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JÚLIA VASCONCELOS ESPEJO A EXPRESSÃO DO SINCRETISMO DA REALIDADE E DA FICÇÃO NA ERA DA CONVERGÊNCIA DAS MÍDIAS: UM ESTUDO SOBRE A TELENOVELA VIVER A VIDA E O BLOG SONHOS DE LUCIANA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA. SÃO JOÃO DEL REI AGOSTO DE 2013

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JÚLIA VASCONCELOS ESPEJO

A EXPRESSÃO DO SINCRETISMO DA REALIDADE E DA FICÇÃO

NA ERA DA CONVERGÊNCIA DAS MÍDIAS: UM ESTUDO SOBRE A

TELENOVELA VIVER A VIDA E O BLOG SONHOS DE LUCIANA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA.

SÃO JOÃO DEL REI

AGOSTO DE 2013

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PROGRAMA DE MESTRADO EM LETRAS UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL REI

A EXPRESSÃO DO SINCRETISMO DA REALIDADE E DA FICÇÃO

NA ERA DA CONVERGÊNCIA DAS MÍDIAS: UM ESTUDO SOBRE A

TELENOVELA VIVER A VIDA E O BLOG SONHOS DE LUCIANA

JÚLIA VASCONCELOS ESPEJO

Projeto de Dissertação de Mestrado

Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da Cultura

Linha de Pesquisa: Discurso e Representação Social

Orientador: Prof. Dr. Guilherme Jorge de Rezende

SÃO JOÃO DEL REI

AGOSTO DE 2013

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JÚLIA VASCONCELOS ESPEJO

A EXPRESSÃO DO SINCRETISMO DA REALIDADE E DA FICÇÃO

NA ERA DA CONVERGÊNCIA DAS MÍDIAS: UM ESTUDO SOBRE A

TELENOVELA VIVER A VIDA E O BLOG SONHOS DE LUCIANA

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________

Prof. Dr. Guilherme Jorge de Rezende - UFSJ

____________________________________________________________ Prof. Dr. XXXXXXXXXXXXXXX

___________________________________________________________ Profa. Dra. Eneida Maria de Sousa - UFSJ

____________________________________________________________ Prof. Dr. Paulo Henrique Caetano - UFSJ

____________________________________________________________ Prof. Dr. Cláudio Márcio do Carmo

Coordenador do Programa de Pós Graduação em Letras Teoria Literária e Crítica da Cultura

SÃO JOÃO DEL REI

AGOSTO DE 2013

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, gostaria de agradecer à minha família pelo suporte afetivo

e por me mostrar que eu seria capaz de realizar esse trabalho, apesar da correria da

vida e dos atropelos. Obrigada mãe, pai, Rodrigo e minha filha linda Beatriz.

Ao Prof. Dr. Guilherme Jorge de Rezende agradeço pela orientação,

paciência e dedicação ao trabalho. Obrigada por ter me apresentado a tantas teorias

interessantes e de grande valia para meu crescimento acadêmico.

Aos meus colegas de mestrado e amigos, agradeço pelo apoio. Aos

professores do curso de Mestrado em Letras, agradeço os ensinamentos.

E finalmente agradeço a CAPES/UFSJ pela bolsa de estudos que

proporcionou a realização da pesquisa.

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RESUMO

Esta pesquisa tem o objetivo de compreender o processo de convergência das mídias, descrevendo como se dá o intercâmbio de discursos entre plataformas de comunicação distintas. Os conteúdos produzidos pelos meios de comunicação de massa tradicionais estão sofrendo diretamente a influência das novas mídias. No caso desse projeto, enfatizamos a convergência entre a telenovela brasileira e a Internet. Uma das características mais marcantes das telenovelas é a expressão do sincretismo da realidade e da ficção. Nossa proposta é avaliar como essa característica tem sido desenvolvida na Internet. Fatores ligados às representações sociais e questões de identidade também fazem parte do estudo, que tem como corpus o blog “Sonhos de Luciana”, diário virtual da personagem da telenovela Viver a Vida (2009).

PALAVRAS-CHAVE: telenovela, Internet, convergência das mídias, sincretismo da realidade e da ficção.

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ABSTRACT

This research aims to understand the convergence of media, describing how is the exchange of speeches between different communication platforms. The content produced by the media traditional mass are directly suffering the influence of new media. In the case of this project, we emphasize the convergence between the Internet and the brazilian soap opera. One of the most striking features of soap operas is the expression of syncretism of reality and fiction. Our proposal is to assess how this feature has been developed on the Internet. Factors related to the social representations and identity issues are also part of the study, which is the blog corpus "Sonhos de Luciana", virtual diary of the character of the soap opera “Viver a Vida” (2009).

KEYWORDS: soap opera, Internet, convergence of media, syncretism of reality and

fiction.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10

CAPÍTULO I:TELENOVELA E CULTURA MIDIÁTICA…………………………………15

1.1 Da cultura de massa à cultura midiática ............................................................ 15

1.1.1 Cultura de massa: é cultura ou não? ............................................................. 15

1.1.2 A cultura de massa e a comunicação de massa ........................................... 19

1.2 Produção e consumo do conteúdo televisivo .................................................... 21

1.2.1 A telenovela brasileira ................................................................................... 23

1.2.2 Representações sociais, ideologia e o mercado das telenovelas ................. 25

1.3 Representações e identidades nas telenovelas da Globo ................................. 29

1.3.1 A representação do cadeirante a partir da personagem Luciana .................. 31

1.4 O marketing social na televisão ......................................................................... 34

1.5 O sincretismo da realidade e da ficção na telenovela brasileira ........................ 37

CAPÍTULO II:AS NOVAS CONFIGURAÇÕES DA MÍDIA……………………………..40

2.1 Entre a indústria cultural e a cibercultura .......................................................... 40

2.1.1 A formação da cibercultura ............................................................................ 43

2.1.2 Comunicação no ciberespaço e suas características gerais ......................... 48

2.1.3 Cultura do espetáculo e ciberespaço ............................................................ 51

2.1.4 Sobre o gênero blog e a exposição da intimidade ......................................... 55

2.2 A convergência das mídias ............................................................................... 57

2.2.1 A narrativa transmídia e a convergência de plataformas de comunicação

distintas ..................................................................................................................... 59

2.3 TV e Internet em narrativas transmídia ............................................................. 62

2.3.1 A interação a partir da convergência das mídias ........................................... 65

2.3.2 Por que a TV se importa com a internet? Dados de uso da internet no Brasil

.................................................................................................................................. 67

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2.3.3 A narrativa dos blogs de personagens e a interação entre real e ficção ....... 68

CAPÍTULO III:CONVERGÊNCIA DE MÍDIAS: A NOVELA “VIVER A VIDA” E O

BLOG SONHOS DE LUCIANA ................................................................................. 73

3.1 Sobre a novela Viver a Vida e o blog Sonhos de Luciana .................................. 74

3.1.1 A realidade na ficção da telenovela Viver a Vida ......................................... 75

3.2 O embrião da narrativa transmídia em Viver a Vida ........................................... 77

Dia 38 – Cuidado com as escaras! ............................................................................. 78

Dia 40 – Pelo direito de ir e vir .................................................................................... 80

3.2.1 As relações entre a personagem blogueira e o telespectador internauta ...... 82

Dia 79 – Direto de Paris, a cidade do amor ................................................................. 84

3.3 O sincretismo da realidade e da ficção na telenovela e no blog ...................... 88

Dia 55 – Preconceito é triste e antiquado .................................................................... 89

Dia 16 – Tereza, minha mãe! ................................................................................. 91

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 94

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 97

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1: Reportagem do Estadão que mostra o pedido de socorro de funcionária no Facebook………………………………………………………………………………...48

FIGURA 2: Reportagem do portal UOL sobre a página do Facebook, Diário de Classe........................................................................................................................50

FIGURA 3: Reportagem sobre condenação da estudante que incitou a violência contra nordestinos no Twitter…………………………………………………………….53

FIGURA 4: vídeo “Desmascarando o governador: a TV mente, o povo desmente”..61

FIGURA 5: Imagem do blog do personagem Sidney, da novela Salve Jorge………64

FIGURA 6: Reportagem sobre os perfis falsos do personagem Félix, da novela Amor á Vida……………………………………………………………………………………….65

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INTRODUÇÃO

A pesquisa aqui exposta promove uma discussão sobre a dinâmica da

convergência das mídias, e como tal fenômeno vem configurando os discursos

difundidos através da televisão brasileira– particularmente o veiculado pelas

telenovelas. De que forma a televisão, inserida nas novas plataformas midiáticas

ligadas à cibercultura, vem utilizando as ferramentas do ciberespaço, estendendo

sua narrativa para os demais canais de comunicação virtuais? E quais os fatores

que motivam a presença frequente de personagens blogueiros nas tramas das

novelas da Rede Globo?

A escolha do tema oferece uma conexão entre o que a linha de pesquisa

proporciona como fonte de estudo e desenvolvimento de projetos sobre discurso e

representação social, e a minha formação profissional. Por ser graduada em

Comunicação Social, busquei conciliar objeto e conhecimento adquirido no ensino

superior, para que o ponto de partida estivesse ligado aos meus estudos

precedentes.

É importante também ressaltar o vínculo com a área de pesquisa

proposta pelo Programa de mestrado em Letras. A área de concentração em crítica

da cultura requer uma busca de conhecimento abrangente, através de pesquisas

capazes de analisar e entender o processo de formação e mutação da cultura e da

sociedade, uma vez que os dois se relacionam constantemente.

Mais especificamente a linha de pesquisa “Discurso e Representação”

possibilita a diversidade de temas, reforçando o caráter interdisciplinar, sendo assim

possível preencher todas as lacunas que envolvem o processo de relação entre

linguagem, cultura e sociedade.

Dessa forma, desenvolvi a pesquisa tendo como objeto o fenômeno da

convergência das mídias - entre telenovela e blog, no intuito de descrever o

movimento de influências de linguagem e representação. Para isso, vamos discutir

como características, a priori das mídias tradicionais, estão se reproduzindo nas

novas mídias digitais. Nessa perspectiva, o objetivo principal a ser alcançado é

entendimento de como o fenômeno do sincretismo da realidade e da ficção se

incorpora à cultura da chamada Web 2.0.

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A internet como meio de comunicação mais democrático e pluridirecional

proporciona a manifestação e interferência da sociedade no conteúdo cultural

produzido pelas grandes corporações midiáticas. Mas de que forma essa

democracia é exercida? Tal liberdade para manifestação é efetivamente exercida, ou

os canais de comunicação virtuais têm desempenhado seu papel de forma

semelhante às mídias tradicionais? Afinal, quem realmente comanda o conteúdo

veiculado e consumido?

Nos últimos anos, a televisão tem compartilhado seu conteúdo em canais

de comunicação provenientes do ciberespaço, um novo direcionamento pertinente

ao atual contexto sociocultural. Os mercados de produção de bens simbólicos têm

procurado novas estratégias, modificando os paradigmas comunicacionais que

precederam a nova era da comunicação digital.

Para tanto, a pesquisa utiliza como corpus o blog “Sonhos de Luciana”. A

página virtual fez parte da trama da novela Viver a Vida, de Manoel Carlos, exibida

pela Rede Globo entre 14 de setembro de 2009 e 14 de maio de 2010, às 21 horas,

horário nobre da emissora. O diário da personagem Luciana foi criado por uma de

suas irmãs - Mya, interpretada pela atriz Paloma Bernardi, com a função de relatar a

vida de uma mulher com necessidades especiais. A história da cadeirante

interpretada pela atriz Alinne Moraes, foi construída a partir das experiências de vida

da jornalista Flávia Cintra. Tetraplégica desde os 18 anos, Flávia supera os

problemas provenientes de sua limitação física que não a impediu de trabalhar,

casar e ser mãe de gêmeos.

Lembro-me do dia em que me deparei com o blog Sonhos de Luciana na

Internet. Meu primeiro contato foi com a publicação do dia 24 de fevereiro de 2010.

O texto publicado era sobre a mãe da personagem, Tereza, interpretada pela atriz

Lilian Cabral. Por um instante me vieram à mente todas as teorias estudadas na

disciplina isolada que cursei com o Professor Dr. Guilherme Jorge de Rezende, em

especial os estudos sobre o sincretismo da realidade e da ficção. Naquele momento

tive a certeza que havia encontrado o corpus perfeito para a realização de um

trabalho sobre discursos da mídia.

Dessa forma, o foco principal do trabalho é a manifestação do sincretismo

da realidade e da ficção em duas plataformas de mídia diferentes. Para isso, a

pesquisa aborda como as novas mídias digitais estão sendo exploradas e se

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tornando uma extensão das mídias tradicionais, contribuindo assim para o

entendimento das novas práticas discursivas que vêm emergindo da convergência

midiática.

Percebemos que é cada vez mais comum a participação de personagens

blogueiros nas tramas das novelas da Rede Globo. Afinal o blogueiro– atividade que

já se consolidou até como profissão, faz parte do mundo contemporâneo. A

representação do blogueiro se torna ainda mais viável quando o blog é ativado na

rede, transformando o diário virtual numa janela de conexão entre o social e o

midiático.

Especificamente no caso do blog Sonhos de Luciana, reconhece-se a

participação ativa do público, uma alternativa interessante para o direcionamento da

representação de identidades sociais na telenovela. A abertura para a manifestação

dos telespectadores proporciona a interação entre o real e a ficção, provocando o

entrecruzamento de mídias e gêneros narrativos no processo de representação das

identidades sociais.

Como veremos no trabalho apresentado, o Brasil já é o terceiro país com

maior número de usuários ativos na internet. Em relação ao tempo de conexão, os

brasileiros lideram o ranking. Ou seja, os usuários brasileiros são os que mais tempo

passam conectados à internet. Esses dados serão descritos com mais detalhes no

capítulo 3.

O trabalho foi dividido em três partes. A primeira será voltada para a

compreensão da cultura de massa e da cultura midiática, relacionando a produção e

recepção dos conteúdos advindos da cultura de massa, e os aspectos sociais

ligados às questões de identidade, sentimento de pertença, e representação social

pelas telenovelas.

Sob o título “Telenovela e cultura midiática”, desenvolvemos a discussão

sobre cultura de massa, sociedade do espetáculo e os aspectos que configuraram e

vêm configurando os meios de comunicação de massa. A segunda parte

desenvolverá os conceitos mais atrelados aos novos estudos sobre a cultura do

ciberespaço, buscando esclarecer como as novas formas de mídia têm mudado o

cenário de produção e consumo de cultura. Há também, nesse capítulo, a

preocupação em levantar características das mídias tradicionais que estão

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presentes nas novas mídias inseridas na rede, traçando dessa forma, a

reciprocidade presente na convergência midiática.

E a terceira parte versará sobre a descrição do processo de emissão e

recepção/resposta do público frequentador do blog “Sonhos de Luciana”,

englobando assim, nesse processo, tanto os posts escritos pela personagem, como

os comentários deixados pelos visitantes do diário virtual, que retratarão a visão do

telespectador sobre a história de Luciana. O corte cronológico foi feito baseado nas

datas de início e desfecho do blog na internet, sendo que o primeiro post data do dia

8 de fevereiro de 2010, e o último post, feito em 15 de maio de 2010.

O primeiro capítulo, intitulado “Telenovela e cultura midiática”, desenvolve

a discussão sobre a cultura de massa, a sociedade do espetáculo e os aspectos

sociais que configuraram e vêm configurando os meios de comunicação de massa.

Também foram abordados temas relacionados à telenovela e o seu papel social,

responsável pela representação de identidades, como também o sincretismo da

realidade e da ficção presentes nas tramas da Rede Globo. Estudos no campo do

discurso da mídia e da representação social, como Marshall McLuhan (2007),

Douglas Kellner (2001), Pierre Bourdieu (1997), John B. Thompson (1998), Jesús

Martin-Barbero (2008), Edgar Morin (2009), entre outros autores que colocam os

sujeitos sociais no âmbito da discussão sobre a produção do conteúdo cultural. A

pesquisa também pretende recorrer aos estudos sobre indústria cultural, a partir das

teorias dos pensadores da Escola de Frankfurt, como Adorno e Horkheimer (1947).

Também serão abordadas teorias da sociedade do espetáculo, de Guy Debord

(1997), e a relação entre consumo e sociedade, a partir do filósofo Zigmunt Bauman

(2008).

No segundo capítulo, “As novas configurações da mídia”, analisei o

processo de transformação das mídias tradicionais, decorrentes do surgimento das

novas mídias digitais e da cultura cyber, compreendendo a narrativa transmídia e o

processo de convergência de plataformas de comunicação distintas. Para conduzir a

pesquisa a fim de entender como os novos meios de comunicação podem modificar

o cenário de produção e consumo dos bens simbólicos, foram pesquisadas teorias

que investem na análise de novas linguagens ligadas às mídias digitais, como Lúcia

Santaella (2003), Manuel Castells (2012), André Lemos (2002) e Henry Jenkins

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(2009), abordando os conceitos de transmídia, hibridização e convergência das

mídias.

Já no terceiro capítulo, “Compreendendo a narrativa transmídia através

do blog Sonhos de Luciana”, apresento o blog como um novo artefato capaz de

estender a narrativa televisiva para o ciberespaço. Neste capítulo foram levantados

os pontos que envolvem o processo de produção/interação e recepção/consumo da

narrativa televisiva no blog Sonhos de Luciana, ou seja, qual a relação entre a TV, o

blog e o telespectador e internauta.

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CAPÍTULO I TELENOVELA E CULTURA MIDIÁTICA

1.1 Da cultura de massa à cultura midiática

O surgimento de aparatos tecnológicos como a fotografia e o cinema, no

início do século XX, fomentou as teorias voltadas à crítica cultural, no sentido de

entender o processo de produção e recepção de conteúdos culturais emergidos das

novas formas de reprodução. Os estudos da cultura de massa - ou como

denominado pelos teóricos da Escola de Frankfurt, a indústria cultural, implicaram o

esclarecimento do que seria, a priori, considerado obra de arte, e qual o impacto

direto e indireto da reprodutibilidade técnica na cultura e na sociedade, iniciando

assim, uma longa discussão do que podemos conceituar como artefato cultural e o

que seria somente mero simulacro com fins mercadológicos.

1.1.1 Cultura de massa: é cultura ou não?

Partiremos da provocação inicial dos estudos da cultura de massa. Os

teóricos frankfurtianos Theodor W. Adorno e Max Horkheimer assumem uma

discussão pela vertente marxista, seguindo a lógica do sistema capitalista de

produção e consumo dos bens culturais em massa, denominada por eles de

indústria cultural. A mercantilização das formas culturais no final do século XIX foi

decorrente do desenvolvimento da indústria do entretenimento na Europa e nos

Estados Unidos (THOMPSON, 1995, p. 131).

A indústria cultural foi responsável pela massificação dos bens culturais e

pela perda de autonomia, rendendo-se ao sistema de produção impulsionada pela

cultura do capital. Os bens culturais são padronizados, a fim de agradar o maior

número de consumidores, buscando assim o máximo lucro e afirmação do mercado

de consumo de cultura:

A maioria dos produtos da indústria cultural, todavia, não tem mais pretensão de serem obras de arte. Na maioria das vezes, eles são construtos simbólicos que são moldados de acordo com certas

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fórmulas preestabelecidas e impregnadas de locais, caracteres e temas estereotipados. Não desafiam ou divergem das normas sociais existentes; ao contrário, reafirmam essas normas e censuram toda ação e atitude que delas se desvia. (THOMPSON, 1995, p. 133)

Abaixo, Adorno e Horkheimer expõem sua visão apocalíptica em trecho

que exemplifica como os meios de comunicação de massa desempenham seu papel

como artefato que objetiva a homogeneização dos indivíduos:

A passagem do telefone ao rádio separou claramente os papéis. Liberal, o telefone permitia que os participantes ainda desempenhassem o papel de sujeito. Democrático, o rádio transforma-os a todos igualmente como ouvintes, para entregá-los autoritariamente aos programas, iguais uns aos outros, das diferentes estações. (1985, p. 100)

De acordo com o pensamento apocalíptico, esta visão ilusória de

democracia impera nos meios de comunicação de massa. A partir do momento em

que se alcança o objetivo de moldar o indivíduo, fazendo com que estes pensem de

maneira semelhante, a impressão que se tem é de que o espaço midiático é

democrático, representando toda a sociedade vigente naquele contexto social.

Complementando o pensamento frankfurtiano, Duarte aborda o assunto:

“O rádio é ‘democrático’, pois transforma os antigos interlocutores em meros

ouvintes, ‘para entregá-los autoritariamente aos programas das estações.” (2003, p.

52). Assim, a posição apocalíptica da mídia, que tem nas teorias da indústria cultural

suas raízes, provoca uma discussão que se arrasta há décadas sobre o quão

prejudicial são os efeitos da cultura de massa nos indivíduos, que abandonam suas

posições de pensantes para se tornarem meros espectadores da vida social e da

cultura hegemônica.

Porém, nem todos os teóricos da Escola de Frankfurt comungavam desse

posicionamento de caráter elitista e radical dominante nas teorias de Adorno e

Horkheimer. Enquanto estes negavam a cultura das massas, Walter Benjamin

abordava o movimento da indústria cultural como uma nova forma de produção e

percepção do popular: “A reprodutibilidade técnica da obra de arte modifica a

relação da massa com a arte. Retrógrada diante de Picasso, ela se torna

progressista diante de Chaplin.” (1987, pg. 187) Benjamin exime o espectador do

papel de somente consumidor da cultura e o coloca como peça chave no processo

de produção do conteúdo.

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De acordo com Barbero, Benjamin propunha uma mudança na

configuração da vida social moderna, a partir da percepção de novas formas de

expressão, “misturando para isso o que se passa nas ruas com o que se passa nas

fábricas e nas escuras salas de cinema e na literatura, sobretudo na marginal, na

maldita.” (1997, p. 72).

Portanto, Walter Benjamin analisou a indústria cultural de um prisma

diferente de Adorno e Horkheimer. Para ele, o surgimento das formas de reprodução

da arte democratizou a produção e abriu espaço para a manifestação de novas

práticas culturais e para a expressão de grupos excluídos da elite dominante.

Inúmeros debates foram sustentados pelos pesquisadores da Escola de

Frankfurt, traçando prós e contras sobre as relações construídas, mantidas e

modificadas entre cultura e sociedade. Para nivelar a discussão no sentido de nem

vangloriar nem vampirizar os novos artefatos de produção cultural, podemos recorrer

ao pensamento do também sociólogo e filósofo frankfurtiano, Herbert Marcuse, o

qual não acredita no declínio da cultura erudita, mas sim na contestação dessa

cultura pela realidade social:

Na verdade, a cultura superior esteve sempre em contradição com a realidade social, e somente uma minoria privilegiada gozava de suas bênçãos e representava os seus ideais. As duas esferas antagônicas da sociedade sempre coexistiram; a cultura superior sempre foi acomodativa, enquanto a realidade raramente foi perturbada por seus ideais e suas verdades. (1967, p. 69)

A questão central da mudança no modo de produzir cultura está vinculada

aos avanços tecnológicos da época. As modificações geradas na produção

trouxeram também uma nova forma de consumo. Toda essa reconfiguração cultural

trouxe à tona a discussão da cultura como parte do processo de transformações

sociais.

A reprodução técnica trouxe acessibilidade ao conteúdo cultural

produzido. Poderíamos então falar sobre uma democratização da cultura. No

entanto, o que estava mais forte nas discussões que envolveram a Escola de

Frankfurt era uma vontade de discernir o que realmente é cultura, ou seja, se o que

é produzido e reproduzido pode ser considerado um produto cultural. Os

apocalípticos acreditavam que tudo que era proveniente da indústria cultural deveria

ser tratado como produto meramente mercadológico.

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A posição apocalíptica da década de 40, ganha traços renovados vinte

anos depois, com os estudos da vertente situacionista. O teórico francês Guy

Debord, em “A sociedade do espetáculo” compartilha da abordagem pessimista de

Adorno e Horkheimer. No entanto, ele direciona a discussão para os meios de

comunicação de massa, refletindo efetivamente sobre o consumo de imagens, ou

seja, nas relações sociais mediadas pela imagem.

Debord acredita que a mídia e a sociedade estão imersas na produção e

no consumo de imagens, mercadorias e na promoção de eventos culturais que se

tornam espetáculos e que dominam as relações sociais, influenciadas pela ideologia

de mercado e consumo: “O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou

totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não

se consegue ver nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo.” (1997, p. 30).

Em “Comentários sobre a sociedade do Espetáculo”, Debord reafirma

incisivamente a sua ideia sobre esta sociedade influenciada pelo poder simbólico

dos meios de comunicação de massa, submetida aos desejos da elite dominante e

das grandes corporações: “O espectador é suposto ignorante de tudo, não

merecedor de nada. Quem fica sempre olhando, para saber o que vem depois,

nunca age: assim deve ser o bom espectador.” (1997, p. 183).

A teoria debordiana é referência para discutirmos sobre o papel da

televisão nos dias de hoje, porém não se deve reduzir a sociedade do espetáculo ao

espectador/consumidor das imagens produzidas por esta. Deve-se considerar a TV

como uma das diversas ferramentas que fomentam a sociedade do espetáculo,

sendo a primeira um reflexo da segunda: “a televisão-espetáculo pode ser

compreendida somente como produto de uma sociedade espetacular.” (JAPPE,

2005, p. 256).

Alvo de críticas e taxada de manipuladora das massas, a televisão foi

julgada como objeto mau, de acordo com Jost (2007), assim como os romances

foram criticados no século XVIII, e o cinema, no início do século XX. As primeiras

críticas direcionadas à mídia em questão, a colocavam como um objeto quase

hipnótico, assim como o cinema. Dessa forma, podemos dizer que o surgimento da

TV reforçou as discussões já existentes sobre a cultura de massa, e efeitos gerados

pelo consumo do conteúdo produzido pela denominada sociedade de massa.

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1.1.2 A cultura de massa e a comunicação de massa

O ponto de partida da pesquisa através dos estudos da Escola de

Frankfurt é considerável, pois pela primeira vez os artefatos tecnológicos que

compõem a chamada indústria cultural foram colocados no centro das discussões

das mudanças sociais da era moderna, haja vista que as teorias que precederam os

estudos sobre ideologia e cultura não encararam de forma considerável o papel

hegemônico e representativo dos meios de comunicação de massa.

Segundo Thompson (1995), ignorar a natureza e a centralidade desses

meios reduz a importância de seus mecanismos e despreza a influência das

mediações entre o social e o midiático. Para ele, até mesmo os trabalhos dos

teóricos da Escola de Frankfurt, pioneiros nos estudos da indústria cultural, não

conseguiram repensar a ideologia na era dos meios de comunicação de massa de

forma satisfatória, mas foram felizes ao darem início às pesquisas sobre a

mercantilização de artefatos simbólicos, ligando o papel da ideologia ao

desenvolvimento da comunicação de massa. (1995, p. 105)

Como vimos, as transformações no campo cultural no decorrer do século

XX estão intimamente ligadas ao surgimento da fotografia, cinema, rádio e televisão,

modificando o paradigma de cultura, anteriormente segmentada, e posteriormente

delineada como cultura de massas, reconfigurando a tradicional estrutura cultural,

rigorosamente marcada pelos pólos erudito e popular:

“O advento da cultura de massas a partir da explosão dos meios de reprodução técnico-industriais – jornal, foto, cinema -, seguida da onipresença dos meios eletrônicos de difusão – rádio e televisão -, produziu um impacto até hoje atordoante naquela tradicional divisão da cultura em erudita, culta, de um lado, e cultura popular, de outro.” (SANTAELLA, 2008, pg. 52).

Santaella pontua tais mudanças e propõe um conceito para a nova

configuração da cultura, nascida a partir das tecnologias disponíveis, como os

videotapes, fitas cassete, CD, entre outros materiais que propiciam a reprodução do

conteúdo cultural produzido pelas mídias, surgindo assim, a chamada cultura das

mídias, que emerge da própria relação entre as mídias, inaugurando uma dinâmica

marcada pela produção de bens simbólicos acessíveis à massa. Santaella ainda

define essa cultura como um movimento mais democrático e livre, contrariando o

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princípio da cultura de massas, marcada pela produção vinda das mãos de poucos

que detém o poder de produzi-los.

A cultura das mídias veio para inaugurar uma nova forma de relação entre

produção e consumo, possibilitando aos consumidores a escolha entre produtos

alternativos. No segundo capítulo a exposição desse tema será mais explorada,

dando início aos nossos debates sobre a hibridização das mídias, ou convergência

das mídias, e como se dá o processo de produção e consumo, colocando o

consumidor como participante – ou coparticipante, melhor dizendo – do conteúdo

cultural produzido.

Voltando a discussão especificamente para o meio de comunicação de

massa aqui escolhido como centro da pesquisa - a televisão, começamos a levantar

questões pertinentes ao entendimento do processo de produção e consumo do

conteúdo difundido por esta que ainda é considerada o veículo de comunicação de

maior expressão na sociedade. Bourdieu discute o processo de seleção do conteúdo

veiculado:

O princípio de seleção é a busca do sensacional, do espetacular. A televisão convida à dramatização, no duplo sentido: põe em cena, em imagens, um acontecimento e exagera-lhe a importância, a

gravidade e o caráter dramático, trágico. (1997, p. 25)

Dessa forma, a televisão realça o extraordinário para ocultar o ordinário,

assim como transforma o ordinário em extraordinário. Embora seja um veículo

prestador de serviços através do esclarecimento e da busca pela informação,

estamos diante de um artefato portador de poder perante a sociedade

contemporânea. Portanto, infinitos fatores podem transformar o discurso, de acordo

com o que convém em determinado contexto.

Thompson acredita que precisamos ter certa cautela ao utilizar o termo

“massa” para lidar com a cultura e a sociedade pós-industrial, pois o termo sugere

uma passividade e indiferença do público consumidor do conteúdo produzido,

características a priori, levantadas por Adorno e Horkheimer, através dos estudos

sobre a indústria cultural:

Esta é uma imagem associada a algumas das primeiras críticas à “cultura de massa” e à “sociedade de massa”, críticas que geralmente pressupunham que o desenvolvimento da comunicação de massa tinha um grande impacto negativo na vida social moderna, criando um tipo de cultura homogênea e branda, que diverte sem desafiar, que prende a atenção sem ocupar as faculdades críticas,

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que proporciona gratificação imediata sem questionar os fundamentos dessa gratificação. (THOMPSON, 2011, p. 51)

É comum nos depararmos com essa forma de pensamento sobre o termo

massa, não somente nas teorias de Adorno e Horkheimer. Porém, esta visão

unilateral, onde organizamos a produção de um lado, detentora do poder de criação

e difusão do conteúdo, e a recepção isolada do outro lado, tem se dissolvido ao

longo dos estudos sobre cultura e sociedade moderna.

Enfim, discutiremos sobre o conteúdo televisivo, mais especificamente

sobre os aspectos ligados efetivamente à produção e consumo do produto

telenovela da Rede Globo. Demais aspectos relevantes para a pesquisa também

serão levantados a posteriori, como questões sobre representação social, identidade

e sincretismo da realidade e da ficção.

1.2 Produção e consumo do conteúdo televisivo

A partir da perspectiva de cultura de massa como resultado do surgimento

e popularização de processos de produção e reprodução de bens simbólicos, o

surgimento da televisão pode ser considerado o auge desta cultura:

Com a televisão, estamos diante de um instrumento que, teoricamente, possibilita atingir todo mundo. Daí certo número de questões prévias: o que tenho a dizer está destinado a atingir todo mundo? Estou disposto a fazer de modo que meu discurso, por sua forma, possa ser entendido por todo mundo? Será que ele merece ser entendido por todo mundo? Pode-se mesmo ir mais longe: ele deve ser entendido por todo mundo?”(BOURDIEU, 1997, pg. 18).

Nesse trecho de Bourdieu, entram em discussão pontos relativos à

homogeneização do discurso. A TV aberta, por essência e estrutura, é um veículo

destinado à massa. Tal estrutura se desmembra para falar com públicos que variam

em relação a sexo, idade, classe social, e assim por diante. Mas nada é totalmente

restrito a um publico específico. O objetivo central é atingir o maior número de

pessoas.

Dessa forma, Bourdieu discute como podemos dizer tudo na TV, sendo

que muitas vezes sofrem-se pressões externas, ligadas à política e/ou economia.

Uma censura invisível que modifica ou cala certas questões que deveriam ser

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abordadas de forma diferente do apresentado pelas mídias de massa. A ocultação

e/ou omissão acontece, possivelmente revestida de um oportunismo que mascara o

real. Assim a TV exerce “as censuras de toda ordem que fazem da televisão um

formidável instrumento de manutenção da ordem simbólica” (BOURDIEU, 1997, pg.

20).

A grande estratégia seria a criação de espécie de zona de conforto, onde

produtores possam enquadrar todos os conteúdos de forma democrática. Essa é a

essência da cultura de massa, uma cultura baseada na criação homogeneizante,

capaz de abarcar interesses políticos e econômicos e onde o espectador se sinta

satisfeito, ou seja, que agrade ao chamado “homem médio.” 1

É que a cultura de massa é média em sua inspiração e seu objetivo, porque ela é a cultura do denominador comum entre as idades, os sexos, as classes, os povos, porque ela está ligada a seu meio natural de formação, a sociedade na qual se desenvolve uma humanidade média, de níveis de vida médios, de tipo de vida médio. (MORIN, 2009, pg. 51)

Dessa maneira, podemos determinar que existisse um conjunto de forças

responsável pela articulação entre produção e consumo. Essa articulação é

movimentada para que se alcance um equilíbrio, sem pesar mais para um lado do

que para o outro. É importante encontrar o ponto médio – ou seria a mediocridade,

no sentido de suficiência, pois é nesse ponto em que não serão relevantes fatores

como classe, sexo ou idade para agradar o público. Portanto, surgirão produtos

moldados para o espectador médio. Esse jogo de forças é imperceptível aos olhos

do espectador médio, preocupada somente na satisfação pelo que se vê.

Assim, a televisão exerce o que Bourdieu chama de violência simbólica:

“A violência simbólica é uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita dos

que sofrem e também, com freqüência, dos que exercem, na medida em que uns e

outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la.” (BOURDIEU, 1997, pg. 22)

Bourdieu acredita que as pesquisas na área das ciências sociais são capazes de

revelar questões ocultas nas relações sociais e nas relações entre sujeito e meios

de comunicação de massa, contribuindo assim, para a amenização desta violência

simbólica.

De acordo com Dominique Wolton (1996, pg. 153), a principal qualidade

da televisão brasileira com sinal aberto - diferentemente da TV por assinatura mais

1 Conceito de Edgar Morin (2009), em Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo, volume

1, Neurose.

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propensa à segmentação de conteúdos, é o seu caráter geralista, ou seja, uma

televisão que integra diferentes classes sociais através da diversidade de programas

exibidos. Desde o início da TV no Brasil, o veículo proporcionou o que ele chama de

“laço social”. Quando a TV chegou ao país, atingiu primeiramente as classes mais

afortunadas, afinal era um equipamento caro.

Porém, o que mais chama atenção de Wolton é que mesmo quem não

tinha TV em casa se informava pelos que já tinham: “Os espectadores narravam os

programas uns aos outros, uma vez que muitos não tinham televisão. Logo essa

função de laço social popular passou a desempenhar uma função, rompendo um

pouco a adesão inicial das elites, um pouco por esnobismo.” (WOLTON, 1996, pg.

154) Esse foi o primeiro sinal da integração social proporcionada pela TV. Podemos

então conectar o pensamento de Wolton, sobre a televisão geralista, com as teorias

de comunicação de massa. Ao envolver toda a sociedade, a TV conseguiu fortalecer

seu papel comunicacional chegando até os lares que ainda não a possuíam.

Mais especificamente dentro de nossa realidade nacional, merece o

destaque, no debate, o papel da Rede Globo, empresa até então detentora do poder

e a audiência de maior expressividade no país. Uma parcela significativa do poder

da instituição parte de acordos políticos da época da ditadura militar, consequência

do golpe de 1964. Murilo César Ramos (2005) acredita que o poder da Globo é

decorrente da displicência de fatores normativos mais claros e específicos, antes

mesmo de ser decorrente das ações de seus empresários.

1.2.1 A telenovela brasileira

Se, por um lado, a Rede Globo cresceu através de alianças suspeitas

para manter seu poder durante quase meio século, por outro ela foi e é responsável

por um dos produtos mais significativos da cultura midiática brasileira, a telenovela:

A telenovela brasileira é um dos melhores exemplos desse drama especificamente televisivo, em que se percebe o imaginário comandado pelo princípio de realidade ou pelo real histórico, desde as exigências eventuais da produção de tevê ou da Censura até a incorporação no enredo de fatos correntes no noticiário jornalístico. O texto de uma telenovela brasileira é pontilhada de alusões a

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situações reais contemporâneas e mesmo condicionado por tais situações, que vão desde fatos noticiosos até livros ou filmes em destaque. (SODRE, 1977, pg. 79)

Gênero de grande expressividade e impacto na sociedade brasileira, as

telenovelas surgiram dos folhetins publicados na mídia impressa do século XIX. De

origem francesa, o folhetim ganhou um novo formato com o surgimento do rádio – as

radionovelas, e posteriormente o formato televisivo.

Ao teorizar sobre o romance popular, Morin (2009) foca a tipografia dos

contos de fadas, lendas e narrações folclóricas do século XVIII como fonte primária

da materialização do imaginário popular. Esse imaginário ainda muito ligado ao

extraodinário vai se modificar no surgimento do folhetim:

O folhetim cria um gênero romanesco híbrido, no qual se acham lado a lado gente do povo, lojistas, burgueses ricos, aristocratas e príncipes, onde a órfã é a filha ignorada pelo príncipe, onde o mistério do nascimento opera estranhas permutas sociológicas, onde a opulência se disfarça em miséria e aonde a miséria chega à opulência; (MORIN, 2009, pg. 59)

A partir do folhetim encontraremos traços de realidade mais latentes. O

extraordinário começa dividir o seu espaço com o ordinário, num jogo de

identificação e projeção. O leitor projeta-se no extraordinário e identifica-se no

ordinário, estreitando a relação entre o receptor e a narrativa da história, constituída

por heróis e vilões, pelas polaridades do bem e do mal, do amor e do ódio. Essa é a

origem da expressão sincrética entre o real e a ficção.

As telenovelas brasileiras existem desde o início da história da televisão

no país e são conhecidas mundialmente. O gênero frequentemente está no centro

das discussões sobre as representações sociais através do discurso folhetinesco.

Em geral, a telenovela brasileira busca representar a identidade cultural, ora

devolvendo ao presente um passado histórico através das novelas de época, ora

representando o contexto social vigente, através de tramas de caráter mais urbano.

O início da história das telenovelas brasileiras é marcada por

características melodramáticas, influenciadas pelo formato latinoamericano de

produção. De acordo com Rezende (2005), a partir do endurecimento do Regime Militar

na década de 60, famosos dramaturgos tiveram suas obras teatrais censuradas.

Com isso, autores como Dias Gomes e Lauro César Muniz, encontraram na

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teledramaturgia “uma alternativa para expressar suas críticas sociais.” (2005, pg. 50)

A partir daí, começaram a surgir os primeiros traços verossímeis nas telenovelas

brasileiras, característica consolidada em Beto Rockfeller (1968), inaugurando assim

o “gênero romântico-realista”.

Desde Beto Rockefeller, a novela não deixou de referir-se a determinados problemas da sociedade brasileira: os preconceitos raciais, a condição da mulher, as relações entre a religião católica e as religiões afro-brasileiras (umbandismo), a poluição industrial, a corrupção, a miséria e a violência urbanas, a disputa entre bairros, etc. Não cessou de aceitar o desafio que um determinado realismo representa para um gênero originalmente voltado para a vida sentimental e os triângulos amorosos. (MATTELART, 1989, pg. 111)

De fato, é muito comum a presença de um tema considerado tabu nas

telenovelas brasileiras. Muitos assuntos conflitantes já foram usados como pano de

fundo das tramas, como a causa gay, o preconceito racial, preconceito contra

portadores de necessidades especiais, portadores de Sindrome de Down, entre

outros.

A telenovela brasileira, mesmo antes do surgimento das novas mídias e

da extensão do conteúdo televisivo para blogs e redes sociais, já vivenciava essa

extensão, porém de outras maneiras. Em conversas em família, no encontro com

amigos, o assunto pautado pelas novelas sempre fizeram parte das rodas de

discussão. Falar de novela já é um hábito adquirido pela sociedade brasileira.

1.2.2 Representações sociais, ideologia e o mercado das telenovelas

A produção das telenovelas é baseada em representações sociais. A

partir do leque variado de personagens, o gênero envolve um grande número de

pessoas com características distintas. Essa característica é a responsável por fazer

da telenovela brasileira um fenômeno social e mercadológico, capaz de envolver

telespectadores de diversos meios sociais:

Todos conversam sobre as novelas, o que mostra à perfeição a tese do laço social que é a televisão. Mas não é só a realidade que inspira as novelas; são também as novelas que influenciam a realidade por uma espécie de ida e volta entre a ficção e a realidade, talvez única

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no mundo. A ficção retoma às vezes a realidade e a influencia, um fenômeno bem mais complexo e interessante do que os reality shows. (WOLTON, 1996, pg. 163)

A telenovela funciona em parte como um “espelho” da sociedade,

recebendo e explorando do mundo real temas pertinentes e em evidência dentro de

um contexto histórico e cultural, reproduzindo assim, identidades sociais, criando e

reforçando hábitos, costumes e valores. Pode-se afirmar ainda que o telespectador

também tem participação no desenrolar de determinada história, apoiando ou

repugnando comportamentos de certos personagens dentro de uma trama.

Temos exemplos marcantes na história da teledramaturgia brasileira,

como em Torre de Babel. Exibida no final da década de 1990, a trama trazia em seu

enredo a história de um casal de homossexuais vividas pelas atrizes Christiane

Torloni e Sílvia Pfeifer. O tema não agradou ao público naquele momento e o autor

Sílvio de Abreu resolveu acabar com a história do casal gay, incluindo-as como

vítimas na explosão de um shopping Center.

De 1998 até a atualidade, vimos novos casais de homossexuais formados

por mulheres fazerem parte das tramas de novela, como em Duas Caras, exibida em

2007, e Mulheres Apaixonadas, do ano de 2003, casais que não suscitaram a

rejeição do público. Em 2011, um casal de mulheres protagonizou o primeiro beijo

gay em uma novela exibida pelo canal SBT, Amor e Revolução. Tais exemplos

acima mostram como os conceitos e valores sociais estão em constante

movimentação, e por isso as telenovelas estão diretamente ligadas ao seu contexto

social:

Busca-se compreender de que maneira um programa de televisão, uma telenovela, é pensada, repensada, atualizada e incorporada às falas e atitudes de sujeitos sociais e quais as dimensões efetivas de sua percepção. Acredita-se que isto leve a discernir também a efetividade da dominação e a reconhecer uma determinada ordem simbólica. (LEAL, 1986, pg. 26)

Contudo, é possível reconhecer o caráter intrinsecamente social voltado

aos ideais e valores contextuais, exteriorizados de formas variadas, dentre eles,

através da linguagem.

Vale ressaltar, porém, que o gênero telenovela é, acima de tudo, um

produto construído e comercializado pelas emissoras de TV, e precisa

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necessariamente estar adequado às normas sociais e às pretensões

mercadológicas. Dessa forma, não podemos descartar o caráter ideológico de uma

sociedade dependente do consumo e da produção baseada na máxima do lucro:

A ideologia, pois, é uma retórica que tenta seduzir os indivíduos para que estes se identifiquem com o sistema dominante de valores, crenças e comportamentos. Reproduz as condições reais de existência desses indivíduos, mas de uma forma mistificada na qual eles não conseguem reconhecer a natureza negativa e historicamente construída, portanto modificável, de sua sociedade. (KELLNER, 2001, p. 147)

A ideologia da cultura de massa está baseada na lógica do consumo de

mercadorias previamente moldadas e concebidas a fim de agradar uma parcela

significativa da sociedade. Para tanto, as emissoras de TV responsáveis pela

produção do conteúdo audiovisual são “guiadas pela estratégia mercantilista do

consumo máximo possível” (REZENDE, 2005, pg. 39).

Tornou-se lugar comum associar os meios de comunicação assim como a

produção de seus bens simbólicos com a homogeneização e manipulação do

pensamento crítico humano. Ora, se tudo parte do que a massa deseja, estaremos

então discutindo algo como “quem surgiu primeiro, o ovo ou a galinha”? Afinal,

somos seres capazes de fazer nossas próprias escolhas, ou as escolhas foram pré-

determinadas por grupos que detém o poder de produzir?

As empresas de mídia direcionam sua produção a partir de tendências e

novas oportunidades apontadas por pesquisas de mercado constantemente feitas,

sem desafiar as normas sociais vigentes. Portanto, a produção dos bens simbólicos

nada mais é do que desejos pré-estabelecidos pelo mundo social, mundo também

de que fazem parte instituições poderosas e capazes de delinear o processo de

escolha dos indivíduos. Levando em conta que todas as nossas escolhas partem de

uma posição ideológica podemos dizer que: “ideologias exercem poder não através

do processo de coerção, mas através do apelo aos nossos desejos, nossas

fantasias e nosso próprio interesse.” 2 (MCDONALD, 2003, p. 32)

Nesse sentido, é possível reconhecer que “a produção cria o

consumidor”...A produção produz não só um objeto para o sujeito, mas também um

sujeito para o objeto (Marx apud Morin: 2009, pg. 45). Dentro da perspectiva

2 Todas as citações de obras em inglês foram por mim traduzidas.

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marxista, cremos que o movimento é constante, de modificação e interação. Da

mesma forma que nos reconhecemos e nos identificamos com o conteúdo cultural

apresentado, por ter sido produzido a partir de traços da vida social, também somos

moldados por um mercado que prepara o conteúdo difundido pelas emissoras de

TV:

Se a televisão agrada tanto, não é só porque ela difunde imagens, mas também porque a relação com o mundo que ela simboliza está “sintonizada” com uma espécie de atitude cultural dominante. Estar lá, presente no mundo, mas reservadamente. Manejar determinadas gamas de curiosidade e de identidade. Ir e vir, ligar-se e desligar-se. (WOLTON, 1996, pg. 142)

De fato, a produção das telenovelas coloca em foco certas questões

sociais a cada trama desenvolvida: luta por direitos de grupos excluídos, assuntos

polêmicos, como o caso dos sem-terra, em Renascer, o coronelismo em Roque

Santeiro.

Os autores globais já são marcadamente conhecidos por darem ênfase

em assuntos específicos. A escritora Glória Perez trabalha com a hibridização de

culturas, e usualmente insere no enredo assuntos de cunho social, como o

desaparecimento de crianças, doenças pouco exploradas pela mídia, entre outros.

Em suas tramas, Sílvio de Abreu valoriza a cultura dos imigrantes em São Paulo,

normalmente desenvolvidas em periferias tradicionalmente paulistas. Já foram

discutidos assuntos tidos como tabus, como a homossexualidade. E o autor

responsável pela novela Viver a Vida, Manoel Carlos, explora o ambiente do Rio de

Janeiro, mais especificamente o bairro Leblon. Também procura desenvolver

personagens imersos em vidas normalmente pouco exploradas. Pessoas com

síndrome de Down e portadores de necessidades especiais são dois exemplos mais

recentes.

Podemos perceber, portanto, que a produção e o consumo deste tipo de

produto cultural devem estar sempre em harmonia. Todo o desenrolar da produção

será traçado de acordo com a receptividade no consumo.

Os autores a todo tempo devem estar atentos às transformações sociais

que transfiguram as relações entre os sujeitos, assim como a forma de consumo têm

se transformado a partir do surgimento de novas formas de se comunicar. Tal

característica é assunto para o segundo capítulo.

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1.3 Representações e identidades nas telenovelas da Globo

A partir da abordagem teórica aqui desenvolvida, podemos compreender

o discurso da telenovela como um processo de construção de representações

sociais. Mas afinal, qual a definição para esta representação do social, e como ela

efetivamente é moldada pelo discurso da telenovela brasileira?

Para, inicialmente, entendermos a relação entre telenovela e

telespectador, partimos do conceito já discutido anteriormente, o “laço social”, de

Dominique Wolton (1996). O sociólogo considera a televisão o fio condutor da

modernidade, desempenhando o papel de identificação coletiva. Ao desenvolver sua

linguagem baseada no “caleidoscópio da realidade social”, o telespectador se vê

representado por ela, e assim, criam-se laços sociais, relações de identificação e

afeto (WOLTON, 1996, pg. 141).

Partindo de um olhar no sentido macro de produção audiovisual da Rede

Globo, já mencionamos que Wolton destacou a televisão brasileira como uma

televisão geralista, capaz de atingir todos os meios sociais através de uma produção

diversae que valoriza a identidade nacional:

Apesar das condições históricas, quanto às escolhas políticas e comerciais, serem diferentes no Brasil e na Europa, encontramos pontos comuns fundamentais que ilustram a constatação evidente, muitas vezes negada, de que a televisão geralista desempenha um papel central nas sociedades democráticas. Encontramos, principalmente, a inteligência e o senso crítico do público, sem os quais a qualidade dos programas não seria aquela que faz a tradição da Globo. (1996, pg. 153)

Podemos ligar tal preferência de perfil geralista, ao fator exclusivamente

mercadológico. As maiores emissoras brasileiras, e especificamente a Rede Globo,

são veículos de comunicação privados, que priorizam o consumo máximo. Não seria

tendencioso, portanto, ligar a diversidade aliada à identidade nacional, e a

preferência por um quadro de programas democrático e envolvente, ao simples fato

de que essa é a melhor fórmula para a máxima difusão do conteúdo produzido,

baseado no princípio do consumo máximo:

A busca do consumo máximo requer a conquista de um público o mais extenso possível, não importando a natureza heterogênea dos segmentos que o compõem. A equação é simples: quanto mais audiência, maior o número potencial de consumidores e maiores

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também os lucros das empresas da indústria cultural, agregadas em grandes corporações que formam um poderoso oligopólio no mercado de comunicação de massa no mundo e no Brasil. (REZENDE, 2005, pg. 41)

Partimos nesse momento, para uma das questões principais desse

capítulo, que consiste em relacionar a identidade e a representação com uma das

características que marca a sociedade: a necessidade de interação.

Um dos autores de grande relevância para esse estudo é John B.

Thompson. Em A mídia e a modernidade, o sociólogo caracteriza a interação

subdividindo as situações interativas em três tipos: interação face a face, marcada

pela ação e reação instantânea das partes envolvidas na interação; a interação

mediada, normalmente determinada por sujeitos inseridos em contextos espaciais e

temporais diferentes; e por último, a quase interação mediada, marcada por

interações mediadas pelos meios de comunicação de massa.

Trataremos desta última interação, ao discutirmos as relações entre as

telenovelas e o telespectador, que se vê de certa forma representado em

determinada trama, através dos personagens ali inseridos. Para descrever como

funciona a “quase interação mediada”, recorro às palavras do sociólogo Thompson:

Ela não tem o grau de reciprocidade interpessoal de outras formas de interação, seja mediada ou face a face, mas é, não obstante, uma forma de interação. Ela cria certo tipo de situação social na qual os indivíduos se ligam uns aos outros num processo de comunicação e intercâmbio simbólico. Ela é uma situação estruturada na qual alguns indivíduos se ocupam principalmente na produção de formas simbólicas para outros que não estão fisicamente presentes, enquanto estes se ocupam em receber formas simbólicas produzidas por outros a quem eles não podem responder, mas com quem podem criar laços de amizade, afeto e lealdade. (2011, pg. 122)

Em vista disso, como podemos delinear a interação entre homem e mídia,

nesse caso, entre telenovela e telespectador? Segundo Thompson, o telespectador

ao assistir à telenovela, não está somente consumindo uma fantasia. Através do

conteúdo da trama, o indivíduo tem a oportunidade de explorar outras experiências,

que fogem de seu cotidiano: “Como nossas biografias estão abertas para as

experiências mediadas, nós também nos descobrimos atraídos por questões e

relações sociais que ultrapassam os ambientes em que vivemos.” (THOMPSON,

201, pg. 202)

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Vemos a partir das novas práticas comunicativas uma mistura de formas

de interação, como no caso do blog Sonhos de Luciana e a novela a Viver a Vida. A

utilização do blog proporciona a hibridização, tanto da linguagem, quanto da

interação social, mas deixaremos o desenrolar desta característica para os próximos

capítulos.

Presente na relação entre novela e espectador, as representações sociais

através de discursos marcados pela reprodução de identidades, fazem do gênero

um exímio exemplo de produção bem sucedida na cultura brasileira. O vínculo

afetivo criado entre as duas partes é uma das peças chave dos melodramas

nacionais, como já mencionamos anteriormente, a importância do “laço social”.

Segundo o próprio criador deste termo, Dominique Wolton, o objetivo da construção

do laço social não é modificar a estrutura social, mas sim acompanhar tal estrutura.

Dessa forma, compreendemos a importância da produção andar lado a lado com o

consumidor final do produto desenvolvido pelos meios de comunicação, formando

esse laço pautado na interação entre as partes envolvidas no processo.

1.3.1 A representação do cadeirante a partir da personagem Luciana

Luciana, uma jovem carioca, em início de carreira como modelo

internacional, sofre um grave acidente, que a deixa tetraplégica, ou seja, o fato a

impede de movimentar braços e pernas. A partir daí, o telespectador vive com

Luciana todos os ciclos de sentimentos que uma pessoa normalmente passa ao ter

que enfrentar a vida numa cadeira de rodas.

O que podemos constatar na evolução da personagem é uma mudança

de atitude perante as dificuldades vividas. No início, Luciana se lamentava por ter

perdido os movimentos, sentimento comum de um ser humano que passa por esse

tipo de situação. No desenrolar da história, Luciana começa a mostrar sinais de

melhora, tanto dos movimentos, porém ainda bastante limitados, como também da

sua autoestima, passando a aceitar a sua realidade.

Tais sentimentos formam um ciclo que normalmente a vítima passa, após

um acidente que deixa seqüelas graves, como no caso de Luciana: num primeiro

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momento, o susto e a revolta. O segundo momento, a tristeza e a vontade de desistir

de viver. E finalmente um terceiro momento, de conformidade e adaptação da nova

situação de vida.

Nesse sentido, Luciana compartilhou com o telespectador os sentimentos

de um cadeirante no seu dia-a-dia, incorporando a realidade do sujeito portador de

necessidades especiais da vida real, que busca através da diferença, o

reconhecimento da sociedade. Portanto, a partir de características pertencentes a

um grupo específico, percebemos a formação de uma identidade construída pela

junção de práticas sociais semelhantes e pelo compartilhamento de desejos em

comum, o que podemos definir como identidade coletiva.

Entendemos por identidade coletiva um processo dinâmico de construção de práticas coletivas que criam um conjunto de significações interpretativas da estrutura e da hierarquia societal; além de, nesse processo dinâmico, serem estruturadas relações que criam e dão formas ao sentimento de pertenças grupais entre elementos que compartilham crenças e valores societais responsáveis pela criação de uma unidade grupal que se sustenta sobre a dinâmica da negociação, da comparação entre grupos e categorias sociais, através das relações de reciprocidades e de reconhecimento. (PRADO, 2006, p. 200)

A personagem Luciana foi inspirada na vida real da jornalista Flávia

Cintra, uma jovem que sofreu um acidente aos 18 anos. De acordo com Leal, “a

novela fala de afetos e é reconhecida como parte de uma retórica de autoridade e,

como tal, encanta.” (1986, pg. 85) A realidade servindo de inspiração para a ficção é

explícita no nosso objeto, abordagem do próximo tópico.

Assim, a partir dos relatos de experiências vividas por Flávia, Luciana

representou na telenovela todo o cotidiano e os sentimentos dos cadeirantes, grupo

consolidado por práticas coletivas semelhantes, em busca do reconhecimento de

seus direitos perante a sociedade civil: luta por melhor acessibilidade nas ruas, por

melhores condições de trabalho, entre outros anseios, se mobilizam a fim de

conquistar uma situação mais confortável e digna, adaptando suas limitações à vida

social.

Em certos momentos da trama, a protagonista demonstra preocupação e

vontade de lutar a favor dos portadores de necessidades especiais, assegurando

dessa forma, uma proximidade entre sentimentos reais e os representados na

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ficção. Edgar Morin discute o processo de identificação e projeção presentes no

conteúdo produzido pela cultura de massa:

Diferentes fatores favorecem a identificação; o ótimo da identificação se estabelece num certo equilíbrio de realismo e de idealização; é preciso haver condições de verossimilhança e de veridicidade que assegurem a comunicação com a realidade vivida, que as personagens participem por algum lado da humanidade quotidiana, mas é preciso também que o imaginário se eleve alguns degraus acima da vida quotidiana, que as personagens vivam com mais intensidade, mais amor, mais riqueza afetiva do que o comum dos mortais. (2009, pg. 82)

O sentimento de pertença é um dos fatores de maior relevância no

processo representacional. Desse modo, o comportamento de Luciana deve ser

pautado na realidade vivida pelos cadeirantes reais, despertando nos espectadores

que vivem a mesma situação, o sentimento de pertencer “a um conjunto de valores,

crenças, interesses que definem a identidade coletiva de determinado grupo.”

(PRADO, 2006, p. 201)

Luciana faz parte de uma família com poder aquisitivo elevado. Ao sofrer

o acidente e ficar tetraplégica, seus pais já se preocuparam em adaptar seu

cotidiano com todos os recursos possíveis para que ela não sentisse todos os

percalços advindos de sua limitação. Assim, Luciana vivia num ambiente

devidamente adaptado: quarto com cama reclinável, computador especial, rampas e

portas largas para permitir sua passagem, piscina e sala especial para fazer suas

atividades de reabilitação. Contava também com o auxílio de enfermeira e

fisioterapeuta particular, e motorista com carro adaptado para a cadeira de rodas.

Luciana vivia o dia-a-dia de poucos privilegiados nessa situação.

Frequentemente vemos nas ruas uma realidade diferente. Os portadores

de necessidades especiais sofrem com a dificuldade de acesso e locomoção:

calçadas esburacadas, ruas sem rampas adequadas e vagas de estacionamento

regulamentadas para o uso deste grupo sendo utilizadas por veículos não

autorizados.

Com o passar do tempo, a personagem demonstrou o desejo de passar

por situações mais adequadas ao cotidiano dos cadeirantes em geral. Fez questão

de andar de ônibus para sentir as dificuldades, passou por problemas em

restaurantes e shoppings sem banheiros adaptados, lojas de roupa com cabines

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impossíveis de entrar numa cadeira de rodas. Para Sodré, “a representação de um

fenômeno social qualquer consiste num conjunto de imagens, estruturado pelo jogo

das significações sociais ou das atitudes dos sujeitos da representação.” (1977, pg.

76)

Conforme Umberto Eco, “se aceita que frequentemente o público

manifeste identificações e projeções, vivendo na história representada as próprias

pulsões e adotando como modelos os protagonistas dessa mesma história” (1984,

pg. 187). A mudança de comportamento e os novos desafios vividos por Luciana

foram inspirados em relatos deixados no próprio blog, por pessoas que passam tais

dificuldades no dia-a-dia.

Assim, o blog permite o estreitamento da relação entre emissor e

receptor, elevando a participação do segundo, capaz de interferir indiretamente no

processo de construção e reprodução da identidade, levando a um possível

equilíbrio de poder entre emissor e receptor. Voltaremos a falar sobre essa questão

de equilíbrio de poder entre emissor e receptor mais detalhadamente, no segundo

capítulo da pesquisa.

1.4 O marketing social na televisão

De forma breve, gostaria de enfatizar algumas características da TV, que a

levam a operar de acordo com uma espécie de marketing social. Alguns pontos que

exaltam o caráter mercadológico do veículo já foram levantados no início do

capítulo, e exaustivamente discutidos em inúmeros trabalhos sobre sociedade,

cultura e consumo. Porém, é importante repassar algumas questões para

conhecimento do marketing social.

O que seria esse marketing social, afinal? Como ele é operado pela

televisão brasileira? Podemos perceber em certos momentos que a TV evidencia em

seu conteúdo o caráter de prestadora de serviço público. Dominique Wolton, ao

estudar a história da TV no Brasil, enaltece o caráter geralista da Rede Globo e

enfatiza que, mesmo sendo um canal privado, a empresa comporta-se como

prestadora de serviço à população:

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O surgimento de outros canais privados e públicos não abalou a hegemonia da Globo que, ao fim das contas, não abusou da sua posição dominante. O paradoxo é que muito cedo essa televisão privada comportou-se como se tivesse as limitações de serviço público. Em outras palavras, como se a lógica do lucro somasse a uma tomada de consciência do seu papel social, nacional e cultural. (1996, pg. 153)

As telenovelas da emissora costumam praticar esse papel, considerando

questões sociais como importantes fatores de discussão. Assim, recorrentemente,

constatamos a presença de personagens-chave nas telenovelas que exercerão mais

um papel informativo, ou um tema explorado com o intuito de “levantar bandeiras”.

Isto é, mais do que entreter, aquele personagem ou tema está ali para trazer algo

novo, ou apenas informar o telespectador sobre assuntos pouco explorados pelos

meios de comunicação de massa. Será que podemos elevar esse caráter a um

processo de mercantilização da vida? De acordo com Bauman, “a característica

mais proeminente da sociedade de consumidores – ainda que cuidadosamente

disfarçada e encoberta – é a transformação dos consumidores em mercadorias”

(2008, pg. 20)

O tempo da programação é organizado no sentido de explorar ainda mais

o tema abordado pelo melodrama. Vamos pensar nessa característica dentro do

exemplo aqui discutido, a personagem tetraplégica Luciana. Enquanto a novela

Viver a Vida esteve no ar, assuntos diversos sobre a tetraplegia, foram

exaustivamente abordados em telejornais da Rede Globo e outros programas da

grade da instituição. A própria Flávia, inspiradora da personagem produziu um

quadro no programa Fantástico.

A partir desses pontos levantados perpassam, portanto, fundamentos

básicos que regem o marketing da emissora. Ao difundir um assunto pouco

explorado anteriormente e que ganha grande relevância ao colocar no centro da

discussão um grupo sofrido e que busca a notoriedade da sociedade como um todo,

uma emissora de televisão transforma-o em um produto do marketing social.

Recorremos a Jost, para acentuar que:

Nesse contexto, como tudo é regido pelas leis do mercado, pelo jogo de concorrência, confundem-se as formas e os espaços de divulgação, tudo para garantir a estabilidade econômica da emissora e, em verdadeiro círculo vicioso, assegurar mais receita, mais investimento e, assim, mais audiência. É dessa forma que as emissoras fortalecem a sua marca, na relação com o concorrente; consolidam a instituição, por se mostrar sensível às questões de

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interesse da sociedade; e dão sustentabilidade à empresa, que se vê regida pela lógica do mercado. (2007, pg. 13)

Essa estratégia pode ser definida como uma aliança entre o que o social

permite e anseia, e o que a emissora pode explorar. Afinal sabemos como dito

anteriormente, que produção e consumo não se estabelecem isoladamente. Como

proposto por Martin-Barbero, não devemos pensar numa análise de produção e

recepção do conteúdo cultural, mas sim partir das mediações, “isto é, dos lugares

dos quais provêm às construções que delimitam e configuram a materialidade social

e a expressividade cultural da televisão.” (2009, pg. 294)

Não vamos, portanto, julgar a televisão como um veículo oportunista,

responsável pela exploração de temas até a sua morte, mas pensar que mesmo

dentro dessa exploração, é relevante para a sociedade conhecer e se informar sobre

o tema escolhido. E mais, pensando no caso dos cadeirantes, é imensurável o valor

dado pelo grupo ao se verem retratados pela telenovela, mesmo percebendo que

em certos momentos a visão da vida do cadeirante pode ser deturpada pela TV.

No caso das telenovelas, as representações sociais despertam

sentimentos entre os espectadores, que desejam um final feliz para os de bem e a

justiça feita para os vilões. A trama é construída a partir de sentimentos de amor e

ódio, felicidade, justiça e outros aspectos da vida cotidiana. Edgar Morin define o

amor como “o tema mais virulento da cultura de massa” (2009, pg. 130) O amor é

construído a partir do processo de identificação e projeção existente nas formas de

produção. No terceiro capítulo, veremos que os pontos mais explorados no blog

Sonhos de Luciana são o amor e a felicidade.

Assim, podemos considerar que além do marketing social, existe uma

espécie de marketing afetivo. Sentimos-nos afetivamente ligados à história, amando

uns e odiando personagens que estão praticando o papel de antagonistas. O blog do

personagem é uma ferramenta de comunicação funcional no exercício do afeto

como ferramenta de venda do personagem. Naquele espaço comunicativo o

internauta está afetivamente ligado ao personagem. Voltaremos nessa questão no

terceiro capítulo.

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1.5 O sincretismo da realidade e da ficção na telenovela brasileira

Daremos aqui enfoque ao sincretismo da realidade e da ficção na TV, e

no segundo capítulo voltaremos ao assunto, porém com foco no fenômeno voltado

para a internet, onde perceberemos que essa característica dos meios de

comunicação de massa já tem feito parte das mídias digitais.

Um dos recursos do espetáculo é a proximidade criada entre o real e a

ficção, característica latente no melodrama presente nas telenovelas brasileiras.

Rezende conecta tal aspecto ao fait diver, gênero jornalístico que tem como princípio

a notícia romanceada, ligada ao trágico, ao incomum.

Correspondente do fait divers nas telenovelas, o melodrama constitui a mais eloqüente expressão do sincretismo da cultura de massa na América Latina. Em seus primeiros anos, a novela na TV brasileira simplesmente repetiu um modelo melodramático latino-americano. A partir dos anos 60, dramaturgos brasileiros encontram na telenovela uma alternativa para, driblar os censores, e expor em fragmentos suas críticas sociais. Reforça-se, assim, a concepção de uma estética baseada na alternância da ficção e da realidade. (2005, pg. 40)

No caso do autor responsável pela trama de Viver a Vida, Manoel Carlos,

as abordagens frequentemente beiram à realidade. Situações do cotidiano são

reforçadas por um viés melodramático, através de temas polêmicos e considerados

tabus pela sociedade, como violência doméstica, presença de casais homossexuais,

personagens com ciúmes doentios, mãe e filha apaixonadas pelo mesmo homem,

entre outros. No caso do drama de Luciana, o estreitamento entre a realidade e a

ficção foi potencializado através do uso do blog criado, que abria espaço para os

espectadores terem um contato virtual com a personagem.

Outro fator que gera o sincretismo da realidade e da ficção nas

telenovelas é a rotineira presença de figuras do mundo real. Em Passione, novela

exibida em 2010, conhecemos a história do personagem Gerson Gouveia,

interpretado por Marcelo Antony. O personagem carregava um segredo, uma fixação

estranha que o perturbava. A partir daí, resolveu procurar um médico para fazer

terapia e descobrir o que o levou a ter tal fixação. No entanto, o psiquiatra escolhido

para tratar o personagem foi um médico conhecido na vida real: Dr. Flávio Gikovate,

psiquiatra renomado no ambiente clínico e acadêmico. Assim, o profissional

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Gikovate viveu o personagem Gikovate em Passione. Sua participação foi extensa

dentro da trama, e só terminou depois que Gerson conseguiu revelar seus traumas

de infância, frutos de abusos sexuais sofridos por ele.

Outras participações relâmpagos de pessoas conhecidas na vida pública

são recorrentes, como o presidente Fernando Henrique, em Laços de Família, o

jogador Ronaldinho Gaúcho, em Avenida Brasil.

Existe, por conseguinte, uma mistura dissimulada entre o real e a ficção,

manifesta num movimento contínuo de agrupamentos de características peculiares

ao real e ao ficcional. Mas essa mistura leva o telespectador à confusão? Para Eco,

“o espectador exerce conscientemente a chamada suspensão da incredulidade, e

aceita ‘de brincadeira’ tomar como verdadeiro e válido aquilo que todos sabem não

passar de uma construção fantástica.” (1984, pg. 184)

Eco discute um fator que demarca situações reais e ficcionais na

televisão, a partir do olhar para câmera. O filósofo demonstra que há uma oposição

entre quem fala olhando para a câmera e quem fala sem olhar para ela. Lembremos-

nos do caso de Viver a Vida, em que cada capítulo era encerrado com um

depoimento. O olhar do participante, diretamente para a câmera já marca uma

situação de realidade, uma história verídica sendo contada e compartilhada com o

telespectador. No caso da novela, tudo parte da interação entre os personagens, ou

seja, o personagem não fala diretamente com o espectador, este simplesmente

acompanha a história que se desenrola a cada capítulo que vai ao ar: Assim, Eco diz

que o ator não olha para a câmera, “porque quer justamente criar uma ilusão de

realidade, como se aquilo que faz fizesse parte da vida real extratelevisiva.” (1984,

pg. 187)

A proximidade com o real é marcada pelo enredo, pelas histórias ali

“imitadas”, pelos personagens inspirados no mundo real. O fator social é o pano de

fundo de toda construção e representação através do discurso da telenovela. Por

isso sentimos pertencentes ao vivido na ficção, despertando nos telespectadores

uma combinação de sentimentos, como intimidade, afeto, familiaridade, comoção,

entre outras emoções, que fazem da ficção uma parte da nossa realidade:

O real histórico tem de ser simulado pela tevê, por mais desinteressante que possa parecer. Para o telespectador, a fascinação está no mero olhar, na visão familiar de um mundo que se

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<<presentifica>> ao se girar o botão do aparelho-receptor. A televisão é voyeuse do mundo e faz do telespectador o seu cúmplice. Mas para que o voyeurismo seja efetivo, é preciso que as regras de simulação real sejam eficazes. (SODRÉ, 1977, pg. 72)

A representação parte das significações construídas pelo social, e a TV

um instrumento de “replicação” do mundo real. Esse movimento também pode ser

invertido. O sincretismo é gerado a partir desta “replicação”, fator latente na

produção do conteúdo das telenovelas brasileiras. Portanto, o sincretismo da

realidade e da ficção é a característica mais marcante nas telenovelas brasileiras,

conferindo-lhe o papel de conteúdo representacional da sociedade.

É a partir da proximidade entre o real e a ficção que emergem diversos

fatores aqui já levantados, como o processo de relação entre identidades,

identificação e projeção, sentimentos de pertença e afeto, condicionando o discurso

das telenovelas em geral o papel de representação social.

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CAPÍTULO II AS NOVAS CONFIGURAÇÕES DA MÍDIA

O primeiro capítulo foi desenvolvido no intuito de compreender o processo

de formação da chamada cultura de massa e como a produção dos meios de

comunicação de massa colabora para a chamada indústria cultural. Pensamos a

maneira como essa produção está ligada ao contexto e à organização da sociedade.

Neste segundo capítulo, continuaremos nossa discussão sobre cultura de

massa, relacionando a produção das mídias e a consolidação da cultura das mídias

ao surgimento de formas de reprodução de imagem e vídeo, e ao advento da

digitalização e a formação da chamada cibercultura.

Quais os elementos que tornaram possíveis essas mudanças? Como as

novas formas de comunicar estão modificando o cenário de produção e consumo

dos bens simbólicos? As novas tecnologias trouxeram mudanças no fazer cultural e

midiático. Velocidade na produção e distribuição, maior disseminação do conteúdo e

democracia a partir da descentralização da produção e emissão são fatores que

marcam a era das mídias digitais.

Abordaremos tais questões no contexto da sociedade contemporânea, em

que vivemos uma intensificação da produção cultural advinda do surgimento das

mídias digitais e da convergência das mídias, principalmente entre a TV e a internet.

2.1Entre a indústria cultural e a cibercultura

No primeiro capítulo, registramos como se configuram as mídias que

fazem parte da chamada indústria cultural, em especial a televisão, um dos pontos

centrais da pesquisa. As mídias tradicionais já bastante exploradas pela indústria

cultural possuem traços que marcam sua produção. Traços que podem ou não

sofrer alterações a partir da convergência entre mídias tradicionais e novas mídias

digitais3.

3 Termos utilizados por Manuel Castells (2012) na obra A sociedade em rede.

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Focando primeiramente nesses traços que marcam as mídias tradicionais,

podemos identificar a predominância de um processo de comunicação de caráter

unilateral. Dessa forma, afirma-se ser uma produção de caráter hegemônico, pois

existe a predominância do órgão midiático comandando a produção e circulação de

mensagens:

Os produtores olham os receptores não como parceiros copresentes num diálogo, mas como espetadores anônimos a quem eles devem agradar, persuadir, entreter e informar, cuja atenção eles podem ganhar ou perder e cuja audiência é a condição sinequa non da existência de suas atividades. Assim como os receptores dependem dos produtores para o conteúdo das representações que eles presenciam quando ligam a televisão, os produtores por sua vez dependem dos receptores e de sua boa vontade para assistir a seus programas e sustentar-lhes audiência. (THOMPSON, 2011, pg. 137)

É inquietante pensar que mesmo existindo essa polarização marcada

entre produtor e receptor, o segundo se sinta tão próximo, tão pertencente àquele

mundo criado pelos produtores. Esse fenômeno só é possível através das

representações sociais concebidas e disseminadas pelos meios de comunicação. É

na construção de certa intimidade que mora a essência da representação do mundo

social pela mídia.

Se existe a polarização entre emissor e receptor, há também uma

interdependência: o emissor precisa do receptor para alcançar popularidade. Não

seria, portanto, uma relação de cumplicidade entre as partes? O receptor tem

consciência do que consome. Elogia, critica, despreza o que não o atrai, mas

possuía – antes da Internet, poucos meios de expressar seus sentimentos e

opiniões em relação ao conteúdo produzido. Seu amor ou seu desprezo é, na

maioria das vezes, calculado em números através da pesquisa de ibope.

Walter Benjamin, teórico da Escola de Frankfurt responsável por apontar

um caminho diferente de Adorno e Horkheimer sobre a arte e a cultura produzida

através de novas técnicas de reprodução, colocou a popularização da cultura no

centro da discussão. Benjamin via surgir uma nova cultura que emergia desse

caráter popular. O que capacitou tal mudança foi à ampliação do acesso ao produto

cultural, que só foi possível através das técnicas de reprodução. A partir daí a arte

foi reajustada, atingindo o patamar de mercadoria. Sendo mercadoria, ela deve

satisfazer o que o consumidor anseia, deseja.

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Com o advento da cultura de massa, portanto, podemos pensar a

sociedade não só pelo que é produzido, mas pelo que é consumido:

Porque a nova sociedade só é pensável a partir da compreensão da nova revolução, a da sociedade de consumo, que liquida a velha revolução operada no âmbito da produção. Daí que nem os nostálgicos da velha ordem, para os quais a democracia de massas é o fim de seus privilégios, nem os revolucionários ainda fixados na ótica da produção da luta de classes entendem verdadeiramente o que está se passando. (MARTIN-BARBERO, 2009, pg. 66)

Para Martin-Barbero, uma nova configuração da sociedade surge a partir

das mudanças culturais, aniquilando os conceitos de arte baseados no antigo

esquema da alta e baixa cultura. A cultura torna-se uma ferramenta simbólica de luta

por reconhecimento, um espaço de conflito e de busca por hegemonia: “Se antes se

situavam fora, como turbas que ameaçavam com sua barbárie a ‘sociedade’, as

massas se encontram agora dentro: dissolvendo o tecido das relações de poder,

erodindo a cultura, desintegrando a velha ordem.” (2009, pg. 53)

Analisando a cultura como o terreno de luta e de busca por

reconhecimento, colocamos as técnicas como ferramentas que ocupam importante

papel no desenvolvimento da chamada indústria cultural. A comunicação de massa

é um campo que depende tanto das técnicas quanto da cultura e da sociedade que

ela representa. Assim, podemos dizer que a cultura e a sociedade é que determinam

a realização da comunicação. É a partir dessa concepção que parte a ideia de

mediação, pertinentemente colocada por Martin-Barbero em seus estudos sobre a

comunicação social.

O surgimento das novas formas de fazer cultura está intrinsecamente

ligado à estrutura social, afinal essa estrutura é que efetivamente dita à usabilidade

dessas novas ferramentas. A produção da informação e entretenimento entra na rota

dessa mutação, contribuindo para a disseminação das práticas culturais e produção

dos chamados bens simbólicos.

Algumas mudanças certamente contribuíram para o surgimento da cultura

de massa e da indústria cultural, como o advento do capitalismo. Juntos, a

sociedade do capital e a indústria cultural promoveram a grande mudança na

produção de cultura, transformando arte em mercadoria.

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Essa transformação só foi possível através da tecnologia: “se

pudéssemos arriscar uma formulação positiva, diríamos que a tecnologia moderna é

a causa necessária e suficiente da cultura de massa.” (Rosemberg apud Martin-

Barbero, 2009, pg. 69) A acessibilidade dos produtos foi ampliada através da

reprodução em massa, gerando um impacto no consumo e promovendo a chamada

sociedade de consumo.

A sociedade de consumo é como podemos definir uma sociedade voltada

à valorização da cultura consumista, denominação dada pelo sociólogo Zigmunt

Bauman. A crítica de Bauman coloca a sociedade como promotora dos bens

produzidos, pois os próprios indivíduos constituintes dessa sociedade já podem ser

considerados mercadoria. Somos o homo consumers, “simultaneamente, o produto

e seus agentes de marketing, os bens e seus vendedores.” (2008, pg. 13) Somos

produtos fabricados pelo mercado, responsáveis pela promoção do desejável, à

medida que levamos em consideração um dos fatores que marcam a sociedade de

consumo de sublimação do desejo transformado em necessidade.

2.1.1 A formação da cibercultura

A cada nova tecnologia surgida, vivemos o impacto diante de sua

funcionalidade. E esse impacto está diretamente ligado ao desenvolvimento da

sociedade e da cultura. Assim foi com a fotografia no século XIX, com o rádio e o

cinema no início do século XX. A televisão foi um grande marco da indústria cultural,

transportando imagem e som aos lares e estreitando assim, os laços entre a

produção e recepção do produto cultural. Marshall Mcluhan toma todas essas

ferramentas tecnológicas como extensões dos homens, extensões de nossos

sentidos mais aguçados, de nossos sentimentos e desejos internos. O pensador

compara nosso fascínio pela tecnologia ao mito grego de Narciso, que ao ter contato

com a extensão de si mesmo, se entorpece diante de seu reflexo:

O que importa neste mito é o fato de que os homens logo se tornam fascinados por qualquer extensão de si mesmos em qualquer material que não seja o deles próprios. Tem havido cínicos que insistem em que os homens se apaixonam profundamente por mulheres que reflitam sua própria imagem. Seja como for, a sabedoria do mito de Narciso de nenhum modo indica que ele se

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tenha enamorado de algo que ele tenha considerado como sua própria pessoa. É claro que seus sentimentos a respeito da imagem refletida teriam sido bem diferentes, soubesse ele que se tratava de uma extensão ou repetição de si mesmo. E não deixa de ser um sintoma bastante significativo das tendências de nossa cultura marcadamente tecnológica e narcótica o fato de havermos interpretado a história de Narciso como um caso de auto amor e como se ele tivesse imaginado que a imagem refletida fosse a sua própria! (2007, pg. 59)

Nessas extensões é que mora esse fascínio que nos torna dependentes a

cada inovação tecnológica. No contexto social e cultural contemporâneo, vivemos

um momento de mudanças rápidas e constantes. Essas mudanças estão, mais uma

vez, ligadas ao surgimento de novas tecnologias que refletem diretamente na forma

de lidar com a cultura e a linguagem. Para Santaella, “não há uma linearidade na

passagem de uma era cultural para a outra, pois elas se sobrepõem, misturam-se,

criando tecidos culturais híbridos e cada vez mais densos.” (2003, pg. 81)

Dessa forma, novas configurações emergem da mistura de velhas e

novas formas de comunicação, interferindo na constituição da cultura e da

sociedade e transformando o processo de mediação, ou seja, o diálogo entre as

peças que integram o desenvolvimento da produção e o consumo dos bens

simbólicos.

Vivemos uma nova revolução no fazer comunicacional. Essa nova era é

resultado de múltiplos fatores: a popularização do computador, o surgimento das

técnicas de digitalização, a mistura entre mídias tradicionais e novas formas de

comunicação, aliados às inovações na área de telecomunicação:

Assim como a prensa manual no século XIV e a fotografia no século XIX exerceram um impacto revolucionário no desenvolvimento das sociedades e culturas modernas, hoje estamos no meio de uma revolução nas mídias e uma virada nas formas de produção, distribuição e comunicação mediadas por computador que deverá trazer conseqüências muito mais profundas do que as anteriores.(SANTAELLA, 2003, pg. 64)

Entre as décadas de 1940 e 1960, os computadores eram grandes

máquinas construídas para centralizar informações de âmbito militar ou acadêmico.

Somente a partir da década de 70 com o surgimento da microinformática é que o

computador começou a evoluir para se tornar o Personal Computer, popularizado na

década de 1990:

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O primeiro microcomputador, o Altair, nasceu em Albuquerque, na Terra do Encantamento, no Novo México, em 1975. (...) Em 1977 aparecem simultaneamente à cultura punk na Inglaterra e o Apple II na garagem dos Steves (Jobs e Woznick). Em 1981, o primeiro PC (personalcomputer) nasce de um modelo da IBM. O surgimento do Apple Macintosh, em 1984, parece ser emblemático da mudança paradigmática que estava ocorrendo nesse momento. (LEMOS, 2010, pg. 104)

Num primeiro momento o PC fez parte dos lares como uma máquina que

servia de auxílio para tarefas simples, detentora de recursos que uma máquina de

escrever ou uma calculadora não possuíam. O grande passo da microinformática é

dado a partir da tecnologia digital. Esse avanço possibilitou a diversificação das

funções do PC, tornando-o uma máquina de produção e armazenamento de

conteúdos digitalizados variados, como fotografias, desenhos, vídeos e som. O

microcomputador proporcionou o encontro das formas de linguagem existentes, e

desse encontro surgiram novas formas de comunicação.

A partir daí foi possível todo o desenvolvimento técnico que vivenciamos

na atualidade. O microcomputador deixou de ser uma ferramenta isolada no

escritório, para enfim fazer parte de vários afazeres do dia-a-dia profissional e

pessoal de nossas vidas. Sua popularização veio carregada por sucessivas

inovações tecnológicas que proporcionaram sua expansão no uso social. O

consumo de tecnologia tornou-se mais que uma necessidade, e sim objetos de

desejo dos vorazes por novidades.

A conexão entre as máquinas deu começou a ser formada ainda em

1969, quando uma rede de computadores foi construída pelo Departamento de

Defesa dos Estados Unidos, denominada ARPANET. Assim começaram as

primeiras investidas para originar a Internet:

Quando é inaugurada a ARPANET, em 1969, existem três Universidades conectadas. Em 1971, já eram 15 pontos, sendo a maioria em centros universitários de pesquisa. Em 1973, Robert Kahn, da ARPA, e VintCerf, da Universidade de Standford, publicam um artigo delineando a arquitetura básica da Internet, no qual afirmavam a necessidade de protocolos padronizados para constituir redes de computadores. Ainda em 1973, em um seminário realizado em Standford, comandado pelo próprio Cerf, em conjunto com Gerard Lelann e Robert Metcalfe, apresentou um projeto de protocolo de controle de transmissão TCP, o qual, em 1978, foi dividido em duas partes, acrescentando um protocolo intrarrede (IP), o que gerou

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o protocolo TCP/IP, o padrão segundo o qual a Internet opera até os nosso dias. (BRITTO, 2009, pg. 132)

A cibercultura nascera do envolvimento entre tecnologia, cultura e

sociedade, transformando nossas relações e fazendo emergir novas formas de

comunicação e de produção cultural. Essa nova configuração cultural se manifesta

no chamado ciberespaço, ambiente gerado pela conexão das máquinas,

promovendo a diluição de fronteiras, a ligação e hidridização de diferentes culturas:

A cibercultura vai se caracterizar pela formação de uma sociedade estruturada através de uma conectividade telemática generalizada, ampliando o potencial comunicativo, proporcionando a troca de informações sob as mais diversas formas, fomentando agregações sociais. O ciberespaço cria um mundo operante, interligado por ícones, portais, sítios e home pages, permitindo colocar o poder de emissão nas mãos de uma cultura jovem, tribal, gregária, que vai produzir informação, agregar ruídos e colagens, jogar excesso ao sistema. (LEMOS, 2010, pg. 87)

Enfim, estamos enfrentando uma era de importantes mudanças no

cenário da produção cultural contemporânea, marcada por novas formas de

informação e entretenimento.

Em que medida o surgimento da Internet contribui para a pulverização da

polaridade entre emissor e receptor no processo de comunicação? Será que

podemos pensar numa democratização da comunicação? Para Levy, o caráter

hierárquico e hegemônico do discurso unidirecional presente nas mídias tradicionais

é diluído entre as duas partes envolvidas, surgindo assim uma horizontalidade de

caráter democrático permeando as relações mediadas pelas mídias digitais:

Os fluxos de atenção são agora infinitamente mais numerosos, móveis e livres que na época em que o horizonte era limitado pelo que se via no campanário local, quando os mercados eram fechados, as educações eram locais e as mídias, unidirecionais. (LEVY, 2004, p. 179)

Pierre Lévy acredita que o ciberespaço proporciona a expressividade livre

e a partir dela podemos escutar o que as pessoas realmente querem dizer, pois

esse novo ambiente anula a polaridade emissão/recepção. Todos podem exercer os

papéis que cabem à sua vontade. O teórico das novas mídias ressalta que a diluição

de fronteiras e a velocidade e liberdade do fazer comunicacional elevarão a

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sociedade a uma espécie de unificação de pensamentos e a formação de uma

inteligência coletiva:

Materializada por fluxos de visita nas páginas da web e taxas de participação nas comunidades virtuais, a atenção coletiva sobe, desce, desloca-se, divide-se em milhões de canais e correntes largamente distribuídas no espaço virtual de significações de uma humanidade em via de unificação. (2004, pg. 179)

De fato, a internet proporciona a abertura de novos canais de expressão

de indivíduos e comunidades que antes de seu surgimento não tinham condições de

manifestação em outras mídias. Porém, a visão de Lévy sobre unificação não é

coerente se pensarmos que estamos analisando um espaço que dá vazão a todo e

qualquer tipo de manifestação. Pelo fato do ciberespaço ser aberto e dar

oportunidade para todos se expressarem, as diferenças poderão ser mais

acentuadas entre os grupos, gerando uma diversidade ainda maior de ideias.

A unificação dá a noção de uniformização, tornando-os todos nós

semelhantes uns aos outros. O ciberespaço não unifica, mas une os semelhantes

sem anular as diferenças. Esse movimento pode gerar coletivos mais complexos,

fortalecendo a diversidade de identidades e o sentimento de pertença a determinado

grupo. Indivíduos que no seu ambiente físico podem não se identificar com outros

semelhantes têm a oportunidade de usufruir do sentimento de pertença fora de seu

espaço geográfico, conectando-se aos semelhantes em prol de interesses em

comum:

Toda cultura parte da identidade/diferença para se constituir. Se realizarmos uma análise histórica, verificaremos que a cultura identitária tão marcada por Pierre Lévy foi, na prática, a única existente, com suas qualidades e limitações. A identidade de grupo, classe nação foi responsável pela coesão e pelo desenvolvimento da sociedade até os dias atuais. (BRITTO, 2009, pg. 159)

Portanto, devemos ter cautela para profetizar certos fenômenos voltados

ao mundo virtual. Estamos em constante processo de modificação das estruturas

sociais e todo o estudo das novas mídias ainda é recente. Devemos ressaltar as

mudanças que já acometeram a sociedade contemporânea, pensando como tais

mudanças podem alterar a estrutura social no futuro não de uma forma unilateral,

engessada, mas considerando que nunca estivemos tão abertos e vulneráveis às

novas tecnologias.

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2.1.2 Comunicação no ciberespaço e suas características gerais

Diversas teorias sobre as novas mídias estabelecem características que

dão forma à comunicação através do ciberespaço. Iremos aqui registrar alguns

pontos que julgamos serem principais desse novo espaço que diretamente influencia

a cultura e a sociedade.

A primeira característica seria a questão do tempo no ciberespaço. A

comunicação é feita em tempo real. O tempo do virtual se aproxima do tempo do

real. Nenhum acontecimento passa despercebido, sendo instantaneamente

registrado pelos sites de notícia e pelos usuários das chamadas redes sociais, como

o twitter e o facebook. A velocidade da comunicação foi infinitamente multiplicada

com o uso das mídias sitiadas no ciberespaço.

De acordo com Santaella, não só a velocidade do tempo foi alterada,

como também a linearidade desse tempo foi quebrada:

Qualquer coisa armazenada em forma digital pode ser acessada em qualquer tempo e em qualquer ordem. A não linearidade é uma propriedade do mundo digital. Nele não há começo, meio ou fim. Quando concebidas em forma digital, as ideias tomam formas não lineares. (2003, pg. 94)

No Brasil, o mês de janeiro de 2013 foi marcado por uma tragédia em

Santa Maria, município do Rio Grande do Sul. Um incêndio matou mais de 200

jovens numa boate conhecida na cidade. Uma das funcionárias, ao avistar o início

do incêndio usou o facebook para pedir socorro.

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Figura 1: reportagem do Estadão que mostra o pedido de socorro de funcionária no Facebook Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,-mulher-pediu-socorro-pelo-facebook-incendio-na-kiss-

,989558,0.htm

A segunda característica está voltada à questão do espaço. O

ciberespaço é marcado pela formação de um ambiente desterritorializado, porém

conectado ao real geograficamente delineado. O ciberespaço aproxima o que antes

era distante, proporcionando a interação dos usuários.

Esse novo espaço aberto e infinito propicia a horizontalidade dos

discursos. Acostumados aos meios de comunicação de massa tradicionais,

dominados por discursos de cima para baixo, o ciberespaço e suas novas formas de

comunicação possibilitam a diversificação do discurso, descentralizando a

comunicação:

Os novos media permitem a comunicação individualizada, personalizada e bidirecional, em tempo real. Isso vem causando mudanças estruturais na produção e distribuição da informação, tanto em jornais, televisões, rádios e revistas quanto no setor de entretenimento como o cinema e a musica. A tecnologia digital proporciona, assim, uma dupla ruptura: no modo de conceber a informação (produção por processos microeletrônicos) e no modo de difundir as informações (modelo Todos-Todos). (LEMOS, 2010, pg: 79)

O trecho de André Lemos leva-nos a mais uma característica do

ciberespaço, a hibridização das formas de linguagem, o que leva à convergência das

mídias, questão que preservaremos para discussão mais à frente.

Tais características apontadas acima são extremamente positivas do

ponto de vista das relações sociais, último assunto fundamental para a análise do

ciberespaço. Afinal a usabilidade dessas ferramentas, isto é, o sentido que se dá a

elas acabam sendo determinados pela sociedade.

A sociabilidade nesse novo ambiente apresenta traços semelhantes aos

da interação face a face, apesar do ciberespaço ser constantemente apontado como

uma espécie de vilão capaz de banalizar as relações.

Antes de pensarmos nessa tendência à superficialidade das relações

sociais, precisamos ressaltar que o ciberespaço propicia uma maior diversificação

dessas relações, além de facilitar a comunicação entre os geograficamente

distantes.

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Essa diversificação está ligada à abrangência e ao alcance das relações.

Estamos mais próximos de quem está distante, e podemos nos comunicar com um

número maior e mais diverso de pessoas pertencentes a grupos e culturas

diferentes.

As redes sociais dispõem de um papel importante nessas relações. A

dinâmica da comunicação nesses novos espaços de socialização quebra os limites

geográficos, construindo assim comunidades virtuais definidas por sentimentos de

afinidade e cumplicidade.

Um caso acontecido no ano de 2012 é um exemplo dessa característica.

Ao se sentir lesada pelo descuido da escola pública onde estudava, no estado de

Santa Catarina, a jovem Isadora Faber criou a página Diário de Classe no Facebook.

A aluna denunciava através de fotos e relato, a situação em que se

encontrava a escola. Criticada e ameaçada por pessoas da sua própria comunidade

– corpo docente, alunos e corpo administrativo, a estudante encontrou na rede o

apoio de milhares de cidadãos, entre eles muitos jovens que resolveram também

denunciar o estado de suas escolas públicas. O caso teve repercussão nacional,

com cobertura de outros meios de comunicação e a sua história se tornará livro,

onde a escritora contará detalhes sobre o surgimento da fan page.

Figura 2: reportagem do portal UOL sobre a página do Facebook, Diário de Classe Fonte: http://educacao.uol.com.br/noticias/2012/08/27/estudante-de-13-anos-de-sc-cria-pagina-no-

facebook-para-relatar-problemas-da-escola.htm

Portanto, é válido ressaltar que no mundo contemporâneo, a internet se

enquadra como o meio de comunicação mais democrático, podendo ser

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amplamente explorado por seus usuários. Porém ela não está imune a

características já conhecidas dos meios de comunicação que a precederam, como

veremos a seguir.

2.1.3 Cultura do espetáculo e ciberespaço

Tecnicamente, a Internet não está nas mãos de poucos privilegiados que

detém o poder da produção de informação. A interatividade própria da comunicação

digital favorece a democratização da produção e do consumo, mas não significa que

estejamos imunes às influências de instituições detentoras do controle do poder

simbólico.

Para Kellner, o espetáculo invade todas as esferas da vida social, política,

econômica e cultural: “Cada vez mais a cultura do espetáculo está se movendo para

os novos domínios do ciberespaço, o que ajudará a criar futuros espetáculos

multimídias e sociedades ligadas em rede de infoentretenimentos.” (2006, p. 134)

Assim, o espetáculo e suas nuances não estão presentes somente nas mídias

tradicionais. Assim como a TV e o cinema, a Internet também apresenta traços da

cultura de mercantilização das imagens e dos bens simbólicos produzidos pelos

meios de comunicação de massa:

A passagem da sociedade do espetáculo para a sociedade de simulação corresponde à passagem gradual de tecnologias de representação analógicas – os media clássicos, para os novos media digitais. Se a sociedade do espetáculo manipulou as representações massivas do real (a televisão, o cinema, o rádio), a cibercultura parece crescer sob a manipulação dos ícones da sociedade do espetáculo (samplings, colagens digitais, hacking, apropriações, etc.). Não sendo mais representação, a cibercultura, pela simulação, é uma manipulação das representações do mundo criadas pela sociedade do espetáculo. A simulação digital manipula o espetáculo analógico. (LEMOS, 2010, pg. 258)

O espetáculo tomou conta de tudo e de todos, substituindo o mundo real

pela valorização da cópia. A cibercultura, ao absorver tais características,

problematiza o espetáculo. A sociedade do espetáculo torna-se a sociedade da

simulação, onde tudo é irreal e tecnicamente controlado.

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De acordo com Ekecrantz, “a nova mídia globalizada (...) pode servir

como uma condição para uma democracia verdadeiramente cosmopolita, e a nova

mídia interativa nos dá esperanças de uma democracia realmente participativa.”

(2006, p. 96) Não podemos caracterizar a internet como um veículo de comunicação

libertador de todas as amarras de dominação, mas sim considerar que inúmeros

papéis podem ser exercidos por seus usuários, que são responsáveis por grande

parte do conteúdo produzido e divulgado no ciberespaço. Dessa forma, é necessário

entender a usabilidade dessas novas ferramentas na informação e manifestação de

ideais que fogem às convenções dos grupos dominantes.

Através da internet o usuário tem o poder de cumprir duas tarefas, tanto a

de espectador como a de produtor de informação. Para Pierre Musso, a internet

promove “a igualdade de todos os membros do ciberespaço e dos internautas

conectados, em igualdade com os grandes grupos, unidos na fraternidade das

comunidades virtuais.” (2008, p. 205) Não considero dessa maneira tão positiva o

papel da internet na sociedade, pelo menos no Brasil. Ainda existem muita

desigualdade e exclusão digital, apesar do numero crescente de usuários no país,

mas este é assunto para o próximo tópico.

Todavia, é preciso considerar de que forma a internet está sendo usada

por quem já faz uso dela no dia-a-dia. É possível encontrar milhares de

comunidades virtuais construídas para manifestação de discursos que incitam o

preconceito, por exemplo. Um acontecimento dessa natureza foram os ataques

virtuais feitos contra nordestinos através do Twiiter, após a vitória de Dilma Roussef

na campanha presidencial de 2010. A rede social funcionou como veículo para

jovens paulistas e cariocas insultarem a população nordestina, culpando-os de terem

elegido uma pessoa despreparada para exercer o cargo de Presidente da República.

A estudante Mayara Petruso “tuitou”: “AFUNDA BRASIL. Deem direito de voto pros

nordestinos e afundem o país de quem trabalhava para sustentar os vagabundos

que fazem filho pra ganhar o bolsa171.”

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Figura 3: reportagem sobre condenação da estudante que incitou a violência contra nordestinos no Twitter Fonte: http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/estudante-que-pediu-para-matar-nordestinos-e-condenada

Devido a essa infinita liberdade de uso proporcionada pelas mídias

digitais, cresce cada vez mais o número de processos ligados a crimes cometidos

através da internet, como o evento citado acima. Os artefatos digitais, como

fotografias e vídeos pessoais, são utilizados para denegrir a imagem de um

indivíduo, através da exposição desses materiais na rede de computadores. Dessa

forma, esses grupos podem se manifestar livremente na rede, ultrapassando suas

fronteiras locais, os limites geográficos de sua comunidade.

Para alguns autores, no mundo paralelo criado pelo ciberespaço não

existe centro, não existe periferia. Os movimentos sociais, as vozes antes abafadas

pelos meios de comunicação de massa, encontram na nova cultura digital um

caminho para ecoar suas vozes.

Tal liberdade concedida pela internet proporciona aos seus usuários um

caminho aberto para se fizer reconhecer seus ideais, suas práticas sociais e suas

necessidades perante a sociedade dominante. A transnacionalização do discurso

também propicia a criação de grupos ao redor do globo que comungam dos mesmos

ideais e dessa forma, proporciona a troca de experiências entre grupos

semelhantes, o que pode ser denominado de coletivo em rede:

Coletivo em rede refere-se a conexões numa primeira instância comunicacional, instrumentalizada através de redes técnicas, de vários atores ou organizações, que visam difundir informações, buscar apoios solidários, ou mesmo, estabelecer estratégias de ação conjuntas, como são, por exemplo, os links e conexões que ONGs promovem entre si ou com outros atores políticos relevantes, através

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da internet ou de outras formas de mídia alternativa. (SCHERER-WARREN, 2006, p. 216)

O coletivo em rede permite a aproximação de comunidades e a união

virtual, promovendo assim, o fortalecimento de suas ideologias e estabelecendo uma

“relação dialógica (...) entre o local e o global, entre o individual e o coletivo”.

(SCHERER-WARREN, 2006, p. 217) O surgimento da internet proporciona ao

indivíduo desempenhar seu papel de sujeito.

Mas será que podemos pensar realmente num mundo paralelo sem

centro e sem periferia, onde a horizontalização foi implantada e as hierarquias

disseminadas? A cibercultura surgiu como uma nova cultura ou ela emerge de uma

cultura já existente, promovendo modificações da cultura anterior?

É notável a hibridização de formas de linguagem e de mídias no

ciberespaço. Não existe, portanto, uma nova cultura, mas sim mudanças na cultura

já existente, geradas por novas formas de comunicação e de desenvolvimento da

arte. Dessa forma, não podemos negar a influência direta da indústria cultura na

cibercultura.

O movimento cibercultural está em constante mudança, porém nesse

momento já conseguimos perceber alguns traços que marcam a produção de seu

conteúdo. Um dos traços é a convergência das mídias. Como foi dito anteriormente,

vemos uma ligação de características de meios de comunicação distintos no

ciberespaço. E um dos pontos que marca a cultura da mídia, sem dúvida, é o

espetáculo. Dessa forma, é inevitável que o espetáculo também se destaque na

produção voltada para a internet:

Para Debord, o espetáculo constitui um conceito abrangente para descrever a mídia e a sociedade de consumo, incluindo produção, promoção, exibição de mercadorias e produção, e seus efeitos. Usando o termo ‘espetáculo’, eu foco principalmente nas diversas formas de produções construídas tecnologicamente que são produzidas e disseminadas através da assim chamada mídia de massa, indo do rádio e televisão à Internet e às mais recentes engenhocas wireless. (KELLNER, 2006, pg. 121)

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Sob a influência da cultura das mídias, o espetáculo perpassa a produção

multimidiática. Ao tomarmos consciência de que as formas de comunicação estão

convergindo, incluímos nessa convergência as características inerentes a todos

esses processos de produção e de consumo. Assim, o espetáculo não desaparece,

mas se transforma a partir das novas formas de produção e suas hibridizações.

Umas das transformações podemos definir como a espetacularização do

“eu”, composta pelo crescente acesso às novas formas de comunicação somada à

diluição de fronteiras entre o público e o privado. Vemos a intimidade cada vez mais

exposta nas redes sociais, seja através de textos ou imagens, e uma dessas novas

formas de comunicação é o blog, como veremos a seguir.

2.1.4 Sobre o gênero blog e a exposição da intimidade

Ao discutirmos os elementos que compõem a cibercultura, precisamos

colocar em pauta características que fazem parte da cultura e sociedade como um

todo, afinal a cibercultura é moldada pelos usuários das novas formas de

comunicação imersas no ciberespaço, ou seja, a mesma sociedade da qual todos

nós fazemos parte.

Uma dessas novas formas de comunicação imersas no ciberespaço foi

batizada de blog. A palavra originada do termo “weblog” significa “diário na web”

(JENKINS, 2009, pg. 295). Segundo Jenkins (2009), os primeiros blogs surgiram

como uma forma de convergência alternativa. Os diários virtuais eram criados pelos

internautas a fim de continuar discussões levantadas pelos veículos de comunicação

de massa.

De um modo geral, podemos definir que o fator responsável pela

popularização do gênero blog foi à liberdade dada às pessoas que não faziam parte

da produção do conteúdo de massa poderem colocar suas próprias opiniões em

pauta, concordando ou contestando informações divulgadas pelas mídias

tradicionais.

A prática foi se diversificando entre temas e objetivos distintos. Os blogs

podem ser de ordem pessoal, como os antigos diários de papel usados para

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registrar memórias, porém nesse caso o diário é compartilhado, quebrando a

barreira do privado. Outros blogs são de ordem profissional, usados para tratar de

temas específicos, como política, economia, saúde e moda – este último assunto

atualmente bastante explorado através do estilo de blog de “looks do dia”.

No entanto, mesmo com a diversidade de estilos de blog, duas

características marcam o gênero: a narrativa em primeira pessoa e os textos

arquivados em ordem cronológica. Os diários virtuais são baseados em relatos de

experiências e opiniões pessoais de quem os criaram, um canal de divulgação de

opiniões marcadamente individuais, porém que buscam o compartilhamento dessas

opiniões dentro do ciberespaço.

Pensando especificamente em blogs criados como extensão dos diários

íntimos, isto é, basicamente desenvolvidos para o relato de experiências de vida

pessoais, podemos perceber que tais diários são produtos essencialmente

constituídos pelas características da sociedade contemporânea, uma sociedade

marcada pela busca de visibilidade:

Os diários íntimos blogueiros se destinam aos leitores conectados à Internet, se mostrando abertamente ao mundo inteiro, enquanto os diários tradicionais são preservados no segredo da intimidade individual, tendo como destinatário o próprio autor. Além disso, os diários blogueiros se inserem na dinâmica dos indivíduos contemporâneos e são caracterizados como continuidade de uma tendência inaugurada com os reality shows, a da auto exposição de pessoas comuns nos meios de comunicação. Já os diários íntimos escritos no papel são práticas que se inserem na constituição do indivíduo moderno. (GONÇALVES, 2011, PG. 68) 4

Portanto, visto que o exercício de blogar é uma das formas de

compartilhamento da individualidade, ele é uma ferramenta de espetacularização do

“eu”, prática cada vez mais presente numa sociedade acostumada ao culto das

imagens e a valorização da fama. Ali no blog o autor expõe sua vida, suas

experiências, construindo um personagem de si mesmo:

A presença cada vez mais pregnante dessas narrativas na sociedade contemporânea está vinculada, sem dúvida, a certa “fome de vidas reais” que vigora no mundo atual. Os relatos desse tipo recebem cada vez mais atenção da mídia e do público, conquistando um

4 Disponível em: http://www.ufsj.edu.br/portal2-

repositorio/File/mestletras/DISSERTACOES_2/conteudos_culturais_na_cibercultura.pdf

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terreno antes ocupado de maneira hegemônica pelas histórias fictícias. (SIBILIA, 2004, pg. 5) 5

De acordo com Sibilia, a recorrência pela verossimilhança é uma prática

antiga e muito utilizada pelos romances e outras narrativas no intuito de garantir

maior veracidade ao que foi narrado. No caso dos diários de papel, tratamos

efetivamente de um conteúdo baseado na realidade, no relato da vida do autor.

Diante dos novos formatos de diário virtuais, há de se levar em consideração a

relatividade do conteúdo, a partir de objetivos distintos, ou seja, qual a real intenção

do autor? Trata-se realmente de fatos reais, trazidos da vida de quem relata?

São perguntas difíceis de serem respondidas devido a essa diversidade

de conteúdo abarcado no ciberespaço. No entanto, é importante ressaltar que o

gênero blog é originário do gênero diário, determinado pelo seu caráter verídico.

E quando esse gênero é ocupado por conteúdo ficcional, como no caso

do blog Sonhos de Luciana? Como se dá a relação entre narrador e leitor ao nos

depararmos com um conteúdo da ficção depositado num gênero marcado pela

realidade? Discutiremos essa questão no terceiro capítulo.

2.2 A convergência das mídias

As novas tecnologias fizeram surgir um processo de transformações,

tanto na produção quanto no consumo do conteúdo desenvolvido pelos meios de

comunicação. Uma das transformações que marca esse processo é a convergência

das mídias, um processo em pleno desenvolvimento e de certa forma ainda muito

recente.

A convergência das mídias é mais do que apenas uma mudança tecnológica. A convergência altera a relação entre tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros e públicos. A convergência altera a lógica pela qual a indústria midiática opera e pela qual os consumidores processam a notícia e o entretenimento. Lembrem-se disso: a convergência refere-se a um processo, não a um ponto final. (JENKINS, 2009, pg. 43)

5 Disponível em:

http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/7718549341726633903816528889088811107.pdf

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A convergência é um fenômeno que se intensificou na última década, e

dificilmente podemos prever até que ponto as mídias serão transformadas. Como

Jenkins afirma acima, não podemos colocar um ponto final no processo, e

provavelmente não será colocado. As mudanças tecnológicas são recorrentes num

mundo digital cada vez mais sedento por novidades.

Assim, cada inovação traz consigo uma reticência no processo de

convergência das mídias e uma complexidade social ainda maior para o

entendimento das relações entre homem e tecnologia. Por esse motivo não temos o

objetivo de estipular diagnósticos precisos.

Para Martin-Barbero, estamos tratando de “formas mestiças de mídia” 6, à

medida que as novas tecnologias rompem barreiras de tempo e espaço, somos

habilitados a compartilhar culturas e linguagens diversas. Essa mestiçagem rompe

de vez com as forças que ainda insistem em separar a “alta e a baixa cultura” 7:

Como disse Manuel Castells, o computador acabou com a separação dos dois lados do cérebro: o lado da razão, da argumentação, e o lado da paixão, da imaginação, que agora estão juntos. A imaginação não é mais um poder dos poetas e dos artistas. Então, viso às novas tecnologias enquanto permitem uma apropriação que, por sua vez, permitem a hibridação, a mestiçagem das culturas cotidianas da maioria com o que era a cultura da pequena elite que tinha a escritura. (MARTIN-BARBERO, 2009, pg. 15) 8

Contudo, a diversificação de formas de comunicar trouxe uma

complexidade maior para o entendimento da convergência das mídias. Essa é uma

característica já existente nas mídias mais antigas. A televisão, por exemplo, é a

convergência de linguagens do rádio, do cinema e da mídia impressa. Porém com a

amplitude oferecida pela internet o processo tornou-se mais complexo. A agilidade

das mudanças é cada vez maior, assim como a ampliação da produção gerada é

impossível de contabilizar.

6 Termo usado por Jesús Martín-Barbero, em entrevista cedida à revista de pesquisa da FAPESP, edição de

setembro de 2009. 7 Ver EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. São Paulo: UNESP, 2005.

8 Trecho da entrevista cedida à revista de pesquisa da FAPESP, edição de setembro de 2009.

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2.2.1 A narrativa transmídia e a convergência de plataformas de comunicação distintas

Vamos descrever algumas mudanças que já foram notadas e como a

sociedade está inserida nesse processo. Um dos fatores que podemos perceber é a

absorção de certas características pertencentes a paradigmas comunicacionais

distintos. Vamos partir do paradigma da televisão, marcado por características

intrínsecas a determinados produtos, como a telenovela baseada na expressão do

sincretismo da realidade e da ficção. Essa característica tão presente nas

telenovelas brasileiras já faz parte da produção de conteúdos da cibercultura. O

diário virtual “Sonhos de Luciana”, por exemplo, apresenta essa característica. E

além de haver o sincretismo entre real e ficção, também oferece a interação entre os

responsáveis pela produção e transmissão do programa e o telespectador.

Outros materiais de caráter interativo são produzidos pelos próprios

usuários da rede. Inspirados em livros, histórias em quadrinhos e séries de TV, os

fãs produzem suas próprias histórias, as chamadas fan fictions .

Esse novo gênero textual é caracterizado pela extensão de uma narrativa

proveniente dos próprios consumidores de uma história. Pode ser um livro, um

seriado ou um filme. Os leitores ou espectadores de determinada história criam

novos rumos para o que foi produzido pela indústria cultural, e compartilham suas

criações com outros fãs do mesmo produto, ou seja, uma cultura gerada pelos fãs.

Através da reunião desses fãs pela internet, o grupo discute o roteiro, especula

sobre o futuro de personagens e criam suas histórias paralelas. Esse envolvimento

do espectador pode ser enriquecedor para a produção do conteúdo primário,

produzido pela indústria cultural.

A operação de produção tem a participação direta do público. As mídias

tradicionais estão atentas aos movimentos de manifestação nas novas mídias, aos

comentários que surgem sobre a produção de determinado material televisivo.

Esse é mais um ponto evidente de transformação gerada pela internet: as

interações entre produtores e consumidores vêm reconfigurando à relação entre a

indústria midiática e o consumidor do infoentretenimento. Castells descreve a

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revolução causada pelas novas tecnologias e como essa revolução tem modificado

a produção da informação:

As novas tecnologias da informação não são simplesmente ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos. Usuários e criadores podem tornar-se a mesma coisa. Dessa forma, os usuários podem assumir o controle da tecnologia como no caso da Internet. (...) Há, por conseguinte, uma relação muito próxima entre os processos sociais de criação e manipulação de símbolos (a cultura da sociedade) e a capacidade de produzir e distribuir bens e serviços (as forças produtivas). Pela primeira vez na história, a mente humana é uma força direta de produção, não apenas um elemento decisivo no sistema produtivo. (2012, pg. 69)

Ainda que possamos enxergar as mudanças já realizadas, Castells

salienta no trecho como o ciclo ainda não está fechado, ou seja, estamos em

processo de desenvolvimento da aplicabilidade de todas as novas formas de

comunicação já acessíveis graças à Internet.

Algumas teorias sobre a revolução comunicacional causada pelo boom da

internet aplicam o termo “cultura participativa” para definir o cenário da produção de

cultura atual. Um cenário onde impera o fazer coletivo, uma nova maneira de

desenvolver materiais que representam a sociedade contemporânea.

A interatividade estabelece uma relação de aproximação entre os pólos

de produção e consumo. Essa aproximação acaba provocando um envolvimento

cada vez mais intenso entre as duas partes. O produtor deve valorizar o que o

consumidor expressa na rede, absorvendo das manifestações os desejos

declarados. Esse envolvimento reforçado pela aproximação pode gerar um

sentimento de afeto na relação entre o conteúdo e o consumidor:

Produtores de mídia e anunciantes falam hoje de “capital emocional” ou “lovemarks”, referindo-se à importância do envolvimento e da participação do público em conteúdos de mídia. Roteiristas e outros criadores pensam na narrativa, hoje, em termos da criação de oportunidades para a participação do consumidor. Ao mesmo tempo, os consumidores estão utilizando novas tecnologias midiáticas para se envolverem com o conteúdo dos velhos meios de comunicação, encarando a Internet como veículo para ações coletivas – solução de problemas deliberação pública e criatividade alternativa. (JENKINS, 2009, pg. 235)

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Portanto, vemos surgir não somente uma cultura participativa como

também o marketing participativo. Um novo formato de produção é semeado no

mercado. A participação do consumidor não seria algo aleatório para as empresas,

mas sim um acontecimento preponderante. As mídias tradicionais encaram o público

como co-produtores do processo de construção de seu conteúdo. O consumo do

que é criado pela televisão têm agora a resposta imediata do consumidor, que

demonstra através da rede a aprovação ou repúdio ao conteúdo difundido.

Os usuários da rede não só se posicionam perante o que foi veiculado,

como também cobram posicionamento dos veículos de comunicação tradicionais em

assuntos não divulgados. A emissora Rede Globo já foi alvo de críticas nas redes

sociais, sendo considerada omissa em assuntos vistos pelos internautas como

relevantes e que mereciam destaque nos noticiários. Outra prática que têm se

tornado freqüente é a produção e divulgação de vídeos no Youtube que desmentem

reportagens veiculadas pela emissora. Um exemplo é o vídeo intitulado

“Desmascarando o governador: a Tv mente, o povo desmente.” O material é uma

mescla de vídeos feitos em uma manifestação no Rio de Janeiro, produzido para

contestar informações dadas no noticiário da Rede Globo.

Figura 4: vídeo “Desmascarando o governador: a TV mente, o povo desmente” Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=8IqBK910f0I

Diante desse intercâmbio provocado pelas novas formas de comunicação

digitais, as narrativas criadas pelos roteiristas e produtores de TV contam com a

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mediação do espectador. A chamada narrativa transmídia é o que podemos definir

como uma extensão do conteúdo, a priori desenvolvido para uma determinada

mídia, que foi sendo absorvido por outra:

A narrativa transmídia refere-se a uma nova estética que surgiu em resposta à convergência das mídias – uma estética que faz novas exigências aos consumidores e depende da participação ativa de comunidades de conhecimento. A narrativa transmídia é a arte da criação de um universo. Para viver uma experiência plena num universo ficcional, os consumidores devem assumir o papel de caçadores e coletores, perseguindo pedaços da história pelo diferentes canais, comparando suas observações com as de outros fãs, em grupos de discussão on-line, e colaborando para assegurar que todos os que investiram tempo e energia tenham uma experiência de entretenimento mais rica. (JENKINS, 2009, p. 49)

A narrativa transmídia possibilita a replicação do conteúdo ficcional em

diversos formatos. Essa é uma boa estratégia para evitar o desgaste do conteúdo, o

que pode acontecer com mais facilidade quando ele é explorado de uma só maneira.

Embora saibamos que um assunto pode se desgastar rapidamente

quando explorado de forma exacerbada pela mídia, os variados veículos possibilitam

novas modelagens para uma única idéia, e ainda contam com a participação do

público. A crítica do consumidor, quando bem administrada pelo produtor, também

pode tornar-se numa boa ferramenta que evita o desgaste do conteúdo, pois os

materiais ganham novas formas ao longo da sua “vida midiática”.

2.3 TV e Internet em narrativas transmídia

Temos vários exemplos de produções que se estenderam para além de

seu formato primário. Vamos nos focar aqui em casos transmidiáticos que envolvem

a convergência entre TV e internet.

A convergência entre as duas mídias basicamente deu-se de duas

maneiras. A primeira, causada pela própria mídia criadora do conteúdo e que a

expandiu para a internet, como o blog Sonhos de Luciana. A outra maneira é

chamada por Jenkins de convergência alternativa, quando a extensão do conteúdo

para a rede partiu do espectador, e não do produtor.

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No primeiro caso, a própria indústria da televisão percebeu a importância

de estar inserida nas novas mídias. No site da Globo, por exemplo, o internauta tem

acesso a notícias, páginas sobre os programas da grade de programação, vídeos

que já foram exibidos na TV e ainda o portal Globo Marcas, onde o espectador pode

comprar uma infinidade de mercadorias, desde DVD’s, produtos licenciados e

usados por apresentadores e personagens das novelas.

Nas páginas das telenovelas dentro do portal globo.com, o telespectador

pode assistir capítulos que já foram ao ar, assim como ter prévias sobre a história.

Também é disponibilizado um link de relacionamento “fale com a direção”. Mas um

dos recursos usados por alguns autores é inserir um personagem que possui um

blog que fica disponível na rede para que os internautas possam acessá-lo.

O primeiro personagem de telenovela no horário nobre da Rede Globo e

que possuía um blog foi o Indra, de Caminho das Índias. A novela foi ao ar entre

janeiro e setembro de 2009. O personagem do ator André Arteche era um

adolescente de origem indiana e que vivia as angústias de um jovem inserido em

uma cultura diferente da imposta pela família, de costumes indianos. O personagem

não estava entre os principais, porém teve bastante destaque dentro da trama.

A diretora Glória Perez usou o mesmo recurso na novela Salve Jorge,

onde o personagem Sidney, um garoto morador do Complexo do Alemão, possui um

blog. Intitulado “Comunidade Mundo”, o link do blog está localizado dentro da página

da novela, no portal globo.com. Abaixo, uma das publicações de Sidney, veiculada

em 25 de dezembro de 2012. Na postagem, ele pede ajuda para encontrar um

garoto desaparecido. Esse garoto, morado do complexo, é filho da protagonista da

novela, a personagem Morena.

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Figura 5: blog do personagem Sidney, da novela Salve Jorge Fonte: http://tvg.globo.com/novelas/salve-jorge/especial-blog/comunidade-mundo/1.html

O exemplo acima é mais um caso onde percebemos o sincretismo entre o

real e a ficção invadindo as plataformas de comunicação ligadas à internet. Essa

característica será descrita com mais detalhes na próxima sessão.

As chamadas mídias sociais, como o facebook, também são usadas para

divulgar o conteúdo televisivo. As fan pages de novelas e programas da Rede Globo

chegam a atingir um número considerável de seguidores, como o caso da página da

novela Avenida Brasil (2012). Pela fan page o internauta que acompanha a novela

na TV tem a chance de comentar sobre a trama e compartilhar o conteúdo veiculado

pela emissora.

O recurso da fan page tem sido usado por todas as telenovelas, gerando

uma relação direta entre produção e consumo, até mesmo antes do material ser

veiculado na TV. Os escritores das telenovelas tem usado as redes sociais para

divulgar o elenco escalado para a próxima trama e apresentar prévias da história

ainda em fase de construção. Dessa forma, eles conseguem um feedback dos

telespectadores, que deixam comentários sobre o que acharam dos atores

escolhidos para os papéis e suas opiniões sobre a história.

Outras fan pages alternativas surgem, criadas por fãs de determinada

trama ou de um personagem em destaque. Um dos últimos personagens de enorme

repercussão foi a Carminha, antagonista de Avenida Brasil. A personagem de

Adriana Esteves ganhou várias fan pages no Facebook, em destaque a “Carminha

Perturbada”, com mais de 100 mil seguidores. Um fato interessante é que as fan

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pages permanevem ativas mesmo com o fim da novela. Elas continuam tendo

repercussão na rede, com atualizações diárias.

Outra fan page alternativa que se destacou foi a do antagonista Félix, de

Amo à Vida (2013). O webdesigner Maicon Andrade criou a página no segundo dia

de exibição da novela. Em duas semanas de existência já contabilizava 110 mil

seguidores.

Figura 6: reportagem sobre os perfis falsos do personagem Félix, da novela Amor á Vida Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,perfis-falsos-e-comicos-do-vilao-felix-viram-

hit,1037433,0.htm

Esse material alternativo pode ser classificado como fan fiction.

Analisados pela TV, essa produção alternativa auxilia no processo de construção da

história, pois através do que é produzido pelo fã, o produtor da TV pode perceber o

que os telespectadores esperam dos personagens.

2.3.1 A interação a partir da convergência das mídias

As novas formas de produção ligadas ao ciberespaço propiciaram a

aproximação entre produtores e consumidores do conteúdo televisivo. Thompson

(2011) enquadra a televisão como um veículo de “quase-interação mediada” e de

“caráter monológico”, onde predomina um fluxo de mensagem em sentido único, do

emissor para o receptor. O sociólogo ressalta que existiam maneiras do receptor

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emitir sua opinião – que ele denomina de avenidas de intervenção, porém a

usabilidade é baixa:

Há, é claro, algumas avenidas de intervenção abertas aos receptores. Eles podem telefonas ou escrever às companhias de televisão para manifestar apoio ou repúdio a determinados programas. (...) Mas, na prática, estas avenidas de intervenção são usadas por muito poucos indivíduos. Para a grande maioria dos receptores a única maneira que eles têm para intervir na quase-interação é na decisão de sintonizar a televisão, de continuar com ela ligada, de prestar algum grau de atenção, de trocar de canal ou de desligá-la quando não tiver nenhum interesse na sua programação. (2011, pg. 133)

A prática tem se modificado com o uso da internet pelos canais de

televisão e outras mídias. Podemos dizer que as avenidas de intervenção de que

fala Thompson foram alargadas, ganhando ainda ramificações assim como um

grande rio e seus afluentes.

As transformações podem ainda não ser tão visíveis, assim como é

preciso certa parcimônia ao colocar tais mudanças como somente positivas, no

sentido usado por autores que delegam à internet o papel de liberdade e

democratização da comunicação. Henry Jenkins enfatiza a existência de vários

fatores para a valorização da cultura da convergência midiática, dentre elas forças

econômicas que conduzem a “democratização” das mídias. (2009, pg. 325)

A convergência não depende de qualquer mecanismo de distribuição específico. Em vez disso, a convergência representa uma mudança de paradigma – um deslocamento de conteúdo de mídia específico em direção a um conteúdo que flui por vários canais, em direção a uma elevada interdependência de sistemas de comunicação, em direção a múltiplos modos de acesso a conteúdos de mídia e em direção a relações cada vez mais complexas entre a mídia corporativa, de cima para baixo, e a cultura participativa, de baixo para cima. (JENKINS, 2009, pg. 325)

No trecho acima ele ressalta o papel da convergência em associar o que

vem da cultura participativa, ou seja, da cultura do receptor, ao que a mídia está

disposta a produzir, dentro de seus interesses econômicos.

Contudo, é importante o fato de termos acesso à informação de diversos

“afluentes” e podermos ainda criar nosso próprio “afluente”. Porém, qual a intenção

do usuário? Os usuários consumidores e produtores do infoentretenimento no

ciberespaço podem exercer dois papéis distintos: o papel de modificador da

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estrutura comunicacional, sendo assim participativos dessa cultura cibernética, e o

papel de alimentar uma cultura pré-cibernética - a cultura de massa, que se mantém

na cibercultura.

2.3.2 Por que a TV se importa com a internet? Dados de uso da internet no Brasil

O blog Sonhos de Luciana é uma ferramenta de comunicação que

estende o conteúdo televisivo para o ciberespaço. Segundo Castells “as mídias

tradicionais estão usando blogs e redes interativas para distribuir seu conteúdo e

interagir com a audiência, misturando modos de comunicação verticais e

horizontais.” (2012, prefácio pg. XV) Sem dúvida é perceptível à conversa cada vez

mais intensa entre os veículos distintos.

A Internet funciona para a TV como um canal de comunicação capaz de

amenizar seu caráter unidirecional. A replicação do conteúdo na rede é mais uma

forma de divulgação da programação televisiva, funcionando também como

instrumento complementador do conteúdo televisivo.

As funcionalidades citadas acima já são suficientes para

compreendermos a atenção despendida pela televisão ao ciberespaço. No entanto,

vamos listar alguns dados sobre o acesso à Internet no Brasil.

A exclusão digital ainda faz parte da sociedade brasileira, porém

pesquisas apontam um número bastante considerável de usuários. O instituto de

pesquisa IBOPE, em 19 de fevereiro de 2013, divulgou dados sobre o levantamento

de usuários de internet no Brasil e comparou os dados com índices de outros

países: Alemanha, Suíça, França, Itália, Espanha, Japão e Estados Unidos.

Segundo o instituto, o Brasil ocupa o terceiro lugar na lista de quantidade de

usuários ativos na rede, ficando atrás somente dos Estados Unidos e Japão.

Quando é comparado o tempo em que o usuário fica acessado à internet,

o Brasil ocupa o primeiro lugar, ou seja, o brasileiro é o internauta que mais passa

seu tempo conectado. Já somamos mais de 50 milhões de usuários regulares. A

internet já é considerada o terceiro veículo de comunicação de maior alcance no

país e o número de pessoas que a utiliza para fazer compras é cada vez maior.

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As pesquisas em relação a mídias sociais, como o Facebook, mostram

um crescimento gigantesco: entre 2011 e 2013, o número de usuários brasileiros

aumentou em 458 por cento.

A exclusão digital aparece nas pesquisas quando comparado o número

de acessos por região: as regiões Sul e Sudeste dominam mais de 50 por cento dos

acessos. No entanto, o número de usuários cresce de forma acelerada, e esse é um

dos motivos que faz com que a televisão esteja cada vez mais presente no

ciberespaço.

A revista Veja de 26 de junho de 2013 também divulgou uma pesquisa

que mostra a mudança de comportamento dos telespectadores, em virtude da

popularização das novas formas de comunicação ligadas à web. Os dados mais

relevantes indicam que 43 por cento dos espectadores assistem TV e navegam na

Internet ao mesmo tempo, e desse montante, 29 por cento usam a rede para

comentar sobre o conteúdo que estão assistindo no momento. O número de

habitantes com acessos à Internet no Brasil passou de 32 milhões em 2005 para 78

milhões em 2011. As pessoas também já estão habituadas a assistir vídeos na web.

São 22,5 milhões de brasileiros que utilizam a rede para ver vídeos on line.

A partir desses dados podemos perceber como os brasileiros têm se

tornado cada vez mais familiarizados às novas mídias. E o número de usuários

regulares cresce de forma intensa. Por isso, torna-se relevante explorar esse espaço

infinito e pluralizado. Não podemos também ignorar fatores mercadológicos que

impulsionam a convergência. Jenkins ressalta que existem “fortes motivações

econômicas por trás da narrativa transmídia” (2009, p. 148). As narrativas são

adequadas para o encaixe em novas plataformas, possibilitando o fluxo de

conteúdos em diversos canais midiáticos, otimizando a “marketização” do conteúdo.

2.3.3 A narrativa dos blogs de personagens e a interação entre real e ficção

Como discutimos anteriormente, a convergência das mídias se dá não

somente na hibridização das formas de linguagem, mas também através do

intercâmbio de características intrínsecas a veículos de comunicação distintos.

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Ao tratarmos do fenômeno dos blogs de personagens das telenovelas,

ficou imprescindível destacar uma das principais características do meio televisivo: o

sincretismo da realidade e da ficção. Tal condição marcante nas telenovelas

brasileiras também se tornou presente no ciberespaço através dos blogs e dos perfis

de personagens em mídias sociais, como o Facebook e Twitter.

Edgar Morin conceitua de forma objetiva o fenômeno do sincretismo:

“Sincretismo é a palavra mais apta para traduzir a tendência a homogeneizar sob um

denominador comum a diversidade dos conteúdos.” (2009, pg. 36) O sincretismo da

realidade e da ficção consiste na representação do real pelo ficcional, ou seja, a

busca de elementos da vida social que servem de inspiração para a construção da

ficção, investindo numa espécie de veracidade para o material produzido. O

movimento também pode ser o inverso, quando pensamos que fatores da

ficcionalidade também são indispensáveis na estrutura da informação, o que Morin

chama de “informação romanesca”, e no primeiro caso, de “imaginação realista”.

Podemos considerar que o sincretismo da realidade e da ficção influencia

em grande parte o sentido da produção, principalmente das telenovelas brasileiras.

Esse jogo de negociação com o real está ligado ao caráter espetacular da cultura de

massa:

A cultura de massa é animada por esse duplo movimento do imaginário arremedando o real e do real pegando as cores do imaginário. Essa dupla contaminação do real e do imaginário (...), esse prodigioso e supremo sincretismo se inscreve na busca do máximo de consumo e dão à cultura de massa um de seus caracteres fundamentais. (MORIN, 2009, pg. 37)

De acordo com Rezende (2005) há o que podemos chamar de uma

“ideologia do entreter”, baseada no consumo máximo de mercadorias, requerendo

assim, a conquista do maior número de consumidores – no caso da TV,

telespectadores. Para tanto, a linguagem televisiva recorre ao espetáculo e suas

nuances:

O espetáculo é o formato que unifica, em toda programação televisiva, as vertentes da realidade e da ficção. Em sua íntima afinidade com a ideologia do entreter, em suas múltiplas manifestações, o espetáculo embala, com todos os requintes, as inúmeras mercadorias que a indústria cultural oferece ao consumo permanente do público. (REZENDE: 2005, pg. 43)

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Qual será então a função maior do sincretismo da realidade e da ficção?

Se ela está presente em toda a programação televisiva e é responsável pela

expressão do espetáculo como elemento unificador, podemos estabelecer a

alternância entre real e ficção é um dos fatores centrais da linguagem televisiva.

Além disso, as vertentes da realidade e da ficção são responsáveis por

trazer o que nenhum outro elemento é capaz: o sentimento de familiaridade, de

pertencimento. Identificamo-nos com o que vemos e nos sentimos representados

através da ficção/realidade. Nesse sentido podemos dizer que essas representações

geram uma interação entre a TV e o espectador:

O mais importante nesse processo é, que por meio dessa interação, induz-se à convicção de que sempre tem alguém conversando comigo (telespectador), exibindo-se ou mostrando alguma coisa. E embora no instante em que ocorre, possa se ter consciência da artificialidade desse contato, o espetáculo consegue quebrar a sensação de unilateralidade da comunicação, no sentido emissor-receptor. (REZENDE, 2005, pg. 44)

O espetáculo, portanto, é um dos elementos responsáveis pelo clima de

naturalidade, de familiaridade que a TV suscita nos telespectadores que recebem

suas mensagens, mesmo que essa relação seja de fato preponderantemente

unidirecional.

A artificialidade do contato é atenuada pelo processo que Edgar Morin

chama de identificação e projeção. A construção dos personagens da telenovela é

baseada na verossimilhança. É a partir daí que a ficção é capaz de nos despertar

sentimentos de pertença, de afeto e familiaridade, pois nos identificamos com o

construído e nos projetamos para o vivido na ficção:

Esse universo imaginário adquire vida para o leitor se este é, por sua vez, possuído e médium, isto é, se ele se projeta e se identifica com os personagens em situação, se ele vive neles e se eles vivem nele. Há um desdobramento do leitor (ou espectador) sobre os personagens, uma interiorização dos personagens dentro do leitor (ou espectador), simultâneas e complementares, segundo transferências incessantes e variáveis. (MORIN: 2009, pg. 78)

Assim, a telenovela é produzida a partir de parâmetros que giram em

torno do real e do imaginário, do espelhamento e da idealização. Essa interação

entre o real e a ficção é que liga o emissor ao receptor. O movimento de produção

ainda é unilateral, pois mesmo sendo a produção baseada em traços de realidade, o

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espectador somente consome (ou deixa de consumir quando não lhe agrada) o

conteúdo veiculado.

Porém é nesse ponto que podemos perceber as primeiras mudanças na

convergência midiática quando trazemos para a discussão a comunicação no

ciberespaço. O que faltava agora já não falta mais: um canal de comunicação, a

Internet, utilizada para divulgar, complementar, refletir e transformar o conteúdo

televisivo.

Segundo Castells a “integração de todos os meios de comunicação e

interatividade potencial está mudando e mudará para sempre nossa cultura.” (2012,

pg. 414). Ele ainda ressalta que estamos tratando de um fenômeno embrionário. A

convergência das mídias é algo recente e que precisamos ter cautela nos estudos

para não fazermos previsões errôneas sobre o futuro das mídias. Porém,

precisamos ficar atentos às transformações no âmbito cultural causadas por essas

novas tecnologias, pois elas nos apontam os rumos da sociedade da informação.

Para a televisão o contato mais estreito com o público é de grande valia

quando pensamos que a proximidade maior com o telespectador internauta auxilia

no controle institucional. Com as informações sobre as necessidades e desejos do

público, a TV traça suas estratégicas mercadológicas com uma riqueza maior de

dados. Segundo Jenkins, a possibilidade de divulgação do conteúdo em diversas

plataformas deve ser explorada pelas empresas: “A experiência não deve ser

contida em uma única plataforma de mídia, mas deve estender-se ao maior número

possível delas. (2009, pg. 106)

Voltando ao ponto principal da discussão, podemos perceber de fato que

o conteúdo televisivo - principalmente as telenovelas brasileiras, já se estenderam

para fora de seu meio original. Tanto a Rede Globo utiliza dos recursos disponíveis

na rede para estender sua narrativa – como a criação de sites e blogs de

personagens, como os próprios telespectadores a utilizam para dar sugestões e

comentar os rumos das tramas. Os internautas também se inspiram nos

personagens das telenovelas para criação de fan pages e perfis fictícios, prática que

marca a extensão do sincretismo da realidade e da ficção para a Internet.

A expressão do sincretismo entre realidade e ficção é latente na

convergência entre a TV e a Internet. Os internautas que acompanham as

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telenovelas exploram seus personagens favoritos de diversas formas. Em certos

casos criam expressões que acabam sendo adotadas pela telenovela.

Como vimos no primeiro capítulo, o telespectador exerce a “suspensão da

incredulidade”, termo de Umberto Eco. Ou seja, o telespectador exerce o sincretismo

entre o real e a ficção consciente da “brincadeira”. Veremos esse fenômeno com

mais detalhes no terceiro capítulo aos descrever os fenômenos que caracterizam a

convergência entre TV e Internet a partir das postagens e dos comentários dos

internautas no blog Sonhos de Luciana.

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CAPÍTULO III CONVERGÊNCIA DE MÍDIAS: A NOVELA “VIVER A VIDA” E O BLOG

SONHOS DE LUCIANA

O terceiro capítulo expõe a descrição de um fenômeno de convergência

de duas mídias distintas – telenovela e blog. Analisa a produção do conteúdo que

emerge dessa hibridização e a ligação entre produção, consumo e participação do

internauta no processo.

Nosso objetivo é descrever esse processo e apontar mudanças

paradigmáticas ocorridas, à medida que essa convergência se apresenta como um

novo modelo comunicacional, principalmente pelo envolvimento direto entre

produção e consumo.

Os blogs de personagens de telenovelas têm sido utilizados pela

emissora Rede Globo, como estratégia para estender o produto cultural televisivo

para o ciberespaço. Trata-se nesse contexto de uma hibridização dos discursos,

promovendo mudanças tanto na telenovela quanto no blog. Este gênero discursivo

da Internet deixou de ser somente um diário virtual, transformando-se num suporte

de comunicação que estende a trama para fora da TV, invadindo o cibermundo e

dando mais visibilidade ao conteúdo televisivo.

A diversificação da direção dos discursos midiáticos movimentou as

relações entre sociedade e a cultura de massa:

Como a cultura é mediada e determinada pela comunicação, às próprias culturas, isto é, nossos sistemas de crenças e códigos historicamente produzidos são transformados de maneira fundamental pelo novo sistema tecnológico e o serão ainda mais com o passar do tempo. (CASTELLS, 2012, pg. 414)

A sociedade contemporânea está imersa em uma nova revolução

comunicacional, de proporções nunca vividas. Estamos diante de mudanças, ainda

muito recentes, porém que já modificaram consideravelmente o processo de

produção e consumo dos bens culturais.

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3.1 Sobre a novela Viver a Vida e o blog Sonhos de Luciana

O corpus desta dissertação foi escolhido a partir do foco principal da

pesquisa, a manifestação do sincretismo da realidade e da ficção em duas

plataformas de mídia diferentes. Essa característica tão presente nas telenovelas

brasileiras, o sincretismo da realidade e da ficção, tem se manifestado também em

conteúdos exibidos através da Internet. Percebe-se que a televisão tem explorado

essas novas mídias, provocando a extensão do conteúdo televisivo, e contribuindo

assim para o entendimento das práticas discursivas que vêm emergindo da

convergência midiática.

A escolha pelo diário virtual da protagonista da novela Viver a Vida deu-se

pelo fato de disponibilizar aos visitantes o link de comentários. Dessa forma, os

internautas podiam interagir com o conteúdo, deixando recados nas publicações

feitas. Assim, o blog proporcionou a interação entre o internauta e a equipe de

produção da telenovela, possibilitando um retorno praticamente imediato dos efeitos

da recepção do conteúdo produzido.

O telespectador, antes habituado à comunicação unidirecional da TV,

encontrou no blog um caminho para se manifestar sobre a trama. As opiniões dos

telespectadores, de alguma forma, poderiam então ser consideradas para interferir

no rumo do conteúdo produzido pela televisão. O ciberespaço tornou-se, assim, uma

via para a interatividade entre público e mídia, através da troca de informações.

A primeira publicação no diário virtual de Luciana ocorreu em 8 de

fevereiro de 2010, e o último em 15 de maio do mesmo ano. Ao todo foram feitas 85

publicações, com assuntos dos mais diversos. Os comentários em todas as

postagens totalizaram 13.289 participações, uma média de 156,3 comentários por

publicação realizada.

O texto mais comentado - publicado no dia 10 de abril de 2010, teve um

total de 436 comentários. Na publicação em questão, Luciana contava sobre uma

visita que recebeu de sua sogra. Prestes a se casar, a mãe do par romântico de

Luciana era contra o casamento dos dois. A protagonista escreve aos leitores sobre

o que sentiu durante a conversa com a sogra, que se mostrou uma pessoa

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preconceituosa perante a situação física da personagem. Mais à frente voltaremos

com mais detalhes a essa publicação.

3.1.1 A realidade na ficção da telenovela Viver a Vida

A expressão do sincretismo da realidade e da ficção já é presente na

própria história da personagem Luciana. Um fato real foi referência para o autor da

telenovela, Manoel Carlos, colocar a “identidade da pessoa cadeirante” no centro

das discussões midiáticas da época. A personagem foi inspirada na história de

Flávia Cintra. Aos 18 anos, Flávia sofreu um acidente de carro que a deixou

tetraplégica. Mesmo tão jovem, ela mostrou maturidade para lidar com as limitações.

Flávia é jornalista, casada e mãe de gêmeos.

No período de construção da personagem Luciana, Flávia foi consultora

da novela apoiando a atriz Alinne Moraes e ajudando o núcleo a se informar sobre a

vida de um cadeirante. Todo esse acompanhamento tinha o objetivo de fazer com

que a história de Luciana fosse a mais verossímil possível, mostrando as fases que

Flávia teve que superar na vida real: a tristeza e revolta que a acometeu no primeiro

momento após o acidente, seguida da adaptação e busca pela realização pessoal

apesar das dificuldades.

Assim como Flávia, a jovem Luciana também sofre um acidente, porém

numa viagem de ônibus. Luciana também se casa e dá à luz um casal de gêmeos

ao final da trama. Os bebês receberam os nomes de Flávia e Manoel, em

homenagem à jornalista e ao criador da novela. É relevante ressaltar que Luciana

teve destaque de protagonista da novela ao longo da trama, ofuscando a Helena de

Manoel Carlos, que na obra em questão foi interpretada por Taís Araujo.

O blog surge na história por incentivo da personagem Mia (Paloma

Bernardi), irmã de Luciana. No intuito de dar à irmã a chance de se sentir mais livre

ao estar em contato com o ciberespaço, Mia cria o blog para que Luciana possa

relatar aos leitores sua rotina. Os assuntos giram em torno de sua adaptação à nova

vida, como tratamentos de fisioterapia, novos aparelhos que auxiliam os

tetraplégicos, como também assuntos ligados ao convívio social e relações afetivas.

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A ideia de tornar o blog acessível na rede partiu do diretor da novela

Jayme Monjardim. O grande volume de comentários é a prova da aceitação do

personagem pelo público, que podia acompanhar a trajetória de Luciana, tanto na

TV como na internet.

Frequentemente Luciana mencionava o blog na trama. Em algumas

cenas foi vista no ato de blogar, em companhia de uma de suas irmãs, que a

auxiliavam devido às limitações físicas. O próprio computador foi uma ferramenta

atrelada à evolução motora da personagem, que antes não conseguia nem ao

menos segurar uma caneta e com o passar do tempo foi adquirindo habilidades para

exercer as atividades do dia-a-dia.

Através da exposição do drama vivido pela personagem, os

cadeirantes sentiram-se representados na TV e aproveitaram a chance para trocar

experiências no blog, como também utilizaram da atenção despendida pela mídia

para lutar a favor de seus direitos de cidadania e igualdade. Para Jesús Martin

Barbero, a construção visual do social se dá pelas imagens. Mais importante do que

se ver representado, é sentir-se reconhecido: “O que os novos movimentos sociais e

as minorias (...) demandam não é tanto ser representados, mas sim, reconhecidos:

fazerem-se visíveis socialmente em sua diferença.” (BARBERO 2006: 68) A própria

Flávia também é engajada no movimento de luta por melhorias de acessibilidade

para os portadores de necessidade especiais.

Portanto, o caráter sincrético da realidade e da ficção na telenovela

ultrapassou os limites televisuais e passou a fazer parte das novas mídias

emergidas no ciberespaço. A expressão do sincretismo foi tão bem trabalhada no

blog que podemos supor que se um internauta não tivesse conhecimento de que

aquele diário pertencia a um personagem da ficção, ele acreditaria que se tratava de

uma pessoa real.

O colunista de TV Alê Rocha, do site Yahoo, escreveu uma coluna no dia

2 de abril de 2010, sobre o blog “Sonhos de Luciana”, comentando sobre a confusão

entre realidade e ficção feita pelos leitores do diário virtual. Na oportunidade,

manifestou a importância de se ter um aviso no blog alertando que se trata de um

diário de uma personagem de novela, e não de uma pessoa da vida real. A partir do

dia 9 de abril já constava no blog uma sutil informação, ao final do profile da

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personagem blogueira: “Informamos que este blog é fictício, extensão da trama da

novela "Viver a Vida", da qual a personagem Luciana faz parte.” 9

3.2 O embrião da narrativa transmídia em Viver a Vida

A criação do blog Sonhos de Luciana proporcionou um intercâmbio de

informações entre os idealizadores da trama e os espectadores que acompanharam

a história pela TV. O conceito de narrativa transmídia, de Henry Jenkins, ressalta a

participação do espectador na produção de determinado conteúdo da mídia, como

vimos no capítulo anterior. A estratégia de explorar a web e trazer o espectador para

opinar sobre o conteúdo televisivo proporciona uma explosão de energia criativa

compartilhada, em que a participação do consumidor pode torná-lo numa espécie de

co-produtor da telenovela.

De fato, já é uma realidade o uso da Internet como ferramenta de auxílio

da produção televisiva. “Sonhos de Luciana” pode ser considerado um dos embriões

da narrativa transmídia no Brasil, fenômeno que tem se desenvolvido de forma

acentuada na cultura contemporânea, em que o espírito colaborativo se faz presente

através da disseminação da cultura cibernética.

A interação do telespectador através do blog é uma participação sutil, se

comparamos tal atividade com outros exemplos de narrativas transmídia descritas

por Henry Jenkins em “Cultura da Convergência” (2009). Porém, há um processo de

adaptação do público que não pode ser ignorado, assim como a televisão também

se encontra em experimentação das formas de exploração da web, visto que a

cultura participativa é algo recente para a produção midiática:

Embora a cultura participativa tenha raízes em práticas que, no século 20, ocorriam logo abaixo do radar da indústria das mídias, a web empurrou essa camada oculta de atividade cultural para o primeiro plano obrigando as indústrias a enfrentar as implicações em seus interesses comerciais. Permitir aos consumidores interagir com as mídias sob circunstâncias controladas é uma coisa; permitir que participem na produção e distribuição de bens culturais – seguindo as próprias regras – é totalmente outra. (JENKINS, 2009, pg. 190

9 Disponível em: http://tvg.globo.com/novelas/viver-a-vida/sonhos-de-luciana/platb/

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No caso do blog Sonhos de Luciana, havia uma participação ainda

controlada pelo pólo produtor, pois a interação era realizada dentro do portal da

emissora. Mas estamos tratando de um dos primeiros casos da narrativa transmídia

da Rede Globo. Desde então, já vimos como a interação tem progredido,

principalmente dentro das redes sociais, como o Facebook e Twitter. Nessas redes

já é muito comum encontrarmos materiais criados pelos próprios telespectadores,

sem participação alguma dos produtores de TV. Um exemplo é o caso relatado no

segundo capítulo, sobre a fanpage Félix Bicha Má, criada por um telespectador e

que gerou um retorno imediato no Facebook.

Como podemos descrever o processo “embrionário” que gerou a narrativa

transmídia em Viver a Vida? Do intercâmbio entre os pólos de emissão e

recepção/interação foi possível a controlar a produção baseada num ciclo co-

participativo: o discurso parte da produção da trama, a trama é estendida para o

blog. O blog recebe informações dos telespectadores, através dos comentários

deixados nas publicações, que por fim, influenciam o processo de construção da

trama.

Alguns comentários chegaram a receber destaque no blog, selecionados

entre vários se transformaram em publicações. Escolhemos uma postagem para

exemplificar o caso, onde podemos perceber a prática da narrativa transmídia10:

Dia 38 – Cuidado com as escaras!

Oi, gente! Recebi um comentário do Cristiano, do Rio de Janeiro, pedindo que eu fizesse um alerta sobre a importância de se cuidar para evitar as assustadoras escaras. Cheguei a comentar um pouquinho sobre isso quando escrevi sobre as roupas que me caem bem, mas volto a falar.

O Cristiano ficou paraplégico há um ano e quatro meses. Passou duas semanas internado e, quando voltou para casa, estava com uma escara nas costas que até hoje não cicatrizou. Olha o que ele fala:

(…) Estou sofrendo muito com isso, pois não tenho as mesmas condições financeiras que você tem, e até para conseguir médicos e tratamentos está sendo muito difícil. Mas apesar de minhas dificuldades estou lutando, pois acredito que Deus vai me ajudar a viver da melhor maneira possível (…)

Para quem não sabe, escaras são feridas que podem aparecer por causa de uma pressão constante que impede a circulação em algum

10

Ressaltamos que os recortes foram feitos de acordo com a relevância do tema e a repercussão

garantida, ou seja, todos os textos foram escolhidos porque tiveram um número bastante considerável de comentários, comprovando assim a importância do assunto para o telespectador.

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ponto do corpo. Pessoas que passam muito tempo deitadas na mesma posição podem ter, especialmente quando perdem parte da sensibilidade como aconteceu comigo. Por isso, gente, muito cuidado. É importante que mudemos de posição a cada duas/três horas. Fiquem atentos e alertem todos que estiverem perto de você!

PS: Obrigada pelo seu comentário aqui, Cristiano! Volte sempre! (Postado no blog SONHOS DE LUCIANA, em 22 de março de 2010)11

No exemplo acima, dois pontos são relevantes para o entendimento da

narrativa transmídia. Primeiramente, o blog destacou um relato de um portador de

necessidades especiais. O rapaz apresenta seu problema e a partir dele levanta-se

a importância de esclarecer sobre um fato recorrente na vida dos cadeirantes. Esse

problema também foi abordado na telenovela quando Luciana começa a sofrer com

as escaras. Há, portanto, um intercâmbio de experiências, relatadas tanto pela

realidade quanto ficção.

Outro ponto relevante é a questão financeira levantada pelo internauta.

Dentre os comentários deixados pelos telespectadores, muitos giram em torno da

inacessibilidade a um tratamento adequado, ou sobre a falta de mobilidade nas ruas

das cidades brasileiras. Luciana é apontada pelos internautas como uma pessoa

afortunada, tendo assim, condições para receber os melhores tratamentos e ter

acesso aos mais diversos instrumentos que proporcionam mais acessibilidade aos

ambientes públicos:

Lú, vc está se recuperando rapidamente, graças aos seus médicos, para vc é fácil, já que seu pai tem dinheiro,mais e para pessoas que não tem dinheiro,ouvi boatos de pessoas que demoraram anos para se recuperar,e outras pessoas nem chegaram a se recuperar,as condições podem afetar na demora da recuperação? (Publicado por Vitória em 6 de março de 2010)

Oi Lu, eu vejo que vc passa durante o dia. Mas é logico que nem todos os cadeirantes tem a mesma condição financeira igual a você. Mas mesmo assim, ninguém é perfeito. As pessoas cadeirantes, sempre tem algum tipo de discriminação, pois as pessoas julgam que elas não pode fazer coisas que os não cadeirantes podem fazer. Mas se bobiar todos os cadeirantes podem fazer coisas muito melhores do que os não cadeirantes. Bjxxx (Publicado por Guilherme em 22 de março de 2010)

11

Disponível em: http://tvg.globo.com/novelas/viver-a-vida/sonhos-de-luciana/platb/2010/03/22/

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Lu, seria muito bom se todas as pessoas pudessem ter acesso a tudo o que voce tem, ou ao menos tivessem um banheiro tao lindo como o seu e completamente adaptado assim, parabens pelo blog, esta lindo. Bjosssssssssss (Publicado por Shirley em 27 de abril de 2010)

Oi Lu! Que bom que você está gostando dos exercícios de hidroterapia. (...) Pense que nem todas as pessoas especiais possuem uma estrutura financeira, excelentes profissionais e uma família como a sua.Considere-se uma pessoa abençoada,por tê-las sempre ao seu lado. Um grande Beijo e um enorme abraço!!! (Publicado por Danuza de 2 de março de 2010)

Como o assunto era levantado constantemente pelos internautas, a trama

começou a colocar a personagem em situações de dificuldade, como falta de acesso

a banheiros públicos, provadores em shopping, restaurantes sem rampa. Outro fato

abordado foi a mobilidade urbana. Em um episódio, Luciana mostra o desejo de

andar de ônibus pela cidade, para vivenciar o que a maioria dos cadeirantes

presencia diariamente. Esse fato também foi tema no blog, um dia após o capítulo

sobre o ônibus ir ao ar:

Dia 40 – Pelo direito de ir e vir

Bem que já tinham me falado, mas precisei ver para crer. Fui sentir, de perto, como é andar de ônibus estando em uma cadeira de rodas. Posso dizer que fiquei horrorizada com tudo que encontrei pelo caminho. Primeiro: circular nas calçadas da nossa cidade é um transtorno! Os carros estacionam em locais impróprios, não há rampas para facilitar a nossa vida… Vou te contar. A cidade nos exclui, MESMO. É como se nos dissessem: “Fiquem trancafiados em casa. Vocês não têm nada para fazer na vida mesmo”.

Passado esses primeiros obstáculos, chegamos, Mia e eu, ao ponto de ônibus. Depois de quarenta minutos esperando um raio de um veículo adaptado, ainda tive que encarar um motorista impaciente, um trocador de má vontade e passageiros rabugentos. Vocês acreditam que um cidadão teve a coragem de dizer para eu pegar um taxi porque ele não podia se atrasar para o trabalho? Gente, que constrangimento! Ele não pode se atrasar e eu posso ser largada no meio da rua???

Fiquei bem triste com tudo, sabe? Algo absolutamente corriqueiro como andar de ônibus transforma-se em pesadelo. Falta estrutura, preparo, educação e gentileza! Uma única moça, passageira do ônibus, ficou do meu lado. O resto, nem quis saber… Precisamos acabar com isso. A cidade é um espaço coletivo, em que todos devem ter as mesmas condições de circulação. E as soluções são simples. Uma rampa adequada nas calçadas para a subida e descida de cadeiras, por exemplo, não me parece nada extraordinário! Muito menos educação e gentileza. Preconceito está totalmente fora de moda. Concordam comigo?

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Se você passou por alguma aventura semelhante à minha, me envia sua história. Unidos, temos mais forças para colocar a boca no trombone e mudar essa lamentável realidade! (Postado no blog SONHOS DE LUCIANA, em 24 de março de 2010)12

Examinando os dois exemplos citados, percebemos a transmidiatização

da narrativa, uma dentre várias manifestações oriundas da convergência das mídias.

A televisão utiliza dos artifícios da Internet para trazer o espectador para dentro da

produção, exigindo dele - de uma forma muito sutil, um posicionamento sobre a

narrativa da telenovela.

Assim, o internauta sugere, reclama, opina sobre o que assiste,

colaborando no resultado veiculado na televisão. Como ressaltamos anteriormente,

a narrativa transmídia tem dado seus primeiros passos no Brasil, mas percebemos

que a relação da TV com os telespectadores já apresenta mudanças consideráveis.

Para Jenkins, a readequação das mídias tradicionais aos novos consumidores,

atentos e dispostos a interagir com os meios de comunicação de massa é primordial

para a valorização da cultura participativa oriunda das novas mídias:

Produtores de mídia só encontrarão a solução de seus problemas atuais readequando o relacionamento com seus consumidores. O público, que ganhou poder com as novas tecnologias e vem ocupando um espaço na intersecção entre os velhos e os novos meios de comunicação, está exigindo o direito e participar intimamente da cultura. (2009, pg. 53)

Jenkins ainda ressalta que as mudanças no modo de comunicar através

das novas tecnologias ainda são muito recentes, sendo ainda muito penoso o

entendimento da cultura da convergência, repleta de “complexidades e contradições”

(2009, pg. 52)

É dentro desse contexto que se torna ainda mais precioso para as mídias

tradicionais conhecer com mais detalhes os usuários das novas mídias, adequando

seus produtos ao novo perfil do consumidor contemporâneo. A narrativa transmídia

é um dos recursos usados – nesse caso pela TV, envolvendo o

espectador/internauta no processo de construção do conteúdo da telenovela.

12

Disponível em: http://tvg.globo.com/novelas/viver-a-vida/sonhos-de-luciana/platb/2010/03/24/dia-40-pelo-direito-de-ir-e-vir/

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O entrecruzamento das narrativas da telenovela, do blog e dos

comentários deixados pelos internautas também reforça a relação entre o

telespectador e o conteúdo da ficção, como veremos a seguir.

3.2.1 As relações entre a personagem blogueira e o telespectador internauta

Partindo dos conceitos de Thompson, em que o sociólogo define tipos de

interação – a interação face a face, a interação mediada e a quase-interação

mediada, podemos examinar, principalmente os dois últimos de interação citados,

dentro de um novo cenário comunicacional constituído pelo advento da cibercultura.

Como vimos no primeiro capítulo, a interação mediada é estabelecida

pela relação dialógica entre os envolvidos, diferenciando da interação face a face

por ser uma interação estendida no tempo e no espaço. São interações através de

cartas, telefonemas, e no contexto atual, podemos inserir outras formas

comunicação, como emails, chats, mensagens via celular, entre outros: “Enquanto a

interação face a face acontece num contexto de copresença, os participantes de

uma interação mediada podem estar em contextos espaciais ou temporais distintos.”

(2011, pg. 121)

A quase interação mediada também se estende no tempo e no espaço,

porém ela é uma interação de caráter monológico, e seu conteúdo produzido para

um número indefinido de receptores potenciais. Thompson usa este conceito para

definir as relações da sociedade com os meios de comunicação de massa.

De acordo com ele, mesmo que o fluxo da emissão seja

predominantemente de sentido único, ele tem o poder de criar laços de afeto com o

receptor, à medida que a relação entre as partes envolvidas – produtores e

receptores é pautada em experiências de vida, isto é, a produção se serve de

questões propriamente sociais para a construção dos materiais simbólicos, assim

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como os receptores tomam esses materiais como parte do processo de construção

do self13:

Um indivíduo que lê um romance ou assiste a uma novela não está simplesmente consumindo uma fantasia; ele está explorando possibilidades, imaginando alternativas, fazendo experiências com o projeto do self. (...) Nós nos descobrimos não apenas como espectadores de eventos e de outros distantes, mas também como envolvidos com eles de alguma maneira. (2011, pg. 292)

O que podemos perceber é que há uma mistura dessas características,

quando investigamos o fenômeno da convergência das mídias. E o envolvimento de

que fala Thompson é reforçado à medida que os espectadores se sentem à vontade

para manifestar suas opiniões. Esse caráter híbrido existente também é considerado

pelo sociólogo, e, na cultura contemporânea, o fenômeno da hibridização é cada vez

mais preponderante na construção das relações sociais:

Ao distinguir entre estes três tipos de interação, não quero sugerir que específicas situações interativas sempre irão coincidir ordenadamente com um dos três tipos. Pelo contrário, muitas das interações que se desenvolvem no fluxo da vida diária podem envolver uma mistura de diferentes formas de interação – elas têm, em outra palavras, um caráter híbrido. (2011, pg. 123)

Tomemos como exemplo o corpus, um blog adaptado à telenovela. De

um lado estamos tratando de um gênero que possui características interativas de

ordem dialógica. Mesmo que o conteúdo não seja direcionado a alguém específico,

como uma carta ou email, o blog dá liberdade ao leitor de se manifestar através de

comentários. Do outro lado, está um gênero de caráter monológico, isto é, de fluxo

marcado por emissão e recepção, orientado para um número indefinido de

consumidores da informação.

Assim, estamos lidando com dois gêneros de características interativas

distintas. Os dois estão vinculados a um mesmo conteúdo, a história da novela.

Podemos considerar então, que a convergência dos dois gêneros implica na

hibridização das interações pautadas por Thompson. O blog Sonhos de Luciana

ameniza o caráter monológico da novela, dando chance ao telespectador de

interagir com a história.

13

Thompson afirma que o processo de formação do eu (self) é cada vez mais influenciado pelos

materiais simbólicos mediados.

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A interação híbrida acaba por favorecer as relações entre o telespectador

e a mídia, reforçando laços de afeto e de intimidade. Vamos recorrer mais uma vez a

um texto publicado no blog para ilustrar o tipo de relacionamento mediado. No texto

abaixo, Luciana relata como está sendo sua lua de mel com o marido Miguel, em

Paris:

Dia 79 – Direto de Paris, a cidade do amor

Estou em Paris, a cidade luz! Perfeita para os amantes e apaixonados. Quanta coisa boa estou vivendo aqui, meus queridos, ao lado do meu único e grande amor! Dias de felicidade e egoísmo total – fiz esse pacto com o Miguel. Somos somente um do outro, de ninguém mais. Enfim… Uma delícia!

Paris está sempre mais linda. É cidade que recebe muito bem os cadeirantes, viu? Da última vez que estive aqui, não prestei muita atenção nisso, mas, agora, claro que estou atenta à acessibilidade. E tudo funciona perfeitamente bem para quem se locomove em cadeira de rodas. As rampas estão em todas as ruas, as pessoas são educadíssimas e todos os cafés e restaurante que fomos até agora eram acessíveis. Ah, o nosso Brasil ainda precisa avançar muito nesse aspecto. Mas tenho certeza que chegaremos lá.

Fiquei um pouco chateada por não poder subir até o terceiro andar da Torre Eiffel. Por questões de segurança, cadeirante não pode subir ao terceiro. Não me controlei e dei um piti básico em plena lua-de-mel… É que às vezes fico chateada triste diante as minhas limitações, não posso negar! Mas o Miguel soube contornar meu mau-humor e tudo ficou bem. Ele, aliás, tem sido incrível… A cada dia ganhamos mais intimidade e isso é maravilhoso. O Miguel é um homem especial. Sinto que ele me ama de verdade e isso é a melhor coisa que já aconteceu na minha vida.

Vou ficando por aqui, queridos! Até breve! (Postado no blog SONHOS DE LUCIANA, em 10 de maio de 2010)14

No texto acima, a “intimidade” do casal é transportada da tela para a web,

envolvendo ainda mais o telespectador naquele momento especial da relação a dois.

E mesmo dizendo no inicio do texto que está vivendo dias de felicidade e egoísmo,

ela se importou em dar notícias aos leitores sobre a lua de mel.

A publicação gerou 233 comentários, e um fato interessante presente na

maioria deles é a forma como os internautas se referem à personagem, chamando-a

de “Lu”. Como estamos tratando da relação entre personagem e espectador, não

14

Disponível em: http://tvg.globo.com/novelas/viver-a-vida/sonhos-de-luciana/platb/tag/lua-de-mel/

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podemos deixar de destacar comentários feitos pelos visitantes do blog a fim de

ilustrar o que descrevemos. Abaixo, seguem algumas dessas publicações15:

Oiii Lu! Estou encantada com a beleza do lago de Monet e todas as flores maravilhosas que tem nesse lugar! Que vcs sejam muito felizes assim como todos! Vou continuar vendo as maravilhas de Paris! bjosss! Milena

Parabéns Lu e Miguel, vcs merecem muita felicidade. Que vcs como já tem provado, suprerem cada vez mais as dificuldades que puderem vir. Que o casamento de vcs sejam sempre marcados pela maravilha da Cidade de Paris. Daiana

Lú que você e o Miguel sejam muitos felizes que Deus abençoe muito vocês e que venha um lindo bebezinhoo e que vocês continue sendo tão felizes como são ameiii seu casamento ♥ Mariana

Lu, estou encantada com a sua força e coragem, parabéns, me emociono sempre quando vejo você e o Miguel, juntos! É muito especial, meu namorado é igualzinho ao Miguel, ainda mais por isso que me emociono e me encanto cada dia mais com a historia de vocês! MUITAS FELICIDADES SEMPRE! Que Deus os abençõe sempre, muita força Lú. SEMPRE! Beijos e mais Beijos =) Bruna16

Portanto, a relação entre os leitores e a personagem é pautada pela

intimidade afetiva. O romance da tela estende-se para o blog, gênero que

originariamente expõe o íntimo, diluindo a fronteira entre o público e o privado. Esse

material exposto para os internautas aguça a intimidade, a familiaridade, o afeto do

espectador para com a personagem. Assim, os comentários postados, em sua

grande maioria, perpassam esses sentimentos.

Outra característica que marca não só esses comentários, mas a grande

maioria deles é a utilização da segunda pessoa. O telespectador/internauta

raramente responde o conteúdo do blog se referindo à Luciana em terceira pessoa,

como o comentário a seguir:

É emocionante, ver a Tereza abrir mão de sua vida para viver a vida da Luciana. Graças a Deus, tenho absoluta certeza de que minha mãe faria o mesmo se fosse comigo, e eu, se for preciso, farei o mesmo quando tiver a felicidade de ser mãe. A história de Luciana

15

Os recortes de comentários foram feitos a partir de uma seleção de assuntos mais recorrentes.

Quando lemos os comentários dos internautas, percebemos que as abordagens são bastante repetitivas. Assim, foram escolhidos os comentários capazes de representar o conjunto. 16

Disponíveis em: http://tvg.globo.com/novelas/viver-a-vida/sonhos-de-luciana/platb/2010/05/10/dia-

79-direto-de-paris-a-cidade-do-amor/#comments. Todos os comentários foram copiados sem qualquer alteração feita por este trabalho.

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nos faz muito bem, nos faz aprender a viver… E isso é maravilhoso! (Publicado por Letícia, em 24 de fevereiro de 2010)

Portanto a intimidade permeia o maior número de comentários

publicados. Essa relação de intimidade com a personagem, já desenvolvida pelo

próprio processo de representação estabelecido no melodrama realista é

potencializada através da hibridização das características interativas.

O acesso ao blog Sonhos de Luciana fortalece a relação entre a

personagem e os espectadores, despertando neles o desejo de participar dessa

felicidade expressada por Luciana. Agora o espectador não só contempla essa

felicidade através da TV. Ele pode compartilhar desse sentimento através do blog.

Segundo Morin, a ideia de felicidade está ligada a uma vida vivida com

intensidade, o que ele chama de “felicidade de ação”. Esse ideal foi construído e é

alimentado pela cultura de massa. O tema felicidade é projetivo, o almejo pelo

prazer pleno em busca do happy end:

O happy end é uma eternização de um momento de ventura em que se encontram enaltecidos um amplexo, um casamento, uma vitória, uma libertação. Ela não se abre na continuidade temporal do “eles foram felizes e tiveram muitos filhos”, mas sim, dissolve passado e futuro no presente de intensidade feliz. Esse tema projetivo corresponde idealmente ao hedonismo do presente desenvolvido pela civilização contemporânea. (2009, pg. 126)

Ao examinar a participação do internauta no blog, vemos que o tema

felicidade é um dos principais assuntos que permeiam os comentários deixados. De

acordo com Morin a felicidade é projetiva. Aplicada ao corpus, a felicidade é parte da

representação dos anseios do espectador, que torce pelo amor do casal e deseja o

tão sonhado final feliz. É o conto de fadas da Cinderela (a projeção) adaptado ao

melodrama realista (a identificação).

O sofrimento transformado em felicidade é o pano de fundo do processo

de identificação e projeção, latente no drama de Viver a Vida. A moça jovem e bonita

que se vê “presa” numa cadeira de rodas encontra no amor a redenção da

felicidade.

O envolvimento afetivo do telespectador é claro quando temos acesso

aos relatos deixados no blog. Todos, de alguma forma, torcem pela felicidade da

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mocinha sofrida. Alguns descrevem seus problemas pessoais correlacionando suas

dificuldades aos narrados pela personagem, na intenção de dizer “ei, você não está

sozinha Luciana”. Mesmo que a história de sofrimento seja completamente diferente

da personagem, o espectador também se sente representado ali, e almeja, tanto

quanto ela, alcançar a felicidade.

A relação entre a personagem e o telespectador a partir do exercício de

blogar reformula o conceito de laço social, discutido no primeiro capítulo. Wolton

enquadra a telenovela brasileira como o gênero televisivo mais forte quando a

questão é o laço social. De acordo com ele, a novela foi capaz de atingir a todas as

classes sociais e conseguiu que seu conteúdo extrapolasse os limites da TV, ao ser

recorrentemente assunto de conversas em situações sociais diversas. E essa

interação popular se dá graças ao poder de identificação que a novela desperta na

sociedade:

O mais surpreendente é o caráter realmente popular desses folhetins. Sem dúvida, segundo os horários, os produtos são muito diferentes, mas resta um ponto em comum: todas as classes sociais assistem às novelas. Temos aí, sem dúvida, uma das verificações experimentais mais naturais da teoria da televisão como laço social! Mesmo que já se tenha dito tudo sobre o fenômeno social do folhetim brasileiro, é preciso sublinhar ainda a sua importância como espelho da sociedade, ao mesmo tempo em que fator estruturador da identidade brasileira. (1996, pg. 164)

Quando aplicamos esse conceito no contexto atual, podemos considerar

a extensão do laço para as relações estabelecidas dentro do ambiente cibernético.

O laço social não é mais constituído somente entre os consumidores do produto

televisivo, ou numa relação íntima, porém distante e monológica entre produção e

recepção. O ciberespaço permite que a conversa sobre a telenovela aconteça entre

o telespectador e os produtores da obra, no blog, representada pela personagem

Luciana. Portanto, o laço social é readaptado às novas relações possibilitadas pelas

mídias imersas na web.

E o que podemos dizer do sucesso que as telenovelas fazem em outros

países? Diríamos que a identificação extrapola os limites de uma identidade

nacional, ou que no contexto social em que impera a fluidez de identidades e o

rompimento de espaços geograficamente marcados seja quase impossível apontar a

existência de uma identidade essencialmente nacional. Como explicar o fenômeno

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de vendas que foi a novela Avenida Brasil (2012), licenciada para mais de 100

países?17

A telenovela brasileira vai além de representar uma identidade nacional.

Ela retrata experiências transitando entre o real e o imaginário, desperta sentimentos

que são universais.

Segundo Britto, nossas relações sociais se diversificaram. As interações

estabelecidas nas comunidades geográficas sofreram um enfraquecimento,

enquanto buscamos nos constituir a partir de referenciais que muitas vezes não

fazem parte do ambiente em que vivemos. Para ele, essa diversificação empobreceu

os laços sociais criados na comunidade, mas fez com que busquemos outras formas

de criar esses laços:

Por isso, afirmamos que vivemos num período de grande carência de amplas parcelas da sociedade. Carência de laços, sociais, carência de laços afetivos, carência de espaços de vivência e de lazer etc. Em que pesem esse limites, a pulsão de estar junto existente nas pessoas inventa e reinventa formas e espaços para se realizar. Quando a sociedade fecha as praças e abre shoppings, o desejo de estar junto vai achando brechas, em lugares muitas vezes inusitados, para as pessoas estabelecerem suas relações. (2009, pg. 35)

As comunidades e suas relações estão perdendo espaço para as novas

comunidades constituídas pelo ciberespaço, onde noções de pertencimento não se

prendem a divisões geográficas

3.3 O sincretismo da realidade e da ficção na telenovela e no blog

A característica mais pulsante por estar presente tanto em Viver a Vida

quanto em Sonhos de Luciana é o sincretismo da realidade e da ficção. De

acordo com Jost “toda ficção compõe-se de elementos emprestados do real

(lugares, pessoas, acontecimentos) e de elementos puramente imaginários.”

(2007, pg. 114) A expressão do sincretismo, como vimos anteriormente, é muito

presente na telenovela brasileira, gênero capaz de envolver elementos da vida

real e do imaginário popular: “Real e imaginário se confundem de modo tão

17

Fonte da informação sobre o licenciamento da novela Avenida Brasil:

http://oglobo.globo.com/revista-da-tv/seis-meses-apos-ter-sido-posta-venda-no-exterior-avenida-brasil-ja-a-obra-mais-licenciada-la-fora-9099841#ixzz2ZjW9iCsY

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intrincado eu as fronteiras entre a realidade e a ficção se tornam extremamente

débeis, quase a ponto de se tornar impossível estabelecer os limites que as

separam.” (REZENDE, 2005, pg. 46)

De um modo geral, a popularização do gênero blog se deu pela exposição

da intimidade do anônimo, que encontrou ali uma maneira de expressar suas

opiniões e pensamentos, antes guardados na privacidade de vidas comuns.

Assim, o blog deu a chance dessas pessoas comuns alcançarem visibilidade

mediante a acessibilidade disponível no ciberespaço.

E quando esse gênero é atribuído a um personagem da teledramaturgia?

Afinal, que intimidade está sendo revelada, se já foi tudo revelado na TV?

Quando entramos em contato com o blog, a sensação de realidade é intensa, a

ponto de nos confundir e nos fazer esquecer de que ali se trata de alguém que só

existe na ficção construída por Manoel Carlos. A expressão do sincretismo da

realidade e da ficção foi elevada à última potência, se é que existem limites para

essa expressividade, capaz de criar vidas paralelas às nossas vidas reais. Vidas

desejadas, livre das amarras sociais e do status quo, onde o que impera é o

amor, a felicidade, a liberdade de expressas seus sentimentos reprimidos:

A vida não é apenas mais intensa na cultura de massa. Ela é outra. Nossas vidas quotidianas estão submetidas à lei. Nossos instintos são reprimidos. Nossos desejos são censurados. Nossos medos são camuflados, adormecidos. Mas a vida dos filmes, dos romances, do sensacionalismo é aquela em que a lei é enfrentada, dominada ou ignorada, em que o desejo logo se torna amor vitorioso, em que os instintos se tornam violências, golpes, homicídios, em que os medos se tornam suspenses, angústias. É a vida que conhece a liberdade, não a liberdade política, mas a liberdade antropológica, na qual o homem não está mais à mercê da norma social: a lei. (MORIN, 2009, pg. 111)

Os relatos de tom íntimo e amigável, como descrito anteriormente, fazem

parte da expressão sincrética da realidade e da ficção. Tomemos aqui como

exemplo a publicação que mais recebeu opiniões dos visitantes do blog:

Dia 55 – Preconceito é triste e antiquado

Estou tão desanimada hoje… Recebi uma visita inesperada que acabou com meu bom humor. Minha sogra, Ingrid, apareceu aqui em casa para conversar comigo. Estranhei um pouco, mas fui super simpática, claro, por que não seria? Afinal, em breve, estarei casada com o filho dela.

Aos poucos, com o decorrer da conversa, fui percebendo certa crueldade por parte da Ingrid. Preconceito mesmo, sabe? Aquilo foi me consumindo de um jeito que vocês não imaginam! Minha vontade

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era voar no pescoço dela. Sabe essas cenas que você imagina quando está com muita raiva de alguém? Então. Era isso que acontecia comigo a cada barbaridade dita por ela. Mas, fina que sou, não perdi a classe. Resolvi devolver na mesma moeda. Fui ácida e provoquei também! O que é que há? Ela vem até a minha casa, sem ser convidada, para se intrometer na minha vida? Falar sobre minha vida sexual com o filho dela? Sobre a possibilidade ou não do Miguel ter filhos comigo? A Ingrid pirou de vez! Só pode ser!

Foi o que disse aqui outro dia: as pessoas acham que quem está em uma cadeira de rodas não tem vida sexual, não pode dar, nem receber prazer. A Ingrid, infelizmente, é a representação viva de muita gente por aí. Pessoas preconceituosas, que, se pudessem, nos colocavam em um lugar bem distante, para não correrem o risco de esbarrar na rua.

O mais triste dessa história toda é imaginar como será minha convivência com ela daqui pra frente. E como será a relação dela com o Miguel, porque aposto que ela vai infernizar a vida dele – se é que já não inferniza. Contei para minha mãe sobre a visita. Falei por alto, sem entrar em detalhes, mas me arrependi… Se eu bem conheço a dona Tereza, ela não vai sossegar enquanto não tirar essa história a limpo.

Preconceito é triste e antiquado demais. Coragem, Luciana, coragem! Bola pra frente! (Postado no blog SONHOS DE LUCIANA, em 10 de abril de 2010)18

O tema do texto é algo tipicamente comum na vida social. A mãe zelosa e

protetora que se transforma na sogra intrometida e ciumenta. Luciana expõe com

detalhes os sentimentos vividos naquele momento de confronto entre ela e a

mãe de Miguel.

A mesma situação compôs uma cena exibida na TV. No blog, Luciana

relata em primeira pessoa o fato ocorrido, dando ênfase aos sentimentos vividos

durante a conversa com Ingrid. Assim, o texto é carregado de intimidade. Luciana

expõe em palavras tudo o que passou, compartilhando com os leitores do blog

um fato, como se já não tivéssemos tido acesso do acontecido pela televisão.

Além disso, a publicação é investida de uma linguagem que esbarra nos

conceitos de representações sociais através do melodrama realista, gênero

fortemente influenciado por elementos da vida social: “A Ingrid, infelizmente, é a

representação viva de muita gente por aí.” Nesse trecho percebemos a carga de

realidade que envolve a ficção.

18

Disponível em: http://tvg.globo.com/novelas/viver-a-vida/sonhos-de-luciana/platb/2010/04/10/dia-55-

preconceito-e-triste-e-antiquado/

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Diante da popularidade que acompanha a teledramaturgia brasileira, é

possível afirmar que, se não todos, pelo menos a maioria dos visitantes do diário

virtual sabem que aquele conteúdo se trata de uma extensão da novela Viver a

Vida. Porém, os comentários deixados seguem o jogo montado ali, ou seja, os

internautas entram na brincadeira criada pela TV e mandam mensagens para

Luciana como se ela fosse alguém real. Para Médola, o consumidor do conteúdo

televisivo, a quem ela chama de enunciatário, passa a exercer três papéis

simultâneos:

Um enunciatário que sincretiza, portanto, três papéis quando em contato com a proposta da televisão na web: Internauta, porque é preciso estabelecer conexão com a rede, usuário, porque vai se servir de um catálogo disponibilizado e telespectador, porque esse acesso é motivado por modalizações provenientes da experiência vivida previamente como telespectador. (2006, pg. 185)

O recurso transmidiático proporcionado pelas novas mídias não é só uma

forma de inserir o conteúdo da TV no ciberespaço. É também uma excelente

estratégia para o estabelecimento de um contato direto com o espectador,

fazendo com que ele participe do mundo imaginário construído pela novela.

Dessa forma, a obra fortalece seu caráter sincrético, envolvendo pessoas do

mundo real na ficção produzida.

O envolvimento desse novo telespectador/internauta no jogo armado pelo

real e o imaginário catalisa a diluição de fronteiras entre o real e a ficção. Vamos

recorrer a mais um texto do blog, publicação que impulsionou a escolha do

corpus deste trabalho. A postagem de título “Tereza, minha mãe” acompanha

também uma foto da atriz Lilian Cabral, na ocasião a atriz responsável por

interpretar a mãe Luciana:

Dia 16 – Tereza, minha mãe!

Já falei mil vezes da minha mãe por aqui e hoje resolvi postar uma foto dela para vocês conhecerem. Essa é a dona Tereza, a mais bela de todas as mulheres, por quem tenho um amor infinito.

Depois do acidente, minha mãe se tornou ainda mais imprescindível na minha vida. De certa maneira, voltei a ser um bebê, né? Precisava – e ainda preciso – de muitos cuidados e de muito amor. E ela esteve ao meu lado, o tempo todo. Abriu mão de olhar para a própria vida para olhar para mim. E me incentiva, dia após dia, a ter esperança e lutar para superar minhas dificuldades.

Após o acidente, lembro quando tomei meu primeiro banho, depois de dias na cama. Foi minha mãe quem me ensaboou, quem lavou minha cabeça, como quando eu era criança… Naquele momento, eu

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senti uma vontade imensa de voltar para a barriga dela, de ser acolhida e não precisar passar por tanto sofrimento… Sofri demais ao ver meu corpo no espelho pela primeira vez depois do acidente. Quem passou por isso sabe bem do que estou falando. Fiquei assustada com minha própria imagem. Parecia que eu tinha envelhecido vinte anos! E lá estava minha mãe para me dizer: “Você tem vocação pra ser feliz. É como eu. Não sobrevivemos na tristeza. E se a vida não tem nos dado muitos meios pra isso, vamos buscar nós mesmas nossas razões pra sorrir”.

Agradeço todos os dias por você ser minha mãe e estar ao meu lado, me apoiando sempre. Desejo a você todo amor que houver nessa vida! (Postado no blog SONHOS DE LUCIANA, em 24 de fevereiro de 2010)19

Perceba como o discurso é carregado de sentimentos que fazem parte da

realidade vivenciada nas relações entre mães e filhos. O amor, a gratidão, o

reconhecimento do esforço que uma mãe é capaz de fazer para o bem de um filho.

Luciana mostra que não só a vida dela mudou, mas também das pessoas que estão

ao seu redor, principalmente a de sua mãe. Ela ainda ressalta a importância do

papel da mãe na superação da tristeza causada pelo acidente.

Ao relembrar o momento em que se viu pela primeira vez no espelho,

enfatiza: “Quem passou por isso sabe bem do que estou falando.” Podemos

perceber que essa frase utilizada expressa mais uma vez o sincretismo da realidade

e da ficção é utilizada no blog.

Novamente, foram selecionados alguns comentários feitos

especificamente nesta publicação. Assim, é possível examinarmos a participação do

telespectador/internauta:

Oii Luu, é a primeira vez que visito seu blog e pelo que vi, será a primeira de muitas! Ameei o seu post, o que seria de nós sem esses anjos em nossas vidas? Realmente as nossas mães, são o que há de mais importante. A Tereza é um exemplo do que as mães são capazes de fazer por nós filhos.Parabéns pelo liindo blog! Beijo! Raquel

Querida Luciana, em primeiro lugar quero dizer que te acho o máximo. E claro que quimíca maravilhosa entre mãe e filha – a troca de carinho e a cumplicidade chega a ser contagiante – parabéns querida. A força demonstrada pelas duas é impressionante – exemplo para várias pessoas – admiro muito. Bjos. Ana Paula

19

Disponível em: http://tvg.globo.com/novelas/viver-a-vida/sonhos-de-luciana/platb/tag/tereza-

saldanha/

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Não sou cadeirante, mas uma hemiplegia. Passei da hora de nascer. Minha mãe não sabia que esperava gêmeos. Tive falta de oxigênio no cérebro.. E tê-la sempre ao meu lado foi imprescindível para o meu desenvolvimento. Tenho 30 anos sou professora e curso a faculdade de Fonoaudiologia. Sofri muitos preconceitos mas com aa minha mãe, pai ao meu lado soube superar e chegar ate onde estou. Pretendo ir longe. A Tereza tem sido uma super mãe. Como a minha é. Beatriz

Tenho orgulho de vc ter uma mae assim tão maravilhosa,pois a minha é tbm,continue sendo assim batalhadora e feliz é o que importa,parabens luciana vc é uma guerreiraaaaa abraço do amigo do rio grande do sul. Gabriel

Precisamos aqui enfatizar dois pontos relacionados aos comentários

acima. Primeiramente, um desses comentários pode ser considerado um

depoimento que relata a dificuldade enfrentada ela internauta Beatriz e sua mãe. É

muito comum encontrarmos relatos dessa natureza em todo o blog. O espectador

deixa seu depoimento originado da sua vida íntima como forma de comparar suas

dificuldades às de Luciana. Na maioria das vezes, os depoimentos demonstram a

intenção de apoiar a personagem, de provar para ela que é possível ser feliz e

superar as situações adversas.

Outro ponto que devemos ressaltar é a presença do comentário de um

telespectador do sexo masculino. A participação de homens é muito pequena,

quando comparamos com o volume de comentários feitos pelas mulheres.

Todos os comentários acima deixam claro que o objetivo do

telespectador/internauta é interagir com o conteúdo. Os telespectadores da novela

vivem ali a extensão de uma fantasia, exercendo a chamada suspensão da

incredulidade definida por Eco. O telespectador se apropria do jogo montado pela

TV, tomando como verdadeiros os elementos constituintes da ficção.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A nova cultura, marcada pelo advento do ciberespaço, veio para

transformar as relações entre produtores e consumidores dos conteúdos culturais.

Os lugares com posições bem determinadas de acordo com as funções a que cada

um se propunha a ocupar, a produção – eles, o consumo - nós, já não possuem

mais essa configuração. Consumidores tornaram-se produtores ou co-produtores,

apoiadores ou contestadores do conteúdo produzido pelas mídias tradicionais.

A popularização da Internet trouxe a expansão dos espaços, já não mais

marcados pelas fronteiras geográficas, e a diversificação das atividades e das

interações sociais. As comunidades extrapolam seus limites físicos. O

desprendimento territorial e a ampliação das interações fazem surgir novos

caminhos. Nesse mundo contemporâneo, onde não há mais limites para a

comunicação, os discursos vêm e vão, transformam-se em questão de segundos,

recebem a atenção de todas as partes, assim como podem ser modificados pela

visão de quem os recebeu.

As nossas atenções estão voltadas para esse novo mundo tomado pela

fluidez de discursos imersos nas mídias digitais. Por isso, não basta a telenovela

fazer parte somente do universo televisivo, ela precisa participar das novas formas

de mídia. O consumidor, cada vez mais, não quer ser mero espectador. Ele deseja e

aceita participar diretamente da produção, tanto alimentando o conteúdo das mídias

tradicionais, como produzindo seu próprio conteúdo.

Temos acompanhado tais mudanças e percebemos o esforço feito pela

televisão para estar presente no ciberespaço. Obviamente, existem motivações de

ordem econômica para tanto. Não é somente a abertura de canais de

relacionamento com o consumidor, simplesmente porque eles desejam se

expressar. Há objetivos de natureza mercadológica inseridos nessas novas relações

construídas através da web.

Essa estratégia interativa tem sido bastante explorada pela Rede Globo,

uma forma de agradar a audiência e manter sua hegemonia. Todo o conteúdo que

emerge dessa aproximação entre mídia e público deve ser analisado pela TV, pois

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ali está o que o espectador pensa, e dali podem ser apontadas novas tendências

para a produção.

No entanto, não podemos negar que o consumidor também se beneficia

nessa nova relação. Afinal, ele nunca teve tanta liberdade para manifestar suas

ideias e opinar sobre o conteúdo veiculado na TV.

Ainda é muito cedo para arriscarmos como será a produção e o consumo

dos conteúdos culturais no futuro. Porém, independentemente dos rumos que

tomará a comunicação mediada pela Internet, já foi possível notar mudanças

significativas no processo de convergência, e um dos pontos mais importantes é

reconhecer que as novas mídias são capazes de repaginar velhos conceitos e

fenômenos midiáticos.

O sincretismo da realidade e da ficção é um deles. O fenômeno tomou um

novo fôlego. O blog Sonhos de Luciana é um marco dessa nova forma de

relacionamento criada entre a televisão e o espectador. Percebemos que a

estratégia de inserir o conteúdo melodramático no formato de blog foi bem sucedido,

pois através dos comentários deixados pelos internautas, vemos o envolvimento

afetivo do telespectador. Os visitantes do diário virtual transmitem em palavras o que

sentem pela personagem e dão sugestões sobre o que deve ser abordado na

novela. O tom é de intimidade com a personagem, e muitos que ali deixam suas

mensagens, aproveitam para relatar suas histórias reais, exemplos de vida que se

assemelham à ficção.

Portanto, vemos a televisão mais participativa na formação da

cibercultura, uma cultura que surge das novas relações propiciadas pelo

ciberespaço. A Rede Globo tem procurado produzir não só um conteúdo para a

televisão, como também para a circulação via web, proporcionando assim, o contato

mais próximo com o consumidor dos seus produtos.

A partir dessa aproximação entre os pólos produtor e receptor, as

relações entre produção/emissão e consumo/recepção devem ser repensadas e

reestruturadas. Com esse novo fôlego tomado, quem recebe novos ares é a

indústria do espetáculo, que agora não é só espelho da sociedade do consumo, mas

também recebe o auxílio da própria sociedade na formação da cultura.

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Muitas mudanças ainda estão por vir. Mas já podemos adiantar que a

cultura contemporânea é parcialmente ditada pela convergência de mídias

tradicionais e novas mídias, e a produção da primeira precisa estar cada vez mais

atenta ao que o consumidor tem a revelar.

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http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/paginas/brasil-e-o-terceiro-pais-em-numero-de-usuarios-ativos-na-internet.aspx

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,perfis-falsos-e-comicos-do-vilao-felix-viram-hit,1037433,0.htm