaram no filme. Vemos

    imagens do menino que interpretou o menor infrator nessa ltima audincia jogando

    cartas na rua e em seguida entrando num barraco onde brinca com duas crianas,

    enquanto a me tira piolho de uma terceira. Sobre estas imagens entram os GCs: 230

    trfico/ Fugiu do Criam/ Duas semanas depois foi morto com trs tiros nas costas.

    Imagens do menino que interpretou o garoto que matou o pai empina pipa. Entra GC:

    251 homicdio/ No freqenta o Criam e nem vai escola. A menina que

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    representou uma das duas que roubaram o turista estrangeiro est sentada numa cama

    amamentando um beb grande. Entra GC: 62 roubo/ Fugiu do Criam/ Mora com a

    me e com o filho. E assim sucessivamente, passando pelos sete no-atores. Os GCs

    que mostram o que aconteceu aps o julgamento, funcionando como um indicao do

    futuro/passado dos personagens. Isto tem o curioso efeito de criar um desfecho

    dramtico para os personagens, ao estilo do que vemos em certas biografias

    cinematogrficas ficcionais sobre personalidades reais que trazem uma cartela no

    final explicando o que aconteceu com o personagem aps o fim do filme. Em geral,

    estas cartelas endossam o desfecho que o filme prope, dando uma chancela de

    autenticidade ao futuro anunciado pela narrativa.

    Vale aqui fazer um paralelo com David MacDougall em The Fate of the

    Cinema Subject. MacDougall chama a ateno para a transitoriedade dos

    personagens no documentrio. Ele diz que os filmes de fico os personagens

    parecem escorregar em direo ao passado. No documentrio os sujeitos filmados,

    perturbadoramente, escorregam em direo ao futuro. Mesmo enquanto esto sendo

    filmados, os personagens esto em transio, se movendo em direo a um futuro que

    o filme no consegue conter. Mais adiante, ao comentar o uso do freeze-frame em

    alguns filmes, ele afirma que a imagem congelada reproduz em miniatura uma

    suspenso maior que o filme como um todo impe a seus objetos. como se a

    durao do filme criasse um grande freeze-frame.

    Em Juzo, estes personagens que o filme retrata tambm escapam em direo a

    um futuro incerto, assim que saem da audincia, e no poderamos imaginar que suas

    vidas a partir da vo seguir um sentido linear. No entanto, os textos na tela

    apresentam uma instantneo de futuro congelado, resumindo suas vidas aps o

    julgamento a um ou dos acontecimentos, e criando um efeito de qualificao a

    posteriori das sentenas. O menino que recebeu a chance de freqentar o Criam no

    honrou sua chance e morreu; a mimada que quase abriu mo da remisso de fato

    merecia o perdo. A audincia um momento de suspenso do tempo, em que uma

    lgica prpria ao evento determina as interaes entre os atores sociais e seu

    resultado. No curso do tempo e da vida, este julgamento ganha outros significados.

    Enquanto na audincia, a platia e o juiz esto em posio anloga, tentando avaliar a

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    performance do depoente, sempre em relao s marcas do real; no filme os

    espectadores tem uma vantagem e podem ver o resultado de suas aes no futuro.

    Aps o que seria esta seqncia de desfecho, o filme nos leva de volta a uma

    audincia, colocando a engrenagem jurdica novamente em funcionamento e, num

    movimento cclico, materializando o crculo vicioso em que o sistema est inserido.

    No h o contra-plano encenado, e toda a seqncia montada a partir do plano geral

    em que o menino visto de costas. Em alguns momentos ele mexe a cabea e acaba

    revelando seu rosto e ao longo da cena descobrimos que ele j no menor de idade. O

    clima de incerteza. A juza, o promotor e o defensor tentam entender o processo. A

    princpio parece se tratar de um caso de um garoto que fugiu do Instituto e acabou

    sendo encontrado na rua. Ao longo da situao, no entanto, os personagens se do

    conta de que o garoto havia fugido da internao de forma surreal, atravs de um

    buraco justamente aps a audincia em que ele havia recebido a liberdade assistida.

    Ele explica que fugiu porque no sabia o que era liberdade assistida. Juza e

    promotora no acreditam, do risada do absurdo da situao e decidem liberar o

    menino. A juza diz que ele precisa prestar ateno por que a partir daquele momento,

    qualquer coisa que ele fizer o levaria para a vara criminal. Ela nos lembra, que este

    garoto a sntese de toda a impossibilidade destes jovens de participar, em p de

    igualdade, da dinmica do poder judicirio; e do movimento cclico que arremessa

    estes jovens repetidamente de volta ao sistema.

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