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JULIE LAWSON TIMMER CINCO DIAS DE VIDA TRADUZIDO DO INGLÊS POR RAQUEL DUTRA LOPES

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JULIE LAWSON TIMMER

CINCO DIAS DE VIDA

TRADUZIDO DO INGLÊS POR

RAQUEL DUTRA LOPES

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1.

Mara

Tinha escolhido o método havia muito: comprimidos, vodka e

monóxido de carbono. Um «cocktail de garagem», como lhe

chamava. O nome tinha uma sonoridade quase elegante e, por

vezes, dizendo-o em voz alta, conseguia levar-se a acreditar que não

era horrendo.

Continuaria a ser horrendo para Tom, porém, o que a fazia

detestar-se. Preferiria fazê-lo sem deixar um cadáver que ele encon-

trasse. Mas, por mais que adorasse poupá-lo a ser quem a descobriria,

sabia que não o deixar encontrá-la seria ainda pior. E ao menos aquela

era a opção mais composta. Ele podia chamar alguém para levar o

carro dela. Encher o lado da garagem que era dela com outra coisa,

para bloquear a imagem. Bicicletas, talvez. Material de jardinagem.

Outro carro para ele. Talvez ela devesse tratar disso, de que lhe

entregassem um depois. Mas não seria demasiado bizarro? Uma

prenda da mulher morta. Deveria ter-lhe oferecido um automóvel

anos antes. Pelo aniversário de casamento, ou como celebração de

terem levado a bebé Lakshmi para casa. Ou só porque sim. Deveria

ter feito tantas coisas.

Franziu o sobrolho. Como era possível ter passado quase qua-

tro anos a marcar «vistos» em todos aqueles itens da sua longa lista

de afazeres antes de morrer e, não obstante, estar a cinco dias do ato

e ainda a pensar em coisas que deveria ter feito?

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Ah, mas aí é que estava. Se dissesse a si própria que ia esperar

até ter resolvido tudo, até à última coisa, ia estar sempre a adiar.

Pois haveria sempre mais uma última coisa. O que poderia não ser

problemático para alguém que dispusesse do luxo de atrasar a coisa

mais umas quantas semanas, ou meses, ou mesmo anos, até final-

mente esgotar as justificações e estar pronto para avançar.

Mara não dispunha desse luxo. Em menos de quatro anos, a

doença de Huntington, a mãe de todos os destruidores de células

cerebrais, já fizera mais estragos do que ela ou Tom alguma vez

poderiam ter previsto. Ela tinha os documentos de rescisão do escri-

tório de advogados para o provar. O corpo outrora gracioso e atlé-

tico que agora demorava a reagir, resistia a cooperar.

Caso se permitisse a experiência de mais um momento com o

marido e a filha, de viajar para aquele último destino imperdível,

poderia acordar na manhã seguinte e descobrir que era tarde de

mais e que a doença havia tomado o controlo. E ficaria aprisionada

no ínterim aterrador de não ser capaz de pôr fim à vida por si

mesma e de também não viver realmente.

O tempo estava contra si. Não podia arriscar-se a esperar mais.

Poderia chegar a domingo, tal como planeara. Mas não poderia

deixar passar mais tempo.

Bebeu um grande trago de água do copo que estava na sua

mesa de cabeceira e levantou-se. Inspirando profundamente, esti-

cou as mãos na direção do teto e concentrou-se na porta da casa de

banho, ao fundo do quarto. Era tentador seguir as mãos com o

olhar, que era como o movimento deveria ser executado, mas ela já

tinha sido arrogante antes e as tábuas de madeira ganhavam sempre.

Contou até cinco, exalou e inclinou-se ligeiramente para a frente,

empurrando as mãos para o chão para nova contagem até cinco.

Uma Saudação ao Sol modificada a ponto de se tornar irreconhecí-

vel, mas que bastava para lhe clarear a bruma da mente.

O silvo do chuveiro parou e Tom saiu da casa de banho, a secar

o cabelo escuro.

– Bom dia – disse ela, fitando-lhe o tronco nu. – Estás com a

roupa de que mais gosto, estou a ver.

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Ele riu-se e beijou-a.

– Dormias a sono solto quando me levantei. Estava a pensar

pedir aos teus pais que viessem cá e levassem a Laks à carrinha. –

Inclinou a cabeça na direção da cama. – Ainda posso ligar-lhes, se

quiseres descansar mais umas horas.

Laks. A garganta de Mara contraiu-se. Levou a mão à cómoda

para se apoiar. Virando costas ao marido, fingiu que se ocupava

com uns trocos e uns brincos soltos em cima da cómoda. Engoliu

em seco e obrigou a garganta a libertar umas quantas palavras.

– Obrigada, mas não – respondeu. – Já me levantei. Eu levo-a

à carrinha. Também preciso de me mexer. Tenho coisas para fazer.

– Não tens nada que fazer. Porque não preparas uma lista, que

eu trato do que precisares quando voltar para casa?

Ele caminhou até ao armário, vestiu umas calças, levou a mão

a uma camisa. Mara desejou furtivamente que o marido escolhesse

uma azul, mas a mão dele encontrou uma verde. Ia tentar lem-

brar-se de colocar algumas das camisas azuis à frente para que ele

puxasse uma dessas antes do final da semana e os seus olhos azul-

-cobalto sobressaíssem uma última vez.

– Sou capaz de fazer umas compras, querido – disse ela.

– É claro que és. Mas não exageres. – Tentava parecer severo,

mas a sua expressão revelava que sabia que ela não aceitaria ordens

de quem quer que fosse.

Tom apertou o cinto – no terceiro furo – e ela abanou a cabeça.

Ele não tinha aumentado nem um quilo em vinte anos. Quando

muito, estava ainda em melhor forma, fazendo mais quilómetros

aos quarenta anos do que aos vinte, uma maratona por ano ao

longo dos últimos dez. Mara achava que podia aceitar algum do

reconhecimento por isso, já que ultimamente ele corria sobretudo

para gerir o stress.

Ela avançou para a porta e tocou-lhe ao de leve no ombro ao

passar por ele.

– Café?

– Não posso. Tenho pacientes a chegar daqui a vinte minutos.

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Uns minutos depois, ela sentiu-o passar os braços à sua volta,

apanhando-a voltada para a bancada da cozinha, a inserir uma cáp-

sula pré-medida de café na cafeteira. Nos últimos tempos, o grão

moído solto tendia a acabar na bancada ou no chão em vez de no

filtro.

Tom beijou-lhe a parte de trás do pescoço.

– Não te esforces muito hoje. Melhor ainda, não faças nada.

Fica em casa, leva as coisas com calma. – Virou-a para si e esboçou

um sorriso derrotado. – Não faças demasiado.

Mara ficou a vê-lo desaparecer na garagem. Instou a própria

respiração a abrandar e os olhos a deixarem de arder. Voltando-se

para a cafeteira, obrigou-se a concentrar-se no gotejar do café que

ia caindo no recipiente, no cheiro a avelã, no vapor que saía da

máquina. Pousou uma caneca no balcão, encheu-a até meio e

fitou-a com um ar desejoso. Por mais tentada que estivesse a dar

um golinho, já tinha aprendido a deixar o café arrefecer. Não podia

confiar na estabilidade das mãos e era melhor ter apenas uma nódoa

para limpar do que uma queimadura para aliviar. Mais calma,

seguiu pelo corredor até ao quarto da filha, espreitando à entrada.

Foi recebida por uma pequena cabeça ensonada que se levantou da

almofada e um sorriso rasgado, com um buraco no meio onde

recentemente quatro dentes tinham caído.

– Mamã.

Mara sentou-se na cama, abriu muito os braços e a menina

subiu-lhe para o colo, encostando o corpo e passando os braços à

volta do pescoço da mãe.

– Hmm, cheiras tão bem. – Mara aproximou o rosto do cabelo

da filha, lavado no banho da noite anterior. – Estás preparada para

enfrentar mais um dia do infantário?

– Quero ficar contigo hoje. – Os bracinhos apertaram-na mais.

– Não te vou largar. Nunca.

– Nem se eu... te... fizer cócegas... aqui... mesmo?

O pequeno corpo desfez-se num ataque de risinhos e os braços

relaxaram, permitindo à mãe esquivar-se. Mara levantou-se, deu uns

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quantos passos na direção da porta e, evocando o seu melhor olhar

de «a mamã está a falar a sério», apontou para as roupas da escola

dispostas sobre o cadeirão ao canto do quarto.

– Muito bem, dorminhoca. Veste-te, penteia-te e vai ter comigo

à cozinha. A carrinha chega daqui a trinta minutos. O papá deixou-te

dormir demasiado.

– Oh... ‘tá bem.

A criança levantou-se, despiu o pijama e avançou para o cadeirão.

Mara encostou-se à ombreira da porta, a fingir que supervisio-

nava para poder roubar uns quantos segundos preciosos a observar

a pequenita cuja figura magricela e morena ainda a deixava sem

fôlego.

Enquanto se vestia, Laks ia trauteando uma das suas cantile-

nas, que descrevia passo a passo o que fazia, ao seu próprio ritmo

errante. «Música mágica», chamavam-lhe Mara e Tom.

– Depois, visto as calças de ganga,

com as flores nos bolsos

e uma T-shirt cor-de-rosa

que é tão bonita.

Afastou-se do cadeirão e fez uma pirueta, de braços no ar sobre

a cabeça, mãos numa «posição elegante», como tinha visto fazer as

meninas crescidas da escola de ballet. Detendo-se numa pose final,

olhou para a mãe e sorriu-lhe com um ar triunfante. Mara obrigou

os lábios trémulos a sorrir e, sem confiar na própria voz, ergueu

uma mão, com os dedos bem abertos, indicando o número de

minutos que a menina tinha para chegar à cozinha.

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15

2.

Mara

Deitada na cama na noite do seu diagnóstico, quase quatro

anos antes, Mara fitara a escuridão enquanto Tom, inconso-

lável e deitado a seu lado, ia dormindo um sono agitado. Bem antes

de os primeiros raios cinza da aurora terem começado a afastar a

noite negra como breu, ela tinha feito uma promessa a si mesma:

escolheria uma data e não se lhe esquivaria. Não haveria dúvidas

nem desculpas.

Viveria ao máximo até essa data chegar, controlando tanto

quanto pudesse os dias que lhe restavam. Daria luta à doença até

finalmente lhe mostrar o dedo do meio, engolir o seu cocktail e

abandonar o mundo da mesma maneira que vivera nele – segundo

as suas próprias condições. Não daria à filha da puta da doença a

satisfação de lhe tirar isso.

Escolher uma data era fácil: 10 de abril, o seu aniversário.

Sabia que Tom e os pais a chorariam nessa data de qualquer

maneira, e não parecia justo dar-lhes outro dia para se sentirem tão

tristes. Mas que 10 de abril, que aniversário? Não seria no primeiro

após o diagnóstico, decidiu – decerto teria pelo menos ainda um

ano inteiro bom antes de a doença avançar para a fase seguinte.

O segundo também parecia demasiado cedo. Mas o quinto talvez

fosse demasiado tarde.

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Quando o sol do Texas começara a lançar os seus raios madru-

gadores pelos intervalos das persianas, fazendo com que o teto do

quarto do casal passasse de cinzento-claro a branco, Mara concluíra

que o plano mais seguro seria escolher um sintoma que assinalasse

o princípio do fim, um aviso de que a doença avançara dos estágios

iniciais para os mais graves. Assim que tal sintoma ocorresse, ela

permitir-se-ia viver até ao 10 de abril seguinte, e depois desceria o

pano.

Enquanto esperava por Laks na cozinha, uma vaga súbita de

náusea atingiu-a e ela agarrou-se ao lado da bancada, desejando

que a sensação passasse antes de a filha aparecer. Cerrou os olhos,

mas era impossível escapar ao dia anterior, e o mal-estar só piorou

quando a manhã anterior se reproduziu na tela que era a parte

interna das suas pálpebras.

Estava no corredor dos cereais da mercearia. Um rapazinho

encontrava-se a vários metros dela, com uma mão rechonchuda

pousada na anca da mãe enquanto esta se dobrava para tirar qual-

quer coisa de uma prateleira baixa. O rapazinho sorriu-lhe timida-

mente e ela correspondeu ao sorriso.

Ele levantou uma mão e ela estava a acenar-lhe em resposta

quando, sem aviso, sentiu uma necessidade portentosa de ir à casa

de banho. Tentou lembrar-se de onde ficavam os lavabos da mer-

cearia e perguntou-se porque estaria o seu corpo a mostrar-se tão

impaciente. Antes que conseguisse alcançar quer uma resposta,

quer a outra, tornou-se tarde de mais. Lentamente, inclinou a cabeça

para inspecionar as calças de ioga cinzento-claras, que entretanto

tinham passado a ostentar uma grande mancha molhada no entre-

pernas. Uma linha fina e escura descia-lhe pela parte interna da perna

direita.

– Oh, meu Deus – sussurrou. – Oh, não.

Pôs uma mão à frente da maior parte da mancha, tentando

escondê-la. Mas o rapazinho já tinha visto e a sua boca formara um

«O» de surpresa. Mara tentou voltar a sorrir-lhe, assegurar-lhe que

não havia motivo para estar incomodado – e nada que contar à mãe.

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A sua boca, contudo, não cooperava, pelo que ela levou um dedo

aos lábios. Mas a mãe do rapazinho endireitou-se nesse momento e

ele puxou-lhe o pulso com uma mão, enquanto apontava para Mara

com a outra.

– Mamã! Aquela senhora não chegou ao bacio a tempo!

O rosto de Mara incendiou-se. Estendeu a mão para pegar no

casaco que levava sempre no carrinho de compras para se proteger do

ar condicionado fortíssimo da loja, mas não o tinha. Esquecera-se

dele no carro. Em frenesim, procurou algo com que pudesse tapar-se.

A mãe do rapazinho, de rosto impassível daquela forma ensaiada

de alguém que se esforça por não reagir, agarrou num pacote de

papel de cozinha que tinha no carrinho e abriu-o enquanto avançava

na direção de Mara, com o filho a reboque.

– Não fiques embasbacado – sussurrou-lhe.

Porém, os olhos da criança mantinham-se vidrados nas calças

molhadas de Mara. Quando se acercaram, ele apertou o nariz entre

um polegar e um indicador minúsculos.

– Que pivete!

Isso provocou um silvo de repreensão da sua mãe:

– Brian! – Ao alcançá-la, a mulher estendeu-lhe um molho de

toalhetes. – Talvez possa usá-las para secar? – Apesar da sua expres-

são neutra, tinha o rosto vermelho-vivo e o nariz contorcia-se de

uma forma quase impercetível. – Podia ir buscar um cobertor ao

carro, mas – disse a mulher, inclinando a cabeça para indicar o

filho –, com o tempo que vou demorar para o levar até lá e voltar...

– Obrigada – sussurrou Mara, aceitando as folhas de papel.

– Isto nunca me tinha acontecido. – Foi secando as calças enquanto

Brian puxava a mãe pelo pulso. Passado um minuto, Mara ergueu

os olhos húmidos e cheios de vergonha na direção dos da outra

mulher, que tinham uma expressão suave e compassiva. – Não tem

de ficar. Não quero perturbar o seu filho.

– Ele está bem – disse a mulher, rasgando mais papel de cozi-

nha para lhe passar. Mara procurou um sítio onde pudesse pôr as

folhas usadas, acabando por enfiá-las na mala. Isso provocou um

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arquejo do rapaz, que redobrou os esforços para puxar a mãe pelo

corredor. A mulher obrigou o filho a ficar junto a si e pousou-lhe a

palma da mão na cabeça, mantendo-o no lugar. Debruçando-se

para ter os lábios ao lado da orelha dele, sussurrou-lhe: – Esta

senhora simpática precisa da nossa ajuda e nós vamos dar-lha.

– Mas...

– Chiu. Nem mais uma palavra.

Mara interrompeu o esforço para secar as calças e levantou a

cabeça, entreabrindo a boca para falar. Tinha tomado demasiado

café, queria dizer-lhes. Já para não falar da quantidade de água que

precisava de beber com os comprimidos. Nem do batido de proteí-

nas que Tom insistia que ela bebesse todas as manhãs para não per-

der peso. E também tinha estado distraída pela longa lista de coisas

que precisava de fazer. Não fizera uma pausa para ir à casa de banho

nas últimas horas.

Fechou a boca. Não ia sobrecarregar outra pessoa com a sua

história. Baixando a cabeça, esfregou com mais afinco, mas de nada

valia. As calças eram demasiado claras, a mancha demasiado escura.

E agora ainda tinha pedacinhos brancos por todo o lado por causa

do papel de cozinha.

– Acho que não está a funcionar – disse à outra mulher, com

uma pontada afiada de humilhação a percorrê-la ao ouvir a frustra-

ção evidente no seu tom queixoso e agudo. Fitou as folhas molha-

das que tinha no punho cerrado. Precisaria de um duche bem

demorado e cheio de sabonete para se livrar do fedor.

Tornou a olhar para o rapaz, cujo nojo era evidente no lábio

arreganhado, e deu graças a Deus por se encontrar ali sozinha, tendo

apenas desconhecidos como testemunhas. E se Laks estivesse con-

sigo? Ou Tom? A ideia deixou-a sem pingo de sangue na cabeça e ela

teve de lançar uma mão ao carrinho para se amparar.

– Lamento imenso – disse, olhando para a mãe e para o filho.

– O que é que ela tem? – sussurrou Brian, ao que a mãe dele e

Mara se entreolharam por um breve instante, num acordo tácito

para ignorarem a pergunta do rapaz.

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– Ele é um querido – disse Mara, pois não queria que a mulher

ficasse zangada com o filho por causa daquela reação. Era com-

preensível. – Detesto fazer isto, mas vou deixar o meu carrinho

aqui mesmo e correr para o meu automóvel.

– Eu posso voltar a pôr as suas coisas nas prateleiras – disse a

outra. Apontando para as calças de Mara, disse-lhe: – Até está um

pouco melhor, a sério.

Mas o seu sorriso era falso e Mara sentiu-se como uma criança

a quem dissessem que o corte de cabelo que fizera a si mesma estava

«ótimo».

– Obrigada pela sua amabilidade – disse Mara em voz baixa.

– Por favor, saiba que lamento imenso.

– Não tem de quê. Agora tenha cuidado.

Enquanto recuava pelo corredor, ia ouvindo a voz demasiado

alegre da mulher a ler a sua lista de compras em voz alta, abafando

o barulho da criança ao seu lado que estaria, Mara não duvidava, a

perguntar à mãe o que se passava com a senhora maluca que levava

uma mala cheia de papel de cozinha ensopado em chichi.

Obrigou-se a caminhar de cabeça erguida ao passar pelas caixas

até à porta da frente. Quando chegou ao parque de estacionamento,

tinha os lábios a tremer e sentia a pressão habitual no alto da gar-

ganta, a assinalar lágrimas iminentes. Lançou-se para dentro do

carro, bateu com a porta quase antes de ter tirado os pés do chão e

deixou-se cair de encontro ao assento, com as mãos a tapar o rosto.

– Oh, meu Deus, oh, meu Deus. Oh, meu Deus!

Foi acometida por soluços que vinham mesmo do seu âmago e

só a custo conseguia respirar. Quando ficou demasiado exausta

para se manter direita, deixou o corpo cair para a frente e a cabeça

pender sobre o volante. Assim ficou, inclinada para a frente e a

chorar, durante uma hora, a rever repetidamente o episódio numa

tortuosa câmara lenta, desejando de cada vez que o final tivesse

sido diferente.

Por fim, com o corpo demasiado exaurido para produzir

mais lágrimas ou barulho, ganhou uma vaga consciência de carros

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a estacionarem perto do seu, do som de rádios, de portas a serem

fechadas, de crianças a chamarem os pais. Deixou-se ficar um pouco

mais encostada ao volante a descansar antes de se endireitar, enxugar

as faces e o nariz com uma manga e fitar o seu próprio olhar no espe-

lho retrovisor.

– Então está decidido – disse num tom triste aos olhos incha-

dos e raiados de vermelho que a fitavam. – O meu aniversário é no

domingo. Tenho até então.

Cinco dias, a contar daquela manhã. Tão pouco tempo. Mas

ela começara a preparar-se quase quatro anos antes, naquela madru-

gada em que, deitada ao lado do marido, definira um prazo e pro-

metera a si mesma que não inventaria desculpas para o deixar

passar.

Desde então, saboreara cada momento como se fosse o último.

Os grandes: aniversários de Laks, dias de Ação de Graças, Natais,

aniversários de casamento. E os pequenos: cozinhar com a mãe, ver

o pai a ler histórias a Laks antes de esta adormecer, sentar-se no banco

do jardim da frente, a soprar bolhas de sabão enquanto Tom e Laks

corriam para ver quem conseguia rebentá-las primeiro. Os peque-

nos, tinha concluído, eram aqueles de que sentiria mais a falta.

– Mamã? – Laks, de mochila pendurada num ombro, como

faziam os mais crescidos da carrinha da escola, saltaricou até à cozi-

nha, estendendo a mão para a lancheira de bailarina que estava em

cima da bancada. – Não voltaste a esquecer-te de me mandar uma

bolacha, pois não? – Lançou um olhar desconfiado à mãe e abriu o

fecho-éclair da lancheira para espreitar lá para dentro. Satisfeita,

tornou a fechá-lo e estendeu uma mão. – Pronta?

Um tufo de cabelo espetava-se por cima da orelha direita da

menina, resultado de um acidente com cola na semana anterior.

A melhor amiga de Laks, Susan, espalhara por engano um bocado

de cola no cabelo da amiga e, numa tentativa de retificar o erro,

cortou o emaranhado com uma tesoura de pontas redondas. Desde

então, Mara tinha envidado alguns esforços para que a filha pren-

desse o cabelo num rabo de cavalo para esconder os tufos, mas todas

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as tentativas tinham acabado em discussão, lágrimas e com a mãe a

ceder. Um nó do tamanho de um punho bloqueava-lhe a garganta

ao ver a filha, de cabelos em pé, desdentada e linda.

Como poderia alguma vez ficar preparada?

Mas essa era a razão da sua promessa. Por isso, iria em frente,

estando ou não preparada.

– Não vou prendê-lo num rabo de cavalo, mamã – disse Laks,

com o queixo a espetar-se um tudo-nada numa expressão determi-

nada que era um decalque da mãe, ainda que não partilhassem

ADN, como Tom comentava com frequência. – Os elásticos

puxam-me muito o cabelo. Já te disse.

Pôs uma mão na testa e repuxou a pele para trás, à laia de

demonstração.

Mara pigarreou e levantou-se.

– Eu sei – disse. – Não estava a pensar no teu cabelo. Estava só

a demorar a responder.

– Oh. – Laks acenou com a cabeça, satisfeita. – Então, estás

pronta?

Mara deu um beijo no cocuruto da filha e passou uma mão

delicada pelos cabelos em pé antes de aceitar a mãozinha estendida.

– Sim, querida, estou pronta.

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3.

Sco t t

Scott avançou para a rampa de acesso e estacionou perto do pas-

seio para dar espaço a Curtis, que estava a tentar enfiar a bola no

cesto pendurado por cima da porta da garagem. Atirava a bola com

as duas mãos, que era o que valia a um miúdo de oito anos, pensou

ele. Ao ouvir o carro, Curtis virou-se e acenou-lhe.

– Bela curva nesses lançamentos, Homenzinho.

– Oh. Estou tão farto de atirar a bola assim, mas com este cesto

não consigo fazer outra coisa. – O rapaz segurou na bola à sua

frente, fitando-a como se fosse uma traidora, e depois assentiu com

a cabeça. Scott largou as chaves e a pasta e com um movimento

gracioso apanhou um passe picado desajeitado, preparou um lan-

çamento veloz e encestou. Fffft. Curtis recebeu a bola e tentou fazer

um lançamento similar. Com pouca graça e ainda menos altura, a

bola ressaltou uns bons sessenta centímetros abaixo do aro. O rapaz

ergueu uma sobrancelha. – Estás a ver?

Scott recuperou a bola no ressalto.

– Já sei, já sei. Devia ter comprado um daqueles cestos ajustá-

veis quando mandámos ali o teu amigo para a reforma.

Inclinou a cabeça na direção de um velho cesto de basquetebol

de plástico encostado à garagem. Depois de marcar outra vez, abriu

bem os braços e o rapaz correu ao seu encontro, lançando os braços

à volta da cintura de Scott, que afagou a cabeça encostada à sua bar-

riga, vendo a mão pálida muito branca em comparação com a pele

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castanha que se entrevia sob o cabelo encaracolado e preto de Cur-

tis. Baixando-se, pousou o nariz e a boca no alto daquela pequena

cabeça e inspirou o cheiro a suor de rapazinho e a primavera no

Michigan.

– Vou sentir a tua falta – disse-lhe.

A criança acenou com a cabeça e apertou mais o abraço. Assim

ficaram durante algum tempo, de braços à volta um do outro, até

que Curtis se afastou, passou uma mão suja pelos olhos molhados

e correu atrás da bola.

– Onde está a Laurie? – perguntou-lhe Scott.

– Na cozinha. A fazer lasanha.

Isso obteve um sorriso de aprovação.

– O que fizeste para mereceres lasanha?

– Miss Keller pôs um «visto» no meu caderno porque tive um

dia mesmo muito bom.

O rapaz fitou-o com uma expressão de «Que tal?» e estendeu o

punho numa saudação, à espera da resposta dele.

– Boa. E já vão dois esta semana. Mais três e podes ficar acor-

dado até tarde na sexta-feira.

– Pipocas e um filme. Até às dez. – A boca do rapaz contor-

ceu-se num desânimo exagerado. – Mas a Laurie também quer ver o

filme, porque vai ser o último, por isso tem de ser um que uma rapa-

riga queira ver. Nada d’explosões nem nada.

– Mesmo assim, ir para a cama às dez é o máximo, não é?

Curtis animou-se.

– E pipocas.

– Então, esmera-te nos próximos três dias. É melhor ir lá den-

tro. Mais cestos depois do jantar?

– Talvez. Mas hoje à noite tenho de ler. Foi a Laurie que disse.

E de fazer exercícios de matemática.

Scott sorriu perante a zanga fingida. O rapaz adorava as expe-

tativas e as regras da casa dos Coffman, mas já tinha idade sufi-

ciente para saber que não devia admiti-lo. Scott alinhou:

– A escola é importante, Homenzinho. Anda jantar daqui a

bocado.

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Baixou-se para apanhar as suas coisas e começou a avançar

para a porta da casa. Atrás de si, ouviu um «Caraças!», provavel-

mente quando a bola tornou a ficar longe do cesto.

Empurrando a porta para a fechar depois de entrar, Scott pou-

sou as chaves na mesa da entrada e inspirou profundamente: alho,

tomate, manjericão, queijo.

– Laur? – chamou. – Cheira mesmo bem.

Largou a pasta no chão e debruçou-se para examinar um prego

de uma tábua que se tinha soltado e agora ameaçava apanhar a pró-

xima meia que por ali passasse. Empurrando-o com o tacão, verifi-

cou o resto da entrada, em busca de mais. Já fora há dez anos que

afagara aqueles soalhos. Por reflexo, levou uma mão à zona lombar.

A visão que a esposa tinha de uma casa de sonho não correspon-

dera exatamente ao orçamento que tinham para comprar um espaço

e remodelá-lo. Restaurar a centenária casa colonial a «precisar de

carinho» implicara uma lista de tarefas de três páginas e ocupara-lhes

todos os fins de semana e finais de tarde durante mais de um ano.

Era o preço da entrada, convenciam-se, para o género de casa que ela

sempre quisera e que ele estava determinado a dar-lhe: uma moradia

grande e espaçosa, com chão de madeira, prateleiras embutidas e

duas lareiras. Cheia de personalidade e, um dia, filhos.

Passou a palma de uma mão pela parede da entrada. Só retirar

todas as camadas de papel de parede tinha-lhes levado dois meses.

Depois seguiram-se todas as pinturas – com o mesmo tom quente

de Cru Neutro por toda a casa, com uma parede numa cor forte

em cada quarto, cuidadosamente escolhida depois de terem com-

parado amostras de tons diferentes de variadíssimas cores. A brin-

car, diziam que iam pôr o tipo da secção das tintas da loja de

bricolagem na lista de destinatários dos seus cartões de Natal.

Chegou à entrada da cozinha e encostou-se à ombreira. A sua

mulher estava debruçada sobre o forno, e o perfil de barriga grande

ainda era uma surpresa para ele. Continuava com as roupas do

trabalho, embora tivesse apanhado o abundante cabelo ondulado e

louro num rabo de cavalo.

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– Cheira tão bem – repetiu ele.

– Oh, olá. Não te tinha ouvido.

Ela pousou a lasanha em cima do fogão e ele atravessou a divi-

são para a beijar.

– Ouvi dizer que ele teve um dia bom. – Inclinando a cabeça

por cima da lasanha, tornou a inspirar. – Hmm. Ainda bem que

teve. Ultimamente tem-me apetecido a tua lasanha.

Ela fez uma careta e pousou uma mão sobre a barriga.

– Então são dois a querê-la. Eu mal suporto o cheiro. – Em

resposta ao olhar preocupado dele, ela acenou com uma mão.

– Não é nada. Comemos salada fattoush ao almoço, daquele restau-

rante novo perto do escritório e estava um bocadinho oleosa de

mais. Seja como for, não te entusiasmes demasiado com o dia bom

dele. Conversei com Miss Keller quando fui buscá-lo. Ela anda a

dar-lhe desconto nesta semana por causa da transição. O Curtis só

atingiu metade dos objetivos comportamentais, mas ela decidiu

dar-lhe a pontuação toda. Acho que receia que, se não o ajudar a

criar algum impulso positivo, ele acabe por se ir abaixo por completo

na sexta.

– Talvez Miss Keller também saiba de uma maneira de me

impedir de ir abaixo – disse Scott.

Com um suspiro, afastou a cortina da pequena janela por cima

do lava-loiça e espiou o rapazinho no acesso da casa até uma mão

nas suas costas o recordar de quem deveria estar a receber atenção.

Largou a cortina e virou-se para a mulher.

– Surpreende-me que concordes com a complacência – comen-

tou. – Lasanha, quando na verdade não cumpriu os objetivos? – Ao

longo de todo o ano, tinha sido Laurie quem dirigira a questão

disciplinar. Ele pousou-lhe uma mão na barriga redonda. – Parece

que a maternidade iminente te está a amolecer, hein?

Ela encolheu um ombro.

– De qualquer maneira, independentemente do que Miss Kel-

ler me disse, já ia fazê-la. Queria assegurar-me de que ele a comia

uma última vez antes de se ir embora. Amanhã faço esparguete

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e deixo-o ajudar-me a fazer bolachas para a sobremesa. Na quinta,

piza caseira. Lembrei-me de fazer um bolo na sexta e tu podias

grelhar uns hambúrgueres no sábado. É tudo o que ele mais gosta,

sabes? Ainda que me sinta tentada a dar-lhe só legumes e fruta até

ele se ir embora, para que absorva alguns nutrientes antes de voltar.

Scott fez um esgar.

– Desculpa – disse ela.

– Não, não faz mal. De nada serve fingir. Ele não se vai mudar

para o Ritz quando sair daqui, essa é que é essa. E não faz mal... pelo

menos, é o que me tenho dito umas cem vez por dia ao longo das

últimas semanas. – Fechou os olhos, como se recitasse um mantra.

– Vai correr tudo bem. Mesmo que ele coma raviólis frios saídos de

uma lata, só tome banho uma vez por semana e volte às manhas anti-

gas. Tudo isso é melhor do que estar separado da mãe. Mesmo que

ela não o obrigue a fazer os trabalhos de casa e o mande para a escola

sem tomar o pequeno-almoço, o melhor para ele é estar com a mãe.

– Tudo isso é absolutamente verdade – disse Laurie, e ele dete-

tava o pequeno laivo de frustração na voz dela. – E quase parece

que acreditas nisso, desta vez. – Não acrescentou «finalmente», mas

ele sabia que estava a pensá-lo.

– Quase – reconheceu ele. Ela começou a falar e, para evitar

ouvir o que sabia que se seguiria, ele antecipou-se: – Obrigado por

teres ido buscá-lo, já agora. Desculpa a mudança à última da hora.

Então, posso ajudar a fazer alguma coisa aqui? Ponho a mesa?

Resultou. Ela passou-lhe três copos e um cestinho de pão,

armou-se com talheres e guardanapos de papel e levou-o para a sala

de jantar.

– Não tens de quê, mas eu julgava que o objetivo de pores o

Pete a dar os teus treinos esta semana era teres mais tempo em casa,

não mais tempo para reuniões de última hora com pais. Porque

não pediste à mulher que esperasse pela semana que vem?

Ela estava a falar naquele tom demasiado ligeiro que ele reco-

nhecia como reprovação envolvida em afabilidade, uma pergunta

que era mais um desafio. Tinha-lhe feito perguntas parecidas várias

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vezes: Porque se levantava cedo nas manhãs de sábado para conduzir

durante meia hora até ao centro de Detroit, quando poderia ficar a

dormir até tarde? Fosse como fosse, metade dos miúdos que frequen-

tavam o programa de explicações de sábado que ele geria só lá ia por

causa do almoço gratuito de piza, será que ele não percebia isso?

Porque passava as tardes de verão no velho campo ao ar livre em

frente à escola, entretido em jogos improvisados com miúdos que a

maioria dos professores estava encantada por deixar de ver durante

dois meses, ou de vez, agora que tinham passado para o secundário?

Scott ergueu as palmas das mãos na direção da mulher, rogando

por perdão.

– Sabes como são as minhas noites de reuniões de pais naquela

escola. Passo uma hora a ler a Sports Illustrated e é possível que uma

ou duas pessoas se deem ao trabalho de aparecer. Se alguém final-

mente quer envolver-se na educação do filho, tenho de estar lá para

os receber. Se os adiasse para a semana que vem, não teria garantia

de que aparecessem.

– Não podes salvar sozinho cada um dos alunos da Franklin

Middle School1.

– Eu sei. Não vou chegar a todos. Três anos não é tempo sufi-

ciente. – Lançou-lhe um sorriso de esguelha, esperando que fosse

irresistível.

Ela expirou ruidosamente enquanto voltava para a cozinha.

– Não era isso que eu estava a dizer, como tu bem sabes.

Seguindo-a, ele tirou uma garrafa de cerveja do frigorífico e

abriu-a, antes de encher um copo com água da torneira. Passou-lhe

o copo e ergueu a garrafa. Ela brindou com o copo, tomou um gole

e fez uma careta, com uma mão sobre a barriga.

– Tens a certeza de que estás bem? – perguntou-lhe.

Ela suspirou.

– Sabes como tem sido. Como uma coisa que não devia e passo

o resto do dia maldisposta.

1 Escola que abrange o sexto, sétimo e oitavo ano de escolaridade. (N. do E.)

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