Julio Mesquita

53
1 *- biografia de JM feita por Jorge Caldeira para o prefácio do livro ‘A Guerra’, de Julio Mesquita (São Paulo, ‘O Estado de S. Paulo’, 2002) Julio Mesquita foi responsável por uma grande revolução: a implantação do jornalismo moderno no Brasil. Para fazer isso, realizou uma obra extraordinariamente complexa, que exigiu sucesso em várias frentes ao mesmo tempo. Ele precisou ser bem- sucedido como político, empresário, jornalista e comandante de um jornal. Eram exigências muitas vezes contraditórias, e esta situação exigiu dele alguns sacrifícios. O maior deles foi o de não ter uma obra pessoal reconhecida, algo que a publicação deste livro finalmente ajuda a começar a sanar. Nascido em Campinas, em 1862, tornou-se jornalista profissional em novembro de 1888, quando foi contratado como gerente do jornal A Província de S. Paulo.

description

A prosa de Julio Mesquita é coloquial e fluente, embora escrita num tempo em que o parnasianismo predominava em estética, o gongórico no discurso político, o afetado no comportamento social da elite. Era, enfim, um texto que se construía na contramão do estilo do tempo, feito para ser claro e conciso, avesso a demonstrações de erudição ou marcas de estilo, com uma dose precisa de ironia e celebrador de limitações.A consolidação do jornal como uma publicação moderna, que fornecia notícias e artigos recebendo em troca dinheiro de anunciantes e leitores, aconteceu no início da segunda década do século. biografia de JM feita por Jorge Caldeira para o prefácio do livro ‘A Guerra’, de Julio Mesquita (São Paulo, ‘O Estado de S. Paulo’, 2002)

Transcript of Julio Mesquita

Page 1: Julio Mesquita

1

*- biografia de JM feita por Jorge Caldeira para o prefácio do livro ‘A Guerra’, de Julio Mesquita (São Paulo, ‘O Estado de S. Paulo’, 2002)

Julio Mesquita foi responsável por uma grande

revolução: a implantação do jornalismo moderno no

Brasil. Para fazer isso, realizou uma obra

extraordinariamente complexa, que exigiu sucesso

em várias frentes ao mesmo tempo. Ele precisou ser

bem-sucedido como político, empresário, jornalista e

comandante de um jornal. Eram exigências muitas

vezes contraditórias, e esta situação exigiu dele

alguns sacrifícios. O maior deles foi o de não ter uma

obra pessoal reconhecida, algo que a publicação

deste livro finalmente ajuda a começar a sanar.

Nascido em Campinas, em 1862, tornou-se jornalista

profissional em novembro de 1888, quando foi

contratado como gerente do jornal A Província de S.

Paulo. Fundado por pessoas ligadas ao Partido

Republicano Paulista, vendia 4 mil exemplares

diários, disputava a liderança do mercado local, e era

praticamente desconhecido fora da região onde

circulava. Em 39 anos de atividade, Julio Mesquita

conseguiu se tornar dono da publicação onde

começou como funcionário, transformar O Estado de

S. Paulo numa publicação de importância nacional e

montar o maior parque gráfico ao sul do equador. No

momento de sua morte, em 1927, a tiragem chegara

aos 60 mil exemplares diários – num tempo em que

Page 2: Julio Mesquita

2

São Paulo tinha 570 mil habitantes, mais da metade

dos quais analfabetos.

Sob seu comando, portanto, aconteceu a

transformação de um órgão destinado a um grupo

relativamente limitado de leitores com interesses

políticos em outro que falava a uma sociedade

complexa. Esta mudança no sentido da atividade de

fazer jornais vinha ocorrendo no mundo desde a

segunda metade do século XIX – mas apenas Julio

Mesquita foi capaz de introduzi-la no Brasil. Aqui, os

obstáculos para a mudança foram grandes, apesar

da existência da maioria das condições necessárias

para o salto.

A imprensa brasileira dos tempos iniciais do Império

podia ser considerada das mais avançadas de seu

tempo. Naquele momento, praticamente todos os

jornais do planeta tinham as mesmas características:

eram de propriedade de políticos e extremamente

partidárias – defendiam ardorosamente o governo,

quando seu proprietário fazia parte dele, e o

detratavam como podiam, nos momentos em que

estavam na oposição. Isto era um progresso: o jornal

surgiu com a luta eleitoral e a democracia, como um

instrumento para convencer eleitores. E seu

partidarismo não se limitava às idéias. Era norma da

época em todo o mundo que o jornal, no momento

em que seus proprietários estavam no poder, tivesse

como maior fonte de renda os cofres públicos,

Page 3: Julio Mesquita

3

através de subsídios diretos ou de contratos de

serviço vantajosos.

O Brasil imperial tinha eleições regulares e um

sistema eleitoral dos mais abertos do mundo – pois

naquela época o número de eleitores, mesmo nos

Estados Unidos ou na Inglaterra, representava

apenas uma pequena fração da população total. Era

um sistema bastante fechado, o que transformava o

jornal num veículo que circulava apenas na elite. Só

se comprava um exemplar por assinatura, a um

preço relativamente elevado, e se considerava quase

uma afronta a idéia de fazê-lo circular nas ruas.

Enquanto as coisas foram assim, o jornalismo

brasileiro podia ser comparado em pé de igualdade

ao dos maiores centros do mundo, mesmo quando

se pensava na quantidade vendida – geralmente em

torno de 2 mil exemplares.

A partir da década de 1840, a situação mudou

radicalmente. A revolução começou em Nova York,

quando Benjamin Day lançou o The Sun. Em vez de

buscar a elite, o jornal era feito especialmente para

ser vendido nas ruas. Tinha menos páginas e ligava

pouco para a possibilidade de ganhar dinheiro com

cartadas políticas. Pelo contrário, vendia algo que

era pouco compreendido na época: relatos de

acontecimentos que julgava importantes para

cidadãos comuns. A forma de vender também era

nova: vendedores de rua, que apregoavam as

Page 4: Julio Mesquita

4

notícias mais importantes. Quando os concorrentes

começaram a prestar atenção à novidade, o Sun já

vendia 19 mil exemplares diários, mais que a soma

de todos eles reunidos. Estava feita a revolução – e

a separação no ritmo do progresso do jornalismo

brasileiro em relação aos países desenvolvidos.

O jornal em que Julio Mesquita foi trabalhar tinha

quase tudo do jornalismo partidário: defendia as

idéias republicanas, era feito por jornalistas que

militavam no partido, circulava na área de influência

do partido. Mas tinha já algumas diferenças

fundamentais. Desde o momento de sua fundação,

em 1875, todos os envolvidos no projeto sabiam que

não poderiam alimentar qualquer esperança próxima

de receber dinheiro público – e esta era a fonte

financeira mais importante para o jornalismo

partidário, sua principal razão econômica. Por isso,

montaram uma empresa com certa solidez, e

trataram de matizar o partidarismo do jornal –

tentaram desde cedo conquistar leitores não pela

concordância política, mas pela qualidade do

noticiário que ofereceriam. Tinha de ser assim,

porque só podiam sobreviver com leitores e

anunciantes.

Ainda assim, o corte político era fundamental no

jornal – e Julio Mesquita se trajava por este molde.

Filho de um comerciante português imigrado na

metade do século, sofreu de perto a influência

Page 5: Julio Mesquita

5

republicana, que era forte em Campinas. Tal

influência não era apenas eleitoral, mas se estendia

a vários aspectos da vida da cidade. Ele estudou no

colégio Culto à Ciência, fundado pelos republicanos

locais, onde o currículo era bastante diferente do

ramerrão imperial, feito mais de catecismo que de

preparação prática. Teve como professor de história

Francisco Rangel Pestana, o primeiro diretor de

redação do jornal. A diferença de preparo se fez

notar: com apenas 15 anos de idade foi aprovado na

Faculdade de Direito de São Paulo.

Entrou no curso já como republicano convicto, e saiu

dele como um republicano radical. Além de participar

dos grupos de discussão (no Clube Republicano

Acadêmico, era colega de Alberto Salles, Júlio de

Castilhos, Assis Brasil, Pedro Lessa e Afonso Celso,

todos políticos republicanos importantes) e da

confecção de pequenas publicações partidárias,

freqüentava a Charutaria Kling, onde se reuniam os

abolicionistas mais radicais da cidade, organizadores

do grupo dos Caifazes, que promovia rebeliões em

senzalas, enfrentava capitães-do-mato, escondia os

foragidos e dava proteção jurídica a tudo isso. Mas

Julio Mesquita não limitava seus interesses à

política. Adorava literatura, o que, para um radical

como ele, naquele momento, significava tomar

posição a favor do realismo e de uma forma de

narrar na qual a moral não estava no centro da

construção do texto; Eça de Queirós era o modelo, e

Page 6: Julio Mesquita

6

Machado de Assis – antes de se tornar um mestre

realista –, seu detrator no Brasil. Também gostava

muito de teatro, uma paixão de vários de seus

colegas de república, e de significado amplo: volta e

meia, a casa se enchia de atrizes em festas que

duravam até o último centavo de todos.

Os pendores boêmios, e mais um conjunto formado

por cabelos claros, olhos azuis, bom humor e um

otimismo jovial ajudavam, e muito, a atenuar seu

radicalismo político. Nas reuniões republicanas,

falava sempre em revoluções, jamais em evolução.

Seu primeiro discurso entre membros do partido,

num banquete em Campinas realizado em 1882,

quando tinha vinte anos, pregava a luta

revolucionária como a forma adequada para dar fim

a uma “dinastia corrupta”. A peça revolucionária foi

publicada da Gazeta de Campinas. Mas a ela logo

se somaram outras, mostrando aspectos diversos de

sua personalidade: um conto romântico adolescente

do admirador dos realistas e uma reportagem sobre

a morte e o enterro de Luís Gama, líder maior dos

Caifazes.

Em apenas um dia de 1884, Julio Mesquita viveu

três mudanças importantes. Retirou seu diploma na

Faculdade de Direito, casou-se com Lucila Cerqueira

César (filha de José Alves Cerqueira César, então o

principal dirigente republicano paulista e acionista de

A Província de S. Paulo) e mudou-se para

Page 7: Julio Mesquita

7

Campinas, onde se instalou como sócio de um

escritório de advocacia. Um ano depois já era pai,

vereador (o mais votado da cidade) e estreava como

editorialista convidado no jornal paulistano, para

realizar uma obra que parecia o oposto de suas

idéias. No final de 1884 voltou para São Paulo, para

acompanhar o nascimento de sua primeira filha. O

evento, no entanto, coincidiu com uma eleição em

que, aproveitando-se de pleitos em dois turnos, os

republicanos fizeram um acordo com os

conservadores, no segundo turno, e elegeram dois

deputados federais.

O acordo provocou celeumas, pois significava uma

aliança com os maiores adversários. Naquele

momento, poucos republicanos, especialmente os

radicais, tinham coragem de falar abertamente no

assunto. Mas não Julio Mesquita, que iniciou em

janeiro de 1885 uma série de editoriais no A

Província de S. Paulo intitulada “Os Partidos

Políticos e as Transações”, na qual defendia a

negociação com um argumento sólido:

“Precisávamos lançar mão de todos os meios dignos

para eleger um representante nosso. A monarquia

entendeu que deveria transigir conosco. Aceitamos a

transação. Por meio dela triunfou a verdade do

sistema representativo, porque vamos ser minoria no

Parlamento – nós que somos minoria no país.

Cumprimos um dever de democratas”. Os artigos já

revelavam outra de suas características pouco

Page 8: Julio Mesquita

8

comuns: a de manter posições muito avançadas e

reconhecer, ao mesmo tempo, a limitação de seu

alcance, que exigia negociar com os setores

majoritários. Com os editoriais, mostrava que não

confundia as duas coisas.

Com esta combinação de realismo e radicalismo ele

conseguiu, ao mesmo tempo, tornar-se um

respeitado líder dos republicanos radicais – o que

significava, naquele momento, lutar com todas as

formas contra a escravidão e pregar uma mudança

revolucionária no regime político – e um sensato

vereador e advogado, preocupado com as questões

da cidade e os interesses de seus clientes. Foi então

que se revelou um problema que limitaria suas

atividades: uma doença pulmonar, que o obrigaria a

freqüentes interrupções de suas atividades. A

primeira aconteceu em 1886, curada com uma

viagem à Argentina. No ano seguinte, quando

começava a ter um papel decisivo na adoção de

suas idéias por todo o partido (pois os abolicionistas

e os revolucionários eram uma ala minoritária até

então), uma nova crise o obrigou a parar por mais de

um ano, quando viajou para Portugal.

Com esta experiência de vida, na qual a política

ocupava muito tempo e o jornalismo era apenas um

aspecto secundário de sua atividade, ele assumiu o

cargo de gerente do jornal quando retornou ao país.

Para a imensa maioria das pessoas que viveram

Page 9: Julio Mesquita

9

situação semelhante no século XIX, o emprego era

visto como uma oportunidade de aumentar a

influência política – pois esta, afinal, era a razão de

ser do jornalismo partidário. Mas Julio Mesquita,

mesmo com uma experiência bastante limitada em

jornalismo até aquele momento, desde o primeiro dia

entendeu as coisas de outra forma. A partir do

instante em que se tornou gerente, seu nome

praticamente desapareceu das páginas do jornal.

Nem mesmo no expediente aparecia – e esta

ausência vinha a ser, justamente, a marca mais

visível de uma imensa mudança.

Ao apagar seu nome, ele estava invertendo a ordem

dos fatores de um modo como ninguém havia feito

na imprensa brasileira até então. No jornalismo

partidário, a proposta do grupo político era o bem

mais importante, e os políticos ligados ao grupo, as

pessoas mais importantes. Esta ordem de fatores

determinava o andamento da cobertura: ela era

positiva quando os ventos favoreciam o grupo, e

negativa quando o poder ficava mais longe dele.

Como a própria denominação indica, a parte tinha

prioridade absoluta sobre o todo.

Desde o começo, Julio Mesquita tinha uma

explicação para seu comportamento atípico: para

ele, um texto sem assinatura valia muito mais que

outro assinado; enquanto este último trazia sempre

uma opinião pessoal, o anonimato permitia construir

Page 10: Julio Mesquita

10

textos que fossem de uma instituição, e por isso

mesmo mais valiosos. Representariam o jornal todo,

não apenas um de seus membros. Este era um

argumento difícil de aceitar para a imensa maioria

dos jornalistas e articulistas da época. Mas se

tornava muito difícil argumentar contra a idéia

quando ela vinha do próprio diretor. Por isso, a idéia

acabou sendo aceita, com todas as importantes

implicações que trazia consigo.

Uma delas era a de que todos os textos do jornal

deveriam se submeter a uma norma única de

gramática e estilo, imposta por profissionais

especializados. Nem mesmo os textos dele

escapavam desta regra, sendo sempre submetidos à

revisão antes da publicação. Mesmo quando

eventualmente discordava de alguma norma, ele a

seguia. A imposição desta situação levou a uma

outra: a 10definição do texto jornalístico como algo

próprio, que não se confundia nem com artigos nem

com o material que deveria merecer publicação em

livro. Eram textos especificamente montados para

serem lidos no dia, e não deveriam merecer qualquer

preocupação com a posteridade. Destinavam-se

apenas a informar pessoas.

Todo este conjunto indicava uma outra missão para

a atividade jornalística. O espaço central da

cobertura deixava de ser a relação entre o universo

da direção dos negócios públicos e a sociedade,

Page 11: Julio Mesquita

11

para se concentrar naquela entre o jornal e seus

leitores. No lugar da luta eleitoral, o mercado

passava a ser a instância mediadora mais

importante. Começava, no Brasil, a revolução que já

acontecera trinta anos antes nos Estados Unidos e

na Inglaterra.

Tanto quanto era inovador ao se posicionar como

jornalista, Julio Mesquita foi inovador ao tratar do

agora privilegiado aspecto do mercado – aliás, o

mais específico de sua posição inicial na empresa, a

de gerente. No jornalismo partidário, era

absolutamente comum que uma mesma pessoa se

encarregasse dos vários aspectos do negócio. Todos

eram editores, repórteres, vendedores de anúncios e

tipógrafos – atuavam um pouco em cada área. O

cargo de gerente indicava uma responsabilidade

pela administração do negócio, que jamais impediu

uma participação muito importante na vida da

redação. Julio Mesquita, enquanto exercia esta

influência na redação com seu anonimato, promovia

uma grande mudança nos aspectos comerciais do

negócio.

Enquanto a prioridade de um jornal fosse se

agüentar na oposição para forrar as burras no poder,

as boas tiragens eram um aspecto secundário do

empreendimento, demonstrando mais a influência

política do grupo que a saúde do negócio. Neste

sentido, valia a pena ser leniente na cobrança de

Page 12: Julio Mesquita

12

assinaturas: mais leitores significavam

essencialmente mais cacife político, e mais cacife

político, mais chances de cobrar do Tesouro na hora

da vitória. Na nova realidade, menos que

instrumentos, os leitores e anunciantes passavam

para o centro das preocupações. Era necessário

criar tanto o hábito da leitura quanto o do pagamento

pelos serviços prestados pelo jornal.

Assim que entrou no jornal, Julio Mesquita atacou de

frente a primeira face do problema. Embora A

Província de S. Paulo tivesse sido o primeiro jornal

da cidade a empregar vendedores de rua – desde

1876 tinha os seus, o primeiro dos quais foi um

francês que apregoava o produto do alto de um burro

e tocando berrante, figura que aparece em seu ex-

libris –, estes tinham uma função quase marginal no

faturamento da empresa. Três semanas depois de

tomar posse, no entanto, Julio Mesquita aproveitou

um evento político trágico – a morte de alguns

populares numa manifestação republicana reprimida

pela polícia – para lançar uma campanha: doar a

receita das vendas avulsas de uma edição para as

famílias das vítimas. Neste dia, a redação se encheu

de voluntários para a tarefa de vender jornais; no

final da tarde, haviam sido vendidos 9 mil

exemplares, numa publicação que nunca imprimira

mais de 4 mil.

Page 13: Julio Mesquita

13

Mais que tudo, a venda nas ruas tinha o efeito de

criar um novo público, anônimo e não dependente de

relações partidárias. Não demorou muito para que

este público se tornasse importante na vida do jornal.

Era um público incerto, que comprava um exemplar

quando havia algo que julgava muito importante, e

deixava de lado o hábito no dia seguinte. Por causa

deste comportamento, não era exatamente bem

atendido, até a chegada de Julio Mesquita. Sob sua

gerência, este público passou a ser tratado com

cuidado e os resultados logo apareceram. A tiragem

começou a flutuar de acordo com a importância das

notícias – havia dias em que se vendiam até 800

exemplares nas ruas, 20% a mais que a média diária

– e isto levou tanto a um aumento do faturamento

como, principalmente, ao cuidado na apresentação

do jornal.

Foi preciso um bom tempo de investimento neste

aspecto para poder atacar o segundo problema.

Quando assumiu o jornal, Julio Mesquita encontrou

uma média histórica de 45% de inadimplência entre

assinantes – e esta era uma das mais baixas da

cidade, num momento em que os leitores não

estavam no centro da preocupação de jornais

políticos. Somente oito anos depois de assumir ele

foi capaz de cortar assinaturas dos que não

pagavam – e de anunciantes que faziam o mesmo –,

acabando com o último resquício administrativo do

Page 14: Julio Mesquita

14

jornalismo partidário. Quando conseguiu fazer isso,

já tinha feito opções de extrema importância.

O período inicial de implantação do jornalismo

moderno coincidiu com a ascensão ao poder do

grupo fundador do jornal – e este momento era o

sonho de todos os políticos, especialmente quando

se ligavam a jornais. Com a proclamação da

República, a lista de acionistas e jornalistas mudou

de qualidade na mesma velocidade com que o novo

regime obrigou a uma troca de nome da publicação,

que passou a se chamar O Estado de S. Paulo. Esta

lista passou a se confundir com a do comando

político do país. Incluía nomes como Campos Salles

(ministro da Justiça do governo provisório), José

Alves Cerqueira César (um dos integrantes do

triunvirato que governava São Paulo, e logo em

seguida governador), Francisco Rangel Pestana

(que deixou a direção de redação para fazer o

projeto da Constituição republicana e logo em

seguida se elegeu governador), Américo Brasiliense

(governador de São Paulo), João Tibiriçá Piratininga

(deputado, senador e governador de São Paulo),

Francisco Glicério (deputado e senador).

O próprio Julio Mesquita – que jamais abandonou o

gosto pela política – não escapou da transformação.

Foi secretário do primeiro governo republicano

paulista, deputado estadual, deputado federal,

senador estadual (na República Velha os estados

Page 15: Julio Mesquita

15

tinham um senado). Ele jamais deixou de participar

da vida partidária, até o último de seus dias. E, no

entanto, fez tudo isso invertendo prioridades.

Enquanto a maioria de seus correligionários era cada

vez mais de políticos e cada vez menos de

jornalistas, ele percorreu o caminho inverso. Assim

que pôde – seis meses após a mudança do regime

–, colocou a direção do jornal no centro de suas

atividades e a política como uma atividade

secundária, embora jamais deixasse de ser um líder

político reconhecido.

A complexa mistura que realizou entre estes

elementos contraditórios foi exemplar. Para o líder

político, nada melhor que ter um jornal nas mãos,

capaz de levantar seu nome e torcer a realidade

sempre a seu favor. Para um jornal moderno, não

existe norma mais abstrusa do que esta. No caso de

Julio Mesquita, a completa ausência de seu nome

nos artigos assinados representou uma prioridade

clara para o jornal: a precisão da cobertura era mais

importante que a posição pessoal do dono. Porém,

muito mais importante que o aspecto editorial, o

aspecto econômico. A hora de ocupar o poder

coincidia com a oportunidade de faturar um bom

dinheiro público.

Neste aspecto, o comportamento de Julio Mesquita

foi ainda mais radical que no caso da assinatura. No

início do governo republicano, quando tudo era

Page 16: Julio Mesquita

16

instável, o jornal aceitou um contrato típico do

jornalismo partidário para receber dinheiro público na

época: passou a fazer o serviço de transcrição dos

debates da Assembléia Estadual e a publicá-los.

Mas, apenas assentado o novo regime, o contrato foi

abandonado. Com a força política que tinha, Julio

Mesquita poderia ter arrancado quanto dinheiro

quisesse, caso quisesse, dos amigos no governo.

Em vez disso, passou a agir em outra direção.

O novo regime provocou uma revoada de jornalistas

na direção do funcionalismo público, a começar pelo

diretor de redação, Francisco Rangel Pestana.

Ocupando seu lugar, Julio Mesquita tratou de

preencher as vagas contratando jornalistas que

tivessem um engajamento pessoal com a profissão,

sem ambições políticas próprias. Acabou recrutando

emigrados portugueses (sobretudo para os

fundamentais cargos de revisores e normatizadores

da produção) e italianos (especialmente para a

edição de material internacional); no mais, contratou

uma série de pessoas que pensavam como ele: mais

importante que o talento individual era a obra

coletiva. A mudança se estendeu até mesmo para o

preenchimento de sua vaga, ocupada por José

Filinto da Silva, um dos primeiros a encarar a

administração de um jornal sob o prisma

empresarial.

Page 17: Julio Mesquita

17

Enquanto fazia tudo isso, Julio Mesquita ia criando

um afastamento entre o jornal e o partido que lhe

dera origem. Embora fosse um republicano de quatro

costados, incomodava-se muito com o fato de que o

jornal que dirigia era o órgão oficial do partido. Logo

nos primeiros meses de sua gestão, conseguiu

acabar com esta posição, convencendo o partido a

empregar o Correio Paulistano – jornal de

conservadores que aderiram ao novo regime – para

esta função. Ao mesmo tempo, procurou fazer no

jornal uma cobertura tão isenta quanto possível do

novo regime, o que o levou a trombar de frente com

o governo, logo nos primeiros meses de 1890.

Não demorou para que a equação ficasse clara para

os acionistas do jornal: os números de venda

melhoravam, enquanto a qualidade da submissão do

jornal aos interesses do partido se deteriorava.

Muitos ficaram insatisfeitos com esta estranha

inversão de prioridades e começaram a vender suas

ações, que foram sendo compradas pelo diretor. Sua

peculiar posição com relação ao balanço entre as

necessidades políticas e as do serviço aos leitores ia

se fortalecendo cada vez mais.

Ainda assim, pouca gente poderia apostar na

continuidade deste projeto quando se colocasse

alguma questão que apresentasse a escolha entre

um e outro aspecto de maneira radical. E este

momento aconteceu no início do governo Campos

Page 18: Julio Mesquita

18

Salles. Além de ser um dos principais responsáveis

pela fundação do jornal, ele era tio da mulher de

Julio Mesquita e freqüentador diário da casa de seu

sogro – onde ele mesmo morava. Como se não

bastasse, foi eleito presidente da República. E, para

tornar ainda mais atraente a situação para quem

pensasse como jornalista partidário, era um

presidente muito disposto a despejar dinheiro público

para ter jornais amigos. Fez isso com grande volúpia

durante todo seu mandato, e ainda justificou o

comportamento mais tarde, quando escreveu uma

autobiografia. Mais que nunca, portanto, Julio

Mesquita tinha todas as condições para levar o jornal

no caminho do partidarismo naquele momento. E

esta seria a direção aprovada por todos numa época

em que o jornalismo brasileiro era quase todo

partidário.

Pois bem. Não apenas Julio Mesquita rompeu com o

governo Campos Salles, como rompeu porque

discordava da política dos governadores, que, em

essência, transformava o resultado de eleições em

questão de Estado, não em representação da

vontade dos eleitores. Para mágoa do presidente,

colocou toda a influência do jornal a serviço de seus

leitores, prejudicados com a medida, e não a serviço

de um governo bastante disposto a pagar pelo

convencimento de seus benefícios. A posição valeu

uma última ruptura: retiraram-se os acionistas que

ainda esperavam dividendos políticos – Julio

Page 19: Julio Mesquita

19

Mesquita comprou suas participações, tornando-se

dono do jornal. Finalmente podia fazer o jornal que

imaginava.

Corria o ano de 1901, e a tiragem andava por volta

dos 12 mil exemplares diários, o triplo do momento

em que ele entrara para a empresa. Com a opção de

partir para a oposição, Julio Mesquita perdeu seu

mandato parlamentar e passou a se dedicar

exclusivamente ao jornal. A partir daí, todos os

esforços se concentraram numa única direção:

eliminar todos os resquícios de partidarismo na

cobertura política – o que não queria dizer deixar de

ter posições políticas, mas sim deixar de acreditar

que tais posições se traduziriam imediatamente em

atos do governo –, ampliar o noticiário, buscar todos

os leitores e anunciantes que estivessem dispostos a

pagar pelo serviço, e entregar-lhes um jornal de

qualidade melhor que o da concorrência.

Tudo isto foi montado ao longo da década seguinte.

A tiragem dobrou novamente; o noticiário se tornou,

de longe, o mais isento da cidade; a credibilidade

trouxe leitores de todos os matizes políticos, o que

fez com que os anunciantes confiassem em pagar

pela inserção de mensagens. Tudo isso deu a Julio

Mesquita o respaldo suficiente para pensar no

crescimento do jornal unicamente como resultante

de sua posição no mercado. Editorialmente isto

queria dizer, naquele momento, não buscar favores

Page 20: Julio Mesquita

20

com dinheiro público – o governo era tratado como

um anunciante como outro qualquer, que gerava em

torno de 3% da receita do empreendimento, sempre

pagando por anúncios a preço de tabela, e

anunciando quando queria.

A consolidação do jornal como uma publicação

moderna, que fornecia notícias e artigos recebendo

em troca dinheiro de anunciantes e leitores,

aconteceu no início da segunda década do século.

Em 1912, a empresa lançou debêntures no mercado

para financiar sua expansão, conseguindo que até

mesmo o capital viesse da comunidade a que servia,

e não do governo. Foi um momento de grande

atividade para Julio Mesquita, mas que teve

conseqüências danosas. Ele sofreu uma forte crise

pulmonar, e ficou vários dias entre a vida e a morte.

Terminantemente proibido de trabalhar, foi obrigado

pelos médicos a sair de perto do jornal. Passou mais

de um ano vagando por hotéis da Europa, gastando

seu tempo e vários baralhos jogando paciência, até

que tivesse forças para voltar e conhecer o novo

maquinário e a nova redação.

Financeiramente, o momento era delicado: muito

dinheiro havia sido investido, e chegara a hora de

pagar com juros àqueles que tomaram as

debêntures. Mas, por outro lado, Julio Mesquita tinha

confiança de sobra nas opções que tomara. Com 52

anos de idade em 1914, alimentava a esperança de

Page 21: Julio Mesquita

21

realizar seu sonho, depois de tanto tempo: montar

uma empresa sólida, e sólida porque fundada na

confiança de um público amplo, não nos azares da

conjuntura política. A obra coletiva finalmente se

imporia sobre os acidentes individuais.

Não faltavam elementos para alicerçar esta

confiança. Seu jornal liderava folgadamente a luta

pelo mercado na cidade. Ele continuava mantendo

suas posições políticas, a mais conspícua das quais

era a luta pela verdade eleitoral, com a

desmontagem das máquinas de fabricar resultados

nas urnas erigidas com a política dos governadores.

Continuou freqüentando o teatro e a vida cultural da

cidade, ao lado da mulher, Lucila. Cada vez mais

tolerante, não ligava a mínima para suas próprias

contradições – estava chegando ao ponto de apoiar

a aprovação de verbas públicas para a Igreja, ele

que nunca punha os pés em uma; fumava bastante,

mesmo sofrendo dos pulmões. Entre o pouco que

lhe faltava, estava uma casa própria: empenhado em

solidificar o jornal, ele era econômico consigo

mesmo a ponto de ter medo de empenhar o dinheiro

pessoal num gasto que considerava luxuoso – um

outro indício de que colocava a instituição acima das

pessoas, inclusive a sua.

Os cálculos positivos que embasavam o momento

foram todos deixados de lado no momento em que

eclodiu o conflito mundial. Mesmo antes de ele se

Page 22: Julio Mesquita

22

generalizar, avaliou todas as conseqüências para a

empresa: aumento no custo do papel, todo ele

importado, e diminuição nas receitas de publicidade.

Com a mesma rapidez, viu que seria uma luta

extensa – mas sobretudo uma luta de valores, uma

disputa entre a democracia, que considerava um

bem fundamental, e o militarismo, que considerava

um mal sistêmico. Sendo assim, resolveu duas

coisas. Primeiro, dar ao conflito um tratamento

importante. Isso significava investir mais em

informação, e mais ainda na apresentação da

informação aos leitores. Publicaria a versão mais

isenta possível do conflito, buscando as versões dos

vários lados, e da maneira mais clara que

conseguisse – o que incluía a confecção de mapas

das batalhas e a obtenção de fotografias. Em

seguida, associar esta isenção do noticiário a uma

posição editorial firme ao lado de ingleses e

franceses, representantes da democracia.

Esta combinação entre isenção do noticiário e

firmeza nas posições editoriais era a marca do

jornalismo moderno. E só era possível como

combinação com a condição que a posição fosse

sustentada não por partidarismo, mas pela defesa de

princípios considerados importantes para toda a

sociedade, como no caso da democracia. Este é um

valor universal, na medida em que sua defesa não

está ligada a um grupo partidário, mas a uma regra

geral. O exercício desta combinação entre isenção e

Page 23: Julio Mesquita

23

engajamento, no entanto, se baseia numa arte de

equilíbrio: supõe tolerância e capacidade de

distinguir a todo momento entre o desejo, sempre

grande, e sua possibilidade de realização, sempre

limitada. Exige também uma modéstia básica: jamais

se pode acreditar que os princípios se realizarão

plenamente, e eles devem ser sempre submetidos à

realidade dos fatos.

Este foi o exercício básico que Julio Mesquita

desenvolveu ao longo dos quatro anos que durou o

conflito. Embora claramente posicionado ao lado da

causa aliada, em nenhum momento ele empregou

esta crença para torcer os fatos dos campos de

batalha. Podia ficar mais alegre com uma vitória ou

mais triste com uma derrota, mas jamais ficava cego

para o fato da vitória ou da derrota.

Com isso em vista, seu trabalho tinha uma dupla

carga. De um lado, aparava as muitas arestas

partidárias dos telegramas que recebia dos diversos

países, até chegar a uma descrição dos fatos que

julgava a mais próxima possível da realidade. Fazia

isso com uma competência extraordinária, raramente

se enganando quanto ao resultado efetivo dos

conflitos. Uma vez cumprida esta etapa de análise,

empregava seus valores para produzir uma síntese,

que não tinha exatamente um sentido noticioso. Em

geral apresentada na introdução, ela mostrava os

valores que estavam em jogo por trás dos combates

Page 24: Julio Mesquita

24

– e sempre deixavam claros os valores importantes

para o analista.

Em geral, essas duas tarefas são hoje realizadas por

pessoas diferentes dentro de um jornal. A primeira

cabe a repórteres e agências de notícias, que

procuram transmitir notícias: relato isento de um

conjunto de fatos. A segunda é a atividade básica de

articulistas e editorialistas, que procuram um

julgamento desses fatos segundo um conjunto de

valores. O trabalho de Julio Mesquita mostra um dos

poucos jornalistas de sua época no Brasil capazes

de desempenhar as duas tarefas com enorme

proficiência, produzindo textos em que as duas

atividades apareciam bem executadas num único

conjunto.

Esta era uma possibilidade que só existia com a

condição da ausência de assinatura – que

contaminaria imediatamente a credibilidade da parte

do texto que se caracteriza pela busca da isenção. E

esta possibilidade de combinar análise e síntese era

justamente a mais importante característica do

trabalho de Julio Mesquita. Ao longo do tempo, ele

foi transformando uma seção relativamente

secundária, chamada “Notas e Informações”, na

página mais quente de seu jornal. Esta coluna era

composta de pequenas notas editoriais,

entremeadas de informações a respeito dos

personagens ou do assunto enfocado. Grande parte

Page 25: Julio Mesquita

25

de seu efeito vinha da arte de combinar a descrição

mais seca possível com o comentário menos

judicativo que se pudesse escrever. Por muitos anos,

Julio Mesquita treinou seus principais redatores no

uso desta combinação – essa era a marca do jornal.

À medida que o tempo passava, delegava cada vez

mais esta função – o que estava de acordo com sua

idéia de textos que fossem do jornal, não de

pessoas.

Esta delegação torna muito difícil a identificação

daquilo que saiu diretamente de sua pena (eram

tempos em que se escrevia à mão nos jornais). Há

certeza de que, nos momentos das crises políticas

mais importantes ou de grandes decisões, vinham

dele as notas da coluna. Mas, na maior parte das

vezes, há alguma dificuldade para identificar com

clareza a autoria do artigo, dificuldade que

aumentava com o maior adestramento de seu

pessoal na técnica que ele propunha.

A coluna semanal sobre a guerra, no entanto, é

inteiramente de sua autoria; quando não escrevia, a

publicação era suspensa. Ao longo dos dias da

semana ele ia coletando o material, publicado nas

edições de segunda-feira com o título “Boletim

Semanal da Guerra”. Em pouco tempo, tornou-se

leitura obrigatória numa cidade em que a maioria da

população era de pessoas nascidas nos países em

conflito, especialmente italianos e alemães. Lida nos

Page 26: Julio Mesquita

26

dias de hoje, revela em sua plenitude a imensa

capacidade de peneirar fatos em meio a um cipoal

de telegramas – há muito poucos enganos de

julgamento, absolutamente comuns nas condições

em que se trabalhava na época. E revela também

uma imensa capacidade de avaliar as

conseqüências a longo prazo desses fatos,

especialmente no campo dos valores. No conjunto,

uma das mais factuais e isentas coberturas de uma

guerra que se pode imaginar – e uma demonstração

clara do tipo de jornalismo moderno que Julio

Mesquita realizava.

Mas isto que aparece aos olhos de hoje está longe

de refletir a reação do momento. O pioneirismo de

Julio Mesquita no cenário ao seu redor fazia com

que os textos sobre a guerra fossem lidos quase que

de maneira contrária à atual – num padrão que se

repetia na recepção de seus escritos sobre a política

brasileira. Este descompasso permite entender as

dificuldades que ele enfrentava para fazer algo que

hoje parece normal – suas palavras são facilmente

entendidas hoje, tornando a leitura do texto

agradável, mas não o eram na época.

Tudo nelas destoava do momento, a começar do

estilo. A prosa de Julio Mesquita é coloquial e

fluente, embora escrita num tempo em que o

parnasianismo predominava em estética, o

gongórico no discurso político, o afetado no

Page 27: Julio Mesquita

27

comportamento social da elite. Era, enfim, um texto

que se construía na contramão do estilo do tempo,

feito para ser claro e conciso, avesso a

demonstrações de erudição ou marcas de estilo,

com uma dose precisa de ironia e celebrador de

limitações.

A adesão à causa aliada, o centro nervoso dos

valores, é totalmente convicta e intransponível, mas

quase nunca se traduz em certeza de vitória,

desqualificação da capacidade bélica dos

adversários, distorção no julgamento dos resultados

das batalhas. Para os dias de hoje, esta seria uma

posição prudente e matizada – mas esta era uma

impossibilidade numa época em que o padrão ainda

era o do jornalismo partidário.

Desde o primeiro dia, a coluna não assinada

provocou reações fortes, especialmente da

comunidade alemã, bastante influente na cidade.

Tão influente que tinha até seu jornal próprio, o

Diário Alemão. Dele vieram os primeiros ataques ao

jornal. Inicialmente contidos, falavam na

impropriedade de uma cobertura pró-aliados num

momento em que o Brasil mantinha uma posição de

neutralidade com relação ao conflito. Mas bastou

notarem que deste mato não sairia coelho para

mudar o tom.

Das críticas, o concorrente passou diretamente para

a calúnia, e uma calúnia típica de uma era dominada

Page 28: Julio Mesquita

28

pelo jornalismo partidário: passou a dizer que a

posição se devia ao recebimento de fundos pelo

governo inglês. Como se verá adiante, não havia

nada mais distante da realidade que esta afirmação

– mas também nada era mais adequado que esta

afirmação na realidade brasileira. Desde Campos

Salles, o noticiário dos jornais era viciado em

publicar falsidades, desde que pagas com dinheiro

público, como as eleições em atas falsas. A praxe da

imprensa da época era a de acentuar a crítica ao

governo simplesmente para aumentar o preço da

adesão a ele – e era uma praxe tão difundida que

José do Patrocínio comparava abertamente o

trabalho do jornalista ao de um advogado, pago para

defender a causa de seu cliente.

Também neste sentido a cobertura de Julio Mesquita

foi exemplar. Desde que optara por criar um negócio

sustentado por leitores e anunciantes, ele afastara o

jornal do padrão brasileiro. Publicava balanços

regulares, destinados a satisfazer leitores e

debenturistas. Assim criou o único jornal que

criticava abertamente a situação da imprensa na

época, e propunha outros métodos e objetivos para o

ramo. Os boletins da guerra lhe deram mais uma

preciosa oportunidade de mostrar até onde ia esta

coerência.

A própria situação da guerra tinha conseqüências

difíceis para a publicação. Como Julio Mesquita

Page 29: Julio Mesquita

29

previu, logo o preço do papel aumentou e os

negociantes se mostraram mais retraídos para

publicar anúncios, o que corroeu os lucros num

momento em que eram fundamentais para pagar os

investimentos. Esta situação se agravou bastante

com os ataques do concorrente germanófilo, até

porque este logo encetou uma campanha para que

os anunciantes alemães da cidade boicotassem o

adversário. Claro que havia interesse próprio na

posição – os anunciantes alemães, mais

interessados em vender que favorecer amigos,

preferiam O Estado de S. Paulo. Mas, naquela

situação excepcional, aderiram à idéia proposta.

A combinação da retração natural dos negócios com

o boicote produziu uma devastadora redução do

faturamento publicitário. As vendas de anúncios, em

relação a 1913, apresentaram uma queda de 21%

em 1914, e de 32% no ano seguinte. Esta queda,

combinada com um aumento de 15% nos custos do

papel, corroeu todo o lucro do jornal, já em 1914. Na

entrada de 1915, apesar de cortes em vários setores

da empresa, a situação se tornou crítica.

A saída econômica evidente era a de sacrificar os

valores de longo prazo à realidade do curto prazo,

atenuando as críticas aos alemães e diminuindo o

preço dos anúncios – o que mal seria percebido

numa sociedade acostumada a ver seus jornais

mudarem de idéia. Mas Julio Mesquita resolveu

Page 30: Julio Mesquita

30

apostar numa direção completamente diferente,

numa decisão que mostrava um tino empresarial

ainda maior que o jornalístico. Não apenas manteve

sua posição pró-aliados, mas foi tornando-a cada

vez mais clara, num momento em que os resultados

dos conflitos não eram nada claros. Concentrou suas

esperanças no único benefício efetivo que estava

tendo com a situação – o aumento do número de

leitores –, embora isso quase não tivesse tradução

econômica naquele momento. Pelo contrário,

fornecer pelo mesmo preço uma mercadoria que

custava cada vez mais, como fez, significava corroer

cada vez mais as já minguadas taxas de retorno.

Outra saída usual seria a de buscar algum dinheiro

público para sustentar a travessia, uma possibilidade

que sempre esteve ao alcance do jornal. Mas, em

lugar disso, Julio Mesquita se encarregou de fechar

a porta para este tipo de idéias, publicando uma

longa série de editoriais, em dezembro de 1915, em

que narrava os desastres da política iniciada por

Campos Salles de comprar posições editoriais, e

dissecava as conseqüências funestas da opção para

os proprietários de jornais que caíam nesta tentação:

“Os escribas sem ocupação, com o apetite aguçado,

se ofereceram ao governo. Os governos aceitaram a

oferta. Passou a ser uma das instituições oficiais

mais queridas e mais cuidadas, uma das profissões

mais protegidas como as mais honestas nunca o

Page 31: Julio Mesquita

31

foram, o jornalismo venal, torpemente agressivo,

sem freio de qualquer espécie”.

Contra esta situação, só havia uma saída – que ele

empregou. Deu a público, com toda a clareza, todos

os movimentos financeiros de seu jornal com o

governo – enquanto desafiava seus concorrentes a

procederem com a mesma transparência. Nesta

série de editoriais ficava claro que a opção pelo

jornalismo moderno, que vive de leitores e não de

butim, era irreversível.

Com esta estratégia em mente, adotou uma série de

medidas para o ano de 1916, um ano de vacas

magras. Apostou todas as fichas no aumento do

número de eleitores, e o número de assinantes

aumentou nada menos que 43% neste ano,

passando de 16,6 mil para 23 mil – com isso, a

tiragem total do jornal chegou aos 45 mil exemplares

diários. Este aumento do número de leitores se

transformou num argumento importante para coletar

anúncios. Para isso, empregou-se uma arma forte: a

luta direta contra a realidade partidária do mercado

publicitário.

O primeiro passo nesta luta foi o de abrir um

processo por calúnia contra o Diário Alemão. Como

o ônus da prova cabia ao jornal, a saída foi a de abrir

todos os registros contábeis para a Justiça – e para

os advogados do concorrente e os de todos que

quisessem ver o processo. Tal procedimento era

Page 32: Julio Mesquita

32

absolutamente inusitado na época, mas deu

resultados. O primeiro deles foi o de conseguir uma

condenação a dois meses de prisão para o diretor do

jornal que acusava sem provas.

A segunda medida na mesma direção foi a de

combater outra praga do jornalismo partidário que

dominava o ambiente. Ainda era mantido o hábito da

vista grossa para a inadimplência, que ganhara um

novo motivo nos últimos anos: o preço da

publicidade dependia da tiragem, e os jornais

partidários viviam de mentir para cima os números

de sua circulação. Porém, na falta de informações

objetivas, o mercado acabava descontando a

diferença no preço dos anúncios, num hábito que

prejudicava mais os jornais que mentiam menos.

Para contornar esta situação, O Estado de S. Paulo

exigiu da Justiça uma auditoria na impressão e

distribuição de exemplares, além do cadastro de

anunciantes. Pela primeira vez na história do país,

um jornal teve sua tiragem auditada, que lhe permitia

cobrar um preço justo por seus anúncios.

Com todas estas medidas, obteve um aumento de

36% em sua receita publicitária de 1916 –

insuficiente, no entanto, para recuperar os níveis

anteriores ao conflito. Como os preços do papel

quase dobraram, nem todo o esforço melhorou a

situação. Foi preciso limitar o tamanho das edições,

cortar custos e diminuir pessoal, e ainda assim o

Page 33: Julio Mesquita

33

lucro simplesmente desapareceu. Em 1917, a

mesma situação se manteve, e o jornal precisou

matar até mesmo a única razão de ser de tudo

aquilo, o aumento do número de leitores:

simplesmente foi obrigado a limitar a tiragem, sem o

que teria prejuízo ainda maior com o preço do papel

que passou a ser praticado.

O período de publicação do boletim foi ainda uma

época dura sob o ponto de vista pessoal para Julio

Mesquita. Em 1916 morreu sua companheira de 32

anos, Lucila, deixando-o com nove filhos solteiros, o

mais novo dos quais com apenas nove anos de

idade. Neste momento, a publicação foi interrompida

pela primeira vez, até que ele se recuperasse

minimamente para enfrentar seus problemas.

E estes, que já não eram pequenos, aumentaram

quando o Brasil entrou na guerra ao lado dos

Aliados, em 1917. Esta opção do país deveria

significar um alívio para sua posição, mas as coisas

políticas brasileiras nunca são o que parecem à

primeira vista. Com a entrada na guerra foi

decretado o estado de sítio, e com ele a censura –

velha adversária do jornal, mas desta vez a cargo

das autoridades locais. Estas, por sua vez, andavam

muito raivosas com o jornal, desde que ele

defendera a posição dos grevistas na grande

paralisação de 1917.

Page 34: Julio Mesquita

34

Assim produziu-se uma situação curiosa. Enquanto

os artigos sobre a guerra – teoricamente a razão de

ser da censura – eram liberados sem problema, o

jornal não conseguia publicar uma única linha sobre

as misérias do governo local. Foi assim até o último

dia do conflito – o jornal publicava espaços em

branco, em um papel que lhe custava a saúde

econômica.

Posto o contexto, pode-se finalmente compreender

que estes textos aqui reunidos mostram a grandeza

do primeiro jornalista moderno deste país. A grande

demora para que isso acontecesse se deve ao

quanto ele era rigoroso em manter o anonimato,

decisão que permitiu esta evolução no jornalismo.

Mesmo na época, os jornalistas sabiam que aquele

era um material precioso, um grande exemplo do

que se poderia fazer na profissão. Constituía-se,

ainda, no único conjunto completo de textos

claramente de autoria de Julio Mesquita. Hoje, a

reunião desses boletins é imperiosa para mostrar o

valor da obra daquele que mudou radicalmente o

sentido do jornalismo no Brasil.