JUÍZO E O TEATRO DA JUSTIÇA: narrativa e performance1 · JUÍZO E O TEATRO DA JUSTIÇA: narrativa...
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So Paulo, 18 de Novembro de 2010
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JUZO E O TEATRO DA JUSTIA: narrativa e performance1 Autora: Clara Leonel Ramos2 Orientador: Henri Pierre Arraes de Alencar Gervaiseau 3 Linha de pesquisa: Histria, Teoria e Critica Resumo: O texto apresenta anlise do filme Juzo (Maria Augusta Ramos, 2007), documentrio que trabalha predominantemente no modo observacional e aborda a vida de menores infratores no Rio de Janeiro, tendo como foco a questo da performance dos sujeitos filmados e a tenso que se estabelece entre o desejo destes sujeitos de se auto-representar e as estratgias narrativas utilizadas pela autora. Palavras-chave: Juzo; documentrio brasileiro; auto-representao
O objetivo deste trabalho analisar o filme Juzo (Maria Augusta Ramos,
2007), um documentrio que trabalha predominantemente no modo observacional e
aborda a vida de menores infratores no Rio de Janeiro, tendo como foco a questo da
performance dos sujeitos filmados e a tenso que se estabelece entre o desejo destes
sujeitos de se auto-representar e as estratgias narrativas utilizadas pela autora.
exemplo do longa-metragem anterior da autora, Justia, o filme mescla
situaes de tribunal, onde estes menores so julgados na primeira instncia de uma
Vara de Menores do estado do Rio de Janeiro e a observao do cotidiano do Instituto
Padre Severino, uma casa de recolhimento de menores infratores. Para lidar com a
impossibilidade legal de mostrar o rosto dos menores que participam dos julgamentos
e que esto internados, Maria Augusta opta por uma estratgia narrativa hbrida. As
situaes de tribunais reais so todas filmadas num plano frontal em relao aos juizes
(quase sempre geral), onde o menor aparece de costas, sem ser identificado. No
entanto, um contra-plano, onde vemos o rosto destes menores e ouvimos suas
1 Trabalho apresentado na I Jornada Discente do PPGMPA USP, promovido pelo Programa de Ps-Graduao em Meios e Processos Audiovisuais, da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo (Eca-Usp), no dia 18 de novembro de 2010. 2 Possui graduao em Jornalismo pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (2000), mestrado no Departamento de Cinema da Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo, com a pesquisa As mltiplas vozes da Caravana Farkas e a crise do modelo sociolgico (2007) e desenvolve pesquisa de doutorado no mesmo departamento enfocando as estratgias de auto-representao de pesoas reais no documentrio. documentarista e produtora audiovisual. 3 Possui graduao em Historia - Universit de Paris VII (1975), mestrado em Etnologia - Universite de Paris VII (1977), doutorado em Comunicao pela UFRJ (2000), e professor livre docente pela Universidade de So Paulo (2008). pesquisador do Centro de Estudos da Metrpole e atual Presidente da Associao Video nas Aldeias. Tem experincia na rea de Artes, com nfase em Documentrio.Tambm realizador de documentrios. [email protected]
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respostas s interpelaes dos juzes, simulado. Em lugar dos sujeitos reais, vemos
atores representando-os. Os mesmos atores so usados tambm em seqncias
encenadas de cotidiano, que mimetizam a esttica de observao do cinema direto.
Estas encenaes se misturam na montagem a outras imagens inteiramente
documentais da instituio de recolhimento de menores.
O filme foi captado em duas fases. Inicialmente, Maria Augusta acompanhou
durante quatro dias audincias da juza Luciana Fiala numa Vara de Menores do Rio
Janeiro. Das 55 audincias filmadas, 10 foram selecionadas e editadas. A partir da a
realizadora foi buscar os atores sociais selecionados entre adolescentes que viviam
em situao social semelhante a dos personagens reais que representariam os
menores infratores, para ento filmar os contra-planos e as seqncias encenadas de
cotidiano. De sada, esta opo por trabalhar num registro duplo, utilizando recursos
documentais e ficcionais, parece inserir Maria Augusta numa tradio que encontraria
suas razes nas etnofies de Jean Rouch, e na idia de que inexistente a fronteira
entre estes dois gneros. Ser que estamos falando aqui de uma realidade que
construda pelo filme, a partir do encontro de cineasta e dos sujeitos retratados?
No caso de Juzo, contudo, o uso de atores e da fico parece estar mais ligado
a uma restrio legal do que a uma premissa enunciativa. O que aparenta estar em
jogo, desde o incio do filme apesar do uso de atores garantir um coeficiente de
realidade do filme, atravs de uma forte preocupao com sua dimenso indicial.
Neste sentido, o filme se utiliza de estratgias formais e textuais para garantir uma
leitura documentarizante4 das imagens que apresenta, como se observa desde sua
cartela inicial, que funciona como uma espcie de atestado de realidade: A lei
4 Roger Odin distende as fronteiras entre documentrio e fico ao propor a existncia de diferentes modos de leitura e de significao entre eles o documentarizante e o ficcionalizante que se estabelecem, de maneira dinmica, na relao entre filme e espectador. Cada um desses modos se caracteriza de um lado por diferentes posturas do espectador e de outro por uma srie de indicaes fornecidas pelo filme do modo que desejaria ver utilizado para sua leitura. Uma das que questes centrais para a caracterizao dos diferentes modos a maneira como a figura do enunciador construda, como colocado por Odin: "Parece-nos, com efeito, que o que constitui a leitura ficcionalizante no tanto a construo de um 'eu-origem fictivo' mas, mais radicalmente, a recusa pelo leitor de construir um 'eu-origem'". (ODIN, 1984, p. 263-277.). Num outro texto, ele retoma a questo: Se o modo documentarizante pede a construo de um enunciador real, mas deixa quase livre a escolha dos outros processos (podemos construir ou no um mundo, construir ou no uma narrativa, produzir ou no um efeito de colocao em fases, etc.), ao contrrio, o modo ficcionalizante responde a uma organizao fixa, muito estrita, que coloca no comando dois processos dos quais tudo provem: a narrao (...) e um processo enunciativo: a fictivizao (construir uma fico supe, em primeiro lugar, que o narrador seja institudo como enunciador fictcio). ODIN, 2005, p.34
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brasileira probe a exposio da identidade de adolescentes infratores./ Neste filme
eles foram substitudos por jovens de trs comunidades do Rio de Janeiro habituados
s mesmas circunstncias de risco social. /Todos os outros personagens esto no
desempenho de seu verdadeiro papel social./ Todas as dependncias de instituies,
operadores de justia e familiares deste filme so verdicos.
Logo aps esta cartela passamos primeira das oito audincias que o filme ir
retratar e conhecemos Luciana, juza que est frente de sete destas audincias e que
acaba assumindo ou tomando fora, como veremos adiante o papel de
protagonista do filme. Nesta primeira cena, ela analisa o caso de um roubo de
bicicleta por um adolescente, em que o acusado diz que foi coagido. Ela no se
comove com a desculpa e d uma grande bronca nele. Assim, j em seus primeiros
minutos, o filme apresenta uma srie de aspectos tanto de caracterizao das
personagens como formais e narrativos que vo se repetir por toda sua durao,
funcionando como pontos estruturantes do projeto de Maria Augusta.
Neste projeto, h, em primeiro lugar, um dilogo imediato e evidente com o
cinema direto norte-americano. Com exceo dos planos encenados, Maria Augusta
respeita todas as premissas do cinema observacional clssico, adotando um cmera de
postura no interferente, rejeitando o uso da narrao, das entrevistas e da msica. Ela
privilegia planos abertos, com pouco ou nenhum movimento e de longa durao. Mais
precisamente, o filme dialoga com Frederick Wiseman, conhecido por se trabalho de
documentao de instituies norteamericanas. Segundo David Stewart, mais do que
retratar instituies, Wiseman documenta situaes de interao entre pessoas e
ambientes institucionais, j que so elas que acrescentam complexidade a instituies
que so muitas vezes planejadas de maneira pobre para os propsitos a que servem5.
No caso de Juzo, a inteno da realizadora parece ser a de ter como
personagem principal algo um pouco mais abstrato do que uma instituio que possa
ser identificada com um lugar fsico: a Justia do Menor, personificada pela Vara
Criminal carioca que Maria Augusta observa e que tem como duplo o Instituto Padre
Severino. O que est em jogo a representao de um sistema de interaes e no de
um personagem especfico. O representao do sistema da Justia se constri a partir
5 Ver STEWART, 1998
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da forma como os atores sociais se relacionam com ela e, como contrapartida, os
atores sociais interessam ao filme somente na medida desta interao.
Muito embora em entrevistas a diretora costume dizer que queria humanizar a
figura do menor infrator, no nesse sentido que o filme se constri. De um lado, os
menores, nos so apresentados de acordo com seu contato com as instituies. No
sabemos nada sobre eles antes da audincia, suas falas esto limitadas a respostas
lacnicas s interrogaes da juza, suas informaes biogrficas surgem apenas
atravs do que lido dos processos, e sua vida para alm da audincia sintetizada na
seqncias de planos finais, conforme analisaremos adiante. No h espao para
qualquer tentativa de penetrar na subjetividade destes menores, ou de criar uma
empatia entre espectador e personagens. Alm disso, o alheamento destes menores em
relao ao ritual da justia e a seus cdigos, os deixa em posio de desvantagem no
que diz respeito a construo de uma voz audvel. Sua presena se constri justamente
a partir da oposio entre quem fala e quem escuta, quem sabe e quem no sabe,
quem julga e quem julgado e, em ltima instancia, entre ao e inao.
Em termos de mtodo, os operadores da lei tambm esto sujeitos a esta
moldura institucional. Nada que exista neles para alm daquele contexto e das
situaes filmadas interessa ao filme. No entanto, audincia aps audincia, a juza
parece disputar com a Justia do Menor o lugar de centro de gravidade do filme.
revelia de sua autora, a juza ocupa a tela com sua personalidade e se revela uma
personagem de mltiplas dimenses. Um fator fundamental para que isso ocorra que
no apenas ela o centro do teatro da Justia, como sua subjetividade e sua viso de
mundo so determinantes e catalisadoras dos acontecimentos.
H aqui um claro conflito entre o papel que o filme parece querer impor
juza de pea da engrenagem jurdica e que existe somente nesta relao e seu
desejo como atriz natural de se colocar em cena e de domina-la, criando o que
Santeiro chamaria de crise da representao6. David MacDougall, em De quem
6 A noes de ator natural e dramaturgia natural foram apresentadas por Srgio Santeiro, no artigo Conceito de Dramaturgia Natural, publicado em 1978, na revista Filme Cultura. Para Santeiro, a partir do som direto, o documentrio adotou a encenao do drama ficcional. Mas, no documentrio, ao invs de representar uma personagem fictcia, o sujeito filmado lana mo de recursos expressivos para representar o seu prprio papel, funcionando assim como ator natural. Segundo Santeiro, a pessoa filmado encarna uma tripla personalidade: ele o sujeito real, determinado socialmente e que fala de uma posio social concreta; ele o personagem dramtico que idealiza o sujeito real,
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esta estria?, aborda tambm a questo dos limites do controle sempre parcial
que o realizador possui sobre o filme. Ele se questiona sobre como o material a partir
do qual um trabalho feito age para definir e controlar seu significado. Afinal, se um
filme visto como um encontro entre o realizador e a pessoa filmada, eles seria at
certo ponto produzido por esta. Assim, a forma do texto incorpora caractersticas da
personagem graas exposio ao mesmo como em uma chapa fotogrfica7. O
autor comenta que existem muitos exemplos de documentrios onde o ser fsico e
espiritual de uma pessoa parece transbordar o filme que se prope a conte-lo. O filme
transmite a presena, mas como se ele fosse consumido por ela.
Nesta mesma linha, Sergio Santeiro atribui uma autonomia imagem
documentria, a despeito do desejo do autor de manipul-la. Ele acredita que a
gravao sonora anti-seletiva, anotando toda a expresso sonora contida na tela e
no exclusivamente o que percebido pelo autor. Assim o registro obedeceria a uma
organizao que prpria do personagem, nem prevista nem desejada pelo filme, que
antecede escolha e permanece mesmo com a seleo posterior na montagem. Trata-
se de um conjunto de expresso autnoma em que podemos ver manifestaes
conscientes e inconscientes do sujeito filmado.8
A questo que emerge aqui como se d a construo do personagem
documentrio, seja do ponto de vista da performance e da irredutibilidade do sujeito
filmado, ou das estratgias enunciativas do filme. MacDougall se refere a uma
mltipla identidade do personagem. Se para Santeiro essa multiplicidade interna ao
sujeito filmado, para MacDougall a questo se desloca para o jogo entre personagem,
realizador e espectador. O personagem a pessoa que existe fora do filme; tambm
a pessoa que se constri na interao com o realizador; e, finalmente, a pessoa
construda na interao do espectador com o filme.
selecionando suas caractersticas a partir de seus valores reais; e ele o ator natural, que atualiza o personagem dramtico criado por ele mesmo em um novo confronto com a realidade, no qual a espontaneidade d lugar encenao. Desta forma, a fiel representao do personagem dramtico depende do bom desempenho do ator natural. Assim como na fico, na dramaturgia natural, muitas vezes, o mau desempenho do ator acarreta o fracasso da encenao. Santeiro chama de crise da representao os momentos em que o despreparo cnico do ator natural, a interferncia da realidade na cena ou uma motivao contraditria a do cineasta, colocam em risco toda a encenao. 7 Ver MACDOUGALL, 1997 p. 97 8 Ver SANTEIRO, 1978
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Para MacDougall, no esforo de construir a personagem, alguns
documentaristas escolhem enfatizar aspectos selecionados da personalidade ou do
comportamento dos sujeitos filmados como elementos funcionais no filme; outros
tentam sugerir uma imagem mais complexa em miniatura. Esta seria a diferena entre
uma caricatura e um retrato. Mas j que no h medio objetiva do eu, como avaliar
o quo bem representada uma pessoa?. Na prtica, para MacDougall, em termos
narrativos, um personagem definido por suas aes9. o que os atores sociais fazem
ou tem potencial para fazer que os fixa em constelaes dramticas, muitas vezes em
pares se definem mutuamente como opressor/ oprimido, o que ama/ o que amado,
doador/ recptor, caador/ caado, etc10. So estruturas que ao mesmo tempo os
cineastas podem utilizar e as quais esto subordinados.
Ao falar de Wiseman, por exemplo, Mac Dougall comenta que em seus filmes
os trabalhadores de escolas, hospitais e outras instituies esto sempre sob a ameaa
de se fundirem s instituies, apesar dos esforos do diretor no sentido contrrio.
Isso revela como a colocao das pessoas dentro de estruturas dramticas e
ideolgicas poderia ser mais importante do que outros fatores para a caracterizao do
personagem. Neste sentido, em Juzo, a estrutura dramtica inerente ao poder
judicirio funciona como uma moldura inevitvel, que serve realizadora tanto
quanto a oprime. Maria Augusta Ramos se refere em entrevistas ao teatro da justia11.
Este teatro tem uma dramaturgia e uma mise-en-scne prprias, que vo desde o
posicionamento espacial dos atores sociais, at os papeis dramticos ocupados por
cada um dos operadores jurdicos e seu roteiro de aes.
Se hoje tanto em termos da antropologia visual como do fazer
cinematogrfico soa ultrapassado falar em uma realidade objetiva que possa ser
filmada sem ser modificada pela presena do cineasta, vale levar em conta que alguns
contextos so mais favorveis que outros opo por uma postura observacional. Ao
9 Indo um pouco alem do que Mac Dougall prope, acredito que possamos pensar a ao tanto como um elemento narrativo controlado pelo cineasta, como tambm em sua dimenso performativa, inteiramente nas mos do sujeito filmado. 10 MACDOUGALL, 1998 p. 43 (traduo minha) 11 Por isso que eu digo que ali, no teatro da justia, a sociedade brasileira est representada. No s um ritual, e neste filme o ritual da justia infantil, mas tambm o que leva esses adolescentes a cometerem delitos, a entrarem em conflito com a lei. Entrevista de Maria Augusta Ramos ao site Plula Pop (http://www.pilulapop.com.br/ressonancia.php?id=95)
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contrario da idia rouchiana do fazer flmico como catalisador, Wiseman busca
retratar acontecimentos que teriam acontecido mesmo que o filme no estivesse sendo
realizado. Para ele no interessam situaes e performances criadas para a cmera. Se
ele tem a sensao, durante uma filmagem, de que algum esta atuando para ele, para
de filmar imediatamente12. Neste sentido, as instituies de maneira geral e em
especial o universo jurdico servem muito bem a este tipo de abordagem, porque
ainda que a performance dos sujeitos filmados seja alterada pela presena da cmera,
ela est inserida num teatro que antecede e prescinde da presena do cineasta. Do
ponto de vista da performance dos operadores da lei, ao retratar as audincias a mise-
en-scne do filme acaba sublinhado a auto-mise-en-scne13 proposta pelos prprios
personagens, que tm um conhecimento do protocolo jurdico do qual o cineasta no
pode se apropriar. J do ponto de vista da performance dos menores, como veremos, a
relao entre mise-en-scne e auto-mise-en-scne adquire outros contornos.
Voltando ao filme, logo aps os crditos iniciais, so fornecidas algumas
indicaes que situam o espectador no universo judicirio. Vemos uma imagem de
um arquivo de processos, com pastas e mais pastas empilhadas. Em seguida um plano
mais aberto, onde ao redor de mesa grande, funcionrias lem processos. Depois uma
imagem da fachada, onde se l Tribunal de Justia Vara da Infncia e da Juventude
e Auditoria da Justia Militar do Rio de Janeiro. Em seguida um camburo entra de
r na garagem do Frum (cena que vai se repetir algumas vezes ao longo do filme), e
menores de quem no vemos os rostos descem. Um menor levado para a sala.
Nas seqncias de observao do cotidiano tanto do frum quanto do
Instituto - a cmera assume uma postura de observao distanciada, onde existe
sempre uma restrio ou interdio do olhar. A cmera espia as situaes, 12 Vale destacar que, no entanto, na crtica que se faz a postura observacional do trabalho de cineastas como Wiseman, confunde-se a crena numa realidade objetiva que pode ser acessada, com a crena numa transparncia cinematogrfica que garantiria um contato no mediado com o real. Esta iluso de transparncia no endossada por Wiseman, que se refere ao seu prprio trabalho como reality fictions. Em entrevista ele elabora esta idia: "A documentary is just another form of fiction. It is arbitrary ... made up. It doesn't follow the natural order. Its major sequences are shorter than they are in real time. They acquire meaning they wouldn't have in isolation. What's magical about a good film is magical about a good play or a good novel." (STWEART, 1998) 13 Do ponto de vista da antropologia, a idia de auto-representao est presente na noo de auto-mise-en-scne forjado por Claudine de France. A auto mise-en-scne seria a maneira como o processo observado se apresenta ao cineasta. Isto , a maneira autnoma com que o personagem real escolhe mostrar suas aes e suas atividades corporais, materiais e rituais. Com suas aes, o sujeito filmado prope uma organizao da cena que pode ou no ser reforada pela mise-en-scne do cineasta.
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registrando-as de um ngulo especfico, quase sempre frontal, em que os rostos nunca
so permitidos. Para alm de reforar uma suposta no interferncia, esta distncia se
confirma aqui como estratgia discursiva. O espectador colocado de fora, numa
posio anloga a da prpria autora. Assim, a restrio do olhar acaba funcionando
no como uma perda, mas como ndice de realidade. s porque a situao
verdadeira e os menores so pessoas reais, que no podemos v-los de fato.
Por outro lado, h sempre a busca de uma continuidade espao-temporal a
chegada dos garotos no Frum, por exemplo, mostrada em todos as suas etapas,
numa seqncia de planos que pode ou no respeitar a cronologia da filmagem que
cria um efeito de narrativizao. Da mesma forma, as oito audincias do filme so
supostamente mostradas integralmente, da chegada do menor at ele ser dispensado
pela juza. No entanto, evidente que nada garante que no haja nenhum corte. O que
importa aqui a busca de uma esttica observacional de no interferncia e de um
aparente respeito da montagem a durao do evento14. De sada, sabemos que esta
sensao de continuidade produzida nos episdios de audincia atravs de uma
montagem baseada na estrutura de plano (real) e contra-plano (encenado), que
mimetiza o naturalismo do cinema narrativo dramtico. No entanto, embora o
espectador saiba que tratam-se de plano gravados em momentos absolutamente
distintos, ele a todo o momento se esquece disso, sendo envolvido pela montagem.
Logo aps a seqncia de imagens que apresentam o contexto jurdico, o filme
entra em sua segunda audincia, que ocupa seus prximos 06 minutos. A situao tem
incio com a juza perguntando ao garoto se verdade que ele teria participado de
uma tentativa de assalto a mo armada. O menino diz que estava l, mas que foram os
outros dois garotos que mandaram ele segurar a arma. A juza fica indignada:
chegam dois caras que voc no conhece, te mandam segurar uma arma e voc
segura?. Mais adiante ela diz: J parou para pensar na conseqncia dos seus
atos?. A audincia montada combinando planos da juza, do menor, da promotora,
e do defensor. A edio de som busca criar uma iluso de continuidade entre os
14 possvel traar aqui um dialogo com a critica feita por Trinh T. Minh-Ha, em When Te Moon Waxes Red, a uma esttica da objetividade que busca o naturalismo atravs de diversos elementos da tecnologia cinematogrfica, como o microfone direcional e o som direto sincrnico como regra. Um dos pontos deste conjunto de propostas a idia de que o tempo real mais verdadeiro que o tempo flmico e o plano longo, com o mnimo de cortes, mais apropriado para evitar distores. (MINH-HA, 1991 p.34)
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planos reais e os planos encenados. A juza muito assertiva, fala rpido e no se
deixa levar por nenhuma das justificativas do menor. Misturado ao seu vocabulrio
jurdico, que quase sempre os menores entendem apenas parcialmente, est um
linguajar informal (Quem que vai tomar o pipoco? Canelo? (...) Numa dessas
voc morre. Tu quer morrer?). Nesta audincia, assim como nas outras, existe uma
precariedade na performance destes adolescentes, que se configura num
distanciamento e numa apatia que possivelmente tem a ver com a timidez em atuar.
No entanto essa precariedade funciona a favor do discurso que o filme constri,
compondo um retrato de alheamento dos menores em relao ao teatro da justia.
H um hiato entre a fala da juza e a postura, por exemplo, de um menino que diz no
saber sua data de nascimento, e este descompasso um dos motivos que retorna
diversas vezes ao longo do filme.
Em seguida, o filme traz um segmento de 13 minutos de imagens do cotidiano
do Instituto Padre Severino, que mostram a chegada de um grupo de menores ao
local: camburo abre as portas, eles descem, andam em fila, fazem registro e ganham
nmero de matrcula, um funcionrio pede que eles tirem a roupa e vistam o uniforme
da unidade. Entre os planos documentais, dois planos mais prximos de adolescentes
tendo sua cabea raspada, onde vemos o rosto de um dos adolescentes atores. A partir
da, os planos documentais se fundem com planos encenados, para construrem uma
narrativizao, em que as aes seguem uma cronologia diegtica. H um impulso
contraditrio entre a vontade de criar distanciamento como vimos anteriormente e
o desejo de levar o espectador a imergir no universo diegtico15. Nos planos
encenados, a cmera permanece esttica, mas esta observao passa a ser mais
prxima, dando rosto aos adolescentes que eram apenas uma massa no identificada.
Seguimos vendo o cotidiano do Instituto: o corredor azulejado para onde do os
quartos/ celas; um quarto grande com muitos meninos; planos mais prximos de
alguns meninos (atores ) deitados, olhando, de perfil. No ptio, uma srie de meninos
de costas formam filas e andam por um corredor, pegam comida no refeitrio e assim
15 Em entrevista ao Plula Pop Maria Augusta Ramos disse: Eu tento retratar a realidade de maneira que leve o pblico a pensar, a refletir sobre ela por si s. Por isso, um cinema que observa, mais reflexivo, que exige uma distncia entre o pblico e os personagens retratados. E essa distncia criada pelo trabalho de cmera, de edio. Tem um tempo, um ritmo: a cmera nunca se aproxima muito, sempre esttica, frontal, sem planos subjetivos dos personagens.
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por diante. curioso que na maior parte dos planos encenados vemos os adolescentes
em situaes de pouco movimento, numa postura silenciosa e contemplativa, como se
houvesse uma busca estetizante de criar instantneos fotogrficos desses jovens.
possvel que uma instituio como a Padre Severino, com normas rgidas de conduta,
imponha um silncio. Mas esse silncio sugere tambm uma marca autoral. Os atores
sociais so colocados em cena, a fim de construir uma imagem idealizada pela
realizadora. No parece haver margem de manobra para eles em termos de improviso.
Neste sentido, ao incorporar o uso da fico, Maria Augusta Ramos, trabalha
com a performance dos atores sociais de maneira bem distante do trabalho de Rouch
nas etnofies, que partem do princpio de uma criao compartilhada entre cineasta e
os sujeitos filmados. Para Rouch no h diferena entre fico e realidade e
impossvel, ao analisar sua obra, pretender separar o real e o imaginrio, j que para
ele a dimenso ritual no est separada da vida material. Ao contrrio de um
distanciamento dos sujeitos filmados, segundo Mxime Scheinfeigel, Rouch busca um
encontro fusional, em que ele quer estar no lugar do outro filmado, neste lugar
imaginrio. Ao mesmo tempo atravs de um princpio de reversibilidade, o filmado
torna-se tambm um observador, um pseudo-etnlogo, um pseudo-cineasta, como se
v claramente em Jaguar (1954).16
Este dilogo com Rouch, problematiza um pouco as opes feitas por Maria
Augusta, ao substituir os menores por atores. Qual a participao destes atores no
filme? O que que eles trazem para o filme, para alm de sua presena fsica? Ser
que existiria algo de nico e peculiar na maneira como os verdadeiros personagens
agiriam? o contedo da fala original, reproduzido com exatido que importa?
Dentro do esquema de enunciao proposto pela autora, a resposta parece ser sim. O
16 Jaguar a primeira fico de Rouch e conta a histria de trs jovens do Niger que emigram para Gana. O filme acompanhando esse deslocamento atravs das viagens, dos encontros, das experincias na cidade e na volta para casa. Rodado antes do som direto sincrnico e sem roteiro prvio, foi improvisado numa colaborao entre Rouch e os trs personagens. Dez anos depois, quando o filme foi montado, os personagens improvisaram uma narrativa ao ver o filme. Assim a banda sonora do filme consiste em dilogos lembrados, brincadeiras e comentrios sobre o que se v. O filme, mais do que retratar a misria da migrao, se prope a retratar o ideal da migrao, fabulado pelos personagens. A partir deste ponto de sua obra, os filmes de Rouch se tornam progressivamente criaes coletivas, que partem de um encontro que inteiramente assumido. Dentro desta antropologia compartilhada idealizada por Rouch, todos os procedimentos buscam a aproximao: o uso da cmera na mo, filmar com equipe reduzida, trabalhar com uma operador de udio que fale a lngua nativa, estabelecer contato anterior prolongado e a necessidade do feedback.
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sujeito filmado definido pelo contato com a instituio e no existe para alm desta
dimenso. O que ele diz ali o que saberemos dele. Por outro lado, os adolescentes
substitutos no so atores comuns. So garotos e garotas que vem do mesmo
background que os personagens reais. Esta condio, mais do que uma questo de
mtodo, indica a busca do que seria uma inscrio verdadeira17, gerando uma maior
impresso de realidade. O verossimilhana no se daria ento pela performance em si,
mas pela presena de marcas do real. Neste sentido, a cartela inicial justifica o
procedimento de substituio do filme, reiterando seu compromisso com a realidade.
Endossando esta hiptese, ao falar sobre osatores, Maria Augusta afirma:
Eu no considero os adolescentes que substituram, digamos assim, menos atores do que repeties, dubls, de uma realidade que se repete anualmente no Brasil. Qualquer jovem de favela no Rio de Janeiro vive situaes muito prximas s retratadas ali e pode vir a cometer delitos. Todos esses adolescentes substitutos poderiam estar ali na frente da juza. Eles sabem disso e ns tambm. Por isso, o desempenho deles muito crvel. No fundo, tambm sobre essa gerao de jovens que, pela primeira vez, a gente v de frente. Eu sempre trabalhei o texto com eles no sentido de que no atuassem, mas que fossem eles mesmos. Como eles falariam aquele texto se estivessem ali sentados, passando pelo que aquele menino ou menina passou. (...) Em alguns momentos, essa fronteira entre o ator e o menor infrator muito tnue. E eu fao isso de propsito porque essa repetio tem significado.18
Um pouco mais adiante, logo aps a quarta audincia, temos um segmento de
10 minutos de cotidiano do Instituto Padre Severino, divididos em trs situaes: a
visita de uma representante da Vara da Infncia e da juventude que est fazendo uma
inspeo para checar as condies do lugar; planos encenados da convivncia de
alguns internos num quarto/ cela e o dia de visitas. O dia de visitas comea com a fila
do lado de fora, passando pela revista das mes na entrada e depois pelo encontro com
os filhos no refeitrio lotado, todos sentados nos bancos. A representao das mes
segue o mesmo esquema dos menores nas imagens puramente documentais, com
17 Jean-Louis Comolli Comolli critico do argumento que reduz o mundo da imagem ao mundo do discurso, igualando fico e documentrio como construes discursivas sobre o real, sem explorar as diferenas ntidas entre estas duas formas de agenciamento. Comolli insiste na relao entre imagens e a cena profilmica. A inscrio verdadeira seria assim a ligao indissolvel permitida e testemunhada pela mquina do cinema entre discurso, corpos filmados e o lugar onde os eventos ocorrem. Trata-se da durao partilhada entre quem filma e quem filmado. O mundo deixa seus vestgios nas imagens, nos sons e nas falas. (GUIMARES & CAIXETA, 2008, p. 44) 18 Plula Pop (http://www.pilulapop.com.br/ressonancia.php?id=95)
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planos que via de regra no revelam seus rostos e priorizando planos gerais ou planos
detalhes (como por exemplo, o das mos das mes que entregam coisas para a
revista). Ao chegarmos ao refeitrio, onde elas vo esperar seis filhos, alguns poucos
rostos comeam a ser vistos. Vemos algumas mes que choram esperando seus filhos.
neste ponto, que o filme atinge sua maior inflexo emocional. At aqui,
ainda que a realidade do Instituto Padre Severino seja deprimente e chocante,
mimetizando a dinmica de um presdio, a abordagem de Maria Augusta rejeita o
apelo emocional destas cenas. As condies so horrveis, as celas nojentas, a relao
de funcionrios e internos brutal e absolutamente despersonalizada. Atravs de
recursos j descritos, a maneira como cmera e autora se posicionam em relao
instituio provoca de fato um distanciamento que supostamente, deixa ao
espectador com espao para elaborar seus prprios julgamentos. No entanto essa
tentativa, faz com que paradoxalmente, no se crie a possibilidade de empatia com os
sujeitos filmados. Claramente, o fato destes menores serem, a maior parte do tempo,
corpos sem rostos est na raiz dessa impossibilidade de identificao. Ao longo da
histria do cinema, muitas vezes, a fonte primaria de identificao do espectador com
o filme foi pensada como estando estreitamente ligada ao close-up do rosto.19 Assim,
somente nessa espera das mes, que a emoo vem tona no filme. Nos rostos que
choram e depois nos ombros e nos braos que acolhem os filhos. aqui que estes
corpos ganham humanidade, colocados assim como crianas pequenas que buscam o
conforto e a segurana da me no sentido mais sensorial possvel, com seu cheiro,
seu rosto e seu corpo e que a brutalidade da instituio se faz mais evidente.
Este ponto de inflexo nos leva a quinta audincia, que a mais longa e
emocional do filme. Tudo fica um pouco mais a flor da pele e a juza, que parecia
insensvel a todos os lamentos e sempre assertiva, muda o tom. Aps o menino
confirmar que matou o pai esfaqueado porque ele batia nela e na me, a juza vai
questionando o menino sobre detalhes diversos da histria, de forma tranquila e
delicada. A me interrogada e confirma o discurso do filho. A juza fala para o
menino que ela quer que ele saiba que vai lembrar disso que aconteceu para sempre, e
19 Em The fate of the cinema subject, MacDougall desenvolve a questo do rosto como fonte de identificao entre espectador e personagem. Ver MACDOUGALL, 1998 p. 51 a 54
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que saber se ele devia ou no ter feito isso uma reflexo que ela vai deixar para a
conscincia dele. a primeira vez no filme em que ela no se sente capaz de emitir
um juzo moral sobre o acontecido. Ela concede a liberdade provisria assistida, mas
diz que no quer v-lo em baile funk, fliperama, etc. Estamos entendidos?. A
audincia seguinte, a sexta, a continuao deste caso e deste hiato de personalizao
do filme, agora com um outro juiz, interrogando o irmo no menino acusado. O irmo
evasivo e curioso como neste ponto o espectador talvez tora por uma resposta do
irmo (que acaba no acontecendo), que ajude a salvar o menino.
Apos est audincia, seguindo sua lgica estrutural, o filme volta ao Instituto
Padre Severino, para um segmento que mescla planos documentais e encenados. Em
seguida, a stima audincia encerra o que seria o corpo principal do filme, fechando a
estrutura bem marcada que conduziu o espectador at aqui. O caso de um menino
que foi pego passando cocana. Depois de interrogar um policial que identifica o
menino, a juza questiona o prprio adolescente. A primeira informao chocante de
que ele no sabe a prpria data de nascimento. Sabe s que tem 14 anos. A juza
pergunta se os traficantes no iro atrs dele para cobrar a droga que ele perdeu, e ele
diz que no. Bem ao estilo de dar lies de vida, a juza diz que se ele estivesse em
casa ou na escola com certeza no teria sido pego entregando cocana. E pergunta:
Valeu? Sem entender direito a pergunta, mas querendo dar a resposta certa ele
responde: Valeu. O defensor se apressa a dizer que ele no deve ter entendido e a
juza explica: Valeu, ter ficado fora da escola, etc?. Da ele d a resposta correta,
dentro da dramaturgia do ritual jurdico: No valeu. A juza concede um Criam, que
significa que ele vai poder voltar para casa nos finais de semana, e diz para o menino:
encare o Criam como uma chance que eu estou te dando e honre esta oportunidade.
A partir da o filme entra em sua etapa final, com uma srie de com cenas
cotidianas filmadas nas casas dos meninos e meninas que atuaram no filme. Vemos
imagens do menino que interpretou o menor infrator nessa ltima audincia jogando
cartas na rua e em seguida entrando num barraco onde brinca com duas crianas,
enquanto a me tira piolho de uma terceira. Sobre estas imagens entram os GCs: 230
trfico/ Fugiu do Criam/ Duas semanas depois foi morto com trs tiros nas costas.
Imagens do menino que interpretou o garoto que matou o pai empina pipa. Entra GC:
251 homicdio/ No freqenta o Criam e nem vai escola. A menina que
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representou uma das duas que roubaram o turista estrangeiro est sentada numa cama
amamentando um beb grande. Entra GC: 62 roubo/ Fugiu do Criam/ Mora com a
me e com o filho. E assim sucessivamente, passando pelos sete no-atores. Os GCs
que mostram o que aconteceu aps o julgamento, funcionando como um indicao do
futuro/passado dos personagens. Isto tem o curioso efeito de criar um desfecho
dramtico para os personagens, ao estilo do que vemos em certas biografias
cinematogrficas ficcionais sobre personalidades reais que trazem uma cartela no
final explicando o que aconteceu com o personagem aps o fim do filme. Em geral,
estas cartelas endossam o desfecho que o filme prope, dando uma chancela de
autenticidade ao futuro anunciado pela narrativa.
Vale aqui fazer um paralelo com David MacDougall em The Fate of the
Cinema Subject. MacDougall chama a ateno para a transitoriedade dos
personagens no documentrio. Ele diz que os filmes de fico os personagens
parecem escorregar em direo ao passado. No documentrio os sujeitos filmados,
perturbadoramente, escorregam em direo ao futuro. Mesmo enquanto esto sendo
filmados, os personagens esto em transio, se movendo em direo a um futuro que
o filme no consegue conter. Mais adiante, ao comentar o uso do freeze-frame em
alguns filmes, ele afirma que a imagem congelada reproduz em miniatura uma
suspenso maior que o filme como um todo impe a seus objetos. como se a
durao do filme criasse um grande freeze-frame.
Em Juzo, estes personagens que o filme retrata tambm escapam em direo a
um futuro incerto, assim que saem da audincia, e no poderamos imaginar que suas
vidas a partir da vo seguir um sentido linear. No entanto, os textos na tela
apresentam uma instantneo de futuro congelado, resumindo suas vidas aps o
julgamento a um ou dos acontecimentos, e criando um efeito de qualificao a
posteriori das sentenas. O menino que recebeu a chance de freqentar o Criam no
honrou sua chance e morreu; a mimada que quase abriu mo da remisso de fato
merecia o perdo. A audincia um momento de suspenso do tempo, em que uma
lgica prpria ao evento determina as interaes entre os atores sociais e seu
resultado. No curso do tempo e da vida, este julgamento ganha outros significados.
Enquanto na audincia, a platia e o juiz esto em posio anloga, tentando avaliar a
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performance do depoente, sempre em relao s marcas do real; no filme os
espectadores tem uma vantagem e podem ver o resultado de suas aes no futuro.
Aps o que seria esta seqncia de desfecho, o filme nos leva de volta a uma
audincia, colocando a engrenagem jurdica novamente em funcionamento e, num
movimento cclico, materializando o crculo vicioso em que o sistema est inserido.
No h o contra-plano encenado, e toda a seqncia montada a partir do plano geral
em que o menino visto de costas. Em alguns momentos ele mexe a cabea e acaba
revelando seu rosto e ao longo da cena descobrimos que ele j no menor de idade. O
clima de incerteza. A juza, o promotor e o defensor tentam entender o processo. A
princpio parece se tratar de um caso de um garoto que fugiu do Instituto e acabou
sendo encontrado na rua. Ao longo da situao, no entanto, os personagens se do
conta de que o garoto havia fugido da internao de forma surreal, atravs de um
buraco justamente aps a audincia em que ele havia recebido a liberdade assistida.
Ele explica que fugiu porque no sabia o que era liberdade assistida. Juza e
promotora no acreditam, do risada do absurdo da situao e decidem liberar o
menino. A juza diz que ele precisa prestar ateno por que a partir daquele momento,
qualquer coisa que ele fizer o levaria para a vara criminal. Ela nos lembra, que este
garoto a sntese de toda a impossibilidade destes jovens de participar, em p de
igualdade, da dinmica do poder judicirio; e do movimento cclico que arremessa
estes jovens repetidamente de volta ao sistema.
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