juliana tais ferreira - Universidade Federal do Paraná · atenção e cuidados, pois as crianças...
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JULIANA TAIS FERREIRA
“Espelho das Mães” A Representação Feminina na Publicidade Destinada à Infância nas Páginas da
Revista O Cruzeiro: 1929-1964 Monografia apresentada à disciplina de Estagio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito parcial à conclusão do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.
Orientadora: Profª. Dra. Ana Paula Vosne Martins
CURITIBA
2006
AGRADECIMENTOS A minha mãe, Lucia, grande espelho da
minha vida. Aos meus familiares pela paciência. Ao meu amor, Hiderson, namorado, amigo e
companheiro; As minhas amigas pelas ajudas, consolos e
esperas, principalmente a Lelê e a Jac, presentes desde o início desta jornada.
Também não poderia deixar de agradecer a
paciência e as orientações da professora Ana Paula.
“Não combatemos o homem e sim os maus princípios”
Ernistine Rose, citada por Betty Friedan em A mística feminina. (pág. 83)
SUMÁRIO LISTAS DE IMAGENS...........................................................................................................v RESUMO.................................................................................................................................vi INTRODUÇÃO .....................................................................................................................1 1. CRIANÇAS, SEMENTES DO FUTURO: A PUERICULTURA E OS MÉDICOS. .............................................................................................................................9 1.1 CRIANÇAS: O TESOURO DA HUMANIDADE ....................................................11 1.2 OS MÉDICOS E A PUBLICIDADE...........................................................................17 2. A DIVULGAÇÃO DO IDEÁRIO PUERICULTOR NO BRASIL E A FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. .........................................................23 2.1 SALVAR AS CRIANÇAS: COMPROMISSO DA SOCIEDADE OU DO ESTADO? ..............................................................................................................................25 2.2 A PUBLICIDADE E O IDEÁRIO PUERICULTOR ................................................32 3. SABER SER MÃE NO SÉCULO DA CRIANÇA. .................................................41 3.1 A MATERNIDADE IDEAL.........................................................................................41 CONCLUSÃO .....................................................................................................................56 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...........................................................................58
LISTAS DE IMAGENS
IMAGEM 1 – REPRESENTAÇÃO IDEAL DE RELAÇÃO MÉDICO-MÃE-CRIANÇA .............................................................................................19 IMAGEM 2- PUERICULTURA DE METACAL .......................................................21 IMAGEM 3 – REPRESENTAÇÃO IDEAL DA RELAÇÃO MÃE E FILHO ....42 IMAGEM 4- A MAJESTADE CRIANÇA....................................................................45 IMAGEM 5- “VAMOS BRINCAR DO MEU JEITO!” ............................................50 IMAGEM 6 – “ENTÃO, MAMÃE, VAI ENGOLIR O QUE DISSE?”.................51
RESUMO
Desde o final do século XIX o discurso médico, em particular, define as mulheres pela maternidade. Tal definição toma importância a partir do momento que a infância passou a ser cada vez mais valorizada como uma fase especial, digna de atenção e cuidados, pois as crianças eram a semente do futuro das nações segundo os discursos produzidos a partir de então. Frente a estas idéias analisamos a imagem feminina produzida na publicidade de produtos destinados às crianças nas páginas da revista O Cruzeiro. Assim, procuramos observar a influência do discurso puericultor nas propagandas e também verificamos se a representação da maternidade presente na publicidade é coerente com aquela produzida pela Puericultura. Fizemos uma análise qualitativa das propagandas, explorando a articulação imagem-texto e, do mesmo modo, estabelecemos uma análise quantitativa em relação à progressão das propagandas destinadas à infância na revista. Encontramos um número expressivo de propagandas destinadas à infância que confirmam a influência do discurso puericultor disseminado na publicidade. Segundo este discurso, a mulher-mãe torna-se um instrumento para se chegar à infância, daí a necessidade de ser informada e orientada pelos médicos. A propaganda coloca a mãe como responsável pela boa saúde, nutrição e higiene da criança da mesma forma que a Puericultura. Apontamos, assim, para a instrumentalização feminina, pois a partir de então a mulher devia viver não só para o marido, mas principalmente em função dos filhos.
INTRODUÇÃO
Ser mãe, ao longo da história das sociedades ocidentais, sempre foi considerado
a função mais natural das mulheres, afinal seus corpos são preparados biologicamente
para a maternidade. Porém, ao longo do tempo o ato de ser mãe e suas normas não se
mantiveram imutáveis. Na verdade não há uma linearidade na relação que as mães
mantêm hoje e mantiveram no passado com seus filhos, ela deve ser pensada
historicamente, dependendo das exigências sociais, não existindo, portanto, um
modelo invariável ou natural de ser mãe.
A partir do final do século XIX, com a disseminação do discurso médico
puericultor, a maternidade ganha normas novas. As mulheres passam cada vez mais a
serem definidas pela maternidade e ser uma boa mãe deixa de se constituir uma
atribuição natural da mulher. A partir de então, a mãe passa a depender de uma série
de conhecimentos especializados, desenvolvidos cientificamente pelos médicos, para
aprender como deveria cuidar de forma adequada de seus filhos. Esta situação é um
reflexo da valorização da infância como uma fase especial, digna de atenção e
cuidados, que teve início desde meados do século XVII, quando as crianças passaram
a ser encaradas como as sementes do futuro de suas famílias e das nações.
Com a valorização da infância, os médicos começaram a se preocupar mais com
esta fase do ser humano e, assim, desenvolveram na segunda metade do século XIX a
Puericultura, uma especialidade médica preocupada com o pleno desenvolvimento das
crianças. A infância também passou a ser preocupação de outros grupos sociais como
as mulheres, os filantropos e os religiosos que se dedicaram a garantir proteção aos
infantes e também à maternidade. Posteriormente, esta proteção também passa a se
tornar objeto da legislação e de projetos por parte dos Estados. No Brasil este processo
de interesse do Estado pela proteção materno-infantil ganha fôlego a partir dos anos de
1930.
Assim, diante deste contexto de valorização da infância, as mães passaram a ser
vistas como as maiores responsáveis pelos cuidados adequados que seus filhos
deveriam receber. Os médicos puericultores iniciaram a divulgação dos preceitos da
Puericultura e defendiam a idéia de que as mulheres deveriam ser educadas para
exercerem a maternidade adequadamente. Deste modo, ser uma boa mãe tornou-se
cada vez mais uma exigência e só aumentaram as cobranças feitas a todas as mulheres
que queriam ser ou eram mães. A criança tornava-se o centro das atenções de vários
grupos sociais e a autoridade e projeção feminina se esvaía a cada dia. Até mesmo a
proteção à maternidade passou a ser uma conseqüência da proteção à infância.
É nesse sentido que a historiadora Ana Paula Vosne Martins defende a idéia que
a mulher como mãe passou a ser um instrumento para se alcançar as crianças, afinal
ela não era percebida como agente social, aparecendo sempre relativa aos filhos. O seu
tempo aparece orientado para a saúde, o bem estar emocional e o comportamento de
suas crianças, já as suas necessidades e as circunstâncias da maternidade não eram
discutidas, ficando os discursos restritos aos cuidados necessários às crianças. Assim a
culpa era sempre da mãe, era ela que não sabia como conduzir os cuidados e a
educação dos filhos, esta era uma idéia que os médicos defendiam, pois muitos
acreditavam que tudo dependia da educação materna para melhorar as condições de
vida das crianças.
Tomando este quadro ideológico sobre a maternidade como referência, nossa
pesquisa tem como objetivo principal recuperar e discutir qual era a representação da
mulher-mãe entre os anos de 1930 a 1960 através da publicidade destinada à infância,
verificando se esta representação foi influenciada pelos preceitos da Puericultura,
amplamente difundidos na época.
A maternidade é um assunto amplamente discutido em vários trabalhos
historiográficos e também de outras áreas do conhecimento. Martins1 divide esta
produção em duas vertentes; a primeira fundada principalmente na religião e na
ciência, colaborando para a construção de um mito da maternidade, pois elabora “um
conjunto de idéias, valores e normas que definem a mãe não apenas como responsável
pela reprodução dos filhos de um homem, mas pelo aperfeiçoamento moral e racial da
sociedade”2. E a segunda formada por feministas que escreveram na tentativa de
1 MARTINS, A. P. V., “dar á luz: experiência da maternidade na transição do parto doméstico para o parto hospitalar”. Projeto de pesquisa de pós-doutorado apresentado ao CNPQ, Nov, 2004. 2 Ibid., op.cit., p. 6.
desmistificar a maternidade, questionando os argumentos fundadores do mito e
também a visão romântica.
A Puericultura também foi tema de uma ampla produção escrita, tanto nos
discursos produzidos em relação à maternidade, que inclui principalmente os escritos
médicos, quanto nos trabalhos que fazem a análise crítica desse discurso. Nesta última
linha de pesquisas destacamos o estudo feito por Martins, que discute temas como a
valorização da criança, o discurso puericultor, as ações dos médicos, das mulheres e
dos Estados para proteger a maternidade e a infância. A autora assinala, também, a
grande interferência que os médicos puericultores passaram a exercer sobre a vida das
mães através de livros, de palestras e dos meios de comunicação na tentativa de
divulgar seus preceitos e alcançar as crianças. Mediante este fato, a historiadora aponta
para o desenvolvimento de uma pedagogia para a boa maternidade, que colocava a
mãe sob a dependência dos conhecimentos científicos dos médicos, para que esta
pudesse desempenhar sua função adequadamente. Assim, a principal contribuição de
Martins para nosso trabalho situa-se na discussão que faz sobre a interferência do
discurso puericultor na sociedade e da instrumentalização da mulher-mãe.
Ainda sobre as influências do discurso puericultor na sociedade brasileira
deve-se destacar a tese de André Ricardo Valle Vasco Pereira3, que aponta para o
desenvolvimento da legislação e dos projetos de proteção materno-infantil do Estado
brasileiro a partir da crise do modelo liberal, quando o governo passa a preocupar-se
com a questão social, estabelecendo a noção de corporativismo no Brasil. Outro
trabalho de grande contribuição foi a monografia de Daniela Merheb4, no qual ela faz
uma análise dos discursos produzidos pelos médicos nos manuais de Puericultura das
primeiras décadas do século XX no Brasil, nesse sentido a autora trabalha com dois
conceitos importantes, a mãe científica e a criança-majestade.
Recorremos também a vários trabalhos, não só historiográficos, mas de
pesquisadores que analisaram os discursos produzidos pelos meios de comunicação e
pela publicidade, especialmente sobre representações e discursos ideológicos. 3 PEREIRA, A. Políticas sociais e corporativismo no Brasil: O departamento Nacional da criança no Estado Novo. Niterói: UFF, dissertação de mestrado em História, 1992. 4MERHEB, D. Ciência, Sáude e Norma: A mãe científica e sua majestade a criança. Curitiba: UFPR, monografia de Graduação em História, 1997.
Utilizamos obras que tentaram identificar e discutir as técnicas utilizadas pela
publicidade, como é o caso dos trabalhos desenvolvidos por Barthes e Vestergaard e
Schroder, amplamente utilizados pela maioria dos pesquisadores brasileiros, afinal
estes autores chegam a conclusões importantes, identificando a publicidade como um
discurso tradicionalista.
Há também vários trabalhos que focalizam suas pesquisas nas representações
femininas produzidas pelas propagandas, como é o caso do trabalho de Nelly
Carvalho5 que aponta que as propagandas exibem e constroem um mundo ideal e
perfeito, usando de recursos da sedução e persuasão diferentes para cada gênero; e da
análise de imagens que John Berger6 faz, tanto de pinturas produzidas antes das
fotografias, quanto destas, que são amplamente utilizadas pela publicidade nos dias
atuais. Assim este autor reforça que a mulher aparece diferente do homem nos dois
tipos de imagens. Enquanto a representação masculina reforça o homem como um ser
ativo, na representação feminina a imagem é feita para ser contemplada.
Estes autores, especialmente Barthes e Berger, desenvolveram conceitos
importantes para a análise de propagandas, que foram largamente utilizados em
pesquisas mais recentes, como o caso da monografia de Roderlei Bordinhão7 e da
dissertação de mestrado de Simone Formiga8. Ambos trabalham com a representação
da mulher pela publicidade relacionada a temas como beleza e estética.
Porém, essas são análises mais genéricas sobre a representação feminina. Gostaríamos
de fazer referência a dois trabalhos que estão mais relacionados a nossa pesquisa. O primeiro
trabalho a ser mencionado é de Olga Brites, no qual discute a construção da imagem da
criança e a relação que esta tem com as novas noções de higiene dentro do discurso
publicitário entre os anos de 1930 até os anos 19609. Outro trabalho importante é de Suely
Amorim10, pois trata da representação feminina associada à da criança. Em sua tese, ela
5 CARVALHO, N. Publicidade: a imagem da sedução. São Paulo: Ática, 1998. 6 BERGER, Modos de ver. Barcelona: Gustavo Gili, 1974. 7 BORDINHÃO, R. A Supremacia da Beleza: A mulher e suas representações nas revistas femininas nas décadas de 1950 e 1960. Curitiba: UFPR, monografia de Graduação em História, 2003. 8 FORMIGA, S. Por baixo da roupa de baixo: um estudo da representação da mulher pela publicidade. Rio de Janeiro: PUC, Dissertação de Mestrado em Artes e Design, 2002. 9 BRITES, O. Infância, higiene e saúde na propaganda.” (usos e abusos nos anos 30 a 50). Revista Brasileira de História, N. 39, Vol. 20, 2000. 10 AMORIM, S. T. S P de. Alimentação Infantil e o Marketing da indústria de alimentos. Brasil, 1960-1988. Curitiba: UFPR, Tese de Doutorado em História, 2005.
discute a importância que a propaganda do leite em pó, juntamente com o respaldo médico,
teve na mudança dos hábitos alimentares dos bebês, pois mães passaram a substituir a
amamentação natural por mamadeiras. Ambos os trabalhos ajudaram no método de análise
das peças publicitárias.
Através desses trabalhos podemos constatar que a imagem da mulher aparece
fragmentada nas propagandas e que há vários discursos que tratam de assuntos
femininos, pois existem múltiplas dimensões da mulher, relacionadas à maternidade,
aos ideais de beleza e de domesticidade. Dessa forma ela parece não constituir um
sujeito único, a Mulher, já que possui várias normas comportamentais para proceder
sobre os mais variados aspectos e nada impede que sejam contraditórias. Nesse sentido
destacamos o trabalho de Carla Beozzo Bassanezi,11 que mostra como a mulher
possuía diferentes facetas sociais no discurso da imprensa escrita. Sua pesquisa abarca
uma parte do período por nós estudado e toca em aspectos importantes sobre as
mulheres, sem, contudo tratar do discurso publicitário e nem das questões referentes à
maternidade, trabalhando mais especificamente com a relação mulher-homem no
Brasil dos anos de 1945-1964.
Assim, podemos justificar nossa pesquisa justamente na ausência de trabalhos
que tratem da representação da maternidade na propaganda. Apesar de muitas
pesquisas apontarem para a existência de um modelo de mãe perfeita difundido na
época, não encontramos análises que tratem da representação da mulher-mãe
estabelecendo uma relação com a ideologia da maternidade. Defendemos, assim, que
as propagandas funcionaram como um espelho para as leitoras, revelando o modelo
proposto às mesmas pela ideologia da maternidade. Consideramos a publicidade mais
do que um meio de divulgação, mas produtora de discursos sóciopolíticos pautados na
tradição, contribuindo para propagar e criar hábitos em seus receptores.
Desta forma, utilizamos como fonte primária a revista O Cruzeiro, lançada no
final de 1928 no Rio de Janeiro, sendo uma das revistas mais prestigiadas na época,
principalmente pela qualidade gráfica e inovações que apresentava, e também porque
tinha uma ampla circulação nacional. Ela não era uma revista feminina, no entanto
11 BASSANEZI, C. Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações homem-mulher, 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
suas propagandas eram, na maioria dos casos, destinadas às mulheres, como produtos
de beleza, moda e cuidados com a saúde. Suas reportagens tratavam de variados temas,
como política, futebol, gente famosa, cinema, entre outros, porém, a revista abordava
as diferenças de gênero que eram acentuadas através dos assuntos destinados só às
mulheres, como as seções “Para a Mulher” ou “Da mulher para a mulher”.
O Cruzeiro está arquivada na Biblioteca Pública do Paraná, que possui
exemplares desde o período de agosto de 1929 até meados dos anos 80.12 Para a nossa
pesquisa foram analisados aproximadamente 737 exemplares, utilizando todas as
revistas encontradas entre os anos de 1929 a 1950 e depois, quando o acervo torna-se
mais integro, analisamos todos os exemplares encontrados de dois em dois anos,
começando por 1952 até chegarmos nos exemplares de 1964. Primeiramente fizemos
uma análise geral do material, reproduzindo os textos das propagandas, para numa
segunda etapa fotografar as imagens que selecionamos para a pesquisa. Tivemos um
pouco de dificuldade nessa última etapa, porque algumas revistas que tivemos acesso
simplesmente desapareceram da biblioteca quando retornamos para esta etapa da
pesquisa..
Em relação à metodologia, nossa pesquisa está ligada aos estudos de gênero que
surgiram a partir das inovações historiográficas do século XX, pensando nas diferenças entre
homens e mulheres resultantes das relações culturais e não determinadas pela natureza.
Dentro desta perspectiva há uma extensa produção, sendo que nos interessam os estudos de
análise das representações, imagens e discursos sobre as formas e o comportamento esperados
dos sujeitos sociais. Nesse sentido, os percebemos como discursos idealizados, que
reproduzem o pensamento de um determinado grupo social.
Em nosso trabalho utilizamos o conceito de representação para verificar como a
mulher-mãe era produzida pela propaganda. Trata-se de um discurso que contém uma
mensagem e que reproduz modelos ideais de comportamento já difundidos na
sociedade e amplamente aceitos. Como já apontamos acima, existem vários trabalhos
que pesquisam a representação feminina através do discurso publicitário, nas mais
12 O acervo não possui a totalidade dos exemplares, principalmente porque estes são parte de doações, assim faltam alguns exemplares e, por vezes séries anuais, no período por nós estudado, o que não inviabilizou a pesquisa.
diferentes áreas, e esse enfoque também tem contribuído muito para a construção do
conhecimento histórico.
A partir da busca da representação feminina como mãe, reconstruímos esta imagem
dentro dos quadros de uma ideologia, para isso recorremos a Karl Mannheim13. A mulher era
colocada de forma ideal na sociedade como mãe e dona de casa produzindo-se uma ideologia
sobre a mãe e a esposa perfeita, bem arrumada, sempre atenta às vontades do marido e às
necessidades dos filhos. Assim, cada função feminina demandava um modelo ideal, tendo
suas próprias exigências, sendo impossível cumprir todas elas.
Assim, encontramos o modelo de mãe perfeita na medida em que analisamos
qualitativamente as propagandas. Neste modelo verificamos a idealização da figura feminina
desde sua aparência física até o comportamento que as mães deveriam ter com seus filhos.
Usamos também uma metodologia quantitativa, para verificar o espaço que a publicidade
voltada às crianças tinha na revista O Cruzeiro. Deste modo pudemos fazer uma estimativa
sobre o interesse do mercado na criança como consumidora. Totalizamos a quantidade das
propagandas em cada exemplar analisado, conferindo a porcentagem de propagandas que
eram destinadas à infância. Deste modo pudemos analisar a progressão que esse tipo de
publicidade teve, verificando sua expressividade numérica dentro do conjunto que pertencia,
se era constante ou esporádica, ou até mesmo se a freqüência aumenta em datas especiais,
como o dia da criança, por exemplo, ou se coincidia com campanhas governamentais.
Desta forma pudemos reconstruir a representação da maternidade e os ideais da
ideologia da maternidade disseminados na publicidade voltada à infância, juntamente
com o que já era tradicionalmente proposto às mulheres (beleza, elegância,
domesticidade), através de um dos principais meios midiáticos que mais atingia a
população na época: a revista.
Assim, o primeiro capítulo desta pesquisa, visa recuperar a gênese do processo
que levou as mulheres a assumirem um papel secundário em relação a seus filhos,
demonstrando como a criança começa a ser valorizada socialmente e também a
crescente influência que os médicos passam a ter na relação entre mães e filhos. No
capítulo seguinte examinamos a difusão da Puericultura no Brasil, principalmente a
influência que esta exerceu nas políticas públicas a partir dos anos de 1930. Da mesma
13 MANNHEIM, Karl Ideologia e Utopia. Zahar, Rio de Janeiro: Editora Globo, 1968.
forma, analisamos a estrutura e expressividade numérica das propagandas destinadas à
infância da revista O Cruzeiro. Feita a análise do contexto e das propagandas,
trataremos, em nosso terceiro capítulo, do modelo ideal que a ideologia da
maternidade propunha para as mulheres-mães na tentativa de normatizar seus
comportamentos.
1. CRIANÇAS, SEMENTES DO FUTURO: A Puericultura e Os Médicos.
Desde pequena, instintivamente, a mulher sonha com a ventura de ter um dia em seus
braços um pequenino ser que passará a constituir o interêsse maximo de sua vida, ao redor
de quem haverão de girar todos os seus planos de futuro.
Maria Tereza
O texto citado acima é um fragmento de uma reportagem da revista O Cruzeiro do dia
8 de maio de 1954, intitulada “A Sublime Missão das Mães” (página 52). Esta reportagem é
uma homenagem ao dia das mães escrita por uma mulher, que como podemos ver, defende a
vontade das mulheres em serem mães como algo normal e natural. A autora destaca também a
dedicação inerente que as mães devem ter com seus filhos, afinal, depois de ser mãe, qual
poderia ser o maior interesse da mulher do que se dedicar completamente a seus filhos?
Na página seguinte encontramos uma foto grande de um bebê em destaque, ocupando
a folha toda. A legenda diz:
“Eu sou o Maior!”
Que outra legenda se pode dar ao dono de um sorriso tal? Símbolo da criança feliz, apoiado
ao ombro de alguém cuja dedicação o acompanhará sempre, numa incomparável afirmação de amor
que só um coração de mãe sabe dar.
Podemos perceber que a legenda refere-se à presença da mãe que estaria carregando a
criança da foto no ombro. Porém, quando lançamos um primeiro olhar para a foto dificilmente
encontraremos a mulher, nossa atenção se volta para a criança, figura central. A presença da
mãe é um detalhe e é somente percebida por causa da legenda. A única parte do corpo da
mulher que aparece na fotografia é seu ombro, no qual a criança se apóia. Não poderia haver
melhor representação do tema que este trabalho irá tratar, a representação da mulher-mãe
como alguém importante na vida das crianças, mas completamente anônima perante os outros.
Afinal, como o texto destaca, o bebê é o maioral.
Por intermédio destes pequenos fragmentos podemos encontra muitas informações
sobre as expectativas atreladas a função da mãe na sociedade brasileira da primeira metade do
século XX. Percebemos uma figura romantizada, capaz de amar e proteger infinitamente seus
filhos, alguém que se dedica totalmente, sempre por perto pronta a amparar. Encontramos
muitas outras frases de efeito na reportagem que normatizam a maternidade como algo
indissociável da mulher, como por exemplo, “O Dias das Mães também poderia ser chamado
de o dia da mulher por ser a maternidade a nossa realização máxima na vida” ou “A
maternidade é uma tendência inata na mulher” – fragmento que vem acompanhado de uma
foto de uma menina brincando com bonecas, para demonstrar que a maternidade é realmente
inata.
Essa figura da mãe que a reportagem nos mostra está amplamente difundida no Brasil
a partir dos anos 30 e é constantemente representada nos meios de comunicação,
principalmente em revistas ilustradas como O Cruzeiro. Porém, mesmo com a romantização
do papel da mãe, podemos perceber que a reportagem também deixa claro que a criança é o
mais importante, principalmente através das fotos que são na maioria de bebês. A mensagem
se fundamenta na premissa que a mãe só existe em função da existência dos filhos.
O texto de Maria Tereza, dessa forma, tem uma idéia central. Para ela a “sublime
missão” da mãe é a de “modelar o cidadão de amanhã”, ou seja, estaria nas mãos das mães o
futuro, não só das crianças, mas também do país. Assim, se torna claro que a mãe tem um
papel secundário em relação ao da criança. É esta o grande agente de interesse e a esperança
de um mundo melhor, a mãe é apenas um instrumento para viabilizar um bom
desenvolvimento de seus filhos.
A mulher, nessa perspectiva, não era valorizada por ela mesma. Ela só poderia se
tornar completa quando tivesse filhos para assumir sua “sublime missão”. Porém não bastava
ser mãe, a mulher-mãe deveria tomar a postura certa diante dos filhos. Suas principais
obrigações eram cuidar, estar junto e dar bons exemplos para formar um bom cidadão para o
futuro. Obrigação na medida em que podemos percebe, através da reportagem, que estas
atribuições aparecem como algo natural e normal. Dessa forma qualquer desvio das funções
destinadas às mães e consideradas inatas nas mulheres, como por exemplo ser uma mãe
dedicada, era encarado como anomalia, digno de condenação.
Estas eram as principais idéias vigentes em torno da mãe e da criança durante grande
parte do século XX. Podemos encontrar inúmeras representações que comprovam esta
situação, basta que folheemos uma revista ou um jornal da época para encontraremos muitos
textos e imagens que nos reafirmam o modelo proposto acima. Nosso objetivo neste capitulo
é, então, recuperar as origens que levaram as mães a terem um papel secundário em relação ao
das crianças. Uma realidade cheia de obrigações e cobranças para as mulheres, demonstrando
que essa situação é conseqüência da valorização da infância e do desenvolvimento e
propagação da Puericultura.
1.1 Crianças: O Tesouro da Humanidade
A valorização da criança é um processo relativamente recente nas sociedades
ocidentais. Ele teve seu início a partir do século XVIII devido principalmente à emergência
das idéias iluministas, onde novos entendimentos foram estabelecidos sobre o indivíduo.
Destacam-se pensadores como Locke que partia da premissa que as diferenças entre os
homens eram determinadas pela educação e Rousseau que também defendia a educação como
algo determinante na vida dos indivíduos, mas que ia mais longe ao querer que isso fosse algo
universal, “uma educação de mesmo tipo, pautada na afetividade familiar e galgada em
princípios racionais”14
Pensadores como Rousseau e Pestalozzi, apontavam a fase da infância como
merecedora de atenção e cuidados especiais. Dessa forma desenvolveram métodos educativos
que foram colocados em prática por pais e escolas e que tratavam de assuntos como o
desenvolvimento físico, moral e intelectual. Ambos reprovavam muitas das práticas
educativas da época, pois as consideravam prejudiciais ao desenvolvimento das crianças. “O
Emílio”, escrito por Rousseau em 1762, foi um livro muito importante para divulgar as idéias
do pensador sobre a liberdade que gostaria que a infância adquirisse. Rousseau acreditava que
as crianças deveriam brincar livremente até os 12 anos de idade e que não deveriam receber
qualquer treinamento acadêmico para não influenciar suas ações no futuro. Tudo deveria
derivar das necessidades e não da obediência.
Dessa forma as crianças passam a serem valorizadas por elas mesmas e encaradas
como sementes do futuro. Tudo dependia da criação que as crianças iam receber para que as
nações pudessem prosperar e as condições de vida melhorar no futuro. Estas idéias foram se
espalhando inicialmente nas classes mais altas, onde as crianças passam ser merecedoras de
mais amor e cuidados. A família também passava por modificações tornando-se mais definida
pela tríade Pai-Mãe-Filhos, esta situação gera um momento propício para se dar mais atenção
às crianças.
Com o passar do tempo e com o desenvolvimento de idéias relacionadas à medicina,
especialmente ligadas à higienização, a criança passou a ser assunto dos médicos. O
capitalismo foi avançando nas grandes cidades durante o século XIX, mas o progresso não
chegava em meio às novas tecnologias, a pobreza e as doenças atacavam a maior parte da
população. Foi nesse sentido que muitos médicos ficaram preocupados com a baixa natalidade
da população e as elevadas taxas de mortalidade infantil, passando a propor medidas para
reverter esse quadro. Tornaram-se, assim, figuras chaves no processo de valorização da
infância, pois acreditavam que nas crianças estava a esperança de um futuro melhor.
A partir do século XVIII a figura do médico foi se fortalecendo, principalmente
através do atendimento médico domiciliar que prestava as famílias mais ricas. Por intermédio
desse contato estes profissionais foram adquirindo conhecimentos sobre o parto, a gravidez,
14 MERHEB, op. cit., p. 11.
como também sobre os primeiros cuidados que os recém nascidos deveriam receber e as
doenças infantis. Deste modo, o médico foi se tornando uma figura de confiança para a
família burguesa, principalmente entre as mulheres.15
A conquista da autoridade do médico só foi possível principalmente por meio das
inovações que a medicina foi incorporando durante o século XIX. A microbiologia foi
desenvolvida por Louis Pasteur, a bacteriologia sistematizada por Robert Koch, a anestesia foi
introduzida em 1840, o Raio-X desenvolvido em 1895, entre outras inovações importantes.16
A medicina desenvolvia-se em vários aspectos, adquirindo novas tecnologias de combate às
doenças existentes, dessa forma tornava-se cada vez mais inadmissível que a mortalidade
infantil continuasse tão elevada.
Os médicos também se preocupavam com as implicações políticas que a situação de
miséria e mortalidade poderiam ter. Alguns problemas já estavam acontecendo como a baixa
resistência física das pessoas, especialmente dos soldados devido às condições de pobreza e
insalubridade da população. Assim, pensando nas crianças como promessas de futuro, os
médicos começaram a defender a idéia de que criar filhos deveria deixar de ser algo restrito
aos conhecimentos leigos para ser assistido por especialistas, para garantir gerações futuras
melhores. Esta deveria ser na opinião de muitos médicos uma ação que abrangesse todas as
classes17.
A partir da metade do século XIX a pediatria passou a ganhar projeção e adeptos,
surgindo as primeiras publicações sobre doenças infantis. E foi em conseqüência deste
contexto, que visava evitar a mortalidade infantil e formar cidadãos fortes para o futuro, que
os médicos pediatras desenvolveram a Puericultura. Esta é uma especialidade médica que
apresentava um “conjunto de técnicas e procedimentos que buscam assegurar o perfeito
desenvolvimento físico, mental e moral da criança, a partir da gestação, sobretudo nos
aspectos de higiene e medicina preventiva.”18. Um dos países pioneiros no desenvolvimento
da Puericultura foi a França.
Nesse sentido as idéias sobre a importância da fase da infância foram se espalhando e
ganhando mais corpo com a atuação dos médicos. Já no começo do século XX aconteceram
os primeiros Congressos que envolviam temas sobre a criança, principalmente a alimentação.
15 MARTINS, “‘Vamos criar seu filho’: os médicos puericultores e a pedagogia materna no século XX”. Relatório de atividades de pós-doutorado apresentado ao CNPQ, Nov, 2004. p.127. 16 MERHEB, op.cit., p. 14. 17 MARTINS, “‘Vamos criar seu filho’...”. op.cit., p.128. 18 Verbete retirado do Dicionário Eletrônico Barsa.
Na América Latina, porém, só em 1916 aconteceu o Primeiro Congresso Panamericano da
Criança em Buenos Aires. Estes fóruns médicos internacionais sobre a infância, como aponta
Martins, contribuíram para que a proteção das crianças passasse a ser uma preocupação dos
governos e também dos movimentos das mulheres.19 Os governos investiram em políticas
públicas tanto para a infância como para a maternidade e as diversas organizações de
mulheres, principalmente através da filantropia, buscaram melhorar as condições de vida das
mães e das crianças.
Dessa forma foi se popularizando a idéia de que as crianças mereciam cuidados
especiais e que a fase da infância era uma etapa importante na formação dos indivíduos. Pela
divisão de gênero estabelecida desde a formação da família burguesa, principalmente no
século XIX e que foi se naturalizando durante o século XX, a mulher era colocada como a
grande responsável pelo ambiente doméstico. Os cuidados da casa, da família e dos filhos
eram destinados a elas, enquanto o homem tinha a função prover o lar. Assim, com a
valorização da infância, a mulher-mãe passou ser a grande responsável por essa fase especial.
Os médicos também consideravam as mães responsáveis pelas crianças em todos os
sentidos, assim acabavam atribuindo também a culpa das doenças infantis somente à elas.
Acreditavam que a grande parte dos problemas que as crianças tinham eram causados pela
ignorância das mães, que se apegavam a práticas costumeiras, da medicina popular, e não aos
conhecimentos médicos. Porém, como os médicos achavam que a responsabilidade estava nas
mãos delas para modificar o quadro infantil, passaram a promover medidas educativas na
tentativa de ensinar às mães as práticas corretas desenvolvidas pela Puericultura. A partir
desse momento criou-se a noção de Mãe Científica, pronta a criar seus filhos por métodos
desenvolvidos pelo saber especializado.
Os médicos atuaram de várias formas para que a Puericultura fosse divulgada para as
mulheres em geral, pois acreditavam que todas um dia seriam mães ou estavam envolvidas em
projetos filantrópicos em defesa da maternidade e infância. Esta atuação dos médicos, para
propagar os preceitos da Puericultura, aconteceu de três formas, a primeira como especialistas
em seus consultórios e, ou na publicação de livros ou textos em revistas. A segunda forma foi
como funcionários públicos dos estabelecimentos ligados ao governo, muitas vezes em cargos
de chefia e por fim, atuaram como legisladores, aprovando leis e projetos para a proteção
materno-infantil. Deste modo, esses especialistas colocaram em prática um lento e gradual
19 MARTINS, “‘Vamos criar seu filho’...”op.cit., p.129.
processo de educação materna, lançando mão de vários métodos modernos de comunicação
que pudessem atingir um grande número de mães, como os livros, os jornais, as revista e
posteriormente a televisão.20
Um dos primeiros e principais recursos usados pelos médicos para educar as mães
foram os livros. Desde fins de fins do século XIX e no decorrer do século XX, os médicos
passaram a escrever sobre qual seria a melhor forma de criar as crianças. Partiam “do
princípio de que não havia um modo natural de criar filhos, ou seja, as mães, por mais
amorosas e bem intencionadas, cometiam muitos erros e deveriam ser guiadas pela
racionalidade científica da medicina e dos especialistas”.21 Assim, os manuais de puericultura
feitos para as mães ganharam uma ampla produção tanto nos Estados Unidos, pioneiro nessa
literatura, quanto na Europa e mais tardiamente no Brasil.
A intenção desses textos era estabelecer as formas corretas de proceder com os
infantes desde seus primeiros dias. Os manuais traziam recomendações para todos os tipos de
atividades, focalizando especialmente na alimentação regulada, na higiene da criança e na
disciplina e controle das emoções, criticando as práticas populares sobre esses assuntos. Nesse
sentido todos os manuais sublinhavam que o maior conhecedor da criança era o pediatra, era
com ele que as mães deveriam retirar suas dúvidas e não com as “sabichonas”, termo muito
empregado para denominar as avós, vizinhas e amigas que poderiam vir a dar conselhos sobre
o ato de criar crianças. O médico, desse modo, era a autoridade possuidora de conhecimentos
e a mãe deveria ser uma boa ouvinte, procedendo da forma estabelecida pela Puericultura.
Como podemos perceber, os médicos especialistas em puericultura tiveram uma ampla
influência não só na valorização da infância, mas também na educação materna. Pretendiam
estabelecer uma maternidade normatizada e regular, uma forma correta de ser mãe para
garantir o pleno desenvolvimento das crianças. Assim, o médico tornou-se uma figura
confiável e munida de autoridade, estabelecendo uma relação paternalista com as mães, que
passavam a ser um instrumento para se alcançar as crianças. Sobrava a elas as culpas e as
obrigações.22
A partir desse contexto a proteção da infância passou a ser de interesse do Estado, dos
filantropos e da sociedade em geral. Isso implicou também no interesse do mercado industrial
brasileiro pelas crianças, que começaram a serem encaradas como consumidoras em
20 MARTINS, “‘Vamos criar seu filho’...”, op.cit., p.131. 21 Ibid., p.132. 22 MARTINS, “Será que mamãe comprou? Imagens da maternidade nas páginas da revista O Cruzeiro”. (1930-1960). Texto apresentado no 1º Simpósio Brasileiro Gênero & Mídia. Curitiba, agosto de 2005.
potencial, principalmente a partir dos anos de 1930. Nesse sentido se folhearmos revistas
como O Cruzeiro, que tinham um amplo espaço para a publicidade, encontraremos inúmeras
propagandas destinadas às crianças, como de filmes fotográficos, de geladeiras, de lâmpadas,
entre tantos outros produtos, que poderiam ser comprados por qualquer pessoa, mas que
focalizavam suas propagandas nas crianças. Isso ocorre a partir do momento em que as
propagandas passam a propor aos adultos que comprassem pensando no bem-estar e saúde
dos infantes. Portanto, o foco está na criança, mas como ela não tem poder de compra, essas
peças publicitárias apelavam aos adultos. Nesse sentido encontramos propagandas que
“falam” às mulheres-mães, identificando-as como responsáveis por seus filhos.
Olga Brites já vinha discutindo essa questão na sua pesquisa que trata da construção
da imagem da criança e a relação que ela tem com as novas noções de higiene dentro do
discurso publicitário.23 A autora afirma que as crianças estavam associadas às propagandas
que possuem a temática relacionada à saúde e que esta publicidade destinada à infância
propõe um modelo de família. Assim, Brites também revela a freqüente participação feminina
nessas propagandas, afirmando que a mulher aparece como mãe e responsável pelas crianças,
apresentando um modelo tradicional de comportamento.
É nessa medida que utilizamos as propagandas para verificar qual era a imagem que
estas produziam da mulher-mãe e de sua relação com os filhos. Deste modo, podemos
identificar a influência, nesta relação, da Puericultura, em um momento que os médicos
estavam tentando popularizar os preceitos puericultores. Assim como pudemos observar esta
influência na reportagem citada no início do capítulo, onde a autora Maria Tereza descreve
uma mãe totalmente dedicada à criança.
1.2 Os Médicos e a Publicidade
A publicidade é um mecanismo criado para vender produtos ou serviços, porém não é
só isso, as propagandas são discursos que utilizam elementos tradicionais existentes na
sociedade para incitar as pessoas ao consumo. Nessa medida, podemos dizer que ao mesmo
tempo em que a publicidade vende produtos, ela também propõe idéias e modelos, pois para
que as pessoas comprem é necessário que se identifiquem com a situação, modelos e atitudes
dadas pela propaganda. Assim, ao mesmo tempo que a propaganda propõe o consumo, ela
23 BRITES, op. cit.
reproduz ideologias e estilos de vida24.
Dessa forma a propaganda é baseada no mundo do fantástico e do perfeito, não
reproduzindo a realidade, mas a forma que os indivíduos ou grupos gostariam de ser ou viver.
É nesse sentido que Vestergaard e Schroder (1988) afirmam que as propagandas se pautam
nas convicções plenamente estabelecidas na sociedade, afinal nada pode ofender ou causar
mal-estar ao receptor, o objetivo é persuadir a comprar. Desde modo a publicidade não cria
novas necessidades, ela trabalha com o que é conhecido sobre o segmento que pretende
persuadir a adquirir seus produtos ou serviços. É exatamente nesse sentido que as
propagandas nunca se situam no presente, elas sempre estão falando do futuro, mas com
concepções estabelecidas no passado.25
Portanto, levando em conta as considerações levantadas sobre propaganda, justifica-se
fazermos uso dela para verificar as concepções de comportamentos e ideologias estabelecidas
na época que a propaganda reproduzia. Assim, podemos localizar uma das primeiras situações
que revela a articulação da publicidade com os preceitos da Puericultura, a presença do
médico nos anúncios para crianças.
Como já vimos anteriormente o médico passou a ser uma figura de destaque ganhando
a confiança das famílias. O seu trabalho tornou-se requisitado e adquiriu respeito já ao longo
do século XIX. No Brasil não foi muito diferente, pois desde 1830 a 1840 foram escritas as
primeiras teses que utilizavam a Higiene como tema26. A medicina brasileira por vezes
demorava para acompanhar os passos dados no exterior, mas sempre estava articulada as
novas técnicas e procedimentos que apareciam, pelo menos na teoria.
Partindo da importância que a figura do médico passou a ter, bem mais sólida no
século XX, não foram raros os casos em que estes especialistas apareceram nas propagandas,
não só destinadas à infância, mas principalmente na publicidade de remédios. As propagandas
utilizam a autoridade e o respeito que os médicos possuíam perante a sociedade para respaldar
os produtos anunciados. Uma técnica que condiz com as idéias apontadas acima sobre
publicidade, afinal esta fazia uso das concepções já estabelecidas e difundidas para obter a
aceitação do público.
Dessa forma a presença do médico na publicidade não é acidental. Claro que muitos
anúncios eram feitos pelos próprios médicos para divulgarem seus serviços e fórmulas.
24VESTERGAARD, T. & SCHRODER, K., op. cit. 25 BERGER,op. cit.. p.134. 26 MARTINS, A. P. V., “Políticas da maternidade: uma introdução à história comparada de gênero e políticas públicas”. Relatório de atividades de pós-doutorado apresentado ao CNPQ, Nov, 2004. p.42.
Porém, quando o tema está relacionado com as crianças, a sua aparição nas peças publicitárias
se amplia consideravelmente. Vários nomes e depoimentos de especialistas aparecem, vários
textos apontam que produto x ou y são indicados pelos médicos ou muitas vezes eles estão
presentes nas imagens.
A revista O Cruzeiro, no período em que estudamos, era um meio de comunicação
muito mais conservador do que inovador, mas isso no sentido do conteúdo, afinal era uma das
revistas que mais apresentava as inovações técnicas que apareciam para a imprensa escrita na
época. Seus temas principais giravam em torno da família, pontuada na divisão de gênero,
assim apesar de ter assuntos variados que se destinavam ao público em geral, também
continha uma seção de textos só voltada para as mulheres.
Respeitando este modelo, as propagandas que encontramos em O Cruzeiro são
bastante conservadoras, colocando o pai como provedor, a mulher como dona de casa e mãe
e, também, como alguém que estava sempre em busca da juventude e beleza. Na verdade as
outras revistas também tocavam nesses aspectos, mas às vezes se permitiam serem mais
modernas quanto aos assuntos contemporâneos, com algumas propagandas encontradas em
revistas como Claudia27. Deste modo não havia mudanças significativas nos temas de
propaganda em O Cruzeiro, elas permaneceram muito parecidas umas com as outras durante
todo o período estudado, sempre enfocando aspectos familiares.
Nesse sentido encontramos muitas propagandas que reproduziam a participação do
médico na vida familiar. Como pretendiam os especialistas puericultores, as propagandas
também colocavam os médicos como os principais conhecedores sobre os métodos corretos
para se criar uma criança. A figura da mãe, deste modo, era colocada como dependente dessa
relação mãe-médico para poder desempenhar sua função corretamente, como bem demonstra
o título da propaganda de 20/06/1942, do Leite de Magnésia de Phillips (Pág 96): “Para
salvaguardar a saude de seus filhos (...) pergunte ao médico”. A imagem dessa propaganda
também é bastante ilustrativa e coerente com a proposta da Puericultura, apontando para o
médico como a autoridade, a mãe como instrumento e a criança como beneficiária. Como
podemos verificar abaixo:
27 BORDINHÃO. op. cit.
Imagem 1 – Representação ideal de relação Médico-Mãe-Criança
A imagem traz a representação da relação ideal que articula médico, mãe e criança: o
homem identificado como médico, um senhor mais velho, portanto mais experiente, olha
diretamente para a criança, já que é de seu interesse o seu pleno desenvolvimento; a mulher ao
lado que aparece segurando o menino com a mão é a mãe, ela também sorri, mas seu olhar
está voltado para o médico, demonstrando que as mães deveriam estar perto de seus filhos e
escutar o que os médicos tinham a dizer; e por fim, temos o resultado dessa relação ideal entre
mãe e médico, uma criança sorridente demonstrando saúde e felicidade a olhar para os
leitores.
No entanto, o aparecimento da figura do médico nas propagandas não era uma mera
colaboração da publicidade para garantir o bem-estar das crianças. Na verdade os anúncios
usavam a autoridade do médico para respaldar seus produtos, criando até mesmo parcerias
com estes profissionais no intuito de que estes divulgassem por conta própria seus produtos.
Este é o caso de indústrias como a Nestlé, que possuía uma longa série de peças publicitárias
sobre o título: “Para o bem de seu filho, siga os conselhos do médico”. Nestas propagandas
apareciam imagens de bebês com seus nomes e os produtos da Nestlé que faziam uso, como
também os nomes dos médicos que os indicaram.
A Nestlé, portanto, reforçava a autoridade médica e associava seus produtos com uma
nutrição saudável e recomendável para crianças. A indústria apoiava também concursos de
robustez, amplamente difundidos na época, e tinha uma série de propagandas sobre o título
“Garantia de Sucesso”, apresentando os vencedores destes concursos e os produtos da Nestlé
que as crianças vencedoras consumiam. A Nestlé, portanto, associou a sua marca à saúde e
principalmente à boa alimentação infantil, numa época onde a maioria da população estava
Imagem 2- Puericultura de Metacal
preocupada com a nutrição das crianças. Dessa forma contribuiu para a construção de hábitos
alimentares na população brasileira, como bem ressalta Suely Amorim, que analisou a
influência que esta empresa teve na substituição da amamentação natural por mamadeiras de
leite em pó na alimentação dos bebês.
Pioneira na fabricação do leite em pó no Brasil, esta empresa montou parcerias
com médicos pediatras através de incentivos financeiros e cursos de capacitação,
conseguindo tornar seu produto uma indicação médica nos casos de falta de leite
materno e, por meio das propagandas, naturalizou a substituição da amamentação
natural pela artificial. Portanto, a autora comprova em sua pesquisa que o discurso
publicitário funciona, pois os dados indicam que as mães passaram a desmamar seus
filhos cada vez mais cedo para fazer amplo uso do aleitamento artificial28.
Iniciativas como estas da Nestlé estavam fundadas em garantir o sucesso de seus
produtos por intermédio de figuras respeitadas como a do médico, fazendo uso também da
idéia de que era o médico o mais capacitado para falar sobre os cuidados das crianças. Suas
propagandas igualmente traziam imagens de mães sempre ao lado dos filhos, aparentando
serem senhoras distintas, satisfeitas com a oportunidade de consumir os Produtos Nestlé e
garantir um bom futuro a seus filhos. Dessa forma a Nestlé colaborou para disseminar, em
suas propagandas, os preceitos da Puericultura, ajudando os mesmo a se sedimentarem.
Um dos casos mais significativos da presença
médica nas propagandas foi a participação do Dr.
Moncorvo Filho, assinando uma carta que
comprovava a eficiência do Metacal, um remédio
fortificante, na propaganda divulgada em 07/07/1929
(pág. 45). Este anúncio foi uma das primeiras
propagandas que encontramos A articulação com os
preceitos puericultores. Seu texto reforça a
responsabilidade da mulher sobre seus filhos, pois a
mãe usa o produto na sua gestação e depois continua
dando o mesmo produto para os seus filhos,
possibilitando que estes, através de sua ação, se
tornem “sadios e robustos” para o futuro.
28AMORIM, op. cit.
Inicialmente não encontramos muitas propagandas enfocando a figura da criança e
nem suas necessidade especiais, muito menos de produtos especializados nos infantes. A
propaganda de Metacal foi a primeira peça publicada, entre aquelas analisadas nos primeiros
exemplares da revista O Cruzeiro, que ressaltava a ação feminina, o respaldo médico, o bem-
estar da criança e a própria fala infantil,29 elementos que dificilmente apareciam. Até mesmo a
imagem é bastante representativa, pois demonstra que o interesse do anúncio é nas crianças,
apresentadas nas várias fases de crescimento, como podemos ver na imagem acima. Na
verdade, no início a maioria das propagandas eram voltadas às mulheres, não existiam muitos
anúncios destinados a infância. Esta propaganda em questão, como já apontamos
anteriormente, apresenta não só o respaldo médico, mas contava com a participação de um
dos maiores médicos articuladores da proteção materno-infantil no início do século XX.
O médico pediatra Moncorvo Filho foi idealizador do Instituto de Proteção e
Assistência à Infância do Rio de Janeiro, criado em 1899, uma das primeiras instituições
particulares que tinha serviços de assistência e de saúde destinados à maternidade e à infância,
e que posteriormente serviu de modelo para os serviços prestados pelo Estado..30 Graças a
ações de médicos como Moncorvo Filho, as idéias vinculadas à Puericultura foram se
disseminando na sociedade brasileira, possibilitando que a Filantropia e o Estado começassem
a agir também em favor da proteção materno-infantil e que as pessoas, principalmente as
mães, passassem a utilizar e a defender os métodos cientificamente desenvolvidos para se
criar as crianças. Este será o tema desenvolvido no nosso próximo capítulo.
29 “Não somos meninos rachiticos. O crescimento não nos prejudica. Não temos os dentes cariados porque o METACAL, usado pelas nossas mães antes de nascermos e quando éramos bêbês e por nós mais tarde, nos conserva sadios e robustos.” 07/07/1929 (pág. 45) 30 MARTINS,“Políticas da maternidade...”, op.cit., p. 45.
2. A DIVULGAÇÃO DO IDEÁRIO PUERICULTOR NO BRASIL E A FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS.
Esta reportagem não é feita para acompanhar um pediatra atendendo a um bebê
recém-nascido, mas para mostrar, através dos conceitos emitidos pelo médico como todas as
mães devem proceder acertadamente para que seus filhos sejam saudáveis e estejam livres
dos perigos de aconselhamentos que advêm de opiniões erradas, conselhos e simpatias sem
nenhuma base técnica. (O Cruzeiro, 01/11/1958, pág. 8)
O fragmento acima é de uma reportagem em homenagem ao Dia da Criança e,
como podemos perceber, referia-se aos procedimentos técnicos e corretos destinados
aos cuidados que todo bebê recém nascido deveria receber. Uma leitura atenta do texto
nos mostra a influência da Puericultura nesta reportagem. Afinal, o texto se dirige
diretamente às mães, afirmando que existe uma forma correta de cuidar das crianças e
que esta forma só é adquirida através de aconselhamentos de pessoas que possuam
conhecimentos técnicos, principalmente os médicos, e não por meios de pessoas
comuns que podem aconselhar erradamente. Criar uma criança é uma ciência. Esta era
a principal premissa que os médicos puericultores defendiam e que procuraram
difundir especialmente entre as mulheres. Assim, este fragmento jornalístico vem
corroborar a eficiência da difusão destes preceitos na sociedade brasileira.
A Puericultura obteve bastante aceitação da sociedade em geral, principalmente
das mães, através da ampla divulgação que alcançou nos mais diferentes meios de
comunicação. Além dos manuais escritos por médicos, grande parte da impressa
escrita divulgou a Puericultura como a forma correta de se criar as crianças, apoiando
a idéia de que a criação dos filhos não podia ser deixado nas mãos das mães, abertas a
aconselhamentos incorretos. Foram inúmeras as seções de aconselhamento e troca de
cartas entre os médicos e as mães publicadas em várias revistas e jornais na primeira
metade do século XX, divulgando a Puericultura e investindo na padronização dos
procedimentos maternos com os infantes.
A reportagem citada acima não está isolada em meios às outras que foram publicadas
entre as décadas de 1930 e 1960. A revista O Cruzeiro demonstrou bastante interesse nos
assuntos referentes à infância, poderíamos listar uma grande quantidade de reportagens que
trataram principalmente dos aspectos de saúde e nutrição das crianças. Já em seu segundo ano
de publicação, apresentava uma seção denominada “Cartas ás Mães”, uma tradução dos textos
do professor Wilhelm Stekel, de Vienna, sobre os procedimentos corretos que as mães
deveriam utilizar na criação de seus filhos. Mais tarde, já nos anos 1940, outra seção de
aconselhamentos médicos foi estabelecida semanalmente, durante um ano, sob o nome de
“Página das mães” e era escrita pelo pediatra Ladeira Marques. Assim, podemos afirmar que a
revista estava em conformidade com o ideário puericultor, desde seus primeiros exemplares.
Ao estabelecermos uma comparação entre as duas seções citadas podemos perceber
alteração nos aconselhamentos médicos no decorrer dos anos. Os primeiros conselhos
proferidos em 1929 acentuavam a autoridade materna e o controle das emoções e o professor
Stekel falava dos problemas do excesso de carinho aos bebês poderia acarretar. Já Dr. Ladeira
Marques, autor de um manual de Puericultura intitulado o “Manual das mães”, tratava da
organização do quarto, das roupas mais adequadas, da alimentação dos infantes, entre outros
temas, nas mais diferentes idades. Estas diferenças marcam as mudanças não só do estilo de
cada médico em aconselhar as mães, mas também as alterações no discurso Puericultor que
inicialmente era baseado no reforço da autoridade materna, mas que, no decorrer do século
XX, passou a se focalizar cada vez mais nas necessidades físicas e psicológicas das crianças.
As influências dos preceitos da Puericultura não estavam concentradas somente em
revistas como O Cruzeiro, mas também nos vários segmentos da sociedade que estavam
interessados em proteger a infância e a maternidade. Nosso objetivo neste capítulo é
demonstrar como o ideário puericultor foi divulgado no Brasil, sendo, dessa forma,
amplamente aceito por uma grande parte da população brasileira, principalmente pelos
médicos e mulheres das classes mais abastadas que se dedicaram intensamente a esta causa.
E, mais tarde, pelo Estado que passou a desenvolver políticas públicas destinadas à proteção
materno-infantil.
2.1 Salvar as crianças: compromisso da sociedade ou do Estado?
A Puericultura é uma especialidade médica que para obter êxito, na sua busca do
desenvolvimento pleno das crianças, necessita primordialmente do envolvimento dos
responsáveis pelas mesmas. É somente através da ação dos pais, ou de quem cuida das
crianças, que as condições de vida da infância podem ser melhoradas, garantindo bem-estar,
saúde e boa nutrição aos infantes. Assim, um dos primeiros passos dados pelos médicos, com
início do desenvolvimento da Puericultura, foi divulgar o conhecimento científico para as
mães. A idéia principal era padronizar o comportamento das mães para garantir a boa saúde
das crianças. A impressa escrita e as edições de manuais de puericultura foram as principais
formas de divulgação, que atingiram uma grande parcela de leitores, especialmente as
mulheres.
Muitas mulheres ajudaram a disseminar a Puericultura como a forma adequada de
cuidar dos filhos e aceitaram largamente a pedagogia materna dos médicos, vários
movimentos assistencialistas foram colocados em prática por elas. No decorrer do século XX
o ideário puericultor foi largamente difundido e absorvido não só pelas mães, mas também
pela sociedade em geral. Desta forma a Puericultura visava a intervenção direta no dia a dia
das famílias. O médico tornava-se o mais capacitado para falar sobre como criar corretamente
as crianças. Porém, a intervenção direta destes especialistas no seio familiar era algo bastante
novo nas sociedades ocidentais.
Antes da primeira metade do século XIX a família era um círculo fechado, controlado
apenas pelos familiares. Assuntos com a maternidade ficavam restritos aos cuidados da
própria mãe, que compartilhava suas práticas e dúvidas sobre a criação de seus filhos somente
com parentes, vizinhas e parteiras. Eram raros os casos em que os próprios médicos
participavam mais ativamente dos cuidados das crianças. Esta situação era resultado da idéia
de que as interferências nos assuntos familiares eram impróprias. A maioria das pessoas
reprovava até mesmo as iniciativas assistencialistas, consideradas por muitos como ameaças
“à autonomia familiar e à autoridade paterna”31.
Porém, este panorama foi mudando lentamente com a expansão do capitalismo, a
miséria e a pobreza foram se ampliado cada vez mais nas grandes cidades como Berlim,
Londres e Paris. As condições de moradia, de alimentação e de trabalho eram precárias,
principalmente entre os operários. Quem mais sofria com essa situação eram as mulheres e as
crianças.
Passou, então, a existir uma preocupação com relação aos rumos que as nações teriam
se estas condições de miséria persistissem. Os médicos foram os primeiros a mostrar as
31 MARTINS, “Políticas da maternidade...” op.cit., p.14.
estatísticas de mortalidade infantil diagnosticando futuros problemas populacionais e raciais
que essa situação poderia gerar. Defendiam que era necessário dar mais atenção à infância e
para isso era preciso uma mudança dos hábitos familiares, especialmente na forma como as
crianças eram criadas. Os médicos também perceberam que não seria possível mudar o atual
quadro infantil sem a assistência dos governos. Assim, através da argumentação dos médicos
e da ação de vários segmentos sociais, da acentuação do nacionalismo e da preocupação dos
governos com a questão social, os Estados passaram a intervir mais ativamente como a
elaboração de uma legislação protetora da infância e da maternidade.
A família, dessa forma, passou a ser encarada como uma instituição política, base e
fundamento da nação. Afinal, “se os Estados se importavam com o futuro da nação, deveriam
prevenir a queda da natalidade e combater as altas taxas de mortalidade infantil”, caso
contrário logo iriam sentir os efeitos sobre a composição de mão de obra e dos exércitos.32
Concepção que já apresentava a influência da Puericultura, pois via nas crianças a base de um
mundo melhor. Porém, a aceitação desta forma de pensar foi lenta e paulatina, devido
principalmente às concepções ideológicas da época que se baseavam no liberalismo
econômico, que partia do princípio que os mais fortes sobrevivem, pois a sociedade estava
aberta aos investimentos e talentos individuais de cada um.
As primeiras ações em prol da questão social foram feitas através da iniciativa
privada, só mais tarde o Estado começou a se articular com as medidas já existentes, para
iniciar a produção de uma legislação social. Os primeiros a serem beneficiados pela proteção
do Estado foram as mulheres e as crianças. As primeiras leis tratavam justamente do trabalho
feminino e da amamentação mercenária.
Assim, a maternidade e a infância deixaram de ser assuntos privados de cada família
para se tornarem de interesse público, recebendo gradativamente a interferência tanto do
governo quanto, principalmente, dos médicos através da Puericultura. Da mesma forma, os
problemas relacionados às condições maternas e das crianças também se tornaram temas de
congressos e reuniões, onde diferentes grupos, como os católicos, as mulheres ativistas e os
médicos, reivindicavam melhores condições de vida para as mulheres e seus filhos. É
justamente neste contexto que a questão materno-infantil passa a ser amplamente discutida e o
ideário puericultor divulgado entre os vários segmentos sociais, adquirindo grande aceitação.
A puericultura tornava-se a forma correta de cuidar das crianças, principalmente das classes
32 Ibid., p. 23.
mais abastadas.
As primeiras leis relacionadas à maternidade e à infância começaram a ser
estabelecidas na segunda metade do século XIX em países como a França, Alemanha e Suíça.
Nesse sentido, gradativamente o Estado passou a ser mais intervencionista eximindo a
iniciativa privada das responsabilidades sociais. No Brasil, a infância começou a ser tratada
como uma fase especial e de preparação do futuro da nação brasileira, mais amplamente a
partir da primeira República33. Anteriormente a este momento, praticamente só médicos se
interessavam pelo tema da infância, especialmente através da produção de trabalhos
acadêmicos.
Assim, da mesma forma que em outros países, a ação filantrópica foi a primeira a
tratar da proteção à maternidade e à infância, já apresentando grande influência do ideário
puericultor, pois eram os médicos os principais responsáveis pelas instituições que prestavam
assistência às mães e às crianças. Foram eles também os primeiros a reivindicar mais
participação do Estado na questão materno-infantil. Porém, mesmo que fossem muitas as
vozes dos médicos, como destaca Martins, por muito tempo não foram ouvidas pelas
autoridades brasileiras34.
As primeiras demonstrações que requisitavam a interferência do Estado brasileiro na
proteção da maternidade e da infância, ainda no século XIX, estavam relacionadas com a
construção de maternidades para mulheres pobres e escravas. Na verdade não existia
praticamente nenhuma intenção de interferência por parte do Estado nesta proteção. A
intervenção estatal na proteção de mães e crianças, desta forma, somente se efetivou quando
Getúlio Vargas assumiu o poder a partir dos anos 30. Até este momento a ideologia mais
presente, segundo André Pereira, era um tipo de “liberalismo cristão”, ou seja, a sociedade
delegava ao Estado “um papel meramente fiscalizador, enquanto toda ação (assistencialista)
ficava nas mãos das organizações privadas, movidas pelo dever de caridade cristã”.35
Uma das primeiras instituições particulares, dirigida por médicos e se fundava nos
preceitos da Puericultura, foi já mencionado Instituto de Proteção e Assistência à Infância do
Rio de Janeiro. O Instituto oferecia “atendimento médico e assistencial para crianças”,
divulgava “os preceitos da higiene infantil através de propagandas e palestras abertas ao
33 AMORIM, op. cit., p. 45. 34 MARTINS, “Políticas da maternidade...” op.cit., p. 42. 35 PEREIRA, op.cit., p. 44.
público”, oferecendo também “vacinação e atendimento às mulheres grávidas e puérperas”.36
Destacou-se igualmente por ser a primeira instituição a promover Concursos de Robustez
Infantil que se popularizaram bastante principalmente na primeira metade do século passado.
Além disso organizou a Gota de Leite que distribuía leite para mulheres que não podiam
amamentar, realizando também conferências para as mães e contava com uma creche em
benefício das mães trabalhadoras.
As mulheres, principalmente das altas e médias classes, também participavam
ativamente das ações assistencialistas. Porém a figura do médico obtinha muito mais
prestígio, afinal estas mulheres também eram ou poderiam ser mães, então estavam sujeitas
igualmente à pedagogia materna empreendidas pelos puericultores. A figura feminina era
claramente colocada em segundo plano na ideologia que valorizava a criança. A partir do
momento em que a infância começou a ser considerada a semente do futuro e portanto,
merecedora de proteção e de se desenvolver plenamente, é que a proteção à maternidade
também passou a ser fundamental. Somente desta forma a proteção aos infantes poderia ser
eficiente.
Assim, o Estado brasileiro, já influenciado pelo ideário puericultor e também seguindo
as tendências internacionais referentes à questão materno-infantil, iniciou timidamente suas
primeiras medidas de proteção à maternidade e à infância a partir do governo de Arthur
Bernardes. Antes deste momento já existiam algumas leis que tratavam do trabalho de
mulheres e de crianças em fábricas, no entanto tudo permanecia só no papel, “letra morta”37.
Com Bernardes, em 1923, foi criada a Inspetoria de Hygiene Infantil, primeiro órgão público
destinado proteger a maternidade e a infância, possuindo a finalidade de implantar serviços de
saúde e de fiscalizar as maternidades do Distrito Federal. Entretanto, a lei em si tocava muito
pouco sobre as atribuições do Estado, tratando mais especificamente das medidas que a
iniciativa privada deveria tomar para fornecer melhor atendimento às mulheres e às crianças.
Na verdade a lei de 1923 teve como base o pensamento liberal e, desta forma, não tornou suas
medidas compulsórias, deixando os benefícios serem resultado de acordos entre patrões e
empregados, assim, as melhorias foram bastante limitadas. O Estado propunha as leis, mas
não fiscalizava.
Este contexto só mudou com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder. Os médicos e os
intelectuais participaram ativamente do governo e reivindicavam a criação de órgãos e
36 MARTINS, “Políticas da maternidade...” op.cit., p. 45. 37 MARTINS, “Políticas da maternidade...”, op.cit., p. 48.
projetos governamentais que efetivamente atendessem a proteção materno-infantil.
Defendiam, assim, mais interferência do Estado não só para orientar, mas como regulador das
relações sociais. Um das primeiras medidas tomadas foi a criação do Código de Trabalho das
Mulheres em 1932, que transformava muitas das medidas estabelecidas já na lei de 1923
obrigatórias, sendo um texto mais detalhado que seguia as tendências internacionais sobre o
trabalho feminino, principalmente as determinações da Organização Internacional do
Trabalho.
O Governo Provisório se mostrou bastante interessado nos assuntos referentes à
infância e, assim, podemos perceber uma clara conformidade de seus ideais com a
Puericultura e A Eugenia. O ideário puericultor se espalhava na sociedade em passos largos.
Já no início de seu governo Vargas criou o Ministério da Educação e da Saúde Pública,
mantendo a Inspetoria de Hygiene Infantil até 1934, assim a proteção à maternidade e à
infância enfim ganhava destaque38. Apesar das dificuldades no funcionamento efetivo das
políticas públicas, Martins ressalta que “os serviços da Inspetoria foram estimulados e
começavam a apresentar resultados”39. A Inspetoria administrava 20 consultórios, uma creche
e o Hospital Arthur Bernardes, oferecendo clínica pediátrica, atendimento pré-natal, com
pessoas especializadas e capacitadas tecnicamente. Foram também criados lactários. Porém, o
grande problema era que esses serviços ficavam restritos ao Distrito Federal e sua expansão
foi dificultada pelos conflitos pessoais entre os membros do governo que divergiam sobre a
questão da proteção materno-infantil.40
Em 1934 a Inspetoria de Hygiene Infantil passou à Diretoria de Proteção à
Maternidade e à Infância, alimentando seu status de importância, pois a partir deste momento
passou a indicar um programa nacional para proteção materno-infantil. A Diretoria
administrava hospitais infantis e maternidades, formava quadros de profissionais com a
Escola de Puericultura, além de possuir um atendimento centralizado também nas mulheres,
que passaram a contar com a Inspetoria Técnica de Higiene Pré-Natal e Assistência ao Parto.
A diretoria possuía igualmente uma secção de Assistência Social que se encarregava em
atender mulheres e crianças pobres, as mães recebiam seguros ou pensões e as crianças
abandonadas proteção. Porém, os seus serviços não eram somente destinados aos pobres,
38 PEREIRA, op. cit., p.13. 39 MARTINS, “Políticas da maternidade...” op.cit., p. 52. 40 Sobre os conflitos no interior do governo do Estado Novo sobre a questão materno-infantil ver: PEREIRA, op.cit., Capítulo 4: “Por uma política demográfica do Estado Novo: Do Estatuto da Família ao DNCr” p.155-200.
englobavam as mães em geral através da pedagogia materna que não apresentava distinção
entre as mulheres-mães. Todas necessitavam saber os preceitos da Puericultura para criar
corretamente seus filhos.
Mesmo com estas medidas, o alcance das políticas públicas era ainda bastante
limitado, o principal problema que o governo enfrentava se encontrava na falta de recursos
financeiros. No entanto, a ação governamental de Vargas abriu muitos caminhos, pois já na
Constituição de 1934, tornava obrigatória a proteção materno-infantil em todo território
brasileiro, isso possibilitou que os Estados e municípios tomassem iniciativas por contra
própria para garantir esta proteção, articulados com a filantropia.
Com o estabelecimento do Estado Novo, em 1937, muitas reformas foram
implantadas e a Diretoria de Proteção à Maternidade e à Infância passou a ser apenas uma
Divisão ligada ao Departamento Nacional de Saúde, ficando enfraquecida.41 Porém, os
interesses de Vargas não tinham mudado, ele continuava a defender o casamento, a família, e
o aumento da população. Assim, foi nesse sentido que o Departamento da Nacional da
Criança foi criado em 1940, através do Decreto-lei 2024 que tratava das diretrizes políticas
sobre a proteção materno-infantil (saúde e assistência) a serem estabelecidas no Brasil.
O DNCr foi um órgão muito importante que permitiu a continuidade das políticas
públicas voltadas à maternidade e à infância até anos 1970, quando foi reduzido à condição de
Coordenação de Proteção Materno-Infantil.42 Seus serviços eram de estrutura administrativa e
de centro de formação de médicos e enfermeiras dentro dos princípios puericultores. Um de
seus marcos foi a amplitude de alcance de seus serviços, já a partir dos anos de 1940 e 1941
foram estabelecidos Departamentos Estaduais da Criança em vários Estados brasileiros, como
também foram construídos no decorrer dos anos maternidades e Postos de Puericultura, que se
destinavam ao atendimento dos mais desfavorecidos. A propaganda também foi um aspecto
importante do DNCr que divulgou por meio de cartazes, conferências populares e concursos
de robustez infantil os preceitos da Puericultura.43 Neste sentido podemos perceber as fortes
influências do ideário puericultor nas medidas varguistas e também a propagação da
Puericultura durante seus anos de governo.
Após a redemocratização do Brasil as políticas voltadas à maternidade e à infância
continuaram. Já em 1948, no governo de Dutra, foram disponibilizadas verbas para
41MARTINS, “Políticas da maternidade...” op.cit., p. 56. 42 PEREIRA, op. cit., p. 7. 43 MARTINS, “Políticas da maternidade...” op.cit., p. 57.
construção de 160 maternidades e 200 postos de puericultura através da elaboração do Plano
econômico Salte que pretendia amenizar problemas de saúde, alimentação, transporte e
energia no Brasil. E no mandato de Juscelino Kubitschek foi estabelecido o Fundo Nacional
de Assistência à Maternidade, para ser distribuído entre maternidade e hospitais. Dessa forma
a assistência e a preocupação com as crianças e a maternidade só tenderam a se solidificar,
tendo seus desdobramentos também no período da Ditadura Militar.
2.2 A Publicidade e o Ideário Puericultor
Podemos perceber, através do contexto acima, que houve a massificação do discurso
ideológico que valoriza a infância e os conceitos colocados pela Puericultura em vários
âmbitos da sociedade brasileira. O mercado industrial, assim como o Estado, também
assimilou o ideário puericultor e passou a dar atenção às crianças. A publicidade voltou seu
olhar para as crianças, transformando-as em consumidoras. Na verdade, antes de iniciar esta
pesquisa pensamos que a publicidade destinada às crianças teria uma expressividade numérica
maior do que encontramos em nossa análise. Porém, podemos perceber que ela mantém uma
regularidade entre os anos de 1929 a 1964, girando em torno de 2 a 7 % por ano. Vejamos o
gráfico:
Propagandas Destinadas à Infância
2,22%
2,05%
2,64%
6,01%
3,87%
3,96%
4,32%
3,82%
4,53%
3,26%
2,66%
5,99%
5,69%
4,48%
5,36%
4,67%
7,13%
5,22%
4,40%
3,52%
0,00% 1,00% 2,00% 3,00% 4,00% 5,00% 6,00% 7,00% 8,00%
1929
1930
1935
1940
1941
1942
1944
1945
1946
1947
1948
1949
1950
1952
1954
1956
1958
1960
1962
1964
Anos
Porcentagem
A quantidade de propagandas varia muito de exemplar para exemplar, desde
nenhuma propaganda até dez em uma mesma revista. Nesse sentido evidenciamos uma
falta de critério em suas aparições, as propagandas aparecem aleatoriamente, suas
disposições nas páginas não incluem outros anúncios ou reportagens relacionadas à
criança, exceto em alguns casos. Percebemos também que ainda não existia muita
estratégia comercial para as propagandas voltadas à infância, um bom exemplo é que
nem sempre os anúncios se intensificam, como hoje em dia, em meses como outubro e
dezembro que estamos habituados a dar presentes para as crianças. O dia da criança foi
estabelecido nos anos 20, mas mesmo assim não foi muito explorado pela publicidade
durante o período analisado.
Podemos explicar essa variação na medida em que verificamos que a
publicidade brasileira naquele momento estava começando a se desenvolver,
juntamente com a indústria. Muitas das empresas que se estabeleceram no Brasil eram
multinacionais e usavam as técnicas de propaganda importadas de seus países de
origem, como evidencia Civita44. A publicidade servia muito mais para tornar um
produto conhecido, do que para enfrentar a concorrência.
No entanto, mesmo que esta publicidade pareça pequena, ela demonstra que o
mercado industrial estava interessado na criança. Afinal não chegamos a encontrar 25
exemplares sem nenhuma propaganda voltada à infância dos mais de 700 que
analisamos. Isso significa menos de 6% do conjunto total de exemplares. Além disso,
cabe ressaltar que é ao longo dos anos 1930 a 1950 que surgem produtos específicos
para crianças, como talcos, óleos, mamadeiras, brinquedos, remédios e principalmente
alimentos, que ampliam a possibilidade de aparecimento de propagandas direcionada
para este grupo.
Apesar das variações, o número de propagandas voltadas à infância é crescente,
atingindo suas maiores expressividades em 1958 com 7,13% e 1940 com 6,01%, logo
em seguida temos os anos de 1949 e 1950. Para avaliarmos esses dados não podemos
descartar as circunstâncias que encontramos nas revistas. Por exemplo, a variação do
número de propagandas totais muda muito no período analisado. Em alguns
exemplares encontramos 40 propagandas, em outras encontrávamos mais de 100.
Dessa forma, a porcentagem de propagandas voltadas à infância podia variar também,
ela era grande quando tínhamos poucas propagandas gerais45 e pequena quando
encontrávamos muitas propagandas no total. Como as propagandas destinadas às
crianças mantinham uma média de aparecimento, entre 1 e 10 anúncios por exemplar,
quando aumentava a quantidade geral de propagandas a porcentagem dos anúncios
para crianças diminuía, caso reduzisse o conjunto total de propagandas, aumentava a
44 CIVITA, R. As Revistas In: CASTELO BRANCO, R., LIMA MARTENSEN,R. & REIS, F. (planejamento e coordenação) - História da propaganda no Brasil. São Paulo: T.A. Queiroz, 1990. 45 Qualquer tipo de propaganda voltada para os diferentes grupos de consumidores.
porcentagem dos anúncios para infância. Estes são os casos dos anos de 1940 e 1958,
que apresentam as maiores porcentagens. O ano de 1940 apresentou picos de até 70
propagandas por revista, chegando a ter mais de 10% de propagandas destinadas à
infância em alguns exemplares. Mas o ano de 1940 não alcançou maior porcentagem
que o ano de 1958, onde as propagandas não passaram de 60 por revista. Este último
ano, deste modo, alcançou facilmente maior porcentagem que outros pela menor
quantidade de propagandas totais.
Outro fator importante se refere à quantidade de revistas que encontramos em cada
ano analisado. Infelizmente o acervo da revista O Cruzeiro não está completo, desta forma,
não conseguimos analisar os 52 exemplares de cada ano. Assim, a porcentagem também varia
de ano para ano, quando temos uma quantidade maior ou menor de revistas. Por esse motivo
descartamos alguns anos que possuíam poucos exemplares como de 1931 e 1939 que
encontramos apenas um exemplar dos 52 anuais.
Como apontamos anteriormente, ao analisar as propagandas percebemos uma
falta de critério referente à forma de divulgação dos anúncios para crianças. Porém,
percebemos que eles estavam articulados com as ações da iniciativa privada e das
políticas públicas estabelecidas no Brasil, principalmente a partir do Estado Novo. O
caso de 1940, por exemplo, é muito interessante e demonstra como a publicidade
destinada à infância se articulava com o momento político, já que esta se ampliou
bastante no ano que entrou em vigor o decreto-lei que criou DNCr. Outro caso
interessantíssimo é de 1958, que possui a maior porcentagem de propagandas voltadas
à infância no período analisado, pois encontramos propagandas da Campanha
Nacional da Criança, além de várias reportagens relacionas à infância. Assim, do
mesmo modo que O Cruzeiro apresentava conformidade com a Puericultura,
divulgando-a amplamente, suas propagandas seguiam a mesma tendência.
Na medida em que o governo e a população em geral, principalmente as classes
mais altas, se interessavam pela proteção materno-infantil, as propagandas voltadas à
infância se ampliaram, demonstrando que o mercado destinado às crianças ia se
solidificando, seguindo a tendência social. É dessa forma que verificamos que a partir
dos anos 50 estas propagandas apresentavam cada vez mais regularidade em suas
aparições.
Deste modo, podemos perceber que o discurso ideológico sobre a maternidade estava
bem desenvolvido na sociedade brasileira e permeava a fala de médicos, mulheres, igreja,
meios de comunicação e, como vimos também o Estado a partir da Era Vargas. Através de
seus discursos ou das propagandas do seu governo, Vargas propôs modelos de condutas às
pessoas, fortemente ligados a preceitos da Igreja Católica, como a defesa das famílias,
sobretudo as mais numerosas. Estas idéias de uma forma ou de outra chegavam a grande
parte da população que acabou por assimilar as ideologias divulgadas, principalmente sobre a
maternidade e a infância. Dessa forma, as classes médias e altas passaram a defender a
proteção materno-infantil e agir para que ela se efetivasse; e a grande maioria das pessoas
comuns passou acreditar nesses ideais como direitos adquiridos na medida em que
começaram a usufruir de benefícios através das políticas públicas do governo.
Estas idéias são discutidas por Martins46 em seu artigo “Dos Pais ao pai dos pobres:
Carta de pais e mães ao presidente Vargas e a política familiar do Estado Novo”. Nele a
historiadora aponta para uma significativa absorção das ideologias do governo pelas pessoas
comuns, através da análise que fez das cartas que estas enviavam ao presidente Vargas.
Nestas cartas, pessoas comuns falavam ao presidente pedindo direta ou indiretamente ajuda,
principalmente depois que tomavam conhecimento sobre as medidas de proteção que o
governo tinha estabelecido para amparar as famílias numerosas. A historiadora chega à
conclusão que muitos escreviam para demonstrar o orgulho que tinham de suas famílias
numerosas, demonstrando conformidade com a ideologia da valorização da família e do
trabalho que Vargas tanto anunciou entre os populares. Assim, percebemos que os discursos
ideológicos podem ser amplamente aceitos pelas pessoas e que estas podem efetivamente
desejar cumprir o que é proposto.
É nesse sentido que muitas mães em seus lares começaram a comprar os
manuais de Puericultura e tentaram se encaixar no modelo de mãe científica proposto
pelos médicos. Assim, as mães foram assimilando que eram elas as maiores
responsáveis pelas crianças e muitas passaram acreditar que eram culpadas pela
suposta má conduta ou ignorância que tanto os médicos percebiam nelas. Os médicos
não cansavam de repetir que a culpa era das mães. Nem as mulheres pobres escapavam
46 MARTINS, “Dos Pais ao pai dos pobres: Carta de pais e mães ao presidente Vargas e a política familiar do Estado Novo”. Relatório de atividades de pós-doutorado apresentado ao CNPQ, Nov, 2004.
das críticas, pois os médicos não enxergavam os problemas sociais e dificuldades que
estas mulheres passavam, só viam a ignorância materna nos cuidados com os filhos47.
Os meios de comunicação sem dúvida contribuíram muito para disseminar esse
ideário puericultor, tornando-o mais popular, sobretudo entre as classes mais abastadas
que tinham amplo acesso a revistas e jornais. Estes abriam seções onde médicos
puericultores aconselhavam as mães, publicavam reportagens falando sobre os avanços
da medicina e dos benefícios das políticas públicas. Assim, desfocavam a realidade,
poucas vezes trataram da falta de eficiência nos serviços públicos, principalmente
durante a Era Vargas. Na verdade a falta de recursos era grande, havia demora para a
implantação das medidas de proteção materno-infantil e quando os serviços
funcionavam na maioria dos casos era precariamente. Dessa forma não se podia exigir
que a educação materna entre as mulheres pobres fosse eficiente da forma que os
médicos esperavam, mas eles pareciam ignorar esse fato.
Durante principalmente o Estado Novo encontramos inúmeras reportagens em
O Cruzeiro que noticiavam a construção de Postos de Puericultura, maternidades, não
só com as verbas do governo, mas também filantrópicas. Parecia haver um clima de
otimismo em relação à proteção materno-infantil. Só alguns anos mais tarde
começaram a aparecer reportagens mais realistas que falavam das altas taxas de
mortalidade infantil e materna. Este é o caso do texto de Franklin de Oliveira com o
título “A maior tragédia do mundo”. A grande ironia desta reportagem é que apesar de
fazer parte de um exemplar que homenageava as mães em 28 de maio de 1949,
verificamos que a menção às mães é extremamente pequena. Logo no início do texto o
autor deixa claro que vai falar dos problemas da infância, assim, novamente a criança
se sobrepõe à figura da mãe. O ponto positivo é que o autor não coloca a culpa da
mortalidade infantil diretamente sobre as mães, demonstrando que elas também sofrem
e acabam morrendo devido à ineficiência dos serviços públicos prestados. Mesmo
assim o texto não deixa de estar em conformidade com a ideologia da maternidade,
pois diz que a mãe é a maior protetora da criança e também critica a falta de auxílio na
hora do parto, porque abre caminho para a atuação de “curiosas” (parteiras).
47 MARTINS, “Políticas da maternidade...” op.cit., p.60.
Deste modo a reportagem de Oliveira passa a ser uma grande crítica às políticas
públicas, principalmente a má atuação do DNCr. Em seu texto encontramos uma
ferrenha crítica a Getúlio Vargas:
“A ditadura precisava disto, dêste caldo de miséria, de ignorância e obscurantismo para
engordar seus servos. O ‘Pai dos Pobres’ aparecia sorrindo entre algumas crianças, embora
milhares delas estivessem morrendo, doentes ou se pervertendo no crime e no abandono”.
(pág. 24)
Apesar das críticas, verificamos que a ideologia era a mesma. A reportagem
reafirma a importância da criança como promessa de futuro, colocando a proteção à
maternidade e à infância como o único meio para que o Brasil pudesse se tornar um
país melhor, para que o homem brasileiro fosse valorizado. Estão presentes também no
texto idéias influenciadas pela Eugenia, quando Oliveira fala da “beleza e a higidez de
Marcos”, o bebê que está nas fotos da reportagem. O autor acredita que Marcos “tem
em si a fôrça e o poder de mostrar como o tipo humano da criança brasileira pode ser
elevado a um alto padrão biológico”.48 Estas eram as mesmas idéias divulgadas
durante o governo de Vargas e que, como podemos verificar, se difundiram
amplamente e se solidificaram na sociedade, mesmo após a redemocratização do país.
Mas o que não podemos deixar de evidenciar é que as mulheres nesse processo
tiveram um papel secundário. Elas também acreditavam que a proteção à infância e à
maternidade era importante, vários movimentos de mulheres lutaram pela valorização
da função materna, fizeram filantropia, pressionaram o governo para que elaborasse
uma legislação protetora. Como podemos destacar a ilustre atuação da feminista
Bertha Lutz, que conheceu as políticas sociais implantadas nos Estados Unidos pelo
Children’s Bureau e tentou trazer esse modelo para o Brasil.49 Porém, mesmo com o
ativismo feminino, infelizmente as mulheres não tiveram uma participação expressiva
nos quadros administrativos dos serviços públicos prestados à proteção materno-
infantil, como era previsto na legislação e como aconteceu em outros países. A atuação
48 O Cruzeiro, 28/05/1949, pág. 13. 49 MARTINS, “Políticas da maternidade...” op.cit., p.42.
feminina ficou restrita a cargos secundários como os de médicas, enfermeiras,
assistentes sociais e professoras. Foram os médicos que chefiaram os programas e
projetos levando estes a frente.
Assim, podemos perceber que as mulheres novamente foram colocadas em
segundo plano. Isto se deve a visão da mulher como um instrumento para se alcançar a
criança e não dela como uma cidadã. A maternidade só era valorizada por intermédio
da infância, a criança era o agente de interesse, a promessa de futuro. É dessa forma
que podemos perceber que mesmo que os serviços públicos também se destinassem à
maternidade, os nomes dados aos departamentos, divisões, praticamente se remetiam à
proteção infantil, evidenciando que a mulher era protegida porque tinha ou poderia ter
filhos. Estes foram os casos da Inspetoria de Hygiene Infantil e do Departamento
Nacional da Criança.
À mãe cabia o seio do lar, era em casa que ela estaria atuando na verdadeira
proteção infantil. Mas não bastava cuidar, era preciso saber como cuidar. Para isso ela
deveria escutar apenas o médico porque, como já dissemos anteriormente, só ele tinha
o conhecimento científico e correto para criar as crianças. Esta era a ideologia da
maternidade que estava amplamente difundida na sociedade brasileira como vimos
neste capítulo. A proteção à infância e à maternidade estava vastamente disseminada e
em conformidade com os preceitos da Puericultura, assim o médico tem o lugar de
destaque e a mulheres-mães eram vistas apenas como instrumentos.
O mercado industrial também recebeu influência destas idéias e passou a fazer
uso da Puericultura na divulgação de seus produtos, pois, esta era a ideologia
propagada na época e não podemos esquecer que a publicidade faz justamente uso das
idéias já tradicionalmente estabelecidas50. É nesse sentido que pretendemos analisar
em nosso próximo capítulo o modelo ideal de mãe que estas propagandas destinadas à
infância construíram e divulgaram entre os anos de 1930 a 1960.
50 VESTERGAARD, T. & SCHRODER, K., op. cit.
3. SABER SER MÃE NO SÉCULO DA CRIANÇA.
O título de nosso terceiro capítulo foi inspirado nas várias propagandas e
reportagens que analisamos no decorrer desta pesquisa. Saber ser mãe foi uma
exigência que sempre apareceu nos textos analisados, havendo em cada um deles uma
forma expressa de se proceder como mãe e as qualidades necessárias para se criar de
forma adequada os filhos. Assim, como lembra a reportagem de 13 de maio de 1950,
sobre o título “Dia das Mães – Século da Criança” assinada por Peter Scheirer,
podemos concluir que o século XX foi o século das crianças, principalmente para os
pediatras que se esforçaram para que a infância fosse valorizada e assistida.
A reportagem referida acima foi mais uma das que tinham como tema o dia das
mães, mas que tratavam quase exclusivamente da mortalidade infantil, da falta de
assistência à maternidade e à infância e sobre a intervenção das “curiosas” na maioria
dos partos realizados. Era, portanto, mais uma reportagem que deveria homenagear as
mães, mas pouco ou nada falava sobre elas efetivamente. O título da reportagem marca
justamente a conjuntura da época que valorizava a criança e instrumentaliza a mãe.
Apesar das mães aparecerem na maioria dos textos que envolviam a infância, era a
criança o principal foco da atenção, sendo da mãe cobrada a responsabilidade sobre o
papel que tinha ao exercer. Ela só era merecedora de agradecimentos e honrarias caso
fosse uma boa mãe, a mãe ideal que iremos recuperar agora, neste capítulo, através das
propagandas destinadas à infância.
3.1 A Maternidade Ideal.
As primeiras peças publicitárias que encontramos na revista O Cruzeiro tinham
como receptoras basicamente as mulheres e geralmente eram superficiais em apontar
as crianças como possíveis consumidoras de seus produtos. Na maioria dos casos
traziam a indicação de que bebês ou crianças poderiam usar os mesmos produtos
indicados às mulheres, principalmente sabonetes e talcos. Ainda não havia anúncios de
produtos destinados à infância, somente a indústria de alimentos parecia interessada
nas crianças, mas mesmo assim seus produtos só ganham mais projeção e divulgação
após os anos 30.
A partir do momento que a valorização da infância cresce no interior da
sociedade brasileira, as propagandas também começaram a enfocar mais as crianças
como justificadoras de consumo de vários produtos. Porém estes ainda não eram
especializados para elas, pois não havia linhas de produtos infantis no Brasil. Mesmo
assim vários anúncios propunham que os adultos comprassem determinados produtos
em benefício de filhos.
Os textos destas peças publicitárias continuavam a se direcionar às mulheres,
mas agora já explicitamente como mães. Frequentemente encontramos palavras como
“mãe” ou “senhora” nos anúncios voltados à infância e mesmo quando os textos são
mais vagos em apontar um receptor, na maioria dos casos encontramos nestas
propagandas a imagem feminina exercendo a função materna. Dessa forma, podemos
concluir que as mulheres-mães eram consideradas as receptoras ideais das
propagandas voltadas à infância.
Imagem 3 – Representação ideal da relação mãe e filho
A representação da mulher-mãe estava associada aos ideais já tradicionais e
costumeiros, colocando a mãe como responsável pelos cuidados com os filhos. A
imagem acima, da propaganda da Johnson & Johnson divulgada no exemplar de
11/10/1947 (pág. 16), demonstra muito bem a relação idealizada da mãe com seu filho.
A mulher que segura a criança está sorrindo, demonstrando orgulho e encanto, ambos
aparentam saúde e felicidade.
Não são raras imagens como estas que apresentam uma relação romantizada
entre a mãe e filho. O texto da propaganda destaca os cuidados essenciais com a
criança e, nesse sentido, demonstra a influência ou o uso dos preceitos da Puericultura,
pois afirma que o bebê está bem alimentado, limpo, cheiroso e em companhia de sua
mãe. De forma geral, estas eram as principais preocupações da ciência médica, que
enfatizava a correta nutrição e a higiene das crianças.
Verificamos que de modo geral a mãe demonstra sempre amor, orgulho e
felicidade com seu filho, pois uma mulher só era feliz completamente se pudesse
exercer sua função primordial da maternidade. Essa é a idéia que a imagem acima
apresenta, conjuntamente com as várias outras que encontramos na revista O Cruzeiro.
Muitas das propagandas associam a felicidade materna ao bem-estar de seus filhos,
não só através de imagens, mas também por meio dos textos, como é o caso do
anúncio da Phosphatine, uma farinha nutritiva, que apresenta o seguinte conceito:
“Bebés com saude... mamãs felizes... ‘Sua felicidade, Mme., depende da saude de seus filhinhos, não é?”51
Podemos perceber que o texto se dirige a uma mulher, dialogando com a leitora.
Porém sua pergunta é mais uma afirmativa do que uma questão a ser respondida. Desta
forma, além de afirmar que a felicidade da mãe depende da saúde dos filhos, a
propaganda impõe que essa relação seja necessariamente assim.
Mais do que ter atrelada sua felicidade à maternidade, a mulher também é
responsável pela função patriótica de cuidar corretamente de seus filhos, pois depende
da criança o futuro do Brasil. Esta é a idéia recorrente na época que as propagandas
reproduzem amplamente, apresentando uma forte argumentação pautada no
patriotismo. A mãe, dessa forma, não é só mãe, ela é a mãe brasileira ou do Brasil. Os
mais variados produtos, principalmente da indústria dos alimentos, apelam para essa
missão patriótica de cuidar bem dos filhos para garantir um bom futuro para o país.
Este artifício patriótico era invocado principalmente nas propagandas que
homenageavam o dia das mães como é o caso da mensagem que a Nestlé destinou às
Mães do Brasil no exemplar de 13/05/1950:
“ Mães do Brasil
(...) o tempo muda mas vós não mudais. Onde quer que exista um lar, neste grande país, lá
estareis sempre, a eterna operária heróica e silenciosa, produzindo em vez de objetos
inanimados de madeira ou ferro, seres de corpo e alma, produzindo homens, homens bons e
51 O CRUZEIRO, 10/08/1940, Nº:41, ANO: 12, p. 18.
úteis, encaminhados para a virtude e para o trabalho. (...) É que descobristes, com a vossa inata
sabedoria, que a salvação do mundo depende da qualidade dos vossos filhos, êsses homens e
mulheres do futuro que são a vossa contribuição e vossa responsabilidade.” (pág.68)
O texto claramente aponta as qualidades e as obrigações esperadas das mães. A
mulher-mãe tem uma função heróica desde que esteja exercendo sua maternidade
corretamente, este é seu papel principal, de produtora de cidadãos bons e trabalhadores. A
mulher-mãe também tinha que ter obrigatoriamente consciência de suas responsabilidades,
pois toda mãe sábia se preocupava com o futuro dos filhos e conjuntamente com o do país.
Assim, qualidades se tornavam obrigações e textos como este acabavam funcionando como
uma apologia aos preceitos da Puericultura.
Nesse sentido, as propagandas destinadas às crianças colaboravam para educar as
mães ao afirmarem constantemente que elas eram responsáveis por seus filhos e que
dependiam dos conselhos médicos para executar corretamente os cuidados que uma criança
precisa. Produziam, portanto, um discurso modelar e normatizador do comportamento para a
mulher-mãe.
Não são raros os casos em que verbos e adjetivos acompanham a palavra mãe nos
textos publicitários. “As boas mães sabem”, “A senhora sabe”, “Cabe á mãe ensinar seu
filho”, “mães cuidadosas”, “ mães previdentes” são frases que qualificam a mulher ao mesmo
tempo em que atribuem funções naturais à maternidade. Se ser uma boa mãe era uma
qualidade valorizada para as mulheres, com o discurso enaltecedor da criança enunciado pela
puericultura, tornou-se imprescindível. Ser uma mãe cuidadosa não era mais uma qualidade e
sim uma obrigação.
Ao longo dos anos de 30 e 40, momento que os médicos passam a dar muito
mais atenção às necessidades e especificidades do desenvolvimento físico e
psicológico da criança, esta passa a ter cada vez mais supremacia em relação à mulher-
mãe. Diferentemente dos primeiros manuais de Puericultura que valorizavam a
autoridade da mãe sobre os filhos, a mulher torna-se cada vez mais um instrumento
para se alcançar às crianças. Embora a função de mãe seja reforçada o que se nota é
que a primazia é dos infantes.
Imagem 4- A Majestade Criança
As propagandas seguem o mesmo
caminho. As crianças são as protagonistas da
maioria dos anúncios que analisamos, falam,
dialogam com as mães, exigem suas
preferências, ensinam como deveriam ser
cuidadas. São verdadeiras majestades, como
ilustra a imagem da propaganda da Gessy de
19/04/1941 (pág. 14), que podemos ver ao lado.
O bebê com a coroa na cabeça, com expressão
sorridente, afirma que no reino dele só os
produtos da Gessy, demonstrando que tem poder
de escolha. Esta situação só demonstra quanto a
sociedade vinha valorizando os infantes. Ao lado da criança, com menos destaque,
vemos a ilustração de uma mulher sorridente, em tamanho reduzido, segurando o bebê.
É para ela que a propaganda se destina, apesar do destaque estar no reizinho.
Esta propaganda não era de um produto específico para crianças, seu texto
afirma “indicado até para a epiderme sensível das crianças”, contudo, ela usa como
imagem principal um bebê que justifica o consumo de sua mãe. Esse tipo de
propaganda não é uma exceção no conjunto a que pertence. Nem todos os anúncios
são tão enfáticos em associar a criança à majestade, mas demonstram que a criança
passa a ter importância e que deve ser valorizada como promessa de um futuro melhor
para o país.
Percebemos, então, que a ênfase na infância vai aos poucos tornando a mãe uma
coadjuvante. Suas aparições nas propagandas se subordinam cada vez mais às
vontades de seus filhos, como bem ilustra a propaganda da Vick VapoRub do
exemplar de 14/07/1945 (pág. 36) sobre o título “Mamãe e eu não brigamos mais por
causa de resfriados”. Esta peça publicitária demonstra que a criança tem força para
decidir o que quer e a mãe aceita esta situação, procurando usar um tratamento que não
provoque muito choro e mal-estar no seu filho. Os anúncios, ao procurarem destacar as
necessidades da criança, desconsideram as necessidades da mulher consumidora,
mostrando uma mãe que na realidade tem dúvidas quanto à melhor maneira de cuidar
do filho.
Outra exigência que as propagandas trazem para as mães se refere a modernização. A
mulher não poderia ser como sua mãe que pertencia a uma geração passada e não tinha acesso
aos conhecimentos científicos desenvolvidos na atualidade. A maternidade também tinha que
se renovar, não era mais nas suas mães que as mulheres deveriam procurar auxílio para cuidar
bem de seus filhos, mas sim nos médicos. Um bom exemplo desta situação é outra
propaganda da Vick VapoRub que tem como título “Quão feliz eu sou! Mamãe não me
combate resfriado ‘a antiga’, como a Vovó” (11/04/1942, pág. 56). Esta é mais uma frase de
um bebê. A criança está feliz porque sua mãe encontrou meios mais eficientes e menos
dolorosos para cuidar de seu resfriado, meios que sua avó desconhecia. Assim, este anúncio
reforça a idéia da modernização da função materna, porque apesar da avó já ter sido mãe, ela
estava ultrapassada em relação aos métodos mais avançados e corretos para se cuidar de uma
criança e dessa forma não seria uma fonte confiável quanto aos cuidados necessários que uma
criança deveria receber.
As campanhas da Vick VapoRub também reproduzem a divisão entre os papéis de
mãe e pai. Na propaganda do exemplar de 06/07/1946, na pág. 30, encontramos o seguinte
título “O que...Outra noite sem dormir?”. Esta é a frase de um pai aparenta estar zangado com
a doença do filho e que continua dizendo: “o garoto apanhou outro resfriado! Passarás a noite
sem dormir, Ana, e eu nem poderei cochilar. Que aborrecimento!”. Neste fragmento podemos
perceber claramente que a função de cuidar da criança era exclusiva da mãe, era ela que tinha
a responsabilidade de acabar com o resfriado do filho e trazer paz para seu lar. E é exatamente
isso que ‘Ana’ faz, ela encontra a solução e resolve o problema, assim todos voltam a dormir
com tranqüilidade.
Desta forma a propaganda só tende a reforça a divisão social de gênero, pois
demonstra como era uma situação normal o homem agir autoritariamente com a mulher, além
de continuar a propagar a idéia que a responsabilidade sobre os cuidados das crianças tinha
que ficar exclusivamente nas mãos das mães. É nesse sentido que Vestergaard e Schroder
afirmam que a propaganda se pauta no tradicional, justamente porque ela não é inovadora, já
que os publicitários não são capazes “de criar novas necessidades”, podem “apenas retardar
ou acelerar as tendências existentes” 52.
52VESTERGAARD, T. & SCHRODER, K. op.cit., p. 9.
Outra situação que aparece com freqüência nas propagandas em geral e que reforça a
divisão de gênero, é justamente a predominância do bebê ou criança do sexo masculino. A
maioria dos anúncios traz a representação da mãe e de um menino. As meninas aparecem
esporadicamente, geralmente em ações mais passivas como ajudando suas mães em atividade
domésticas. Já as propagandas relacionadas aos meninos, os apresentam como sujeitos ativos,
como é o caso da propaganda da Vick VapoRub que tem como título “Um homem não tem
tempo para resfriados” (06/06/1942, pág. 32). Apesar de encontrarmos a imagem de um
menino de aproximadamente quatro de idade, o anúncio o apresenta como um homem,
fazendo alusão que os homens são ativos e que não podem parar, pois deles dependem tanto o
orçamento doméstico como o futuro do país.
Em contra partida a função da mulher é ser responsável pelo bom andamento da
situação familiar, garantindo a estabilidade do lar e o bom futuro de seus filhos,
principalmente dos homens. Assim, vamos encontrar muitas campanhas que trazem crianças
do sexo masculino e que envolvem as possíveis profissões importantes que eles podem
exercer no futuro. Esta é a lógica de várias propagandas do Nescau a partir dos anos 50, que
falam dos futuros cientistas, generais e médicos que os meninos podem ser no futuro, tudo
dependendo da intervenção da mãe. É ela que alimenta e cuida, conduzindo a criança a um
bom futuro. Assim, as propagandas geralmente acabam colaborando para a reprodução e a
manutenção dos papéis sociais normativos.
Outra questão importante refere-se à falta de sincronia entre as propagandas e as
reportagens que encontramos na revista O Cruzeiro, principalmente depois dos anos sessenta,
sobre a mulher moderna que trabalhava. A reportagem de 16/05/64, que tinha o título “A mãe
dos dias de hoje”, tratava justamente das mães que trabalhavam fora de casa, afirmando que
se tornava cada vez mais raro ver mães em cadeiras de balanço se dedicando exclusivamente
aos filhos. Porém, esta não era a situação que as propagandas reproduziam, mesmo com as
mudanças nas vidas de muitas mulheres e mães, que agora não se dedicavam somente a cuidar
da casa, dos filhos e do marido, são raríssimas as propagandas que mostram mulheres e mães
trabalhando.
As propagandas voltadas à infância são ainda mais enfáticas em transformar as
mulheres somente em mães. Nem nos poucos anúncios que encontramos mulheres
trabalhando elas deixam de ser sobretudo mães. Esta é a idéia da série de propagandas que a
Eucalol preparou nos anos cinqüenta sobre mães famosas que eram atrizes, apresentadoras de
programas de rádio, escritoras, entre outras, mas que não deixavam os filhos de lado. Mesmo
que trabalhassem eram mães extremosas, dedicadas, cuidadosas e preocupadas com suas
crianças. Nesse sentido as propagandas sempre mostravam as mães famosas dando banho em
seus filhos, para reafirmar que, mesmo famosas, elas sabiam cumprir antes de tudo o seu
papel de mãe. Deste modo a propaganda utilizou a influências de pessoas célebres para
despertar o desejo nas mulheres comuns de serem boas mães, ao mesmo tempo em que
reafirmou que a principal função feminina é ser mãe.
Estas representações que nos referimos até agora não estavam longe da
realidade, já que as mulheres são influenciadas por uma centena de informações sobre
como proceder com seus filhos, se tornando cada vez mais inseguras quanto a melhor
forma de agir. São inúmeras as propagandas de manuais sobre cuidados infantis e de
maternidades, como também a presença de seções de cartas de aconselhamento nas
revistas, todas focalizando nas necessidades especiais da criança, propagando a idéia
de que a mulher não sabia ser naturalmente mãe e precisava de ajuda especializada. Já
das mães enquanto sujeitos ou das circunstâncias da maternidade pouco ou nada se
falava, a criança era o alvo das atenções.
Assim, uma das campanhas que melhor ilustra essa situação de insegurança das
mães e falta de conhecimento sobre como cuidar de seus filhos é da Johnson &
Johnson, que colocava a mãe a serviço da criança. A campanha em questão era
composta de uma série com nove propagandas diferentes, mas todas usavam a
inversão dos papéis de mãe e filho. O primeiro anúncio que encontramos foi em
05/10/1946, sugestivamente antes do dia das crianças, e a última aparição foi em 1948.
Eram propagandas chamativas, que ocupavam quase meia página e que usavam a
montagem fotográfica para dar o efeito da inversão, o que caracterizava inovação
técnica.
A Johnson & Johnson foi uma importante indústria na produção de
representações da maternidade e estabelecimento de modelos de comportamento
materno. Seus anúncios, mais do que dos outras empresas, defendiam que a criança
merecia cuidados especiais. Instalada no Brasil em 1933, a Johnson & Johnson, como
bem evidencia Olga Brites, “construiu uma auto-imagem apoiada em eficiência,
qualidade, modernidade, permanente pesquisa, segurança, atenção para com seus
funcionários - dimensões de publicidade da própria marca”53. Nesse sentido
apresentava propagandas com texto que davam ênfase à fala infantil, mesmo não
sendo verossímeis, pois bebês tão pequenos não falam, onde as crianças cobravam e
lembravam as mães dos cuidados que deveriam receber.
Esta série de propagandas que analisamos tem uma intenção mais agressiva em
relação à cobrança do bebê com a mãe, propondo a inversão dos papéis mãe e filho.
Assim, A mãe passava a entender como poderia ser desconfortável a vida de um bebê
que não era cuidado com os produtos da Johnson. A inversão na hierarquia dos papéis
traz uma mãe pequenina e infantilizada diante do bebê de tamanho irreal. Este não
apresenta um comportamento ameno ou carinhoso com sua mãe, que observa perplexa
a fala da criança. Estas eram peças publicitárias fictícias, mas que contemplavam
muitos aspectos da realidade mãe-filho, afinal, com o enfoque na criança, a mãe passa
a viver cada vez mais de acordo com os cuidados que seus filhos demandavam.
Assim destacamos duas peças publicitárias desta série para fazermos a análise
de seus discursos. A primeira que enfatizamos é de 30/11/46 (pág. 32), que tem como
título: “Hoje vamos brincar do meu jeito, mamãe!”. É a criança quem dita as regras,
aparecendo em tamanho bem maior do que a mulher ao seu lado, demonstrando uma
atitude agressiva durante o diálogo, chegando a “dar de dedo” em sua mãe. Como
podemos ver na figura abaixo:
53 BRITES, op.cit., p. 20.
Imagem 5- “Vamos brincar do meu jeito!”
A propaganda mostra que a mãe não estava sendo boa, já que desconhecia o
quanto a pele de um bebê podia ficar irritada no dia-a-dia e também porque não estava
seguindo os conselhos do médico, como observou o bebê ao perguntar se ela não
lembrava que ele tinha indicado os produtos Johnson.
Deste modo, a mãe aprende através da experiência de ser bebê, e a propaganda
ainda lembra que as mulheres não sabem tudo sobre ser mãe, precisando dos
conhecimentos especializados da Johnson e também do médico. Esta situação reforça
uma relação científica do melhor produto desenvolvido para o bebê com a indicação
do melhor especialista no assunto. Nesse sentido a mãe toma consciência de seus
erros e a inversão dos papéis ocorre novamente, em desenho menor e menos destacado
ao lado do texto, no qual aparece a mãe segurando o filho no colo, ambos em seus
tamanhos reais.
A segunda propaganda, última dessa série, que encontramos em 01/05/48 (pág.
28), apresenta uma drástica mudança em relação às outras. A situação proposta na
encenação do diálogo entre mãe e filho não remete a uma brincadeira. A inversão dos
papéis é a mesma, entretanto o cenário muda. Agora a mãe está sentada numa cadeira
de bebê na cozinha e aparece em um tamanho ainda mais reduzido em relação ao da
criança. O título da propaganda é: “Então, mamãe, vai engolir o que disse?”, essa fala
é do bebê, que encara a mãe em posição de confronto. A mulher encontra-se encolhida
na cadeira, demonstrando medo de seu próprio filho, como podemos ver na imagem
abaixo.
Imagem 6 – “Então, mamãe, vai engolir o que disse?”
Nessa situação a autoridade do bebê é evidente, chegando a ter um tom
ameaçador. A mãe presa à cadeira não tem como escapar do bebê que a afronta. Dessa
forma ela acaba assumindo que estava errada ao afirmar que o bebê não possuía nada
para se queixar, dizendo que a “cada dia que passa tôda mamãe aprende uma coisa
nova sôbre os bebês”. A propaganda revela como a criança tem autoridade frente a
uma mãe impotente .
Outro ponto marcante que reforça essa idéia se encontra no desenho que está
junto ao texto, que dessa vez mostra um bebê posando de forte e, em seguida, com
uma auréola na cabeça. Revelá-nos que a criança é boa, “um anjo”, o que fez ela tomar
esta atitude drástica de ameaçar a mãe foi a necessidade de ser compreendida e bem
cuidada. Assim, a inversão dos papéis não aparece, mãe e filho não voltam aos seus
tamanhos reais, como acontecia nas outras propagandas dessa série. Portanto, esta
propaganda afirma a autoridade da criança em relação à mãe mais do que qualquer
outra que encontramos, no entanto não deixa de se remeter ao contexto vigente entre
os anos 30 e 50, no qual se instrumentaliza a mãe para que esta atenda as necessidades
da criança.
Não é de espantar que hoje em dia existam tantas publicações que tratam da
criação dos filhos, como destaca Martins “cada vez mais homens e principalmente
mulheres parecem não ter a menor idéia de como cuidar e criar seus filhos” 54, situação
decorrente do desfecho da valorização da infância e da difusão da Puericultura no
século XX, que concedeu um poder desmedido às crianças. Assim, mais que anúncios
para vender produtos ou serviços, as propagandas mostraram que são um discurso
articulado ao contexto sócio-político, construindo modelos de comportamento para as
mulheres-mãe.
Deste modo, entendemos as propagandas mais do que anúncios que tentavam
vender produtos, elas também ensinavam o lugar das mães na sua relação com os
filhos. Elas ajudaram a construir um modelo de mãe perfeita e a difundi-lo,
colaborando para a propagação e aceitação de uma ideologia da maternidade. Este
modelo de comportamento ideal materno que definimos como uma ideologia é
fundado em “idéias situacionalmente transcendentes que jamais conseguem de facto a
realização de seus conteúdos pretendidos” 55, partindo do modelo construído por Karl
Mannheim.
A maternidade ideal propunha um modelo de mãe inalcançável, pois não
passava pelo real ao não prever dificuldades, exceções e distorções. Existia uma
infinidade de horários para cumprir sobre como criança deveria dormir, se alimentar,
tomar banho, se vestir, entre tantos outros procedimentos descritos nos manuais de
Puericultura. Nem mesmo os conselhos de amigas e parentes eram aceitáveis, pois só
os médicos eram capacitados para dizer como a mãe deveria criar seu filho.56 Assim,
se essa mulher-mãe seguisse a risca esta rotina, teria sua vida reduzida a cuidar de seus
filhos. É desta forma que apontamos para a redução da realidade feminina, porque o
54 MARTINS, “‘Vamos criar ....” op. cit., p. 124. 55 MANNHEIM, Karl, op.cit., p.218. 56 MARTINS, “‘Vamos criar ....” op. cit.
modelo de mãe ideal que apresentamos tornava qualquer outra atividade, que não
fosse cuidar dos filhos, quase impossível, senão mesmo indesejável socialmente.
Transferiu-se uma enorme responsabilidade para as mães, mas que elas jamais
poderiam cumprir sozinhas. Os preceitos da Puericultura que eram propostos pelos
médicos e que foram divulgados amplamente ensinavam a forma correta de se
proceder com as crianças e o não cumprimento destas normas era considerado como
indício da incapacidade materna. Assim, os médicos e a sociedade pareciam não
perceber que muitos dos projetos que foram criados pelo Estado para proteger a
maternidade e a infância demoraram para serem colocadas em prática ou funcionaram
precariamente. Pareciam não perceber também que existiam muitas dificuldades na
realidade das mães, principalmente a pobreza e a necessidade de trabalhar que as
impediam de seguirem o modelo proposto. E mesmo assim continuavam atribuindo as
altas taxas de mortalidade infantil à ignorância materna. As propagandas, nesse
sentido, só ajudaram a reforçavam esta idéia de que a mãe deveria ser sábia e seguir os
conselhos médicos, reduzindo e simplificando a realidade complexa e individual que
cada mãe vivia.
Se levarmos em consideração que existiam outras atividades que a mulher podia
assumir na época, principalmente como esposa e dona de casa, e que estas funções
também possuíam modelos idealizados de comportamento, como demonstra
Bassanezi57, podemos concluir que dificilmente alguma mulher conseguiria ser a mãe
científica que os preceitos da Puericultura propunham. As funções de esposa e dona de
casa também eram alvos de aconselhamento nas revistas e tinham formas idealizadas
para que mulher procedesse. As esposas, por exemplo, tinham que ser carinhosas,
atenciosas e não contrariar o marido, já as donas de casas deveriam cozinhar e limpar a
casa impecavelmente. Assim, a mulher nunca conseguiria ser perfeita em nada, pois
tinha um acúmulo de atividades. Porém, o que percebemos é que nada impedia que a
mulher fosse cobrada caso não estivesse sendo uma boa mãe ou esposa exemplar.
57 BASSANEZI, op.cit.
Deste modo, as principais características das propagandas são justamente
reduzir e normatizar a realidade58. A publicidade atua de forma ideológica, pois, além
de pretender que as mulheres sigam os conselhos médicos, elas naturalizam o amor
materno, transformando-o em uma norma. Toda mãe ama seu filho
incondicionalmente. Esta é a idéia que a publicidade voltada à infância reproduz em
suas propagandas e é também a mesma premissa que os médicos acreditam. Afinal
toda mulher é preparada pela natureza para ser mãe. Assim, podemos perceber a
redução da complexidade da realidade, onde há a negação das circunstâncias
individuais de cada mulher, transformando a maternidade algo padronizado.
Este contexto, como aponta a historiadora Ana Paula Martins59, transforma a
existência das mães cada vez mais relativa à relação que elas deveriam manter com
seus filhos. A mulher não era valorizada como agente social, sua ação e função eram
somente estimadas porque ela podia ser mãe. Deste modo, a mulher-mãe, com a
valorização da criança e a normatização da maternidade, tornou-se apenas um
instrumento para se alcançar as crianças. A elas restava, então, uma grande quantidade
de responsabilidades e de culpas.
Assim, chegamos a conclusão que todas as propostas sobre ser mãe, dona de
casa e esposa, são modelos ideológicos já que não correspondem à realidade, porque
são propostas impraticáveis. Dessa forma, mesmo que a Puericultura pretendesse
mudar a situação das crianças e estivesse amplamente difundida na sociedade, suas
intenções jamais conseguiriam transformar a realidade por completo. As mulheres
mães nunca conseguiriam seguir o modelo de mãe ideal.
Outro elemento que é encontrado na publicidade, que também tem cunho
ideológico, se refere ao estabelecimento de um modelo padronizado de aparência
feminina. As mães não eram só iguais nos procedimentos maternos, mas também na
aparência. Elas sempre aparecem bem arrumadas, com vestidos impecáveis, sapatos de
salto-alto e geralmente com um aventalzinho imaculadamente branco. Este é um
modelo americanizado de aparência, irreal para o cotidiano da vida doméstica e
58VESTERGAARD, T. & SCHRODER, K., op.cit, p.160. 59 MARTINS. “Será que mamãe comprou?”. op. cit., p. 2.
desconfortável para mulheres que deveriam ser esposas e donas de casa. Dessa forma,
novamente as propagandas trazem um modelo que dificilmente poderia ser seguido,
mas que poderia facilmente fazer parte do imaginário das leitoras, que talvez
procurassem se adequarem ao modelo das mães das propagandas.
Nesse sentido, nossa pesquisa só reforça que a mulher tinha um modelo de vida
no qual dependia dos outros. Primeiro ela deveria possuir uma boa aparência para
conseguir um casamento, depois viver atenta às vontades do marido, continuando a ser
bela e uma dona de casa exemplar para manter o casamento. Mas só iria alcançar sua
felicidade plena e natural, quando fosse mãe. No entanto, não bastava dar à luz, a mãe
deveria ser sábia e dedicada, ou seja, deveria saber ser mãe. Situação que tornou-se
uma exigência e passou a restringir a vida das mulheres-mães aos cuidados dos filhos,
considerados os tesouros da sociedade e delas mesmas. Esta foi a proposta ideal para
as mulheres durante muito tempo no século XX e as propagandas contribuíram
decisivamente para disseminar e reforçar.
CONCLUSÃO
Nossa pesquisa demonstrou que as propagandas de produtos voltados às
crianças estavam amplamente influenciadas pelas idéias produzidas e difundidas pela
Puericultura. As representações da maternidade que encontramos, entre as décadas de
30 a 50, estavam em conformidade com as idéias de mãe científica e dependente dos
conselhos médicos, totalmente responsável pela boa saúde, nutrição e higiene de seus
filhos, apresentando nesse sentido uma missão patriótica, em alguns casos.
Nossos resultados apontaram para uma expressividade numérica não muito
grande, porém constante, de propagandas que colocavam a criança como consumidora.
Através da valorização da criança como agente social, o mercado industrial se mostrou
cada vez mais interessado nelas, não só colocando-as como consumidoras, mas
criando produtos específicos para os infantes. Assim, quando as empresas começaram
a anunciar seus produtos, suas propagandas reproduziam as idéias vigentes em torno
da criança, sendo estas justamente advindas dos preceitos da Puericultura, amplamente
difundidos na época. A publicidade, nesse sentido, utilizava os preceitos da
Puericultura, justamente para tornar seus produtos mais interessantes para as mulheres-
mães, tidas como receptoras ideais destas propagandas.
Assim, nas propagandas destinadas à infância a figura da mãe sempre aparece
ligada com a de seus filhos, apresentando uma relação idealizada de amor e orgulho. A
responsabilidade sobre os cuidados das crianças recaía exclusivamente sobre a mãe,
cabendo a ela decidir que produto deveria usar, o que deveria ensinar, afinal a mulher-
mãe era considerada a peça chave para que os discursos médicos e políticos
funcionassem. Deste modo as propagandas também tentam convencer suas leitoras
que elas precisavam de conhecimentos, principalmente dos médicos, para cuidar de
seus filhos.
Paulatinamente, como aconteceu com o discurso puericultor, onde as
necessidades das crianças passaram a ser mais importantes do que a autoridade
materna, as propagandas reproduziram imagens de crianças que cada vez mais
possuíam voz para apontar suas preferências e de mães prontas a atender todas as
necessidades dos filhos e, conseqüentemente, relativa e instrumentalizada em função
dos mesmos.
Nesse sentido, defendemos que as propagandas ao mesmo tempo em que
divulgavam um ideal de mãe, reproduziam a ideologia da maternidade, incentivando
as leitoras da revista O Cruzeiro a seguirem e aceitarem o modelo proposto. Por isso
não é de estranhar que muitas noções estabelecidas naquela época estejam presentes
nos dias de hoje, onde muitas mulheres ainda acreditam que suas existências só podem
ser completas se forem mães. É preciso dizer que não questionamos o desejo legítimo
da maternidade, mas a idealização da mãe feliz que precisa viver incondicionalmente
para seus filhos, conforme procuramos demonstrar nesta pesquisa.
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