JURI - Tese Legitima Defesa Subjetiva

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Sustentação oral no tribunal do júri – crime: homicídio – tese: legítima defesa subjetiva Sustentamos que, no caso exposto, não houve crime. A acusada agiu em legítima defesa quando atirou em seu marido para salvar-se, matando-o. A legítima defesa exclui a antijuridicidade. Portanto, não existindo o elemento antijurídico, não há que se falar em crime algum. “A antijuridicidade, segundo requisito do crime, pode ser afastada por determinadas causas, denominadas causas de exclusão da antijuridicidade . Quando isso ocorre, o fato permanece típico, mas não há crime: excluindo-se a ilicitude, e sendo ela requisito do crime, fica excluído o próprio delito. Em conseqüência, o sujeito deve ser absolvido (Damázio) 1 . Dizemos que neste caso, mesmo havendo um fato típico, não ocorreu um crime por não estar presente o elemento antijuridicidade. Houve as chamadas excludentes da ilicitude ou de exclusão da antijuridicidade ou, ainda, justificativas, previstas no art.23 do CP. Entre elas, está a legítima defesa, prevista nos arts. 23, II e 25 do C.P. “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”, é o que diz o art.25 do CP. Permite que o cidadão defenda-se de uma agressão usando-se dos meios necessários de que disponha no momento, mesmo que cause uma agressão no seu ofensor. Só o Estado tem o direito de castigar o autor de um delito. Nem sempre, porém, o Estado se encontra em condições de intervir direta ou indiretamente para resolver problemas que se apresentam na vida cotidiana. Se não permitisse a quem se vê injustamente agredido em determinado bem reagir contra o perigo de lesão, ao invés de aguardar a providência da autoridade pública, estaria sancionando a obrigação de o sujeito sofrer passivamente a agressão e legitimando a injustiça. Como dizia Bettiol, isso não ocorre porque o Estado não desconhece a exigência que leva o indivíduo a 1 Damázio de Jesus, Direito Penal, Parte geral, Vol.1, pág.312.

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Sustentação oral no tribunal do júri – crime: homicídio – tese: legítima defesa subjetiva

Sustentamos que, no caso exposto, não houve crime. A acusada agiu em legítima defesa quando atirou em seu marido para salvar-se, matando-o. A legítima defesa exclui a antijuridicidade. Portanto, não existindo o elemento antijurídico, não há que se falar em crime algum. “A antijuridicidade, segundo requisito do crime, pode ser afastada por determinadas causas, denominadas causas de exclusão da antijuridicidade. Quando isso ocorre, o fato permanece típico, mas não há crime: excluindo-se a ilicitude, e sendo ela requisito do crime, fica excluído o próprio delito. Em conseqüência, o sujeito deve ser absolvido” (Damázio)1.

Dizemos que neste caso, mesmo havendo um fato típico, não ocorreu um crime por não estar presente o elemento antijuridicidade. Houve as chamadas excludentes da ilicitude ou de exclusão da antijuridicidade ou, ainda, justificativas, previstas no art.23 do CP. Entre elas, está a legítima defesa, prevista nos arts. 23, II e 25 do C.P. “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”, é o que diz o art.25 do CP. Permite que o cidadão defenda-se de uma agressão usando-se dos meios necessários de que disponha no momento, mesmo que cause uma agressão no seu ofensor.

Só o Estado tem o direito de castigar o autor de um delito. Nem sempre, porém, o Estado se encontra em condições de intervir direta ou indiretamente para resolver problemas que se apresentam na vida cotidiana. Se não permitisse a quem se vê injustamente agredido em determinado bem reagir contra o perigo de lesão, ao invés de aguardar a providência da autoridade pública, estaria sancionando a obrigação de o sujeito sofrer passivamente a agressão e legitimando a injustiça. Como dizia Bettiol, isso não ocorre porque o Estado não desconhece a exigência que leva o indivíduo a reagir imediatamente quando ilicitamente agredido, em face de não poder esperar a ajuda da autoridade pública. Não se deve constranger a natureza humana e codificar um princípio de vileza ou de mera resignação, que nenhuma moral humana ou cristã pode apoiar. A defesa tem um conteúdo ético positivo porque a máxima bíblica de oferecer a outra face não contém uma máxima positiva. Trata-se de um conselho de caráter excepcional. A moral não pode ser contraposta ao instituto natural, que nos leva à defesa quando injustamente agredidos2.

Para que se configure a legítima defesa é necessário observar uma série de requisitos. E todos estes requisitos se encaixam no caso aqui defendido por nós.

1° requisito: agressão injusta, atual ou iminente: A agressão que Evelina estava prestes a sofrer era injusta. Seria morta pelo marido. Ele estava dormindo e poderia acordar a qualquer segundo. Bastava um movimento de Evelina para que ele acordasse e a matasse. Era iminente a agressão, estava prestes a acontecer. A reação de Evelina era preventiva: impedir o início da ofensa. Não havia ameaça de mal futuro, onde poderia intervir a autoridade pública para evitar a consumação. Ela tinha acabado de se posicionar na cama e ele acordou. Dormiu e se ela voltasse a se movimentar ou sair da cama ou do quarto ele

1 Damázio de Jesus, Direito Penal, Parte geral, Vol.1, pág.312.2 Bettiol, Direito Penal, parte geral, trad. Paulo José Costa Jr. e Alberto Silva Franco.

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acordaria e a atacaria. Portanto, não poderia, de forma alguma, ter outra reação para defender-se da morte. Não se tratava de levar uma surra, mas de ser morta. Na iminência de uma agressão que estava prestes a acontecer, quando ele adormeceu, bastando que acordasse para matá-la, ela percebeu a chance de se defender. Essa chance poderia não acontecer de novo.

2° requisito: agressão a direito seu ou de outrem, tendo em vista o titular do bem jurídico sujeito à agressão: No caso, houve legítima defesa própria, uma vez que a autora da repulsa é a própria titular do bem jurídico ameaçado: a vida.

3° requisito: repulsa com os meios necessários: Somente ocorre a legítima defesa quando a conduta é necessária para repelir a agressão. A medida da repulsa deve ser encontrada pela natureza da agressão em face do valor do bem atacado ou ameaçado, circunstâncias em que se comporta o agente e meios à sua disposição para repelir o ataque. O meio escolhido deixará de ser necessário quando se encontrar à sua disposição outros meios menos lesivos. O sujeito que repele a agressão deve optar pelo meio produtor do menor dano. Se não resta nenhuma alternativa, será necessário o meio empregado. Como lembrava Nelson Hungria, não se trata de pesagem em balança de farmácia, mas de uma aferição ajustada às condições de fato do caso concreto. Não se pode exigir uma perfeita adequação entre o ataque e a defesa, desde que o necessário meio tinha de acarretar, por si mesmo, inevitavelmente, o rompimento da referida equação. Um meio que, à primeira vista, parece desnecessário, não será tal se as circunstâncias demonstrarem sua necessidade in concreto, Mezger, analisando o problema, ensina que não é exigida uma absoluta paridade entre ataque e defesa: em caso de necessidade, pode o agredido recorrer ao emprego dos meios mais graves, a morte do agressor, para defender-se contra o ataque dirigido ao seu interesse juridicamente tutelado. Em tais hipóteses, o que é imprescindível é que o agredido não tenha à sua disposição um meio menos grave de repelir o ataque. O que era o caso de Evelina, que não dispunha, no momento, de outro meio, senão aquela arma que estava ao seu lado.

4° requisito: moderação na repulsa necessária: O requisito da moderação na reação necessária é muito importante porque delimita o campo em que pode ser exercida a excludente, sem que se possa falar em excesso. Encontrado o meio necessário para repelir a injusta agressão, o sujeito deve agir com moderação. No caso, Evelina só dispunha da arma para evitar a agressão que era iminente. Esse era o meio necessário. Acontece que, para uma pessoa nas suas condições físicas, emocionais e psicológicas e que nunca havia manuseado uma arma, dar um tiro ou dar dois tiros ou dar três tiros era uma ação ela não podia controlar devidamente, com raciocínio, com perícia, com técnica, pois jamais se encontrou em uma situação daquela. Portanto, é perfeitamente justificável. Não há, de forma alguma, que se falar em excesso doloso, pois não teve ela a vontade de continuar agredindo. Na realidade o que pode-se aceitar é que houve um excesso culposo pois Evelina não queria o excesso, tendo este decorrido de um erro de cálculo quanto à gravidade do ataque ou quanto ao modo de repulsa. Trata-se, pois, de erro escusável, invencível, isto é, erro que qualquer pessoa cometeria em face das circunstâncias, ficando a acusada isenta de pena por ausência de dolo e culpa (chamada de legítima defesa subjetiva). Neste caso, trata-se de erro de tipo, previsto no art. 20, §1°, 1ª parte: o agente, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima (tornaria a reação legítima defesa real). Ela supunha, por

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erro plenamente justificado pelas circunstâncias, que incide sobre o cálculo quanto à gravidade do ataque ou quanto ao modo da repulsa, encontrar-se ainda na situação de necessidade de reagir. Há, portanto, erro de tipo escusável, invencível, excludente de dolo e culpa. Portanto, legítima defesa subjetiva é o excesso por erro de tipo escusável, que exclui o dolo e a culpa (CP, art.20, §1°, 1ª parte). Encontrando-se inicialmente em legítima defesa, o agente, por erro quanto à gravidade do perigo ou quanto ao modo da reação, plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe ainda encontrar-se em situação de defesa.

Com base nos arts. 23, II e 25, do Código Penal, e no art.20, §1°, 1ª parte, do citado código, pedimos que a justiça seja cumprida e que a acusada seja absolvida, por legítima defesa subjetiva.

Defesa oral:

A vida de Evelina pode ser dividida em 2 períodos: antes de casar-se com Julião e depois de casar-se com Julião. Até os 14 anos teve uma vida normal. Se não tivesse conhecido aquele carrasco poderia ter tido uma vida cheia de felicidade, trabalho, alegria, saúde, paz, sossego. Porque é trabalhadora. E para quem é trabalhadora tudo é conseguido com esforço mas com dignidade. Seus 2 filhinhos, de 6 e 4 anos, estariam mais felizes, saudáveis, com uma formação mais equilibrada. Se o marido de Evelina fosse outro ela estaria em melhor situação financeira, teria tempo de cuidar de seus filhos, levá-los à escola. Poderia fazer coisas simples, que ninguém dá valor pois nunca deixou de fazer. Coisas como ver o filho crescer, brincar com os filhos, ver televisão durante o dia, assistir novelas, almoçar em casa tranqüilamente, passar o dia com a família, receber carinhos e afagos do marido, acordar tarde algum dia, ir à igreja com as crianças e com o marido.

Quem sabe visitar parentes, comemorar o aniversário do filho caçula, conversar com o companheiro sobre o dia dele, sobre as crianças, sobre as compras para a casa. Afinal, eles eram simples mas tinham emprego, trabalhavam, e com o sustento podiam ter uma vida de certo modo confortável. Como seria feliz esta família, com todas essas coisas simples do dia-a-dia que as pessoas nem param para pensar como são importantes.

Afinal, o sonho de todo mundo é um dia encontrar uma pessoa que seja sua cara metade, para formar um casal feliz, que um ame o outro, e vice-versa, que sejam companheiros, amigos, se respeitem, sejam sinceros e honestos. Aí o casal constitui matrimônio, no intuito de formar uma família, de ter filhos. Os filhos nascem. O objetivo agora é educá-los, prepará-los para a vida, sustentá-los, proporcionar a eles uma vida saudável, alegre, feliz, com segurança, longe dos perigos da vida. Até os animais são assim com suas crias. São coisas que todos nós sabemos, mas nem sempre nos lembramos porque são tão normais, estão presentes no nosso dia-a-dia. Infelizmente tudo que foi dito aqui NÃO fazia parte da vida de Evelina...

A menina Evelina começou a sofrer quando casou-se aos 14 anos com aquele maníaco. Ela foi barbaramente iludida. Sempre foi tratada com delicadeza, com carinho.

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Imagina que decepção ela teve ao constatar que, com apenas 14 anos, estava casada com um homem totalmente diferente do que aquele que ela namorou. Muito mais que decepção, foi desespero, sofrimento, tristeza, dor, angústia. Era como se ela estivesse namorando um rapaz e, quando fosse casar-se, colocassem um desconhecido na frente dela.

Mesmo assim ela não se deixou abater. Começou a trabalhar na esperança de que o marido pudesse transformar-se, recuperar-se. Ele começou a beber, até que perdeu o emprego. Ela batalhava para que ele largasse a bebida. Talvez ele pudesse voltar a trabalhar... Vendo que ele não tinha jeito, ela adiou a gravidez o máximo que pôde. Resistiu por quase 6 anos. Mas acabou engravidando-se duas vezes. Com os meninos ficava mais difícil a vida, ela então passou a trabalhar mais para sustentá-los. Saía ainda de noite para trabalhar, sofrendo por ter que deixar as crianças com a vizinha. Sofria com o trabalho dobrado. Apesar de trabalhadora, ela não suportava aquela vida. Anos e anos acordando às 5:00 horas da manhã, pegando 2 ônibus para chegar ao trabalho, trabalhando o dia todo, e voltando, quando já anoitecia, para casa.

Ao chegar em casa, em vez de ver os filhos ou descansar para acordar cedo no outro dia, ela apanhava. Apanhava diariamente daquele monstro que era seu marido, que chegava totalmente alcoolizado em casa. Bêbado!!! Ultimamente ele não se contentava em apenas bater nela. Bater era pouco... gostava de espancá-la. O termo certo é espancar. Bater pode significar apenas alguns sopapos e bofetões, mas espancar significava para Evelina levar violentos chutes, murros, socos, porradas, pauladas. Espancava-a com tanta vontade, que ela nem sequer ia trabalhar no outro dia, tamanha era a violência e a ferocidade com que ele a tratava.

E para quem pensa que não poderia piorar a situação, está enganado. Para piorar ainda mais a agonia de Evelina, ela ainda via os filhos testemunhando toda aquela violência física e agressão que ela sofria. E para aumentar o terror que ela vinha sentindo, o monstro passou a andar armado. Com aquela arma ele se tornava mais ameaçador. Poderia, em uma de suas bebedeiras, atirar nela ou nos filhos. Um terror incrível passou a atormentá-la. Ela temia pela sua vida, mas acima de tudo, pela vida de suas crianças. Não conseguia tranqüilizar-se.

Até que em uma noite ele a ameaçou de morte. Ela tremeu. Aquele terror que ela vinha temendo pode acontecer. Mas ela nunca, NUNCA tentou qualquer coisa contra seu marido, e nem mesmo naquela hora ela quis tentar algo contra aquele animal, mesmo sendo ele aquele monstro insuportável. Após ameaça-la ele adormeceu. Deixou o revólver ao lado da cama. Estava ao alcance dela. Se ela quisesse matá-lo faria naquele momento. Teve a chance. Porém não o fez porque não era capaz de fazer mal nem mesmo àquele carrasco que merecia um castigo. Quem, no lugar de Evelina, naquele momento, naquela chance, não teria pego o revólver e posto fim em 12 longos anos de sofrimento? Afinal ele tinha acabado de ameaça-la de morte, dizendo que iria matá-la!!!

Mas Evelina não podia fazer uma coisa dessas. Ao contrário daquele escárnio que dormia ao seu lado, ela não era capaz de fazer mal a ninguém. Mesmo após ter sofrido durante 12 anos, após ter sido exposta à violência por 12 longos anos, ter sido espancada, humilhada por 12 anos!!! São 12 longos anos sofridos por aquela mulher...

O revólver estava lá, ao alcance dela. Ele dormindo indefeso após ameaçá-la de morte. No entanto, confirmando seu caráter, sua resignação, sua dignidade, seus valores

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interiores, ela preferiu se preparar para dormir, pois no outro dia tinha que trabalhar para sustentar seus filhinhos e, com fé, ela acreditava que ele não iria cumprir a promessa pois teria dito aquilo porque estava mais uma vez bêbado. Quando já estava deitando na cama, aquele alcoólatra acorda e a jura de morte, dizendo para se despedir de seus filhos pois quando ele acordasse ela seria morta.

Aquilo soou como um trovão nos ouvidos de Evelina. Ele não só tinha se lembrado da ameaça de morte que fez a ela, como a deixou certa de que a cumpriria. Ela poderia estar até dormindo e se ele acordasse poderia consumar a ameaça. Em fração de segundos Evelina viu toda sua vida passar na sua imaginação, como se fosse um filme. Ela reviveu seus 12 longos anos de violência, sofrimento, humilhação, tristeza, dor, decepção, infelicidade ao lado daquele monstro. Se ela tentasse fugir ele acordaria, se o abandonasse ele a encontraria e a mataria de qualquer jeito, se ela dormisse ele poderia acordar e matá-la indefesa durante o sono. Além disso ela já vivia desde os 14 anos aquela realidade dura da vida. Agora com 26 anos, sem uma educação eficiente, pois passou toda sua adolescência com aquele carrasco, sem conhecer o “mundo lá fora”, não sabia o que fazer, estava desesperada, mais do que nunca. Olhou para o lado e viu seus 2 filhinhos dormindo. Imaginou novamente que, se dormisse, ele poderia matá-la durante a noite. Temendo por sua vida e pelo destino de seus filhos pensou que se não fizesse algo nunca mais poderia vê-los. Quando se deu conta ele já estava dormindo de novo. Como que num reflexo, Evelina pegou o revólver e, desesperadamente, sem imaginar o que fazia, sem tomar consciência do seu ato, só pensando em salvar seus filhos e a si mesma, disparou contra seu agressor. Não sabe quantos tiros deu. Queria apenas proteger-se e a seus filhos. Não pensava em causar mal ou machucar seu agressor, apenas em proteger-se, mesmo que custasse a vida daquele infeliz.

Não se pode acusá-la de excesso doloso por ter dado dois tiros ao invés de um. Pois, analisando os fatos, temos uma garota de 14 anos que tem sua vida brutalmente desvirtuada por um maníaco violentíssimo. A partir dos 14 anos, ela passa a trabalhar todo dia, duramente, e sendo humilhada, violentada fisicamente, espancada, agredida, subjugada, dia após dia pelo carrasco. Como fica a mentalidade de uma pessoa assim que tem que aguentar tanta violência, agressão, dor, sofrimento, durante uma das mais importantes fases de desenvolvimento físico e mental? No momento em que apertava o gatilho, Evelina não conseguia esconder todo o seu ódio e vingança, plenamente justificáveis, por aquele ser desprezível. Lembremos as palavras de Damázio: “Na legítima defesa o sujeito deve conhecer a agressão e ter a intenção de defender-se, sendo indiferente que esta finalidade de defesa seja acompanhada por um sentimento de ódio ou vingança”3. Evelina só dispunha da arma para evitar a agressão que era iminente. Esse era o meio necessário. Acontece que, para uma pessoa nas suas condições físicas, emocionais e psicológicas e que nunca havia manuseado uma arma, dar um tiro ou dar dois tiros ou dar três tiros era uma ação ela não podia controlar devidamente, com raciocínio, com perícia, com técnica, pois jamais se encontrou em uma situação daquela. Portanto, é perfeitamente justificável. Não há, de forma alguma, que se falar em excesso doloso, pois não teve ela a vontade de continuar agredindo. Na realidade o que pode-se aceitar é que houve um excesso culposo pois Evelina não queria o excesso, tendo este decorrido de um erro de cálculo quanto à gravidade do ataque ou quanto ao modo de repulsa. Trata-se, pois, de erro escusável,

3 Damázio, ob.cit., pág.314.

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invencível, isto é, erro que qualquer pessoa cometeria em face das circunstâncias, ficando a acusada isenta de pena por ausência de dolo e culpa (chamada de legítima defesa subjetiva). Neste caso, trata-se de erro de tipo, previsto no art. 20, §1°, 1ª parte: o agente, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima (tornaria a reação legítima defesa real). Ela supunha, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, que incide sobre o cálculo quanto à gravidade do ataque ou quanto ao modo da repulsa, encontrar-se ainda na situação de necessidade de reagir.

Além disso, para uma pessoa que nunca manipulou uma arma ou tem pouca experiência com armas, ao atirar, devido o momento de intensa tensão, pode escapulir mais de um tiro, pois o ato torna-se automático, como num reflexo. Não trata-se, aqui, de violenta emoção ou paixão. Evelina não agiu sob violenta emoção ou paixão. Pouco antes do agressor prometer-lhe que a mataria ele estava dormindo, e se ela tivesse agido por violenta emoção ou paixão teria a chance de matá-lo. Porém não o fez por que não tinha certeza de que ele a mataria. Porém, após ele acordar, prometer que a mataria e dormir novamente, aí ela tinha certeza de que seria morta, pois ela o conhecia e se ele a jurou de morte certamente o faria. Neste instante ela também não agiu sob violenta emoção ou paixão apenas agiu instintivamente, com os meios necessários de que dispunha, para afastar a agressão que ela tinha certeza que viria. Portanto foi neste instante que ela pegou a arma e atirou para defender-se.

A única vítima neste caso é Evelina. Ela, cumprindo todas as suas obrigações, como mãe, esposa, dona de casa, viu sua vida ruir. Já Julião, nada mais é do que um alcoólatra, violento, irresponsável, carrasco, que cavou sua própria sepultura, e foi o responsável por este desfecho. Evelina sofreu 12 anos nas mãos de um carrasco. Ela viu sua vida transformar em um inferno quando ainda era uma menina. Ela aguentou até onde pode nesses 12 anos de sofrimento. Poderia ter posto fim neste sofrimento muito antes, mas não queria fazer mal algum. Nunca seria capaz de um ato tão extremo não fosse a necessidade de proteger-se. Neste fatídico dia não teve outra alternativa. E quem não faria o mesmo? Muitos nem esperariam 12 anos sofrendo, apanhando, chorando. Não foram 12 meses ou 1 ano, nem 2 anos, 3 anos, 4 anos, 5 anos, 6 anos... foram 12 anos sofrendo nas mãos daquele miserável. É de se reconhecer que outra conduta não se poderia exigir da acusada, senão a de impedir que o agressor a matasse. E no momento, a única forma de impedir sua morte foi atirando naquele monstro. Não que ela quisesse isso, pois teve muitas chances e nunca o fez, mas por sobrevivência.

Pedimos a absolvição da acusada por legítima defesa subjetiva. Há, portanto, erro de tipo escusável, invencível, excludente de dolo e culpa. Portanto, legítima defesa subjetiva é o excesso por erro de tipo escusável, que exclui o dolo e a culpa (CP, art.20, §1°, 1ª parte). Encontrando-se inicialmente em legítima defesa, Evelina, por erro quanto à gravidade do perigo ou quanto ao modo da reação, plenamente justificado pelas circunstâncias, supunha ainda encontrar-se em situação de defesa. Após ter efetuado o primeiro tiro, estando em legítima defesa real, efetuou o segundo, em legítima defesa subjetiva.

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Com base nos arts. 23, II e 25, do Código Penal, e no art.20, §1°, 1ª parte, do citado código, pedimos que a justiça seja cumprida e que a acusada seja absolvida, por legítima defesa subjetiva.