JURISPRUDÊNCIA UNIFORMIZADORA CÍVEL · A reforma do processo civil de 1995/96 incidiu também...
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JURISPRUDÊNCIA UNIFORMIZADORA CÍVEL
António Santos Abrantes Geraldes
(Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça)
1. Até à reforma processual de 1995/96 a jurisprudência do Supremo
Tribunal de Justiça em matéria cível dividia-se em três tipos diferenciados:
a) A emergente dos acórdãos proferidos no âmbito de recursos de revis-
ta ou de agravo em 2.ª instância, em regra, com intervenção de três juízes, nos
termos do art. 728.º, n.ºs 1 e 2, do CPC;
b) A resultante dos acórdãos proferidos ao abrigo do disposto no n.º 3
do art. 728.º, com intervenção de uma maioria qualificada dos juízes das sec-
ções cíveis reunidas, sob o impulso do Presidente, com o objectivo de assegu-
rar a uniformidade da jurisprudência ou de prevenir divergências jurispruden-
ciais;
c) E os Assentos proferidos no âmbito de recursos para o Pleno, com
fundamento na contradição entre dois acórdãos do Supremo (art. 763.º) (ou
entre dois acórdãos da Relação de que não fosse admissível recurso ordinário
por motivo estranho à alçada do tribunal (art. 764.º)) relativamente à mesma
questão fundamental de direito.
A reforma do processo civil de 1995/96 incidiu também sobre o regime
dos recursos, sendo a figura dos Assentos substituída pelos Acórdãos de Uni-
formização de Jurisprudência (doravante AUJ), com intervenção do Pleno das
secções cíveis.1
1 Sobre o valor da jurisprudência uniformizadora e regime processual decorrente da
reforma de 1995/96 cfr. Abrantes Geraldes, “Valor da Jurisprudência Cível”, CJSTJ, ano VII, 1999, tomo II, págs. 5 a 20.
A reforma do regime dos recursos cíveis operada pelo Dec. Lei n.º
303/07, de 14-8, manteve este mecanismo, ainda que inserido num sistema
monista concentrado nos recursos de revista, resultando a jurisprudência uni-
formizadora não apenas do seu julgamento ampliado, nos termos dos arts.
732.º-A e 732.º-B, como ainda do novo recurso extraordinário regulado nos
arts. 763.º e segs.2
2. No que concerne à jurisprudência ordinária, a sua força vinculativa cir-
cunscreve-se ao processo a que directamente se reporta. Apesar da hierarqui-
zação dos tribunais em três categorias distintas, a ausência de precedentes vin-
culativos determina que a solução concretamente assumida quanto a determi-
nada questão de direito apenas seja obrigatória no âmbito do próprio proces-
so.
Todavia, ainda que não exista a obrigatoriedade de os tribunais de cate-
goria inferior obedecerem, de forma generalizada, à jurisprudência dos tribu-
nais superiores, é natural que as soluções expressas pelo órgão que ocupa o
vértice da pirâmide dos tribunais judiciais sejam objecto de especial pondera-
ção, mais ainda se, em dada conjuntura, corresponderem ao entendimento
uniforme ou predominante. Solução que encontra eco noutros ordenamentos
em que, apesar da não institucionalização de um sistema de precedentes, se
revela também uma forte tendência para a aceitação da jurisprudência emana-
da dos Tribunais Supremos.3
2 Sobre o novo regime dos recursos cíveis e concretamente sobre os mecanismos de
uniformização de jurisprudência cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil. Novo Regime, 3ª ed., págs. 471 a 530.
3 Reportando-se ao sistema alemão, disso dá conta Oliveira Crespo, em O Recurso de Revista no Contencioso Administrativo, pág. 327, quando refere que, embora a jurisprudência não constitua fonte de direito, existe uma “força psicológica do precedente”, ante a consta-tação de que se verifica a tendência para a manutenção da solução adoptada em determina-do caso para casos semelhantes, o que leva os “tribunais inferiores a raramente divergirem dos tribunais superiores”.
3. É antiga a necessidade de se consagrarem soluções potenciadoras da
formação de correntes jurisprudenciais susceptíveis de influir nas posteriores
decisões judiciais.
3.1. A abstracção legislativa reflectida em preceitos que procuram regular
a vida em sociedade nem sempre garante de forma inequívoca a solução a dar
aos casos concretos. Por outro lado, a independência do juiz na aplicação e
interpretação da lei traduz-se em frequentes divergências em relação à mesma
questão jurídica, a que nem sempre o sistema de recursos permite obviar.
A incerteza da concretização judiciária do direito que nos sistemas anglo-
saxónicos é resolvida através de precedentes jurisprudenciais constitui um dos
aspectos que tradicionalmente mais críticas vem recebendo entre nós, recla-
mando um melhor aproveitamento da actividade jurisprudencial anterior.
A consecução desse objectivo foi inicialmente promovida através da cria-
ção da figura dos Assentos obtidos através de recurso para o Pleno.4
3.2. O instituto dos Assentos 5 foi justificado por Alberto dos Reis como
forma de satisfazer a “necessidade de conciliar o princípio da liberdade de in-
terpretação da lei com o princípio da igualdade da lei para todos os indiví-
duos”, visando combater “a tendência individualista dos nossos magistrados,
o seu amor excessivo pela liberdade de interpretação” e o facto de não “culti-
4 Sobre o historial dos Assentos cfr. Gomes da Silva, História do Direito Português,
págs. 294 e segs., Castro Mendes, Direito Processual Civil, III vol., págs. 237 e segs., e Ribei-ro Mendes, Recursos em Processo Civil, págs. 273 e segs. Cfr. ainda a fundamentação do AUJ n.º 9/97, publicado no D. R., 1.ª Série, de 14-5-97.
Sobre a tramitação do recurso para o Pleno cfr. Isabel Alexandre, “Os problemas recen-tes da uniformização da jurisprudência em processo civil”, na ROA, 60, págs. 104 e segs.
5 Menezes Cordeiro, no comentário ao AUJ de 31-1-96, refere que “o instituto dos Assentos é genuinamente nacional”, descrevendo, depois, a sua evolução histórica (ROA 56º, pág. 307).
Antunes Varela, na RLJ 125.º, pág. 11, traduz a mesma ideia da originalidade, acen-tuando a necessidade sentida em todos os sistemas jurídicos de se obter uma uniformização da jurisprudência “como garantia de um mínimo de certeza do direito e de confiança nas situações jurídicas e até como salvaguarda da igualdade dos cidadãos perante a lei”, referin-do que, de uma maneira ou de outra, todos os sistemas acabam por estabelecer mecanis-mos promotores da uniformização de entendimentos jurisprudenciais, embora em termos menos rígidos do que os emergentes dos Assentos.
varem o espírito de colaboração e de colegialidade”. Observações feitas ante a
constatação de que, “em vez de subordinarem o seu critério próprio às tradi-
ções e à doutrina do Tribunal, continuavam a afirmar a sua independência e
liberdade de julgamento”.6
Até à entrada em vigor do Decreto n.º 12.353, de 22-9-1926, cabia ao
Supremo uniformizar a jurisprudência por intermédio de um recurso inomi-
nado, tornando-se a mesma obrigatória enquanto não fosse alterada por outro
acórdão da mesma natureza.
Institucionalizada no CPC de 1939, tal mecanismo foi substancialmente
alterado na reforma de 1961. Eliminando-se a possibilidade de modificação
pelo próprio Supremo, passou a prever-se a interposição de recurso para o
Pleno também em casos de divergências entre acórdãos da Relação, quando
não fosse admissível revista ou de agravo por motivo estranho à alçada do
tribunal. Posteriormente ganhou maior relevo com a sua expressa qualificação
como fonte de direito, com força obrigatória geral, nos termos que ficaram
consagrados no art. 2.º do Código Civil de 1967.
Para justificar esta opção, Rodrigues Bastos, tal como já o fizera Alberto
dos Reis, acentuava a “pouca atenção e respeito que merecem, em si mesmas,
as decisões do Supremo, como se vê da constante flutuação da jurisprudência,
até mesmo ao nível daquele mesmo tribunal ...”.7 E Antunes Varela, com a
profundidade que sempre revelava e com o peculiar estilo figurativo com que
ilustrava o seu pensamento, justificava o referido instituto como forma de
“corrigir os inconvenientes da certeza da livre navegação do critério individual
de cada juiz através das ilhotas ou das bóias de amarração fornecidas pelos assen-
tos, para melhor defesa dos tripulantes e passageiros”.8
Afinal, a excessiva tendência para o individualismo tem raízes antigas,
mostrando-se tradicionalmente difícil a formação de correntes jurisprudenciais
6 CPC anot., vol. VI, págs. 234 e 235. 7 Notas ao CC, vol. I, pág. 23. 8 RLJ 125.º, pág. 12.
fortes, quer nas Relações, quer no Supremo,9 não se detectando alterações
substanciais no modo de funcionamento dos tribunais que atenuem os malefí-
cios da pulverização de interpretações dissonantes da mesma norma jurídica.10
Em tal contexto, a consagração dos Assentos com força obrigatória geral
proporcionava a formação de uma norma interpretativa que se impunha por si
mesma a todos os agentes, consolidando o valor da certeza e da segurança na
aplicação do direito.11
3.3. A sua prolação ficava sujeita a requisitos cuja aferição era submetida
a um prévio controlo do Supremo: 12
a) Verificação de uma situação de contradição relativamente à mesma
questão fundamental de direito entre dois acórdãos do Supremo (art. 763.º, n.º
1) ou entre dois acórdãos da Relação, desde que, neste caso, não fosse admis-
sível recurso por motivo estranho à alçada do tribunal (art. 764.º);
b) Contradição manifestada em processos diferentes ou em incidentes do
mesmo processo;
c) Acórdãos proferidos no domínio da mesma legislação.
Com base em tais pressupostos, o Pleno, com intervenção de, pelo me-
nos, 4/5 dos seus elementos, proferia Assento que traduzia, a partir de então,
a interpretação normativa assumida, a qual, além de produzir efeitos imediatos
no processo, se repercutia externamente com força obrigatória geral.
9 Os excessos de um certo “individualismo anárquico”, com reflexos na jurisprudên-
cia, são apontados como causa próxima da criação da figura do Assento na fundamentação do AUJ nº 9/97, D.R., I Série, de 14-5-97.
10 Alberto Reis criticava a jurisprudência “flutuante, movediça, instável” do Supre-mo, defendendo ser preferível “jurisprudência errada, mas uniforme, do que jurisprudência incerta” - Breve Estudo, pág. 261, citado por Ribeiro Mendes, em Recursos em Processo Civil, pág. 276
11 Castro Mendes, ob. cit., pág. 239, e Menezes Cordeiro, ROA 56.º, pág. 309. Re-ferindo-se aos Assentos como um instrumento específico da cultura portuguesa, este últi-mo autor observa que constituíam uma “garantia ... de que as causas teriam ainda uma pos-sibilidade de reapreciação sempre que, para elas, fosse encontrada uma solução concreta contrária ao que seria de esperar, perante a jurisprudência anterior” (pág. 311).
12 Sobre os requisitos e a tramitação processual do recurso para o pleno cfr. Isabel Alexandre, ob. cit., págs. 104 e segs
Porém, uma vez que o próprio Supremo ficava inibido de modificar a
doutrina adoptada, não estando sequer prevista sua revisão, só mediante alte-
ração legislativa era possível provocar a caducidade da doutrina fixada.13
4. Com a reforma processual de 1961 foi introduzido no n.º 3 do art.
728.º do CPC um outro mecanismo que visava promover a convergência de
soluções, posto que sem a solenidade e sem o valor vinculativo dos Assen-
tos.14
A intervenção de um colectivo alargado, sob impulso do Presidente, vi-
sava criar um ambiente propício à uniformidade na resolução de questões ju-
rídicas, atenuando os efeitos negativos emergentes do excessivo individualis-
mo que dificultava a criação de correntes jurisprudenciais estáveis.
Conquanto não tivesse valor vinculativo nem para os tribunais de instân-
cia, nem para o próprio Supremo, a jurisprudência emanada dos aludidos
“quase-assentos” não deixava de exercer um forte efeito persuasivo promovi-
do tanto pelo número como pela categoria dos juízes subscritores.15
13 A título de exemplo, a Lei n.º 24/89, de 1-8, constituiu uma resposta contrária à li-
nha interpretativa que fora adoptada no Assento de 3-5-84 (D. R. 1.ª Série, de 3-7-84) a respeito da contagem do prazo de caducidade nas acções de resolução de contratos de ar-rendamento urbano fundadas em facto continuado. Também a Lei n.º 135/99, de 28-8 (posteriormente substituída pela Lei n.º 7/01, de 11-8, por sua vez alterada pela Lei n.º 23/10, de 30-8), veio contradizer o que fora definido pelo Assento de 23-4-87 acerca da interpretação do art. 1110.º do CC em relação à transmissão do contrato de arrendamento em situações de cessação de união de facto com filhos menores.
14 Cfr. Isabel Alexandre, ob. cit., págs. 108 e segs. 15 Referia-se no Ac. do STJ, de 8-5-74, BMJ 237.º/201, que “o julgamento na sessão
conjunta das secções do STJ permitido pelo n.º 3 do art. 728.º do CPC tem em vista asse-gurar a uniformidade da jurisprudência, mas a doutrina respectiva não é vinculativa para o Supremo e outros interessados que dela podem continuar a divergir”, solução também adoptada no Ac. do STJ, de 18-2-88, BMJ 374.º/419. O mesmo caminho era trilhado por Antunes Varela, RLJ 124.º, pág. 384, onde afirmava textualmente o carácter não obrigató-rio da doutrina firmada., concluindo na anotação ao art. 2.º do CC que “o acórdão que vier a ser proferido não tem a forma nem o valor de um Assento, mas oferecerá, no geral, muito maiores garantias de estabilidade jurisprudencial do que os simples acórdãos normais, tirados por três ou cinco juízes”.
Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, pág. 213, concluía que “a jurisprudência fixada com intervenção de todos os juízes de uma secção ou em reunião conjunta de sec-ções cíveis não é vinculativa para o próprio Supremo e para os Tribunais inferiores”, cons-
Essa medida obteve o aplauso de Rodrigues Bastos para quem constituía
“função normal do Supremo, para além da decisão de casos concretos, obter a
uniformização da jurisprudência, mesmo fora do mecanismo dos Assentos, e
tão somente pela autoridade de que naturalmente se revestem tais decisões”.16
Tal como observa Oliveira Ascensão, referindo-se ao valor da doutrina,
também se poderia afirmar em relação a tal jurisprudência que a sua autorida-
de não emergia da força extrínseca firmada na lei, antes da persuasão da res-
pectiva fundamentação.17
5. A natureza e a intangibilidade dos Assentos nos termos anteriormente
sintetizados acabou por suscitar uma polémica em torno da sua constituciona-
lidade, com o argumento de que a atribuição de força obrigatória geral à acti-
vidade interpretativa operada pelo STJ constituía uma invasão da reserva de
competência do poder legislativo, tese que foi aceite pelo Tribunal Constituci-
onal que declarou a inconstitucionalidade do art. 2.º do CC, na medida em que
dele emergia a atribuição aos Assentos de “força obrigatória geral”.18 Tendo dei-
xado em aberto a possibilidade de o legislador ordinário manter o instituto,
desde que a obrigatoriedade da doutrina se circunscrevesse aos tribunais judi-
tituindo, nas palavras de Castro Mendes, um precedente persuasivo integrando um dos meios de conseguir a uniformidade de jurisprudência contemplada no art. 8.º, n.º 3, do CC.
16 Notas ao CPC, vol. III, p. 359. Acrescentava o mesmo autor que o julgamento com intervenção de todos os juízes da secção ou em reunião conjunta das secções “possibilita uma tomada a tempo de posição, por parte do tribunal, evitando que, de secção para sec-ção, se adoptem critérios diferentes e se abram conflitos a que só a força obrigatória de um Assento poderá vir a pôr termo”.
Antunes Varela indicava ainda a redução do número de recursos para o Tribunal Pleno como uma das vantagens dessa forma especial de julgamento do recurso de revista, uma vez que a doutrina adoptada corresponderia à assumida pelo Supremo (RLJ 124.º, pág. 383).
17 Ob. cit., pág. 280. 18 A inconstitucionalidade fora defendida por Castanheira Neves, em Instituto dos
Assentos e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, recolhendo alguns apoios no próprio STJ (cfr. Campos Costa, em voto de vencido proferido no Ac. do STJ, de 16-3-86, publicado na RLJ 124.º, págs. 365 e segs., criticado aí por Antunes Varela).
ciais, o certo é que o legislador, através do art. 4.º, n.º 2, do Dec. Lei n.º 329-
A/95, de 31-12, optou pela revogação pura e simples do art. 2.º do CC.19
Ora, sem questionar a necessidade de abolição da força obrigatória geral
dos Assentos nem a justificação de um mecanismo de revisão capaz de res-
ponder às críticas apontadas à cristalização da doutrina assim firmada, não se
verificavam razões ponderosas que levassem à sua radical abolição, com a
consequente retirada da força vinculativa na esfera dos tribunais judiciais. Ao
invés, a manutenção desta obrigatoriedade interna encontrava um forte argu-
mento na praxis judiciária, tendo em conta que, tal como se disse anteriormen-
te, permanecia (e permanece) a necessidade de encontrar mecanismos destina-
dos a promover a uniformidade de entendimentos, assim como a igualdade de
tratamento de casos semelhantes reclamada pelo princípio da isonomia.
Não existindo motivos racionalmente sustentados na análise económica
do direito que justificassem a erradicação absoluta dos Assentos, aquela opção
legislativa foi tanto mais censurável quanto é certo que foram mantidos pre-
ceitos que continuaram a atribuir ao STJ poderes exclusivos em matéria de
uniformização de jurisprudência em prol da segurança e da certeza jurídica.
Com efeito, nenhum sistema moderno, necessariamente atento a tais va-
lores e também aos da eficácia, pode descurar a consagração de mecanismos
que visem contrariar ou atenuar os efeitos da instabilidade ou da incerteza in-
terpretativa, evitando que questões idênticas possam ser dirimidas por diferen-
tes juízes de modo diametralmente oposto.20
6. As modificações operadas em 2007 na regulamentação do recurso de
revista ampliada visaram incrementar a tarefa de uniformização de jurispru-
19 Criticando os fundamentos invocados pelo legislador e o regime instituído cfr. Bal-
tasar Coelho, CJSTJ 1997, tomo I, págs. 25 a 32. 20 Sobre esta preocupação generalizada em alguns ordenamentos jurídicos europeus
cfr. Mariana França Gouveia, “O papel do STJ enquanto órgão superior da hierarquia”, em Re-forma dos Recursos em Processo Civil. Trabalhos Preparatórios, pág. 161, e Ribeiro Mendes, Recur-sos em Processo Civil. Reforma de 2007, págs. 172 e segs.
dência, ante o relativo fracasso da aplicação do sistema introduzido em 1996.21
Mantendo e reforçando o julgamento ampliado da revista, foi introduzido o
recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência.
O julgamento ampliado da revista comunga com o recurso extraordinário
para uniformização de jurisprudência da projecção relativamente à apreciação
de futuros casos idênticos. Porém, enquanto aquele corresponde simplesmen-
te ao último segmento da instância processual iniciada com a instauração da
acção, numa fase em que a decisão recorrida ainda não atingiu a estabilidade
proporcionada pelo caso julgado, o recurso extraordinário pressupõe o trânsi-
to em julgado do acórdão do STJ. Por outras palavras: enquanto o julgamento
ampliado constitui apenas uma modalidade específica de julgamento do recur-
so ordinário de revista, com intervenção de um colectivo alargado, cuja inicia-
tiva é distribuída por diversos agentes (partes, Ministério Público, relator, ad-
juntos e presidente da secção), sempre sujeita a decisão do Presidente do Su-
premo, guiado ora por critérios de oportunidade, ora de conveniência, no re-
curso extraordinário a iniciativa pertence em exclusivo às partes (ou ao Minis-
tério Público), ficando afastada qualquer margem de discricionariedade quanto
à sua admissão. Constitui, na realidade, um direito potestativo de natureza
processual que se basta com o preenchimento dos pressupostos legais.
7. O julgamento ampliado da revista poderá ocorrer quando se revele
“necessário ou conveniente” para assegurar a uniformidade da jurisprudência,22 o
que supõe a existência de duas realidades que se pretendem regular.
21 Lopes Rego qualifica a situação como de “não uso”, com resultados “absoluta-
mente desanimadores, sendo perfeitamente residuais os casos em que, com base nele, o Plenário tem obstado à formação e sedimentação de jurisprudências contraditórias sobre as mesmas questões de direito” (A Reforma dos Recursos em Processo Civil, na obra As Novas Exi-gências do Processo Civil, pág. 260).
Por seu lado, Ribeiro Mendes, na mesma obra, pág. 230, conclui que “o mecanismo do julgamento ampliado da revista não tem sido muito eficaz”, quer por falta de iniciativa das partes, seja do relator ou dos adjuntos, pondo em evidência até que “há mesmo acór-dãos que dão conta da existência no seio desse tribunal de correntes jurisprudenciais diver-gentes, sem que os juízes signatários se dêem ao trabalho de expor essa divergência ao pre-sidente do STJ para efeitos do art. 732.º-A”.
7.1. O julgamento ampliado revelar-se-á “necessário” quando se possa an-
tecipar a possibilidade de vencer uma solução jurídica que esteja em oposição
com jurisprudência uniformizada sobre a mesma questão fundamental de di-
reito.
Na verdade, considerando que aos AUJ não é reconhecida força vincula-
tiva, não está afastada a possibilidade de o próprio Supremo assumir entendi-
mento diverso daquele que em determinada conjuntura ganhou a adesão mai-
oritária do Pleno das secções cíveis, impondo-se por isso que os próprios juí-
zes do Supremo promovam a sua convocação quando se preveja, no âmbito
do julgamento normal da revista, o vencimento de solução jurídica diversa da
que anteriormente foi uniformizada.
Nestas situações, mais do que apelar a critérios de conveniência, sujeitos
a um maior grau de discricionariedade, a lei enuncia a obrigatoriedade de se
submeter a questão ao colectivo alargado, de modo que sempre que houver a
percepção de que possa ser rejeitada a adesão à jurisprudência anteriormente
uniformizada, qualquer dos juízes deve promover o julgamento ampliado da
revista, sem qualquer margem de discricionariedade,23 colocando ao mais alto
nível e com a maior latitude a reafirmação da anterior jurisprudência ou, se for
o caso, a assunção de interpretação diversa.
22 Também no art. 148.º do CPTA se prevê que “o presidente do STA ou do TCA podem
determinar que no julgamento de um recurso intervenham todos os juízes da secção, quando tal se revele necessário ou conveniente para assegurar a uniformidade da jurisprudência, sendo o quórum de dois terços” (n.º 1). Tal julgamento “pode ser requerido pelas partes e deve ser proposto pelo relator ou pelos adjun-tos, designadamente quando se verifique a possibilidade de vencimento de solução jurídica em oposição com jurisprudência anteriormente formada no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamen-tal de direito” (n.º 2).
23 Já assim era na anterior redacção, quando se determinava que o julgamento amplia-do de revista “deveria” ser sugerido pelo relator ou por qualquer dos adjuntos. A nova re-dacção vem na sequência da Lei de Autorização Legislativa n.º 6/07, de 2-2, cujo art. 2.º, n.º 1, al. j), previa a “revisão do regime da revista ampliada, estabelecendo que o julgamento ampliado é obrigatoriamente proposto ao presidente do tribunal pelo relator ou pelos adjuntos quando verifique a possi-bilidade de vencimento de uma solução jurídica que esteja em oposição com jurisprudência anteriormente formada, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito”.
Mas se, contra a referida imposição legal, não for promovido (ou não for
determinado) o julgamento ampliado da revista, sendo adoptada uma interpre-
tação diversa da que resultava de anterior AUJ, restará à parte interessada in-
terpor recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, nos ter-
mos dos arts. 763.º e segs. 24
7.2. A submissão da revista a julgamento ampliado pode verificar-se ain-
da quando tal se mostre “conveniente”, situação bem diversa da anterior que
apela à intervenção de elementos subjectivos, por natureza mais difusos e in-
susceptíveis de se conterem na malha apertada dos argumentos formais.
O objectivo que se prossegue mantém-se: assegurar a uniformidade de
jurisprudência. Porém, enquanto na primeira situação é pressuposta a existên-
cia de um acórdão uniformizador, neste caso a intervenção do Pleno das sec-
ções cíveis visa evitar ou superar uma indesejada diversidade interpretativa.
Ante a inviabilidade ou a inconveniência de concretizar melhor o condi-
cionalismo a que obedece a determinação do julgamento ampliado da revista,
será o confronto com a realidade observável em cada momento que induzirá a
resposta mais adequada.25
24 Relativamente à anterior norma do art. 732.º-A, nº 2, que fazia recair sobre o rela-
tor ou adjuntos o dever de iniciativa, decidiu o Ac. do STJ, de 17-10-06 (www.dgsi.pt), que a opção pelo julgamento nos termos normais, em vez do julgamento ampliado, não consti-tuía nulidade processual correspondente à omissão de acto ou de formalidade imposta por lei. Entendeu-se que o uso pelo legislador da expressão de que o julgamento ampliado da revista “deve ser sugerido” não constituía uma imposição, antes uma mera faculdade de actua-ção conferida aos sujeitos ali referidos, a desencadear apenas quando, efectuado o pertinen-te juízo de conveniência e oportunidade, se reconhecesse a justificação da intervenção do pleno das secções cíveis.
A norma foi substancialmente modificada, passando inequivocamente a prever, nos casos do n.º 3, um verdadeiro dever legal, em contraposição com o poder/dever apontado aos casos abrangidos pelo n.º 2 e para os quais se confere uma maior margem de liberdade.
25 Conforme Teixeira Sousa, “na hipótese em que apenas se verifica o risco de con-tradição com a jurisprudência ordinária do Supremo, a escolha do Presidente deste Tribu-nal tem maior amplitude, pois que lhe incumbe verificar se a questão em apreciação está suficientemente trabalhada na jurisprudência e na doutrina para ser submetida à uniformi-zação jurisprudencial” (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pág. 558).
Para o efeito não será suficiente a existência de interpretações divergen-
tes sobre uma determinada questão, pois se fosse esta a intenção do legislador,
não deixaria de a declarar.26
Procurando alcançar o real objectivo do legislador, cremos que na previ-
são legal poderão integrar-se designadamente as seguintes situações submeti-
das ao prudente critério do Presidente:
a) Quando se mostre indesejável ou inconveniente para o sistema a con-
sumação de contradição jurisprudencial sobre determinada questão jurídica;
b) Quando se verifique a persistência de divergências jurisprudenciais já
efectivas, quer ao nível das Relações, quer do Supremo, sem evidente preva-
lência de qualquer das teses;
c) Quando o ordenamento jurídico tenha sido sujeito a modificações
formais ou se observe uma modificação substancial da realidade que se apre-
sentava ao STJ no momento em que assumiu a anterior jurisprudência, de
forma a justificar uma eventual mudança de orientação.27
26 Nos termos do Ac. do STJ, de 20-11-03 (www.dgsi.pt), o dever consignado no art.
732.º-A, n.º 2 (anterior redacção), para o relator, adjuntos e presidentes das secções cíveis de sugerir o julgamento ampliado da revista, quando as partes e o Ministério Público nada requereram nesse sentido, tem necessariamente que se basear no prévio entendimento da sua parte de que se justifica a intervenção do pleno das secções cíveis.
27 Castanheira Neves (cit. por Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Ci-vil, 7ª ed., págs. 300 e 301) advoga que “o STJ só deverá aceitar intervir em ordem à unida-de do direito … quando esta, nos seus momentos integrantes e regulativos, constitutivos e reconstitutivos, verdadeiramente o exigir: para estabilizar com a sua auctoritas uma orienta-ção jurisprudencial suficientemente amadurecida, para fazer confrontar com uma perspec-tiva que tende a prevalecer outra ou outras que importa também ter em conta … para su-perar uma divergência jurisprudencial com a indispensável experimentação ou amadureci-mento problemáticos”. Pondera ainda as seguintes situações: “para estimular um novo ru-mo jurisprudencial relativamente a certo tipo de problemas, para pôr um novo problema jurídico, para assimilar no corpus iuris novos princípios a que a prática jurisprudencial já im-plicitamente tenha dado base normativa, para fazer reconhecer através de um certo tipo de caso ou problema jurídico a abertura a novos valores ou a novos princípios e critérios jurí-dicos”.
Pronunciando-se sobre este preceito, na sua anterior redacção, Ribeiro Mendes de-fende que a intervenção do Presidente do Supremo pode ocorrer a título preventivo “para evitar eventuais conflitos jurisprudenciais que sejam previsíveis” ou a título resolutivo, “para resolver conflitos jurisprudenciais actuais” (Recursos no CPC Revisto, pág. 104).
A mera divergência jurisprudencial já consumada ou prestes a consumar-
se nas instâncias ou no Supremo pode revelar-se insuficiente para que se de-
termine, de forma mecanicista, o julgamento ampliado da revista. O interesse
em garantir que as questões sejam apreciadas sob diversas perspectivas, sem
que de imediato se cristalize um determinado entendimento, pode sobrepor-se
ao valor da segurança e da certeza jurídica, designadamente quando o quadro
normativo se revelar fluido ou instável ou quando a questão jurídica continuar
a suscitar divergências assinaláveis, com argumentos de semelhante valia.
Mas tal não significa que deva afastar-se radicalmente a possibilidade de
ser determinado o julgamento ampliado de revista por razões de conveniência
relativamente a questões que ainda nem sequer foram objecto de apreciação
pelo Supremo, se porventura se revelar inoportuna uma diversidade de enten-
dimentos que se revele prejudicial à boa administração da Justiça ou quando
outros interesses superiores o justifiquem.28 Solução que apenas deva ser utili-
zada quando as vantagens de uma actuação imediata, de natureza preventiva,
superem largamente as de uma mais ampla discussão.
7.3. Com natural circunscrição aos casos em que o julgamento ampliado
da revista possa encontrar justificação em razões de oportunidade ou de con-
veniência, o mesmo pode requerido por qualquer das partes para sustentar a
28 Neste sentido, Baltasar Coelho, “Algumas notas sobre o julgamento ampliado da revista e
do agravo”, CJSTJ, 1997, tomo I, pág. 30, nota 34, e Ribeiro Mendes, Os Recursos no CPC Revisto, pág. 104. Num outro local, Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes (CPC anot., vol. III, págs. 146 e 147) concluem que o julgamento ampliado de revista pode ser determinado “antes ou depois de haver um conflito real entre decisões do STJ … bastando, por exem-plo, a existência de jurisprudência divergente das Relações, ainda não apreciada pelo Su-premo, sobre certa questão de direito”.
Segundo Antunes Varela, foi esta uma das razões que presidiu à criação do meca-nismo previsto no anterior art. 728.º, n.º 3, do CPC, numa altura em que entrara em vigor o novo CC (RLJ 124.º, págs. 383 e 384).
Sobre o tema cfr. ainda Isabel Alexandre, “Problemas recentes da uniformização de juris-prudência em processo civil”, ROA 60º, tomo I, pág. 132, defendendo ser conveniente a uni-formização de jurisprudência quando exista um acórdão anterior susceptível de ser contra-riado e se considere que nem o conflito é meramente pontual, nem se revela prematura a sua resolução. E ainda quando, ante a possibilidade de o Supremo proferir acórdãos con-traditórios, se revelar vantajosa a resolução imediata da questão.
manutenção da anterior jurisprudência uniformizada, para suscitar a sua rea-
preciação ou para conseguir uma solução uniformizadora.29
Não é apenas ao recorrente que é atribuída a possibilidade de promover
o julgamento ampliado. De acordo com as circunstâncias, cada uma das partes
pode ter interesse em que se estabeleça a uniformização ou em que se confir-
me ou negue o entendimento anteriormente uniformizado.
O requerimento deve ser apresentado com a interposição de recurso.
Atento o tratamento igualitário dos sujeitos processuais que é imposto pelo
art. 2.º-A do CPC, semelhante iniciativa do recorrido deve ser integrada nas
contra-alegações. O facto de no n.º 1 do art. 732.º-A se prever a possibilidade
de o Presidente determinar o processamento do julgamento na modalidade de
revista ampliada até à prolação do acórdão não significa que seja legítimo
apresentar o requerimento fora de algum daqueles momentos.30
Tal requerimento deve ser fundamentado, designadamente com alusão
aos entendimentos jurisprudenciais ou doutrinais divergentes ou ao relevo que
uma decisão com o valor da jurisprudência uniformizada possa determinar.31
Ainda assim, tendo em conta a necessária comparação com o disposto acerca
da interposição de recurso de revista excepcional (art. 721.º-A, nº 2) ou do
recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência (art. 767.º, nº 1),
a falta ou a deficiente fundamentação não constitui, por si, motivo de recusa
imediata, cabendo ao Presidente decidir de acordo com os demais elementos
de que dispuser.
29 Como se decidiu no Ac. do STJ de 17-10-06 (www.dgsi.pt), o julgamento ampliado
de revista não é uma quarta instância de recurso, mas um recurso de revista. 30 Discordamos, assim, do entendimento expresso por Baltasar Coelho, ob. cit., pág.
28, e também pressuposto nos Ac. do STJ, de 18-9-03 e de 17-10-06 (www.dgsi.pt), de o re-querimento e a justificação do julgamento ampliado de revista poderem ser apresentados até à prolação do acórdão. Aproximamo-nos mais do Ac. do STJ, de 12-9-06 (www.dgsi.pt), no qual se defendeu que o requerimento deve acompanhar as alegações.
31 Já anteriormente se decidira no Ac. do STJ, de 12-9-06 (www.dgsi.pt), que no reque-rimento a parte deveria invocar as razões para a intervenção do pleno das secções cíveis, considerando insuficiente dizer que existe “forte possibilidade de contradição entre acór-dãos proferidos, acerca da mesma questão de Direito”, sem sequer aludir a um único acór-dão que, na óptica da recorrente, pudesse estar em contradição com o acórdão recorrido.
Em qualquer caso, o requerimento será sujeito ao princípio do contradi-
tório exercido por ocasião da apresentação das contra-alegações, se o reque-
rimento provier do recorrente, ou em acto avulso, se a iniciativa for do recor-
rido, imposição que encontra eco no disposto no art. 3.º, n.º 3.
A não submissão do julgamento a revista ampliada, apesar de requerida
pelas partes, não é passível de impugnação, restando à parte que ficar vencida
no acórdão que vier a ser proferido a eventual interposição de recurso extra-
ordinário para uniformização de jurisprudência, verificados os pressupostos
contidos nos arts. 763.º e segs. 32
Nos casos em que o Ministério Público intervém como representante de
uma das partes (v.g. Estado, Estado-colectividade, em defesa de interesses di-
fusos, menores, incapazes ou ausentes), a legitimidade para promover o jul-
gamento ampliado da revista é inerente a essa qualidade. O mesmo ocorre
quando, no uso dos poderes conferidos pelo art. 3.º, n.º 1, al. m), da LOMP, o
recurso seja interposto com fundamento ema violação de lei expressa.
Porém, a lei atribui ao Ministério Público o poder-dever de tomar essa
iniciativa em todos os demais casos, podendo a sua proposta ser apresentada
em qualquer momento até à prolação do acórdão.33
7.4. Independentemente de quem tenha a iniciativa, a opção entre o jul-
gamento da revista nos termos normais ou com intervenção do Pleno das sec-
ções cíveis é da exclusiva competência Presidente.34 A posição institucional
em que se encontra propicia o conhecimento das questões correntemente
submetidas à apreciação jurisdicional e das correspondentes respostas, caben-
32 Já no Ac. do STJ, de 7-2-02 (www.dgsi.pt) se decidira que é inimpugnável o uso ou
não uso pelo relator ou pelos adjuntos e presidentes das secções cíveis da faculdade de su-gerir ao Presidente do STJ o julgamento ampliado requerido pelas partes.
33 Como se decidiu no Ac. do STJ, de 9-5-02, CJSTJ, tomo II, pág. 5, o Ministério Público só pode requerer que se proceda ao julgamento ampliado de revista para assegurar uniformização de jurisprudência, no âmbito de um recurso já interposto por uma das par-tes.
34 Assim se decidiu no Ac. do STJ, de 7-2-02 (www.dgsi.pt).
do-lhe ponderar casuisticamente as vantagens ou os inconvenientes que po-
dem emergir do julgamento ampliado da revista.
Tratando-se em qualquer dos casos do exercício de um poder vincula-
do,35 a liberdade de decisão é mais limitada nos casos em que se revele “necessá-
rio” assegurar a uniformidade de jurisprudência, sendo mais ampla quando o
critério assente em factores de “conveniência” ou de oportunidade casuistica-
mente ponderados, nada impedindo que tome a iniciativa de submeter o jul-
gamento à referida modalidade, quando, apesar da inércia de outros sujeitos,
estiver convicto dos benefícios que podem decorrer da uniformização juris-
prudencial.36
Estamos perante um poder-dever que se destina a conferir à jurisprudên-
cia do STJ a força capaz de assegurar valores relevantes na área de influência
dos tribunais na sociedade: a segurança jurídica e a igualdade de tratamento,
evitando que a mesma questão de direito obtenha soluções diversas.
7.5. Determinado pelo Presidente o julgamento pelo Pleno das secções
cíveis, abrir-se-á vista ao Ministério Público. Sendo indiscutível, a partir da-
quele momento, que o julgamento será realizado como determinado, tal inter-
venção deve cingir-se à emissão de parecer sobre a questão ou questões de
direito em causa.
35 Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes consideram, contudo, que se trata de um po-
der discricionário (CPC anot., vol. III, pág. 147), posição também assumida por Ribeiro Mendes em os Recursos no CPC Revisto, pág. 105, onde conclui que “há a evidente preocu-pação de não espartilhar os pressupostos de intervenção, sendo certo que a decisão final cabe ao presidente do STJ, no seu prudente arbítrio, sendo tal decisão insusceptível de re-curso e não carecendo de qualquer fundamento”.
Cremos mais ajustado considerar que se trata de poder-dever ou poder vinculado, como defende Isabel Alexandre, ob. cit., pág. 137, e Baltazar Coelho, ob. cit., págs. 28 e 29.
36 Ribeiro Mendes estabelece uma distinção entre os casos em que a submissão da revista a julgamento ampliado é a título resolutivo, “para resolver conflitos jurisprudenciais actuais do exerce uma função preventiva” ou a título preventivo, a fim de “evitar eventuais conflitos jurisprudenciais que sejam previsíveis”, o que pode acontecer quando haja a pro-babilidade de prolação de decisões contraditórias ou até a existência de debates doutrinais sobre certa questão (Os Recursos no CPC Revisto, pág. 104).
A posterior evolução processual variará de acordo com o que se projec-
tar. Estando envolvida a alteração de anterior jurisprudência uniformizada,
ouvir-se-ão as partes, com necessária alusão a tal eventualidade, se acaso as
mesmas ainda não tiveram a oportunidade,37 a fim de se pronunciarem sobre a
resposta que o Supremo deve dar à questão controvertida.
O julgamento ampliado da revista corresponde a uma forma mais solene
de apreciar um determinado litígio, convocando para a sua decisão todos os
juízes que desempenham funções nas secções cíveis do Supremo.
Não perdendo a revista a natureza de recurso ordinário, a sua regulamen-
tação visa resolver o caso concreto, mas de uma forma que se pretende gene-
ralizadora, capaz de influir no modo como a mesma questão jurídica será
apreciada pelo mesmo ou pelos demais tribunais. Visando a reapreciação, com
força de caso julgado, do acórdão recorrido (objecto imediato), destina-se, além
disso, a declarar a interpretação que se pretende uniforme (objecto mediato).38
O julgamento do recurso ampliado de revista é feito pelos juízes que in-
tegram o Pleno das secções cíveis cuja função, nos termos do art. 43.º, al. c),
da LOFTJ, envolve a uniformização de jurisprudência cível. Exige-se um quó-
rum mínimo de ¾ dos juízes em exercício de funções.
Considerando a natureza definitiva da decisão do Presidente que tenha
ordenado o julgamento ampliado, não é admissível outro resultado que não
seja a emissão de acórdão uniformizador, apreciando, com a força persuasiva
inerente, a solução que decorre da lei e que se projecta no caso concreto.
37 A audição das partes exigir-se-á ainda sempre que seja determinado o julgamento
ampliado de revista sem que a questão tenha sido debatida nas alegações, como defendem Lopes do Rego, Comentário ao CPC, Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, CPC anot., vol. III, pág. 147, e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., pág. 307.
38 Na terminologia de Teixeira de Sousa, o recurso de revista normal trata-se de “re-curso casuístico”, cujo resultado só se torna vinculativo no caso concretamente apreciado, enquanto que o julgamento ampliado da revista se trata de “recurso normativo” (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., pág. 393).
7.6. Os resultados do julgamento ampliado da revista poderão variar
consoante as circunstâncias:
- Prolação de acórdão uniformizador que, pela primeira vez, incida sobre
a questão ou questões de direito objecto de controvérsia;
- Reafirmação da doutrina expressa em anterior acórdão de uniformiza-
ção de jurisprudência que tenha incidido sobre a mesma questão, com os
mesmos ou com outros argumentos;
- Prolação de acórdão uniformizador de sentido diverso, por adesão a
novos argumentos ou por constatação de uma modificação no ordenamento
jurídico ou na realidade social;
- Modificação, restrição ou ampliação da doutrina anteriormente expressa
em acórdão uniformizador.
O acórdão de uniformização deve ser sempre publicado no D.R., 1.ª Sé-
rie.
8. Ainda que de natureza extraordinária 39 e com efeitos meramente de-
volutivos, a reforma do regime dos recursos cíveis de 2007 acabou por rein-
troduzir, na prática, o recurso para o Pleno que vigorou antes de 1995,40 à se-
melhança do que já se concretizara no processo penal 41 e no processo admi-
nistrativo.42
39 Criticando a qualificação como recurso “extraordinário”, cfr. Lebre de Freitas, “Re-
curso extraordinário: recurso ou acção”, em As Recentes Reformas na Acção Executiva e nos Recursos, págs. 19 e segs.
40 Dizia o anterior art. 763.º, n.º 1, entretanto revogado: “se no domínio da mesma legisla-ção, o STJ proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão fundamental de direito, assentem sobre soluções opostas, pode recorrer-se para o Tribunal Pleno do acórdão proferido em último lugar”.
41 Nos termos do art. 437.º, n.º 1, do CPP, com a nova redacção introduzida pela Lei n.º 48/07, de 29-8, “quando, no domínio da mesma legislação, o STJ proferir dois acórdãos que, relati-vamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso para o Pleno das secções criminais do acórdão proferido em último lugar”.
42 Segundo o art. 152.º, n.º 1, do CPTA: “As partes e o Ministério Público podem dirigir ao STJ Administrativo, no prazo de 30 dias contado do trânsito em julgado do acórdão impugnado, pedido de admissão de recurso para uniformização de jurisprudência, quando, sobre a mesma questão fundamental de direito, exista contradição:
8.1. Trata-se de uma opção criticável. Com efeito, tendo em conta a am-
pla possibilidade de participação das partes e do Ministério Público já contida
no regime do julgamento ampliado da revista, pareceria mais adequado apos-
tar no desenvolvimento ou reforço dos poderes atribuídos ao Presidente do
Supremo pelo art. 732.º-A, em vez de se facultar, na prática, um quarto grau
de jurisdição que pode redundar na renovação de uma iniciativa que a parte,
em momento oportuno, não accionou, potenciando o acréscimo da litigiosi-
dade e a instabilidade de acórdãos proferidos ao mais alto nível da estrutura
judiciária.43
Considerando, por outro lado, a diversidade jurisprudencial que, em rela-
ção às mais variadas questões, continua a verificar-se no Supremo, sem qual-
quer limitação temporal dos precedentes que podem ser invocados para des-
poletar a interposição do recurso extraordinário, o acesso a este mecanismo
estará aberto enquanto não se criar uma malha significativa de AUJ que, nos
termos do n.º 3 do art. 763.º, seja capaz de travar os impulsos litigantes da
parte inconformada com o resultado declarado.
Com efeito, ainda que a sua interposição não produza efeito suspensivo,
corre-se o risco de uma figura de natureza declaradamente extraordinária aca-
bar por se transformar num instrumento de uso corrente, convocando para
nova apreciação o Pleno das secções cíveis, mediante a mera demonstração da
a) Entre acórdão do Tribunal Central Administrativo e acórdão anteriormente proferido pelo mesmo
Tribunal ou pelo STA; b) Entre dois acórdãos do STA”. 43 Contra a introdução do recurso extraordinário se pronunciou Ribeiro Mendes,
“Sobre o anteprojecto de revisão de recursos em processo civil”, em Novas Exigências do Processo Civil, pág. 232. No mesmo sentido, em face do regime agora instituído, cfr. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª ed., pág. 82.
Já Lopes do Rego fez notar que a aplicação do julgamento ampliado da revista con-duziu a resultados práticos “desanimadores”, verificando-se uma verdadeira “situação de não uso”, acrescentando que não é de excluir que a criação de um recurso extraordinário para o mesmo efeito “possa vir a inflectir tal situação de não utilização, ao verificar que dela irá decorrer inelutavelmente a imposição de um novo recurso para o plenário, obri-gando a solucionar o conflito criado” (“A reforma dos recursos em processo civil”, em Novas Exi-gências do Processo Civil, pág. 261).
desconformidade jurisprudencial, sem ponderação da conjuntura em que foi
produzido o acórdão-fundamento.
Mais justificada se revelaria a admissibilidade de um recurso extraordiná-
rio interposto no exclusivo interesse da lei, nos termos do art. 766.º, tendo em
conta o facto de o Ministério Público, a quem é atribuída em exclusivo a legi-
timidade para a sua dedução, se guiar por razões objectivas, tendo como único
objectivo superar uma divergência jurisprudencial, sem interferência no caso
concreto.
8.2. O recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência de-
pende dos seguintes requisitos fundamentais:
a) Diversidade entre o acórdão recorrido e outro acórdão do Supremo,
relativamente à mesma questão de direito que se tenha revelado essencial; 44
b) Identidade substantiva do quadro normativo em que a questão jurídica
se insere;45
c) Trânsito em julgado de ambos acórdãos, presumindo-se o trânsito do
acórdão-fundamento.46
Impede a admissão de recurso extraordinário o facto de no acórdão re-
corrido ter sido adoptada jurisprudência anteriormente uniformizada pelo Su-
premo ou o facto de o acórdão recorrido ser ele mesmo uniformizador.47
44 Não se exige que as decisões sejam frontalmente opostas, bastando que sejam di-
versas, como já referia Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. III, pág. 118. 45 O n.º 2 da versão anterior do art. 763.º, revogado em 1995, esclarecia que “os acór-
dãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação sempre que, durante o intervalo da sua pu-blicação, não tenha sido introduzida qualquer modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamen-te, na resolução da questão de direito controvertida”.
46 Tal presunção poderá ser ilidida mediante a apresentação de prova em sentido di-verso, ainda que, em situação de dúvida, se imponha ao tribunal que diligencie pelo esclare-cimento da situação.
47 Cfr. Teixeira de Sousa, “Reflexões sobre a reforma dos recursos em processo civil”, nos Ca-dernos de Direito Privado, n.º 20, pág. 12.
8.3. A natureza extraordinária do recurso, em contraponto com os recur-
sos ordinários, revela-se através do facto de ser interposto depois de transita-
do em julgado o acórdão recorrido.
O prazo de 30 dias estabelecido para a interposição é de natureza proces-
sual, seguindo o regime do art. 144º, de onde decorre, além do mais, a oficio-
sidade na verificação do seu decurso e na declaração dos efeitos extintivos do
direito.
Notificada a parte contrária da interposição do recurso, esta tem o direito
de responder não apenas à admissibilidade, tempestividade ou legitimidade
como ainda aos fundamentos do recurso.
A exigência do trânsito em julgado da decisão e o facto de o recurso ter
efeito meramente devolutivo (art. 768º), para além de também ilustrarem a
natureza extraordinária do recurso, justificam que seja tramitado por apenso,
não estando sujeito a distribuição.48
O objecto do recurso não se limita, porém, à definição da controvérsia
formada sobre questão de direito. Como ocorre com os recursos em geral,
designadamente com o recurso de revista, exige-se a invocação da contradição
imputada ao acórdão recorrido.
Assim, com alusão quer ao acórdão recorrido, quer ao acórdão-
fundamento, o recorrente deve isolar a questão ou questões que tenham sido
objecto de decisões contraditórias, não podendo deixar de identificar o erro de
interpretação, de aplicação ou de determinação do direito aplicável, em termos
semelhantes aos que decorrem do art. 722.º, n.º 1, als. a) e b). Em qualquer
48 Contrapõe Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª ed., pág. 301,
que o recurso extraordinário é sujeito a nova distribuição. Para o efeito, considera que terá existido “esquecimento” do legislador em introduzir no art. 225.º a correspondente espécie. Todavia, para além de essa justificação não poder ser presumida pelo intérprete, o art. 765.º prescreve que o recurso extraordinário corre por apenso em relação ao processo onde foi proferido o acórdão recorrido, o que inculca a desnecessidade daquela operação de distri-buição e a atribuição da competência ao mesmo relator a que foi distribuído o processo principal.
Trata-se, contudo, de opção que deve ser reponderada em oportuna alteração legal, tendo sido nesse sentido a proposta que foi apresentada pela Comissão de Revisão do CPC em Dezembro de 2011, neste momento ainda em fase de apreciação.
dos casos, as alegações devem terminar por proposições conclusivas, atenta a
sujeição do recurso extraordinário à norma geral do art. 685.º-A.49
A natureza do recurso, o condicionalismo que o deve rodear, o facto de
o anteceder uma pronúncia do Supremo e de, além disso, se pretender a pro-
lação de uma decisão que, com efeitos internos e externos, dirima uma con-
trovérsia jurisprudencial, são factores suficientes para que se exija do reque-
rente o rigoroso cumprimento dos requisitos formais.
8.4. Com o requerimento (e alegações) deve também ser demonstrada a
contradição de julgados.
A letra da lei apenas reporta a necessidade de se juntar a “cópia” do acór-
dão fundamento.50 Tal envolve tanto a junção de certidão como de simples
cópia. Já será mais problemática a suficiência de outra reprodução,51 podendo
invocar-se a favor de uma solução mais facilitadora o facto de não existir um
registo oficial e aberto ao público de todos os acórdãos proferidos pelo Su-
premo e ainda o facto de eventuais dúvidas de conformidade entre a reprodu-
ção e o original poderem ser sanadas ulteriormente.
Já será manifestamente insuficiente a mera junção de sumário de acórdão
ou de súmula não representativa do modo como no acórdão foi abordada e
49 Em matéria penal, o AUJ n.º 5/06, publicado no D.R., I Série, de 6-6-06, concluiu
que “no requerimento de interposição do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência (art. 437.º, n.º 1, do CPP), o recorrente, ao pedir a resolução do conflito (art. 445.º, n.º 1), não tem de indicar o sentido em que deve fixar-se a jurisprudência (art. 442.º, n.º 2)”. Deste modo foi alterada a jurisprudência que havia sido fixada pelo Assento do STJ n.º 9/00, publicado no D.R., 1.ª Série-A, de 23-5-00, onde se concluiu que a indicação do sentido em que deveria fixar-se a jurisprudência era requisito necessário, sob pena de rejeição.
50 Por razões pragmáticas, relativamente à questão de direito objecto de controvérsia jurisprudencial, juntar-se-á apenas um único acórdão, ainda que existam outros no mesmo sentido, salvo se houver multiplicidade de questões sujeitas a semelhante divergência.
Esta era também a opinião de Castro Mendes, reportando-se ao anterior recurso pa-ra o Pleno do STJ (Direito Processual Civil, vol. III, págs. 112 e 113), com citação de larga jurisprudência, entre o Ac. do STJ, de 4-2-49, BMJ 11.º/152, segundo o qual “se o recor-rente tiver indicado vários acórdãos anteriores e, sendo para isso notificado, não escolher, entre eles, um em relação ao qual haja de apurar-se a existência da oposição invocada, de-ver-se-á considerar apenas o primeiro dos acórdãos indicados”.
51 Com mais clareza, prevê-se no art. 438.º, n.º 2, do CPP, que o recorrente indique “o lugar da publicação”.
decidida a questão de direito,52 uma vez que não existe qualquer equivalência
entre “acórdão” e “sumário”.
8.5. Ao invés do que se verifica relativamente ao recurso ampliado de re-
vista, a lei não conferiu ao Supremo qualquer margem de discricionariedade
no que concerne à admissão do recurso. Assim, demonstrados os requisitos de
natureza positiva, sem que ocorra o impedimento previsto no n.º 3 do art.
763.º, restará ao Supremo verificar a situação de contrariedade de acórdãos,
tomando em consideração, além do mais, os argumentos que contra a admis-
sibilidade do recurso tenham sido apresentados pelo recorrido.
O recurso deve ser liminarmente indeferido nas seguintes situações:
a) Quando verificar que a decisão não admite recurso;
b) Quando o recurso tiver sido interposto fora do prazo, quer por se não
ter verificado ainda o trânsito em julgado do acórdão recorrido, quer por ter
sido excedido o prazo de 30 dias depois desse trânsito;
c) Quando o recorrente não tiver as condições necessárias para recorrer,
isto é, quando for destituído da legitimidade activa circunscrita pelo n.º 1 do
art. 680.º;
d) Quando o requerimento não contenha ou não venha acompanhado
das alegações do recorrente ou quando estas não tenham conclusões;
e) Quando não se identifiquem nas alegações os elementos determinan-
tes da contradição jurisprudencial ou as especificações sobre a violação impu-
tada ao acórdão recorrido;
f) Quando não seja apresentada certidão ou cópia do acórdão-
fundamento;
g) Quando se não verifique a alegada divergência jurisprudencial, porque
a questão não foi decidida de modo diverso, porque o quadro normativo em
52 Assim o entendia também Castro Mendes, citando o Ac. do STJ, de 4-7-75, BMJ
249.º/446, onde se decidiu que “não basta a indicação do lugar em que foi publicado um sumário que não é oficial e que pode não ser fidedigno”.
que se inserem as decisões se revela substancialmente diverso ou por se cons-
tatar que a questão de direito sobre que incidiram decisões contraditórias não
exerceu efectiva influência na decisão de algum dos casos, designadamente
por se tratar de mero argumento lateral ou acessório;
h) Quando se verifique que o acórdão recorrido perfilhou a solução
constante de jurisprudência uniformizada relativamente à questão fundamen-
tal de direito comum.
8.6. A lei apenas prevê expressamente a reclamação para a conferência
quando o recurso seja rejeitado pelo relator, nada prevendo sobre a admissibi-
lidade de reclamação do recorrido, solução que encontra justificação no facto
de o despacho de admissão do recurso não constituir caso julgado, podendo
ser revogado pelo Pleno.
O efeito do recurso é meramente devolutivo. Assim, reconhecendo a de-
cisão transitada direitos cuja exercitação seja independente da vontade da par-
te vencida, como ocorre nas acções de simples apreciação ou nas acções cons-
titutivas, os respectivos efeitos produzir-se-ão naturalmente, sem qualquer
interferência decorrente da pendência e da tramitação do recurso. Aliás, os
efeitos jurídicos já consumados nem sequer sofrerão a interferência da decisão
uniformizadora que porventura revogue o acórdão recorrido (art. 770.º, nº 3).
O efeito meramente devolutivo permite ainda que seja instaurada acção
executiva destinada a obter o cumprimento coercivo de obrigação pecuniária,
de entrega de coisa certa ou de prestação de facto, nos termos do art. 47.º, n.º
1, ainda que o exequente ou qualquer credor não possa ser pago em dinheiro
ou bens sem prestar caução.
8.7. Admitido o recurso extraordinário por despacho do relator ou por
deliberação da conferência, aplica-se ao respectivo julgamento o regime pres-
crito para a revista ampliada.
Assim, o processo vai com vista ao Ministério Público para emissão de
parecer, a não ser que este tenha tido intervenção como recorrente ou como
recorrido. Seguem-se os vistos simultâneos, com entrega aos juízes que inte-
gram o Pleno das secções cíveis dos elementos relevantes para o conhecimen-
to do recurso.
Posto em tabela para julgamento, este far-se-á com intervenção de um
quórum mínimo de ¾ dos juízes em exercício de funções nas secções cíveis.
8.8. Colocados no plano mais alargado de intervenção do Pleno das sec-
ções cíveis, a resposta do colectivo, obtida por maioria, poderá ser variável:
a) Rejeição do recurso extraordinário por verificação de impedimentos à
sua admissibilidade;
b) Confirmação dos pressupostos da admissibilidade do recurso e, desig-
nadamente, da existência de contradição jurisprudencial, seguindo-se a tomada
de posição sobre a questão de direito em causa.
O novo acórdão substituirá, para todos os efeitos, o acórdão recorrido,
devendo ser publicado no D.R., 1.ª Série (art. 732.º-B, n.º 5).
Terá função confirmativa ou substitutiva de acórdão de uniformização
anterior que porventura não tenha sido respeitado; terá efeitos inovatórios se a
contradição se revelava entre acórdãos proferidos no âmbito do julgamento
normal do recurso de revista.
Confirmado o acórdão recorrido, estabilizar-se-á definitivamente tal deci-
são. Se, ao invés, a posição adoptada for a inversa, é do novo acórdão com
funções uniformizadoras que se extrairão os efeitos, não podendo modificar-
se as situações jurídicas constituídas ao abrigo do acórdão recorrido.
Se o acórdão recorrido tiver sustentado a instauração de acção executiva,
estando esta ainda pendente, este extinguir-se-á. Se acaso tiver atingido a fase
de pagamento que tenha despoletado a prestação de caução por parte do exe-
quente, ao abrigo do art. 769.º, caberá ao executado accionar a caução.
Por expressa determinação da lei, seja qual for a decisão adoptada relati-
vamente à controvérsia, a mesma não se repercute nas sentenças ou acórdãos
que anteriormente tenham sido proferidos.
9. Com a introdução dos AUJ suscitaram-se dúvidas sobre a sua força ju-
rídica.
9.1. Defendiam uns o carácter vinculativo dessa jurisprudência quer para
as instâncias,53 quer para o próprio Supremo,54 enquanto outros advogavam a
natureza não vinculativa, relevando a natureza meramente persuasiva corres-
pondente à de um precedente jurisprudencial qualificado.55
53 Assim, Pais Sousa e Cardona Ferreira, Processo Civil, pág. 101, concluindo que “a
uniformização da jurisprudência, pelo STJ, é obrigatória para as instâncias e para o STJ, até este a alterar”.
Segundo o Ac. do STJ, de 9-3-00, BMJ 495.º/276, a declaração de inconstitucionali-dade do art. 2.º do CC apenas produziu efeitos na vertente da eficácia externa, deixando intocada a eficácia interna, no âmbito da ordem jurisdicional. Fixar jurisprudência, através de assento, ou uniformizar jurisprudência, através de acórdão, tem o mesmo significado na ordem jurisdicional e, por conseguinte, o mesmo efeito vinculativo, enquanto a norma in-terpretada não for alterada pelo legislador ou a jurisprudência não for modificada pelo STJ.
Também de acordo com o Ac. do STJ, de 13-11-03, CJSTJ, tomo III, pág. 142, o acórdão de uniformização tem força vinculativa na ordem jurisdicional enquanto não for alterada pelo legislador ou a jurisprudência não for modificada por outro acórdão unifor-mizador.
54 Segundo o Ac. do STJ, de 9-3-00, BMJ 495.º/276, o STJ não pode deixar de respei-tar a jurisprudência uniformizada, a qual só pode ser modificada por novo acórdão unifor-mizador.
Já no Ac. do STJ, de 18-2-99, BMJ 484.º/325, refere-se que os AUJ são internamente vinculantes no sentido de que devem ser respeitados enquanto se não revelar necessária a sua alteração jurisprudencial. Valem como parâmetros de uniformização de jurisprudência que como tal devem ser acatados pelos Tribunais, com valor tendencialmente obrigatório.
55 Neste sentido, Lopes Rego, A Uniformização da Jurisprudência no Novo Direito Proces-sual Civil, Teixeira Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., pág. 558, e Ribeiro Mendes, Os Recursos no CPC Revisto, pág. 106.
Decidiu-se no Ac. do STJ, de 18-2-99, BMJ 484.º/325, que os AUJ justificam-se pela necessidade prática de uniformizar entendimentos sobre interpretação legislativa. Intervin-do apenas no domínio e função de interpretação e não da criação de normas, não constitu-em imposição de soluções novas na selecção de interpretações judiciais havidas em virtude de realização da justiça equitativa concreta. A aplicação do sentido contido em acórdãos de uniformização de jurisprudência não afecta a livre convicção do julgador, que se inscreve no poder de tomar posição sobre o mundo dos factos, e não afecta também o princípio do contraditório, dado que a sua consistência não é rígida ou definitiva.
Os arts. 732.º-A e 732.º-B deixam bem claro, em nosso entender, que a
jurisprudência uniformizada não é vinculativa para os demais tribunais judici-
ais.
É verdade que o Tribunal Constitucional, quando se pronunciou sobre a
constitucionalidade do art. 2.º do CC, não fechou as portas ao estabelecimen-
to de um regime semelhante ao que então se encontrava previsto no CPP,
deixando clara a legitimidade de uma solução que mantivesse, na ordem dos
tribunais judiciais, a obrigatoriedade interna da jurisprudência dos Assentos
emitidos pelo STJ.56 Todavia, tal solução não encontrou eco nos textos legais
posteriormente aprovados. Apesar de estar habilitado a adoptar tal solução,
sem receios de inconstitucionalidade, o legislador ordinário seguiu uma via
diferenciada que passou pela revogação pura e simples do art. 2.º do CC, em
vez da mera adaptação do respectivo texto legal àquela doutrina.
Lopes do Rego, confirmou, com argumentação exaustiva, a clara inten-
ção do legislador de afastar a obrigatoriedade da jurisprudência uniformizada,
expressa no modo como foi regulado o regime do recurso. Solução também
assumida por Teixeira de Sousa, para quem “a jurisprudência uniformizada
não é vinculativa para quaisquer Tribunais - nem sequer para os tribunais judi-
ciais -, mas o seu desrespeito pelas instâncias permite recorrer da respectiva
decisão independentemente do valor da causa e da sucumbência da parte”.57
Afinal, a tarefa de uniformizar a jurisprudência prevista nos arts. 732.º-A
e 732.º-B e mantida no art. 35.º, n.º 1, al. c), da LOFTJ (acerca da competência
do pleno das secções cíveis do Supremo) não se mostra necessariamente in-
compatível com a sua inserção num regime jurídico de efeitos não obrigató-
56 Conclui-se no referido aresto que “deixará de conflituar com o art. 115.º, n.º 5, da
CRP” (actual art. 112.º, n.º 4) um sistema através do qual os tribunais possam “fixar, por meio de Assentos doutrina obrigatória para os tribunais integrados na ordem do tribunal emitente, susceptível de por este vir a ser alterada”.
57 Estudos cit., pág. 558. No mesmo sentido se pronunciou o Trib. Constitucional, no Ac. nº 575/98, publicado no D. R., 2.ª Série, de 26-2-99, onde se afirma que os referidos acórdãos “têm a autoridade e a força persuasiva que lhes advém do facto de serem decisões do STJ, tiradas num julgamento ampliado de revista, isto é, feito pelo plenário das secções cíveis”, constituindo, por isso, “meros precedentes judiciais qualificados”.
rios. O referido desiderato, conivente com os valores da segurança jurídica e
da eficácia do sistema que devem ser prosseguidos por um Estado de Direito,
pode ser alcançado por intermédio “da normal autoridade e força persuasiva da deci-
são do STJ”, tal como se refere no Preâmbulo do DL n.º 329-A/95.
Registou-se, assim, uma clara aproximação do nosso regime a outras or-
dens jurídicas, onde não deixa de existir a preocupação pela consagração de
mecanismos de uniformização de jurisprudência, sem que, apesar disso, se
tenha julgado necessário atribuir às decisões força vinculativa geral ou força
vinculativa interna, bastando-se, em regra, com a autoridade proporcionada
pela natureza do órgão de que promana a doutrina e pelo valor intrínseco da
fundamentação utilizada.58
9.2. Posto que sem valor vinculativo,59 a jurisprudência uniformizada de-
ve merecer da parte de todos os juízes uma atenção especial, devendo ser aca-
tada pelos tribunais inferiores e até pelo próprio STJ enquanto se mantiverem
os pressupostos que a ela conduziram.60 Abdicando de alguns excessos indivi-
dualistas que ainda marcam a vida judiciária, o respeito pela qualidade e pelo
valor intrínseco da jurisprudência uniformizada do STJ deve conduzir a que só
razões muito ponderosas justifiquem desvios de interpretação das normas ju-
rídicas em causa (v.g. violação de determinados princípios que firam a consci-
58 Karl Larenz, Metodologia na Aplicação do Direito, pág. 495, referindo-se ao sistema
alemão. A natureza de “precedente persuasivo” é acentuada, em termos inequívocos, por Ri-
beiro Mendes, segundo o qual a solução adoptada “não visa reconhecer um carácter vin-culativo ou obrigatório da jurisprudência uniformizada...”, concluindo que “constitui pre-cedente persuasivo para os outros tribunais”(Os Recursos no CPC Revisto, pág. 108).
59 Já em relação à jurisprudência do Trib. Constitucional, a mesma ganha força obri-gatória geral nos casos previstos no art. 66.º da Lei nº 28/82, de 15-11 (e arts. 281.º, n.º 3 e 282.º, n.º 1, da CRP), mais concretamente em sede de fiscalização sucessiva abstracta da constitucionalidade em face de três acórdãos do mesmo tribunal no sentido da inconstitu-cionalidade.
60 É com este sentido que compreendemos a afirmação feita no Ac. do STJ, de 4-3-97, CJSTJ, tomo I, pág. 115, segundo o qual “uniformizar ou fixar jurisprudência tem o mesmo significado na ordem judicial até à revisão de cada Assento já proferido ou nova uniformização de jurisprudência do próprio STJ”.
ência jurídica ou manifesta desactualização da jurisprudência face à evolução
da sociedade).61
Mas a eventual discordância deve ser antecedida de fundamentação con-
vincente, baseada em critérios rigorosos, em alguma diferença relevante entre
as situações de facto, em contributos da doutrina, em novos argumentos tra-
zidos pelas partes e numa profunda e serena reflexão interior. Ou seja, a di-
vergência não se justifica por si mesma, antes deve ser encarada como um ob-
jectivo cujo alcance exige um percurso que, sem hiatos, tenha como ponto de
partida a letra da lei e percorra todas as etapas intermédias.
Em princípio, enquanto se mantiverem as circunstâncias em que se ba-
seou a tese do Supremo, esta deve ser acatada pelos Tribunais judiciais, sobre-
levando os valores da segurança e da certeza jurídica e os da celeridade pro-
cessual e eficácia, considerando a previsível revogação da decisão em caso de
interposição de recurso.
Apenas quando estiver preenchido um circunstancialismo complexo será
de ponderar a adesão a tese oposta àquela que anteriormente obteve venci-
mento.
E entre as circunstâncias a considerar podemos elencar as seguintes:
a) O surgimento de argumentos jurídicos que não tenham sido convin-
centemente rebatidos pelo acórdão uniformizador;
b) O período de tempo decorrido desde a prolação da decisão, conjuga-
do com relevantes modificações no regime jurídico ou com alterações sensí-
61 Citando Karl Larenz, “o juiz não tem apenas o direito, está até obrigado a divergir
do precedente, sempre que chegue à convicção de que ele traduz uma incorrecta interpreta-ção ou desenvolvimento da lei, ou de que a questão, então correctamente resolvida, deve hoje - mercê de uma mudança de significado da norma ou de uma alteração fundamental das circunstâncias relevantes para a sua interpretação - ser resolvida de outro modo” - Me-todologia do Direito, pág. 497. Mais adiante conclui que “o juiz não pode confiar no preceden-te como que de olhos fechados, deve formar um juízo pessoal, pelo menos quando surjam dúvidas sobre a correcção daquele” - pág. 497. Remata dizendo que “se, na convicção do juiz chamado a decidir, a incorrecção do precedente for evidente, o postulado da igualdade de tratamento não o impedirá de decidir correctamente” - pág. 503.
veis das condições específicas constatadas no momento da aplicação (art. 9.º,
n.º 2, do CC);
c) A contrariedade insolúvel da consciência ético-jurídica do julgador em
caso de adesão à jurisprudência uniformizadora.
9.3. Na regulamentação do instituto do julgamento ampliado da revista o
legislador previu mecanismos de controlo susceptíveis de quebrar os impulsos
geradores de discordâncias injustificadas e de atenuar eventuais perigos do
individualismo exacerbado.
Para além de desmotivar a eventual alegação de desconhecimento da ju-
risprudência uniformizadora, através da publicação na 1.ª Série do D.R. (art.
732.º-B, n.º 4), foi colocado a jusante da decisão um mecanismo capaz de le-
var a uma mais conveniente reflexão do julgador quando se trate de discordar
da jurisprudência uniformizadora.
Com efeito, o art. 678.º, n.º 2, al. c), autoriza a impugnação sempre que
sejam proferidas decisões contrárias à jurisprudência uniformizada, abstraindo
do valor das alçadas dos tribunais ou de outras condicionantes, ampliando,
assim, a sindicabilidade de decisões proferidas pelos tribunais inferiores.62
Ademais, de acordo com o disposto no art. 721.º-A, n.º 1, al. c), admite-
se excepcionalmente recurso para o Supremo, fora do condicionalismo geral,
quando o acórdão da Relação esteja em contradição com outro dessa ou de
outra Relação, a não ser que esta tenha aderido a uma tese uniformizadora
dimanada do STJ.
62 A justificação desta medida, segundo Ribeiro Mendes, assenta na necessidade de
“evitar que os Tribunais possam afastar-se dessa jurisprudência sem que o STJ de Justiça tenha a possibilidade de a alterar ...”, confiando em que “o respeito por essa jurisprudência será normalmente assegurado pela iniciativa das partes - que não deixarão de impugnar por via de recurso quaisquer decisões que se não conformem com a jurisprudência preceden-temente uniformizada” - Os Recursos no CPC Revisto, pág. 108.
Noutro campo, uma vez interposto recurso para a Relação ou para o STJ
de decisão que tenha desrespeitado acórdão uniformizador, o mesmo pode e
deve ser decidido de forma sumária, nos termos dos arts. 705.º e 726.º.
9.4. Ao invés do que ocorria com os Assentos, relativamente aos AUJ
admite-se a possibilidade de modificação pelo próprio STJ, devendo para tal
ser solicitada ao Presidente a convocação do pleno das secções cíveis, nos
termos do art. 732.º-A, n.º 3.
A iniciativa pode advir ainda de alguma das partes ou do Ministério Pú-
blico, confrontando o STJ com a necessidade de reponderar a solução dada à
questão de direito, obviamente com indicação de argumentos com suficiente
seriedade para justificar que o Pleno das secções cíveis de novo se debruce
sobre o problema.
Tal resultado pode ser ainda fruto de uma iniciativa individual do Presi-
dente. O lugar que ocupa no órgão jurisdicional justifica por si a concessão
deste poder de convocar o Pleno das secções cíveis quando razões justificati-
vas aconselhem ou tornem necessária a reponderação da doutrina uniformiza-
dora. Pode ainda surgir na sequência de recursos interpostos, sem o condicio-
nalismo das alçadas ou outros, ao abrigo do art. 678.º, n.º 2, al. c), de decisões
que tenham posto em causa a jurisprudência fixada.63
63 Cfr. Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil. Reforma de 2007, pág. 171.