Juízos de Reflexão e Juízos de Experiência e a Tábua Dos Juízos e Das Categorias Kantiana

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Juízos de reflexão e juízos de experiência e a tábua dos juízos e das categorias kantiana 1.1 Duas considerações sobre a teoria kantiana do juízo Algo problemático na interpretação da concepção kantiana de juízo, como chama a atenção Allison, é que ele é definido tanto como o ato (julgar) como também o produto (juízo). 1 Essas duas concepções são encontradas tanto nos diversos manuais de lógica de Kant, como a Jäsche Logik e a Wiener Logik, como na Crítica da razão pura. A primeira versão é encontrada na crítica na introdução da dedução metafísica e a segunda versão na segunda edição da Crítica na dedução transcendental, §19. Alisson defende que as duas versões podem ser conciliadas, como veremos aqui. Na definição da Lógica de Jäsche o “juízo (Urteil) é uma representação da unidade da consciência de diversas representações ou a representação da relação entre elas, na medida em que constituem um conceito.” 2 Nessa definição, que corresponde à definição da dedução metafísica da primeira crítica (A 68-9/ B93-4), formar um juízo é equivalente a formar um conceito complexo. Em contraste com a definição anterior, a segunda concepção considera que todo juízo implica o conhecimento de um objeto e, por conseguinte, possui validade objetiva. Essa concepção que é encontrada na Lógica de Viena corresponde à da dedução 1 Sobre essa discussão Cf.: ALISSON (1992, pp. 123-9). 2 Op. Cit., Lógica de Jäsche, KANT (2003 c, Ak 101, p. 201). §17 Definição de juízo em geral. Em negrito e itálico no original.

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Juzos de reflexo e juzos de experincia e a tbua dos juzos e das categorias kantiana

1.1 Duas consideraes sobre a teoria kantiana do juzoAlgo problemtico na interpretao da concepo kantiana de juzo, como chama a ateno Allison, que ele definido tanto como o ato (julgar) como tambm o produto (juzo). [footnoteRef:1] Essas duas concepes so encontradas tanto nos diversos manuais de lgica de Kant, como a Jsche Logik e a Wiener Logik, como na Crtica da razo pura. A primeira verso encontrada na crtica na introduo da deduo metafsica e a segunda verso na segunda edio da Crtica na deduo transcendental, 19. Alisson defende que as duas verses podem ser conciliadas, como veremos aqui. [1: Sobre essa discusso Cf.: ALISSON (1992, pp. 123-9).]

Na definio da Lgica de Jsche o juzo (Urteil) uma representao da unidade da conscincia de diversas representaes ou a representao da relao entre elas, na medida em que constituem um conceito. [footnoteRef:2] Nessa definio, que corresponde definio da deduo metafsica da primeira crtica (A 68-9/ B93-4), formar um juzo equivalente a formar um conceito complexo. Em contraste com a definio anterior, a segunda concepo considera que todo juzo implica o conhecimento de um objeto e, por conseguinte, possui validade objetiva. Essa concepo que encontrada na Lgica de Viena corresponde da deduo transcendental (19), segunda edio da Crtica. Na Lgica de Viena Kant diz: [2: Op. Cit., Lgica de Jsche, KANT (2003 c, Ak 101, p. 201). 17 Definio de juzo em geral. Em negrito e itlico no original.]

Juzo em geral a representao da unidade em uma relao de muitos conhecimentos [Erkenntnisse]. Um juzo a representao do modo no qual os conceitos em geral pertencem objetivamente conscincia. Se duas representaes cognoscitivas se pensam ligadas e constituindo assim um s conhecimento [eine Erkenntniss], se tem ento um juzo. Portanto, todo juzo implica uma certa relao de distintas representaes na medida em que pertencem a um conhecimento. [footnoteRef:3] [3: Apud: ALLISON: 1992, pp. 123. Lgica de Viena Ak, XXIV, 928.]

A seguir, veremos separadamente as duas concepes de juzo na Crtica da razo pura. Partiremos da interpretao de que ambas as concepes so complementares, so dois modos da mesma teoria do juzo. Seguindo a leitura de Allison, chamaremos a definio de juzo da deduo metafsica de concepo (a) e a da deduo transcendental de definio (b).

1.6.1 Concepo de juzo (a) deduo metafsica A deduo metafsica pode ser dividida em trs sees. A primeira seo, onde Kant d a definio (a) de juzo, trata do uso lgico do entendimento em geral, a segunda seo das formas do juzo e a terceira das categorias. Em resumo, sobre a primeira seo da deduo pode-se dizer que Kant diz que o entendimento uma faculdade de conhecer por meio de conceitos, conhecer por meio de conceitos julgar, e julgar essencialmente unificar nossas ideias. Allison afirma que o principal interesse de Kant na primeira de suas duas definies de juzo explicitar a identificao entre conhecimento discursivo e juzo; todo juzo implica um ato de conceitualizao e todo ato de conceitualizao implica um juzo. [footnoteRef:4] A noo kantiana de conceito o leva concepo de que nenhuma representao, excepto a intuio, se refere imediatamente a um objecto, mas a qualquer outra representao (quer seja intuio ou mesmo j conceito) (A 68/ B93). E logo em seguida Kant define o juzo como o conhecimento mediato de um objecto, portanto a representao de uma representao de um objecto (KANT: op. cit., [A 68/B 93]). Depois dessa definio, Kant explica sua teoria do juzo de forma resumida: [4: Cf.: ALLISON: op. cit., p. 124. E Cf.: Tambm PATON, op. cit., vl 1, p. 251.]

Em cada juzo h um conceito vlido para diversos conceitos e que, nesta pluralidade, compreende tambm uma dada representao, referindo-se esta ltima imediatamente ao objecto. Assim, neste juzo, por exemplo, todos os corpos so divisveis, o conceito de divisvel refere-se a diversos outros conceitos; entre eles refere-se aqui, particularmente, ao conceito de corpo, e este, por sua vez, a certos fenmenos que se apresentam a ns. Estes objetos so, pois, apresentados mediatamente pelo conceito de divisibilidade. Assim, todos os juzos so funes da unidade entre as nossas representaes, j que, em vez de uma representao imediata, se carece, para conhecimento do objecto, de uma mais elevada, que inclua em si a primeira e outras mais, e deste modo se renem num s muitos conhecimentos possveis. (KANT: op. cit., [A 68-9/B 93-4])

Partindo do exemplo dado por Kant do juzo ou proposio de que Todos os corpos so divisveis, se observam dois conceitos, corpo e divisvel, contidos no juzo e que se referem um ao outro e ao objeto julgado, possivelmente tambm a um nmero ou classe de objetos. O conceito sujeito se relaciona com o objeto, mas de forma no imediata. O conceito se refere representao imediata do objeto, esta representao imediata uma intuio. Dessa forma, o conceito sujeito, no caso: corpo, se refere diretamente intuio e mediatamente ao objeto. De um modo geral, a intuio oferece o contedo sensvel do juzo, e o conceito a regra em que o contedo determinado. A determinao do contedo pelo conceito o relaciona com o objeto, e essa relao entre conceito e objeto mediata. No juzo h ainda uma segunda determinao, conceitualizao, do objeto que mediatizada pela primeira. Essa segunda conceitualizao acontece pelo estabelecimento no juzo de que o objeto determinado como sujeito pensado por meio do conceito predicado divisibilidade. Estas determinaes, ou mltiplos conhecimentos, so reunidas no juzo em uma. Todo juzo um ato de conceitualizao, a tese de Kant de que todos os juzos so funes da unidade entre as nossas representaes (op. cit., A 69/ B 94) diz precisamente isso, ela destaca que em todo juzo h a unificao, ou reunio, de representaes sob um conceito. Funo aqui entendido no sentido de Aristteles de operao, atividade; no juzo, sua atividade fundamental, produzir unidade de representaes sob algum conceito. 1.6.2 Concepo de juzo (b) segunda edio da deduo transcendental Enquanto na definio de juzo da deduo metafsica o ponto fundamental explicitar a identificao entre conhecimento discursivo e juzo, na deduo transcendental, na segunda edio da Crtica, o ponto fundamental que veremos a objetividade do juzo. A deduo transcendental tem dois lados, um lado objetivo e um lado subjetivo. O lado subjetivo tratado por Kant de forma ambgua e obscura, como veremos a seguir. Algo importante tambm que o termo deduo usado por Kant no em sentido lgico, mas jurdico. Na deduo transcendental, Kant trata da distino traada no 18 entre a unidade objetiva da conscincia, que deve conter as categorias, e a unidade subjetiva o produto da faculdade reprodutiva da imaginao. Kant comea o 19 com uma critica aos lgicos por definirem o juzo em geral como a representao de uma relao entre dois conceitos (KANT: op. cit., [B 140]). Para Kant, essa explicao s d conta dos juzos categricos, juzos em que dois conceitos so relacionados, mas no os juzos hipotticos e disjuntivos, que so juzos em que so relacionados no conceitos e sim juzos.[footnoteRef:5] Esta definio, para Kant, inadequada tambm por no especificar em que consiste a relao. Kant, ento, escreve: [5: Na Lgica, Kant observa algumas caractersticas peculiares dos juzos categricos, hipotticos e disjuntivos Cf.: Lgica, KANT (2003 c, Ak 105-8, p. 209-15). Nela, Kant afirma que o juzo hipottico, que composto de dois juzos, no pode ser reduzido ao juzo categrico onde tudo assertrico (Ak. 105); no juzo hipottico, no entanto, s a consequncia assertrica (idem). Na Crtica (Cf.: A75/ B100) Kant afirma que os dois juzos que compem o hipottico (antecedens et consequens) assim como os juzos (membros da diviso, dois ou mais juzos) que compem o disjuntivo so apenas problemticos.]

[...] encontro que um juzo mais no do que a maneira de trazer unidade objetiva da apercepo conhecimentos dados. A funo que desempenha a cpula nos juzos visa distinguir a unidade objectiva de representaes dadas da unidade subjectiva. (KANT: op. cit., [B 141-2])

A relao das representaes no juzo infunde em sua objetividade. Essa relao uma unidade objetiva que est correlacionada com a unidade objetiva da apercepo. Kant distingue a unidade objetiva ou transcendental da apercepo da unidade subjetiva que emprica, esta unidade aquela pela qual todo o mltiplo dado numa intuio reunido num conceito do objeto (KANT: 1980, [B 139]). De um modo geral, a doutrina kantiana da apercepo afirma que todo juzo uma sntese, unificao, de representaes em uma conscincia. As representaes so conceitualizadas, ento, por meio de uma conscincia, de modo a referirem ou serem relacionadas a um objeto. Dizer que todo juzo remete referncia de representaes a um objeto, aqui, equivalente a dizer que todo juzo objetivamente vlido. A unidade objetiva do juzo difere, segundo Kant, de um mero ato associativo da imaginao que associa representaes em uma unidade da conscincia; entretanto, no tem objetividade. Diferente da unidade objetiva, a unidade subjetiva emprica e contingente. Na unidade subjetiva, como afirma Kant: Uns ligam a representao de certa palavra com uma coisa, outros com outra; a unidade da conscincia, no que emprico, no tem valor necessrio e universal em relao ao que dado (KANT: op. cit., [B 141]). Por outro lado, o juzo surge de uma relao objectivamente vlida, que se distingue suficientemente de uma relao destas mesmas representaes, na qual h validade apenas subjectiva, como por exemplo a que obtida pelas leis da associao (KANT: op. cit., [B 142]). Pela associao de ideias, se pode dizer que ao carregar um corpo, se tem a impresso de peso, unidade subjetiva; que Kant distingue do juzo de que os corpos so pesados, unidade objetiva. A unidade objetiva , para Kant, um trao distintivo da definio de juzo. Kant diferencia, ento, a unificao de representaes em um mero ato de associao da imaginao, subjetiva, da unificao objetiva do juzo. A distino entre unidade objetiva e unidade subjetiva da conscincia, que Kant traa no 18 da Crtica da razo pura, e depois reafirmada no 19 , entretanto, bastante problemtica. Isso se deve principalmente pela concepo obscura e ambgua que Kant tem de unidade subjetiva. Na leitura de Allison (1992, Cf. p. 240-54) sobre a questo, a distino da Crtica da razo pura entre unidade objetiva e unidade subjetiva uma distino corretiva de juzos de experincia e juzos de percepo que traada nos Prolegmenos, 18. E a necessidade dessa correo provm da teoria do juzo da segunda edio da Crtica da razo pura em que Kant afirma ser uma caracterstica prpria do juzo a validade objetiva. Nos Prolegmenos, Kant distingue os juzos de experincia, que ele afirma terem validade objetiva, dos juzos de percepo, que s tm validade subjetiva. Os juzos de percepo no requerem nenhuma categoria, apenas uma conexo lgica da apercepo em um sujeito pensante. Os juzos de experincia, por sua vez, requerem representaes sensveis e conceitos puros do entendimento que possibilitam a validade objetiva desses juzos. A noo de juzo de percepo dos Prolegmenos, que tem validade apenas subjetiva e carece de um conceito puro ou categoria, entra em conflito com a noo geral de juzo da segunda edio da Crtica. Por conta disso, Allison considera que Kant revisa na ltima sua posio anterior. A unificao de representaes vlidas objetivamente e determinadas pelas categorias (caractersticas que Kant afirma na segunda edio da Crtica como essenciais a todo juzo) so propriedades das quais carecem os juzos de percepo. Dentre os juzos de percepo, Kant distingue ainda juzos de percepo que podem se tornar juzos de experincia, pela aplicao de um conceito puro, e juzos de percepo que no podem se tornar juzos de experincia. um exemplo de juzo de percepo que pode se tornar um juzo de experincia o juzo: Quando o sol brilha sobre a pedra, esta esquenta. Kant afirma (Prolegmenos, 20) que este juzo de percepo pode se tornar um juzo de experincia com validade objetiva, como o juzo O sol esquenta a pedra (idem). E so exemplos de juzos de percepo que no podem se tornar juzos de experincia os juzos: O acar doce e O quarto est quente. Tais juzos, para Kant, se referem somente a estados de nimo subjetivos ou a sensaes que no se referem a objetos. Os juzos de percepo e os juzos de experincia podem ser representados, de acordo com Allison (op. cit. p. 242), como tendo respectivamente a forma me parece que p e o caso que p. As categorias, por serem regras para a sntese necessria e universalmente vlida das representaes, tm a funo de converter o primeiro caso no segundo. Quando isso ocorre, a unificao das representaes por estas regras se d como independente de fatores subjetivos e de estados de percepo. A validade objetiva da unificao equivalente necessidade e universalidade, como Kant afirma no 19 dos Prolegmenos. A validade objetiva dos juzos tem seu fundamento nos conceitos puros do entendimento as categorias. Entretanto, a validade meramente subjetiva de juzos de percepo viciada, como chama a ateno Allison (idem, p. 243), por conta da noo de unidade subjetiva ser ambgua em Kant. Na Crtica da razo pura, Kant afirma no Cnon da razo pura que a validade subjetiva equivale a ter por verdade (A 822 / B 850); um juzo, ento, tido por verdade se um sujeito acredita que ele seja verdadeiro. Pode-se considerar a validade subjetiva dos juzos de percepo me parece que p como equivalente noo de unidade subjetiva da Crtica acredito que p. No entanto, nos Prolegmenos o modo como Kant expe os juzos de percepo indica que a validade subjetiva desses juzos est relacionada ao sujeito e seus estados afetivos e cognitivos. Allison, ento, fala de dois sentidos de unidade subjetiva: se diz, em certo sentido, que um juzo s subjetivamente vlido se vale s para o sujeito, e em outro sentido se diz que subjetivamente vlido se s verdade do sujeito. (idem, loc. cit.).

Embora os juzos de percepo sejam vlidos subjetivamente, se pode objetar contra Kant que esses juzos no so meramente subjetivos ou verdadeiros somente para o sujeito que os pensa. Pode-se dizer que tais juzos so vlidos tambm objetivamente, tal como os juzos de experincia, isto , estes juzos tm valor de verdade. Nesse sentido, observvel que verdade que o acar que provo, me parece doce. E mesmo no caso da referncia do juzo ser um episdio mental ocorrido, a verdade permanece, pois verdade que o acar que provei em algum determinado momento do passado, me pareceu doce. E esse tipo de juzo pode ser feito e tomado por verdadeiro por outras pessoas. Que o acar foi apreciado como doce por mim, em determinado momento, simplesmente um fato sobre o mundo. (idem, p. 244). De forma anloga o mesmo se pode dizer sobre o pensamento na Crtica da razo pura de que quando seguro um corpo, sinto uma presso de peso [KANT, (B142)]. Este pensamento, que Kant diz ter validade meramente subjetiva, pode-se dizer que to objetivamente vlido quanto o juzo os corpos so pesados (idem). Por fim, deve-se notar que a validade objetiva do juzo no o mesmo que verdade, do contrrio, Kant teria dito o absurdo de que todo juzo verdadeiro. Como afirma Allison, [footnoteRef:6] seguindo a Prauss, a validade objetiva do juzo significa o mesmo que poder ser verdadeiro ou falso. Ento, a tese de Kant de que todo juzo tem validade objetiva equivalente a dizer que todo juzo tem um valor de verdade. [6: ALLISON: op. cit., p. 129. Ver tambm nota 25.]

1.2 Discursividade do conhecimento e a prioridade dos juzos (Deduo metafsica das categorias)Como foi visto, para Kant o entendimento (ou intelecto) uma faculdade cognitiva no sensvel, uma faculdade de conhecer por conceitos. E a experincia e o conhecimento surgem de um trabalho de cooperao entre intuies e conceitos. Ambos, a experincia e o conhecimento, somente so possveis em ltima instncia pela atividade da cognio humana, isto , ambos so discursivos. Enquanto as intuies sensveis assentam nas afeces, e se fundam na receptividade das impresses; os conceitos assentam em funes, e se fundam na espontaneidade do pensamento. As intuies aferem uma pluralidade de sensaes desestruturadas que por meio do espao e do tempo recebem uma primeira ordenao. [footnoteRef:7] Entretanto, estas sensaes primeiramente ordenadas pelo espao e tempo necessitam de um conceito para que haja um objeto. O conceito imprime uma regra s sensaes e promove unidade e determinao, forma e estrutura, multiplicidade catica de sensaes. Ele funciona assim em sentido kantiano como um elemento estruturador da experincia humana. [7: Sobre este ponto cf.: HFFE: 2005, pp. 82-3 e 2013, p. 116.]

Para Kant, o mundo no nos dado j previamente estruturado e repleto de objetos, ele antes uma multiplicidade indeterminada e desconexa que sem o pensamento propriamente no existe para ns. o pensar humano, e no as sensaes, que pela espontaneidade do entendimento produz uma sntese, conexo, que inventa regras para compreender o intuitivamente dado. Essa espontaneidade do pensamento, ento, verifica se o que pensado pode ser encontrado no dado da experincia. S que o pensamento no se relaciona diretamente com o mundo, todo pensar discursivo e mediado por conceitos. Por conta dos conceitos serem regras, eles so sempre princpios gerais das coisas, isto , universais. Em um conceito emprico como o de uma cadeira, o conceito no designa meramente uma cadeira individual que possamos apreender empiricamente. O conceito de cadeira se refere a todos os objetos que tenham as caractersticas gerais de uma cadeira, i. , objetos que sirvam para sentar etc., a despeito de caractersticas particulares como a cor ou se feita de madeira, ferro... seu design etc. Para Kant, conceitos empricos no so derivados diretamente da experincia por abstrao como para os empiristas, eles so produtos de uma atividade judicativa que requer uma sntese. Esses conceitos recebem seus contedos da experincia, dos dados dos sentidos, e a sua forma de generalidade dada por atos lgicos do entendimento (comparao, reflexo e abstrao). Diferentemente dos conceitos empricos, os conceitos puros do entendimento, como o conceito de causalidade, se originam quanto ao contedo no prprio entendimento. Esses conceitos, as categorias, so os conceitos mais gerais, e no podem ser derivados de outros, e somente por meio deles so possveis a unidade e determinao de intuies. Eles esto presentes necessariamente em todos os juzos como a prpria condio de julgar. As categorias, assim como os conceitos empricos, tambm so regras de unidade e determinao, no de sensaes como os primeiros, mas para a pluralidade de conceitos no juzo. Os conceitos puros so regras de segunda ordem, ou regras que geram outras regras; isto , regras para a formao de conceitos empricos que so regras ditas de primeira ordem para a determinao de uma unidade no mltiplo das sensaes. [footnoteRef:8] [8: Esta concepo de conceitos empricos como conceitos de primeira ordem e conceitos puros como conceitos de segunda ordem desenvolvida por Robert Paul Wolff em seu Kants Theory of Mental Activity, pp. 124-5.]

Kant reduz os conceitos, na primeira seo da deduo metafsica, a predicados de juzos e afirma que o entendimento no apenas uma faculdade de pensar, mas tambm de julgar. Robert Wolff chama a ateno ao fato de que a despeito do ttulo deste livro ser analtica dos conceitos, a discusso se move para os juzos, o que mostra que o juzo, ao invs do conceito, a atividade fundamental da mente. [footnoteRef:9] A tese Kantiana de que a funo de conceitos serem predicados de juzos possveis e que o entendimento no pode fazer outro uso destes conceitos a no ser, por seu intermdio, formular juzos (KANT: op. cit., [A 68/B 93]) foi chamada pelos filsofos modernos de princpio de prioridade dos juzos. Segundo alguns comentadores, como Sluga (1980, pp. 94-5; 1987, pp. 86-7), este princpio kantiano influenciou o princpio do contexto de Frege. O princpio de prioridade de Kant, bem como a seo em que ele ocorre, a primeira seo da Analtica dos conceitos que intitulada: Do uso lgico do entendimento em geral, sero vistos no captulo 3. [9: Cf.: Despite the fact that Book I of the Analytic is entitled Analytic of Concepts, Kant almost at once moves to a discussion of judgments. This reveals what is to be one of the most important consequences of the Analytic, namely that judgment rather than conception is the fundamental activity of the mind. WOLFF, op. cit., p. 63.]

1.2.1 Tbua dos juzos e das categoriasDos atos do entendimento, os juzos, Kant procede decomposio [...] da prpria faculdade do entendimento para examinar, na segunda seo da Analtica dos conceitos, a possibilidade dos conceitos a priori (KANT: op. cit., [A 65/B 90]). Os conceitos bsicos puros do entendimento so derivados dos diversos modos como a multiplicidade unificada no juzo. A lgica geral fornece a lista das formas puras do pensamento. A tbua dos juzos, dos quais Kant deduz as categorias, derivada da lgica geral de sua poca com algumas modificaes de Kant. Na deduo metafsica das categorias, so identificados por meio da forma dos tipos de juzos os doze conceitos fundamentais (categorias) que tm origem a priori no prprio exerccio do entendimento. A expresso deduo metafsica das categorias usada por Kant para designar a exposio da tbua das categorias a partir do fio condutor das formas lgicas dos juzos. Esta exposio metafsica por apresentar o que faz as categorias conceitos a priori. Ela mostra que a origem das categorias est na forma a priori do pensamento, isto , a forma lgica dos juzos. O termo deduo, como foi observado, tem um sentido legal, no o sentido que empregado na lgica. Deduo, como Kant usa, significa legitimar (A 84/ B116-7). No caso da deduo metafsica, Kant quer legitimar contra Hume que as categorias so conceitos que tm sua origem no entendimento, e no em associaes da imaginao como Hume acreditava. Posteriormente, na deduo transcendental das categorias, Kant pretende mostrar que mesmo com a origem das categorias no entendimento, e no nos objetos da experincia, elas se aplicam a todos os objetos que so dados nos sentidos. Mesmo que as categorias no derivem da experincia, elas se aplicam a ela. Esses conceitos puros fundamentais do entendimento se relacionam com todos os objetos da cognio, eles so as condies a priori da representao de qualquer objeto, isso o que a deduo transcendental pretende justificar ou legitimar. O modelo lingustico que Kant segue na deduo a concepo de juzo da lgica tradicional, onde a forma bsica do juzo tem a estrutura (S P). Nessa estrutura, um termo sujeito, por meio da cpula , conectado (ligado) ao termo predicado. O entendimento que at ento fora concebido como uma faculdade de pensar, se converte tambm na Analtica transcendental em uma faculdade de conectar (ligar) conceitos; e como todo conceito o predicado de juzos possveis (B 94), o entendimento tambm uma faculdade de julgar. A conexo (unidade, sntese) que o entendimento impe multiplicidade desconexa realizada no juzo. E uma vez que as categorias, os conceitos puros do entendimento, devem ser conceitos constitutivos da experincia, tem de haver um modo de ligar ou julgar que mesmo no provindo da experincia seja indispensvel para ela. Esta ligao obtida pela abstrao do contedo dos conceitos e considerao somente da forma de ligao. Dado que a ligao dos conceitos efetuada em juzos, a forma de ligao dos conceitos a forma do julgar. Os conceitos puros do entendimento correspondem s formas puras dos juzos. Todas as categorias so derivadas de um nico princpio, a forma dos juzos. [footnoteRef:10] E a cada tipo de juzo corresponde uma categoria. [10: No texto da Crtica Kant diz: Se abstrairmos de todo o contedo de um juzo em geral e atendermos apenas simples forma do entendimento, encontramos que nele a funo do pensamento pode reduzir-se a quatro rubricas, cada uma das quais contm trs momentos. Podem comodamente apresentar-se na seguinte tbua, [KANT: op. cit. (A 70/B 95)].]

Com o objetivo de obter de forma sistemtica uma lista completa das categorias, Kant examina a tbua dos juzos; dela ele pretende obter uma lista de conceitos puros elementares, a tbua das categorias. Kant considerava a tbua dos juzos da lgica completa, e acreditava que ela poderia fornecer tambm um conjunto de categorias organizado e completo. Para Kant, os juzos so classificados a partir de quatro classes quanto forma do julgar ou ligar (quantidade, qualidade, relao e modalidade), cada classe contendo trs formas de juzos. Portanto, a tbua dos juzos contm 12 formas de juzos. Esquematicamente se tem a seguinte tbua do juzo:I. Quantidade1. Universal (Todo S P)2. Particular (Algum S P)3. Singular (Este S P)

II Qualidade1. Afirmativo (S P)2. Negativo (S no P) 3. Infinito (S no-P)

III Relao1. Categrico [Todo S P (e Todo P R, logo, Todo S R)]2. Hipottico [Se S P, ento S R (e se S P, logo, S R)]3. Disjuntivo [S ou P ou R (e S no R, logo, S P)]

IV Modalidade1. Problemtico (S possivelmente P)2. Assertrico (S efetivamente P)3. Apodtico (S necessariamente P)

Como j foi visto, a estrutura bsica do juzo (S P) da qual Kant parte composta de um termo sujeito e um termo predicado que conectado pela palavra ou cpula . As diferentes formas como ambos os termos e a cpula se combinam determinam os diferentes tipos de juzos. O primeiro critrio para classificar as formas do juzo a quantidade. [footnoteRef:11] E compreende o juzo universal, que afirma o predicado P a todos os objetos a que se refere o termo sujeito S (Todo S P). O juzo particular, que afirma o predicado P a uma parte dos objetos a que se refere o termo sujeito S (Algum S P). Ao par universal e particular, Kant acrescenta o juzo singular que um juzo em que o termo sujeito um nome prprio ou descrio singular (Este S P), ao invs de um termo de uma classe. O juzo singular, na lgica, se comporta como um juzo universal, e pode ser tratado para um nome prprio como denotando uma classe com um s membro, como Caio mortal (Lgica 21). O segundo critrio de diviso dos juzos quanto qualidade em que os juzos podem ser afirmados ou negados. No primeiro caso, se tem os juzos afirmativos (S P). E no segundo caso, os juzos negativos (S no P). Aos dois modos da qualidade, acrescentado um terceiro tipo de juzo, o juzo infinito. Neste juzo feita uma asseverao positiva, mas um predicado negativo empregado (S no-P), como em A alma no mortal. Na lgica, juzos infinitos pertencem aos afirmativos, entretanto, Kant os considera na lgica transcendental como constituindo um grupo prprio. [11: Aqui estamos seguindo parcialmente o comentrio da tbua dos juzos de WOLFF, op. cit., pp. 64-7.]

O terceiro critrio a relao em que Kant classifica os juzos como categricos, hipotticos e disjuntivos. Nos juzos categricos se consideram dois conceitos, o sujeito e o predicado (S P). O juzo hipottico composto de dois juzos acrescentados dos conectivos se... ento, que afirmam a relao de dependncia ou condicionalidade (Se A ento B). E os juzos disjuntivos so compostos de dois ou diversos juzos (B 99) que so relacionados pelo conectivo ou, (A ou B). O quarto e ltimo critrio classifica os juzos quanto modalidade, essa classificao no tem a ver com o contedo, mas propriamente com a cpula do juzo (B 100). O juzo quanto modalidade pode ser problemtico, quando a afirmao ou negao so possveis (S possivelmente P). No juzo assertrico a afirmao e a negao so consideradas como reais (S efetivamente P). E no juzo apodtico como necessrias (S necessariamente P). Da tbua dos juzos derivada a tbua das categorias (A 80/ B 106). A cada forma do juzo Kant relaciona uma categoria diferente. A tbua das categorias possui, ento, quatro grupos correspondentes aos modos de classificao dos juzos. Assim como os juzos, as categorias se classificam quanto quantidade, qualidade, relao e modalidade. E h sob cada um desses tipos trs categorias especficas. Portanto, a tbua das categorias possui 12 conceitos puros fundamentais. Esquematicamente se tem a seguinte tbua em que se observa que a cada forma de juzo visto acima corresponde uma categoria:

TBUA DOS JUZOSTBUA DAS CATEGORIAS

I. QUANTIDADE

1. universal2. particular3. singular1. unidade2. pluralidade3. totalidade

II. QUALIDADE

1. afirmativo2. negativo3. infinito1. realidade2. negao3. limitao

III. RELAO

1. categrico2. hipottico3. disjuntivo1. substncia e acidente2. causa e efeito3. comunidade (reciprocidade)

IV. MODALIDADE

1. problemtico2. assertrico3. apodtico 1. possibilidade impossibilidade2. existncia no-existncia3. necessidade contingncia

Muitos desses conceitos fundamentais j se encontravam na ontologia tradicional da qual Kant tributrio, como em Wolff e Baumgarten. O que Kant traz propriamente de novo com sua tbua das categorias a deduo e sua explicao da funo desses conceitos fundamentais. As categorias, os conceitos fundamentais do entendimento, compem para Kant, como afirma Hffe, a gramtica do pensamento. Com o auxlio do esclarecimento desses conceitos, que constituem uma gramtica transcendental, Kant alinha outros conceitos puros, mas derivados; categoria da causalidade, por exemplo, seguem os conceitos puros, porm deduzidos, de fora, ao e sofrimento de ao. Hffe chama a ateno que para cada classe de categoria vale o argumento geral de que divises a partir de conceitos a priori so necessariamente tripartites, uma vez que a uma pertencem uma condio, um condicionado e um conceito que une a ambos (HFFE: 2013, p. 124). Desse modo, se v uma ordem que antecipa a dialtica idealista; posto que a cada par de categorias agrupadas em uma das quatro classes h sempre uma terceira categoria que uma sntese ou ligao da segunda com a primeira (B110). Apesar de a terceira categoria ser obtida pela sntese das duas primeiras de sua classe, Kant alega que ela tambm um conceito primitivo do entendimento puro; e no derivada das outras duas. Assim, a totalidade no mais do que a pluralidade considerada como unidade, a limitao apenas a realidade ligada negao, a comunidade a causalidade de uma substncia em determinao recproca com outra substncia e, por fim, a necessidade no mais do que a existncia dada pela prpria possibilidade. (KANT: op. cit., [B 111])

As quatro classes desses conceitos elementares podem se dividir em duas. As duas primeiras classes, quantidade e qualidade, se referem aos objetos da intuio (pura e emprica). E as duas ltimas classes, relao e modalidade, existncia desses objetos (B 110). Com o conjunto completo dos conceitos puros do entendimento, Kant tem de mostrar que esses conceitos so conceitos a priori de objetos. Mostrar o que esses conceitos necessariamente fazem a tarefa da deduo transcendental das categorias.

Deve-se observar, no entanto, que a deduo metafsica possui diversos pontos problemticos. Ela foi criticada j com os primeiros desenvolvimentos do idealismo ps-kantiano. Fichte e Hegel consideravam a tbua das categorias no fundamentada. Para Fichte as categorias careciam de uma definio e de uma deduo que ele considerou que Kant no levou a cabo. Fichte tambm questiona outros aspectos sobre as categorias que a partir de seu projeto filosfico (de estabelecimento de uma Wissenschaftslehre) careceriam de correo. Para uma melhor discusso sobre a crtica de Fichte ver Navarro (1975, pp. 174-83). Outro ponto problemtico da deduo metafsica o paralelismo entre as formas dos juzos da lgica e as categorias; a correspondncia estabelecida por Kant entre muitas das formas dos juzos e a sua categoria correspondente so completamente problemticas ou aleatrias. Strawson (1966, pp. 72-85), partindo da perspectiva da lgica moderna, questiona diversos aspectos da deduo metafsica. Para ele, poucas formas lgicas da tbua dos juzos da lgica que Kant considerou podem ser tidas como primitivas. Como comenta Longuenesse (2005, p. 113, Cf. nota 47), a crtica de Strawson da redundncia da tbua dos juzos de Kant claramente inspirada por Frege. Na Begriffsschrift, Frege rejeita diversas formas de juzo da tbua dos juzos kantiana por consider-las distines irrelevantes para a lgica. E a partir da introduo de smbolos para o condicional e negao Frege obtm outros juzos. No caso dos juzos hipotticos e disjuntivos, que Kant considerava primitivos, na lgica moderna, desde Frege (Begriffsschrift, 7), so inter-definveis com a ajuda da negao. Assim, se observa na lgica clssica que o juzo hipottico pode ser obtido a partir do disjuntivo e da negao: A B equivalente a A B, e o juzo disjuntivo (disjuno inclusiva) a partir do hipottico e da negao: A B equivalente a B A, assim como a disjuno exclusiva pelo juzo hipottico e da negao: A v B equivalente a (( B A) (B A)). Deve-se considerar, no entanto, que a deduo metafsica mesmo com os problemas bvios mais bem fundamentada do que geralmente se supe.