Justiça restaurativa e mediação para o adolescente em conflito com a lei no Brasil

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A presente dissertação levanta a possibilidade de aplicação do paradigma da Justiça Restaurativa como instrumento democrático de resolução de conflitos provocados por adolescentes, devido à prática de atos infracionais. Como meio de realização da Justiça Restaurativa, foi proposta a prática da mediação para adolescentes autores de atos infracionais, com suas principais características, estrutura, princípios, objetivos e procedimentos, a exemplo do que já ocorre em alguns estados do Brasil e em outros países. Concluiu-se que a Justiça Restaurativa realizada pela Mediação pode ser considerada meio de resolução de conflitos penais ocasionados por atos infracionais cometidos por adolescentes, possibilitando a otimização dos resultados previstos para as medidas socioeducativas previstas pela legislação brasileira, a superação da influência do antigo paradigma retributivo do Direito Penal no direito do adolescente e o favorecimento da paz social.

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FUNDAO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR CENTRO DE CINCIAS JURDICAS - CCJ PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

JUSTIA RESTAURATIVA E MEDIAO PARA O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI NO BRASIL

Ana Carla Coelho Bessa

Fortaleza - CE Agosto, 2008

ANA CARLA COELHO BESSA

JUSTIA RESTAURATIVA E MEDIAO PARA O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI NO BRASILDissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Direito Constitucional como requisito parcial para a obteno do Ttulo de Mestre em Direito Constitucional, sob a orientao da Prof. Dr. Llia Maia de Morais Sales.

Fortaleza-CE 2008

_______________________________________________________________________ B557j Bessa, Ana Carla Coelho. Justia restaurativa e mediao para o adolescente em conflito com a lei no Brasil / Ana Carla Coelho Bessa. - 2008 144 f. Cpia de computador. Dissertao (mestrado) Universidade de Fortaleza, 2008. Orientao : Profa. Dra. Llia Maia de Morais Sales. 1. Justia restaurativa. 2. Infrao. 3. Conciliao e mediao (Direito). 4. Adolescentes Assistncia social. I. Ttulo. CDU 343.242 ___________________________________________________________________________

ANA CARLA COELHO BESSA

JUSTIA RESTAURATIVA E MEDIAO PARA O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI NO BRASIL

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________ Prof. Dr. Llia Maia de Morais Sales (orientadora) UNIFOR

__________________________________________________ Prof. Dr. Francisco Humberto Cunha Filho (examinador) UFC

__________________________________________________ Prof. Dr. Csar Barreira (examinador) UNIFOR

Dissertao aprovada em: 25/08/2008

RESUMOA presente dissertao levanta a possibilidade de aplicao do paradigma da Justia Restaurativa como instrumento democrtico de resoluo de conflitos provocados por adolescentes, devido prtica de atos infracionais. Como meio de realizao da Justia Restaurativa, foi proposta a prtica da mediao para adolescentes autores de atos infracionais, com suas principais caractersticas, estrutura, princpios, objetivos e procedimentos, a exemplo do que j ocorre em alguns estados do Brasil e em outros pases. Concluiu-se que a Justia Restaurativa realizada pela Mediao pode ser considerada meio de resoluo de conflitos penais ocasionados por atos infracionais cometidos por adolescentes, possibilitando a otimizao dos resultados previstos para as medidas socioeducativas previstas pela legislao brasileira, a superao da influncia do antigo paradigma retributivo do Direito Penal no direito do adolescente e o favorecimento da paz social. Palavras-Chave: Medida socioeducativa. Atos infracionais. Justia restaurativa. Mediao.

ABSTRACTThis dissertation raised the possibility of applying the paradigm of Restorative Justice as an instrument of democratic resolution of conflicts caused by teenagers, because of the practice of acts of infringement. As a means of achieving Restorative Justice proposal was the practice of mediation for perpetrators of Acts of Infringement teenagers, with their main characteristics, structure, principles, objectives and procedures, similar to what already occurs in some states of Brazil and other countries. It was concluded that the Restorative Justice held by the mediation can be considered means of resolving conflicts caused by acts of infringement committed by teenagers, enabling the optimization of expected results for the socio-educational measures provided for by Brazilian legislation, overcoming the influence of retribution old paradigm of criminal law in right of the teenagers, and fostering social harmony. Keywords: Socio-educational measures. Acts of infringement. Restorative justice. Mediation.

SUMRIO

INTRODUO..........................................................................................................................8 1 EVOLUO DO DIREITO PENAL NO OCIDENTE....................................................12 1.1 Origem e evoluo da pena ........................................................................................13 1.2 A pena privativa de liberdade.....................................................................................19 1.3 As escolas penais ........................................................................................................24 1.3.2 1.3.3 1.3.4 1.3.5 1.3.6 1.3.7 Escola positiva................................................................................................26 Terceira Escola Crtica ...................................................................................28 Escola Moderna Alem ..................................................................................29 Escola Tcnico-Jurdica..................................................................................29 Escola Correcionalista ....................................................................................29 Defesa Social ..................................................................................................30

1.4 As teorias da pena.......................................................................................................30 1.4.1 1.4.2 1.4.3 Teorias absolutas ou retributivas da pena......................................................30 Teorias relativas ou preventivas da pena........................................................32 O Modelo Penal Garantista de Luigi Ferrajoli ...............................................33

1.5 O sistema penal na viso de Eugenio Ral Zaffaroni ................................................36 1.6 A justia restaurativa ..................................................................................................38 2 O ATO INFRACIONAL E O DIREITO DO ADOLESCENTE NO BRASIL ................44 2.1 O adolescente no contexto do direito penal no Brasil ................................................44 2.2 O Direito da Criana e do Adolescente .....................................................................47 2.3 Origem do tratamento concedido ao adolescente em conflito com a lei no Brasil ....52 2.4 Atual tratamento concedido ao adolescente em conflito com a lei no Brasil ............55

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2.4.1 2.4.2

Apurao do ato infracional atribudo a adolescente......................................56 As medidas socioeducativas ..........................................................................60

2.5 Garantias e responsabilidade penal do adolescente em conflito com a lei na Doutrina da Proteo Integral.....................................................................................67 3 JUSTIA RESTAURATIVA E MEDIAO PARA O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI NO BRASIL .............................................................................82 3.1 Direito penal de emergncia, justia restaurativa e mediao penal ..........................83 3.1.1 Justia restaurativa..........................................................................................86

3.1.2 Mediao de conflitos........................................................................................92 3.1.3 Mediao penal...............................................................................................98

3.2 Algumas crticas e respostas acerca da aplicao da justia restaurativa e mediao em conflitos com a lei penal.....................................................................108 3.3 Justia restaurativa e mediao para o adolescente em conflito com a lei ...............114 CONSIDERAES FINAIS .................................................................................................134 REFERNCIAS .....................................................................................................................140

INTRODUOO tema do presente trabalho dissertativo a aplicao, no Brasil, da justia restaurativa, pela prtica da mediao, para resoluo de conflitos com a lei provocados por adolescentes a quem se atribui a prtica de atos infracionais, tendo em vista otimizar-se a aplicao do princpio da excepcionalidade da medida socioeducativa de internao, estabelecida pela Constituio Federal de 1988. O interesse pelo tema surgiu a partir de servios prestados em um dos Centros Educacionais da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social do Estado do Cear, onde so internados, por determinao da Vara da Infncia e Juventude de Fortaleza, adolescentes em conflito com a lei. O trabalho do advogado dos Centros de Internao obviamente no inclui a defesa dos adolescentes no processo, uma vez que tal papel cabe ao defensor pblico da Vara da Infncia e Juventude, mas consiste: no acompanhamento daqueles s audincias; no fornecimento de informaes solicitadas pela justia da infncia e juventude; e na observao do andamento de cada processo, esclarecendo possveis dvidas do adolescente ou de sua famlia. A experincia de trabalho ampliou um olhar antes centrado apenas no fato jurdico, dirigindo-o tambm s pessoas envolvidas em suas conseqncias, bem como s suas relaes, o que resultou nas seguintes observaes: Ainda que, nos dias atuais, a internao seja aplicada com o objetivo de educar e ressocializar o adolescente, na maior parte dos casos a medida recebida por ele e por sua famlia como uma mera punio, ou mesmo como injustia; A experincia de internao muitas vezes banalizada pelo adolescente, que passa por ela sem realizar a construo de um novo projeto de vida e redirecionamento de suas aes para melhoria de seu relacionamento com o meio social, apesar do trabalho realizado por parte dos setores especializados oferecido pela instituio, com a psicologia, assistncia social e pedagogia.

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Geralmente o adolescente nada sabe sobre o contexto de vida do ofendido e viceversa. E mesmo quando tm algum tipo de relao continuada (trabalho, escola, vizinhana, etc.), ambos ficam centrados apenas no ato infracional ocorrido e na sentena iminente, de modo que mesmo aps o cumprimento da medida socioeducativa, em algumas situaes, o conflito subjacente quela infrao no se encerra, mas pode prolongar-se em retaliaes mtuas; A vtima do ato infracional assume uma postura de ressentimento e passividade no conflito, e no tem nenhum momento de dilogo com o ofensor que oportunize conhecer sua vida, sua histria, expressar-se e, em alguns casos, at reconhecer possveis contribuies que tenha oferecido para o desfecho do conflito. O adolescente sai do Centro de Internao com a identidade pessoal e social de infrator. Tal estigma pode ser assumido por ele ponto de ignorar a determinao de cumprir a Liberdade Assistida, determinada judicialmente para organizar seu retorno vida social. O no cumprimento de tal determinao ir lev-lo novamente internao por descumprimento de medida. Assumir o estigma de infrator poder tambm lev-lo prtica contnua de outros atos infracionais e, conseqentemente, a novas internaes e a um ingresso no mundo do crime na vida adulta. A par das observaes realizadas em ambiente de trabalho, a disciplina cursada no Mestrado em Direito Constitucional, atualmente intitulada Mediao e Arbitragem no Estado Democrtico, proporcionou o conhecimento do conceito de mediao, bem como da existncia de Projetos de Lei e experincias prticas do referido instituto no Brasil. O aprofundamento terico dos mencionados estudos levaram ao conhecimento da Justia Restaurativa, vista nos dias de hoje como novo paradigma, alternativo ao paradigma punitivoretributivo prprio do Direito Penal. A teoria estudada juntou-se observao provocando a reflexo acerca da problemtica do adolescente em conflito com a lei no Brasil, e despertando o interesse pela pesquisa acerca do tema. Quanto definio de termos, vale lembrar que o Estatuto da Criana e do Adolescente considera ato infracional a conduta descrita na legislao penal como crime ou contraveno, e prev, em todo o seu artigo 112, e nos incisos I a VI do seu artigo 101, ao todo doze medidas scio-educativas que podero ser aplicadas ao adolescente em conflito com a lei.

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Com respeito medida socioeducativa de internao, a Constituio Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 227, inciso V do pargrafo 3, a obedincia aos princpios da brevidade, excepcionalidade e respeito condio de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicao, aos adolescentes, de qualquer medida privativa de liberdade. O Estatuto da Criana e do Adolescente ECA, em seu artigo 122, regula que em nenhuma hiptese, ser aplicada a internao, havendo outra medida adequada ao adolescente, e que a internao s pode ser aplicada quando: tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaa ou violncia pessoa; por reiterao no cometimento de outras infraes graves; por descumprimento reiterado e injustificvel da medida anteriormente imposta. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), no ano de 2006, o Brasil tinha 34.870 adolescentes autores de atos infracionais cumprindo algum tipo de medida scio-educativa. O percentual destes que cumpria medida privativa de liberdade, era de 48%. Completando este dado, o Levantamento Nacional do Atendimento socioeducativo ao Adolescente em Conflito com a Lei realizado no Brasil em 2006, pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, trouxe a seguinte constatao: entre 2002 e 2006, o nmero de adolescentes privados de liberdade no Brasil aumentou 28%. Considerando que, antes do surgimento do Direito da Criana e do Adolescente, esta populao esteve por longo perodo, submetida aos ditames do Direito Penal, inclusive no que diz respeito privao de liberdade, surge como problema de pesquisa a influncia do paradigma punitivo do Direito Penal na imposio da medida scio-educativa de internao aplicada ao adolescente, contribuindo assim para a inverso do princpio da excepcionalidade da internao, estabelecido pela Constituio de 1988, e regulamentado no Estatuto da Criana e do Adolescente. Levantou-se ento a hiptese de que Justia Restaurativa, aplicada atravs da mediao de conflitos poderia contribuir para a otimizao da aplicao do princpio constitucional da excepcionalidade da privao de liberdade do adolescente. A Resoluo 12/2002 do Conselho Econmico e Social da ONU define como Programa de Justia Restaurativa qualquer programa que use processos restaurativos e objetive atingir resultados restaurativos, os quais consistem em qualquer processo no qual a vtima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam ativamente na resoluo das questes oriundas

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do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador; e define resultado restaurativo como um acordo construdo no processo restaurativo. Os processos restaurativos podem incluir a mediao, a conciliao, a reunio familiar ou comunitria e crculos decisrios. A ONU encoraja seus Estados-membros ao desenvolvimento e implementao de programas de justia restaurativa na rea criminal. Quanto mediao de conflitos, no Brasil tramita atualmente o Projeto de Lei 94/2002, que define a mediao como atividade tcnica, exercida por terceiro imparcial que, escolhido ou aceito pelas partes interessadas, as escuta, orienta e estimula, sem apresentar solues, com o propsito de lhes permitir a preveno ou soluo de conflitos de modo consensual. O Projeto de Lei em tramitao estabelece a mediao prvia ou incidental, em relao ao momento de sua instaurao, e judicial ou extrajudicial, conforme a qualidade dos mediadores, sendo lcita em toda matria que admita conciliao, reconciliao, transao ou acordo de outra ordem. O objetivo da pesquisa foi investigar a influncia do paradigma punitivo do Direito Penal no tratamento concedido pelo Estado ao adolescente a quem se atribui prtica de ato infracional e examinar possibilidade de aplicao da Justia Restaurativa, atravs da mediao, como alternativa para resoluo de conflitos com a lei, por parte de adolescentes, otimizando a aplicao dos princpios constitucionais relativos proteo integral do adolescente. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliogrfica e documental. A anlise dos dados teve como parmetros a Constituio Federal de 1988, o Estatuto da Criana e do Adolescente, a normativa internacional prevista para o adolescente em conflito com a lei; e os documentos nacionais e Internacionais referentes Justia Restaurativa e Mediao. A dissertao foi distribuda em trs captulos: o primeiro captulo traz uma sntese da evoluo da pena no Ocidente; no segundo captulo se apresenta a evoluo do tratamento concedido pelo ordenamento jurdico brasileiro ao adolescente em conflito com a lei, dando-se nfase no sentido punitivo-retributivo da resposta ao ato infracional; e no terceiro captulo conceitua-se e discute-se a prtica da Justia Restaurativa atravs da Mediao como alternativa ao tratamento dado ao adolescente em conflito com a lei no Brasil.

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EVOLUO DO DIREITO PENAL NO OCIDENTEO primeiro captulo desta dissertao foi dedicado evoluo da justia punitiva, como

reao ao delito no Ocidente, tendo em vista chegar constatao do modelo penal retributivo vigente hoje no Brasil, ao qual se contrape o inovador paradigma da Justia Restaurativa. A pesquisa foi realizada para ser utilizada em uma posterior anlise da influncia do paradigma retributivo da legislao penal na legislao especial referente ao adolescente autor de atos infracionais, com vistas apresentao do modelo Restaurativo para a resoluo dos conflitos penais provocados por aquela populao. Karyna Batista Sposato afirma a existncia de uma perspectiva punitiva adotada pela justia da infncia e da adolescncia nas medidas socioeducativas da internao e semiliberdade dirigidas aos adolescentes em conflito com a lei. A seu ver, a evoluo do tratamento dispensado ao adolescente, a quem se atribui a prtica de ato infracional, favoreceu a construo de um sistema paralelo ao Direito Penal, que chega a ser mais agudo que aquele:O estudo da construo do direito da criana e do adolescente, da organizao do sistema de justia da infncia e juventude brasileira e da matria pertinente responsabilizao de adolescentes autores de ato infracional no Estatuto da Criana e do Adolescente apontam para a existncia de um direito penal juvenil brasileiro. [...] A discricionariedade, caracterstica marcante historicamente do funcionamento da justia da infncia e juventude em nosso pas, especialmente no que tange atribuio da autoria de atos infracionais aos adolescentes e conseqente imposio de medidas socioeducativas, revela um sistema altamente arbitrrio e totalizante, em nome de suposta proteo. 1

Por seu lado, Alexandre Morais da Rosa coloca-se contra a aplicao mecnica das normas de Direito Penal e Processual Penal na seara infracional, a ttulo de ser concedida segurana jurdica aos adolescentes, e defende a autonomia do direito do adolescente na rea infracional, que, a seu ver, no necessita aproximar-se do Direito Penal para garantir os Direitos Fundamentais dos Adolescentes na mencionada rea:Um Processo Infracional pode se construir de maneira autnoma porque significa o manejo do poder estatal, com repercusses nos Direitos Fundamentais do adolescente, mas nem por isso Direito Penal. [...] A autonomia do Direito Infracional, pelo que se mostrou, demanda a construo de um sistema prprio, sem1

SPOSATO, Karyna Batista. O direito penal juvenil. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.193.

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as sedutoras e fceis aproximaes, adequada ainda realidade brasileira. Um sistema que seja garantista e afaste a pretenso de normalizao dos adolescentes no se confunde, de vez, com o Direito Penal Juvenil. 2

Com base em tais afirmaes, foi feito um estudo sobre a evoluo do Direito Penal no Ocidente, para investigar seu cunho retributivo, bem como sua influncia sobre o Direito da Criana e do Adolescente, especificamente no que diz respeito ao tratamento concedido ao adolescente a quem se atribui a prtica de ato infracional.

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Origem e evoluo da penaO estudo dos antecedentes histricos do Direito Penal permite e facilita um melhor

conhecimento do direito vigente. Embora tais antecedentes no constituam uma evoluo sistemtica, com fases definidas, pode-se ter uma noo do que caracterizou as mais importantes reaes ao delito nas principais fases da histria. 3 No h como precisar, cronologicamente, o surgimento da pena. Em seus estudos, Dotti chega seguinte concluso:O direito comparado revela que o ponto de partida da histria da pena coincide com o ponto de partida da histria da humanidade. Em todos os tempos, em todas as raas ainda as mais rudes ou degeneradas, encontramos a pena como o malum passionis quod infligitur propter malum actionis, como uma invaso na esfera do poder e da vontade do indivduo que ofendeu e porque ofendeu as esferas de poder e da vontade de outrem. 4

Para Mirabete, o Direito Penal comea com o surgimento dos agrupamentos humanos, embora s se possa falar de um sistema orgnico de princpios penais a partir do desenvolvimento do poder poltico em tais agrupamentos. O mencionado autor se refere pena, em sua origem, como vingana agresso sofrida, desproporcional ofensa recebida e desprovida da preocupao de justia. Tal vingana poderia ser exercida pela prpria vtima ou por seus grupos, como um desagravo a ofensas que consideravam terem sido cometidas contra suas entidades religiosas ou contra membros de sua comunidade. 5 Para Leal, a pena no teria sua origem no interesse meramente individual, ou seja, no constituiria apenas uma questo pessoal entre dois indivduos, mas surgiria com a ofensa aos

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ROSA, Alexandre Morais da. Introduo crtica ao ato infracional: princpios e garantias constitucionais. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2007, p.13-14. 3 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 10. ed. So Paulo: Saraiva, 2006. v. 1. 4 DOTTI, Ren Ariel. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.123. 5 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de direito penal: parte geral. So Paulo: Atlas, 1999.

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interesses comuns de um grupo e na perturbao da paz coletiva, sendo por isso de natureza coletiva a reao contra o ofensor. 6 De acordo com Sica, a gnese da sano penal encontra-se justamente nas mais remotas formas de sociedade organizada:As primeiras manifestaes da pena remontam ao perodo paleoltico, quando, embora houvesse apenas um rudimentar trao de organizao social, havia a distino entre aes permitidas e/ou aceitas e aes proibidas e a previso da punio, sempre como conseqncia necessria prtica dessas ltimas. No neoltico j se vislumbrava estrutura comunitria similar a uma Justia Criminal, manifesta na reao punitiva, organizada grupalmente, no sentido de reprimir as condutas desviadas. 7

Nucci ressalta que este tipo de reao realizada pelas prprias mos no obtinha sucesso, pois implicava em nova forma de agresso, gerando uma contra-reao que tendia a terminar no extermnio de cls e grupos. 8 Prado resume a evoluo da justia punitiva em trs etapas: na primeira delas, o crime seria atentado contra os deuses e a pena seria um meio encontrado pelos agrupamentos humanos de aplacar a clera divina; na segunda, o crime consistiria em agresso violenta de uma tribo contra outra e a pena seria a vingana de sangue de tribo a tribo; em uma terceira etapa, o crime consistiria na transgresso da ordem jurdica estabelecida pelo poder que liderava o grupo ou comunidade. Tais etapas refletiriam concepes sociais teocrticas, brbaras e polticas. 9 Ocorridas em formas rudimentares de organizao social, as duas primeiras espcies de punio mencionadas acima no guardavam nenhuma proporo com o delito que visavam responder, alm de constituir-se como a lei do mais forte, considerando o prprio interesse acima de tudo. 10 Seria o aparecimento de um representante absoluto do poder pblico, ao exercer a represso criminal em nome da coletividade, que iria aos poucos impor um tipo de reao penal proporcional ao delito, o que ocorreu inicialmente com a concepo baseada no6 7

LEAL, Joo Jos. Direito penal geral. So Paulo: Atlas, 1998. SICA, Leonardo. Direito penal de emergncia e alternativas priso. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.21. 8 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral/parte especial. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. 9 PRADO, Luiz Rgis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. 6. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. v. 1. 10 TELES, Ney Moura. Direito penal: parte geral. 2. ed. So Paulo: Atlas, 2006. v. 1.

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Talio. Aproximadamente 4.000 a.C., quando as primeiras civilizaes alcanaram um grau mnimo de organizao sociopoltica e econmica, o soberano exercia uma represso criminal de carter pblico e proporcional gravidade do delito. O Talio constituiu uma prtica repressiva manifestada no pensamento jurdico dos povos da Mesopotmia (babilnios, caldeus e assrios), na lei das XII Tbuas, dos hebreus, no Cdigo de Manu, na ndia, nos cinco livros no Egito, nos Livros das Cinco Penas, na China, e outros:O termo origina-se do vocbulo latino talio, onis, que significa castigo na mesma medida da culpa. Juridicamente, a lei do talio significa limitar, restringir, retribuir na mesma proporo de sua gravidade as conseqncias do crime praticado, ou seja, a reao contra o crime deve atingir o infrator da mesma forma e na mesma intensidade do mal por ele causado: aquele que matar o filho de outro, ter seu filho morto; aquele que cegar outrem ter seus olhos vedados, etc. Com isto, a represso criminal deixaria de ser exercitada como ocorria no perodo anterior, de forma completamente ilimitada. 11

Embora a centralizao do poder tenha feito nascer uma forma de represso que no dava margem ao contra-ataque dos cls e a Lei do Talio tenha resolvido o problema do desequilbrio entre o crime cometido e a sano destinada a seu autor, suas penas eram brutais e sem qualquer finalidade til, a no ser apaziguar nimos das comunidades acirradas pela prtica de ofensa ou grave agresso contra um de seus membros. 12 Para os gregos, o crime e a pena se inspiraram inicialmente no culto aos deuses, que aquele povo tinha como protetores do universo. Era em nome de tais deuses que as autoridades pblicas exerciam o julgamento dos litgios e a imposio dos castigos. A concepo do crime e da pena s se manifestaria para eles com a influncia dos filsofos e pensadores, como Aristteles, que traria a idia da culpabilidade atravs da noo do livrearbtrio, e Plato, que anteveria a pena como meio de defesa social pela intimidao dos outros a no delinqirem. Mais adiante, os gregos dividiriam os delitos em pblicos e privados, porm ainda persistindo paralelamente as formas anteriores de vingana privada e divina. 13 Os romanos tambm tiveram um perodo de carter religioso concedido ao direito penal, como tambm utilizaram as imposies do Talio. Mais adiante separariam crimes pblicos e delitos privados, sendo estes ltimos entregues iniciativa do ofendido. Apesar de terem se distinguido mais no direito civil, os romanos se destacaram por distinguir, no crime, as figuras

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LEAL, Joo Jos, op.cit., 1998, p.62. NUCCI, Guilherme de Souza, op.cit., 2006. 13 NORONHA, Edgar Magalhes. Direito penal. So Paulo: Saraiva, 1997.

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do propsito, do mpeto, do acaso, do erro, da culpa leve, do simples dolo e do dolus malus, assim como chegaram a vislumbrar um fim corretivo na pena. 14 Os povos germnicos penetraram na Europa ocidental trazendo costumes e tradies marcados por um sistema punitivo compatvel com suas crenas espirituais e eivados de vingana. 15 Somente com a consolidao das regies ocupadas, que a pena de vingana daria lugar composio, com taxas variveis segundo a gravidade das leses, e tambm categoria do ofendido:Antes da invaso romana, o direito dos germanos era consuetudinrio, existindo j os delitos pblicos - praticados contra o interesse coletivo - punido com a perda da paz pblica, o que permitia a qualquer pessoa matar o delinqente - e os crimes privados, inclusive o homicdio, punidos com a vingana e a composio. Aps a invaso, o direito germnico vai adquirir feies publicistas, limitando, a princpio, e depois extinguindo a vingana de sangue. Vale ressaltar a existncia das penas de morte, corporais, como a mutilao, e o exlio, mantidos em grande parte a composio. 16

A composio era um meio de conciliao entre o ofensor e o ofendido ou seus familiares, pela prestao pecuniria como forma de reparar o dano, o que caracterizava, historicamente, um abrandamento das penas violentas que se dirigiam contra o corpo do condenado e expresso de utilidade social s sanes criminais. Entretanto, constitua-se em Direito Penal para proprietrios de terras. Os servos insolventes, que no podiam pagar o preo da paz, recebiam as penas corporais mais severas, pelo simples resultado que causavam, sem que as penas variassem conforme a voluntariedade ou no do ato. 17 Sobre a responsabilidade objetiva, esta tambm considerada caracterstica do Direito Germnico:H uma apreciao meramente objetiva do comportamento humano, onde o que importa o resultado causado, sem questionar se resultou de dolo ou culpa, ou foi produto de caso fortuito, consagrando-se a mxima: o fato julga o homem. Mais tarde, sob influncia do Direito Romano, comea-se a exigir um vinculo psicolgico. Em relao ao aspecto procedimental, adotava-se um Direito ordlico (provas de gua fervendo, de ferro em brasa, etc.). 18

Cabe ainda registrar a existncia do Direito Cannico, originado na Igreja Catlica, que dividia os crimes em delicta eclesiastica (de exclusiva competncia dos tribunais eclesisticos); delicta mere secularia (julgados pelos tribunais leigos) e delicta mixta, os quais14 15

Ibid., 1997. BRUNO, Anbal. Direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 1967. 16 TELES, Ney Moura, op.cit. , 2006. v. 1, p.22. 17 DOTTI, Ren Ariel, op.cit., 2003. 18 BITENCOURT, Cezar Roberto, op.cit., 2006. v. 1, p.42-43.

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atentavam ao mesmo tempo contra a ordem divina e a humana e poderiam ser julgados pelo tribunal que primeiro deles conhecesse. As penas distinguiam-se em espirituales (penitncias, excomunho, etc.) e temporales, conforme a natureza do bem a que atingiam. As penas aplicadas pelo Direito Cannico eram, em princpio, justa retribuio, mas dirigiam-se tambm ao arrependimento e emenda do ru. O Direito Cannico se ops s ordlias e duelo judicirios, substituindo as penas patrimoniais pela pena privativa de liberdade, no intuito de possibilitar momentos de recluso propcios para a reflexo, o arrependimento e a emenda do ru. 19 A queda do Imprio Romano levou os povos europeus convivncia com trs sistemas punitivos: o Direito Romano, o Direito Germnico e o Direito Cannico. Este perodo da histria do Direito Penal foi considerado extremamente rigoroso, em razo da aplicao de penas cruis e infamantes, sem que houvesse possibilidade de defesa do acusado por meio de um processo. Nele, o Direito Penal passa a ser expresso do Estado Absolutista. Introduziu-se o critrio da razo de Estado e o arbtrio judicirio no s na aplicao da pena, mas na definio dos crimes. Tal sistema provocou, no final do sculo XVIII uma reao de cunho humanitrio, promovida por filsofos defensores da democracia liberal. 20 No final do sculo XVIII, o iluminismo, com sua crtica a idias polticas absolutistas, propiciou o movimento que pregou a reforma das leis e da administrao da justia penal vigente, plantando os fundamentos da liberdade poltica, da igualdade dos cidados, assim como a renovao dos costumes judicirios e da prtica dos Tribunais. As idias polticas dominantes comearam a ser revistas por jusnaturalistas que fundaram o direito do Estado na razo e se opuseram ao princpio penal da retribuio. Neste mesmo perodo, Beccaria publicou a obra Dos Delitos e das Penas 21 , partindo da idia do contrato social, para afirmar, como finalidade da pena, evitar que o criminoso, assim como os outros cidados, causasse novos males sociedade. A obra, que se tornou smbolo da reforma do sistema penal ento vigente, defendeu a convenincia de leis claras e precisas, no permitindo ao juiz o poder de interpret-las subjetivamente, combateu a pena de morte, a tortura, o processo inquisitrio, bem como sugeriu a aplicao de penas certas, moderadas e proporcionais ao dano causado sociedade.

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BITENCOURT, Cezar Roberto, op.cit., 2006. v. 1. BRUNO, Anbal, op.cit., 1967. 21 BECCARIA, Cesare Bonesana Marques de. Dos delitos e das penas. So Paulo: Martin Claret, 2007.

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A obra de Beccaria contribuiu para a reforma na aplicao da pena, atravs da formulao de postulados bsicos que ainda predominam no Direito Penal Moderno, nos pases ocidentais como os seguintes: no se podem aplicar penas que atinjam direitos no cedidos, como acontecem nos casos da pena de morte e das sanes cruis; s as leis podem fixar as penas, no se permitindo ao juiz interpret-las ou aplicar sanes arbitrariamente; as leis devem ser conhecidas pelo povo, redigidas com clareza para que possam ser compreendidas e obedecidas por todos os cidados; a priso preventiva s se justifica diante de prova da existncia do crime e da sua autoria; devem ser admitidas em juzo todas as provas, inclusive a palavra dos condenados; no se justificam as penas de confisco, que atingem os herdeiros do condenado, e as infamantes, que recaem sobre toda a famlia do criminoso; no se deve permitir o testemunho secreto, a tortura para interrogatrio e os juzos de Deus, que no levam descoberta da verdade; a pena deve ser utilizada como profilaxia social, no s para intimidar o cidado, mas tambm para recuperar aquele que haja praticado o delito. 22 As idias bsicas do Iluminismo em matria de justia penal, como a da proteo da liberdade individual contra o arbtrio judicirio, a abolio da tortura e da pena de morte, bem como a acentuao do fim estatal da pena, produziram uma ampla mudana legislativa, que comeou ainda no final do sculo XVIII. Com a Revoluo Francesa, surgiram a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, bem como os Cdigos Penais Franceses de 1791 e 1810. Em 1875, o mdico italiano Cesare Lombroso apontou outros rumos para a Justia Penal, atravs do estudo do delinqente e a explicao causal do delito. Lombroso considerou o delito como fenmeno biolgico e usou o mtodo experimental para estud-lo e, como parte de suas concluses, afirmou a existncia do criminoso nato, caracterizado por determinados estigmas somato-psquicos, cujo destino seria delinqir, sempre que determinadas condies ambientais se apresentassem. 23 Discpulo dissidente de Lombroso, Enrico Ferri ressaltou a importncia de um trinmio causal do delito: os fatores antropolgicos, sociais e fsicos. Dividiu os criminosos em cinco

22 23

COSTA JNIOR, Paulo Jos da. Direito penal: curso completo. 8. ed. So Paulo: Saraiva, 2000. LOMBROSO, Cesare. O homem delinqente. Trad. Sebastio Jos Roque. So Paulo: cone, 2007. (Col. Fundamentos do Direito).

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categorias: o nato, o louco, o habitual, o ocasional e o passional. Dividiu, ainda, as paixes em: sociais (amor, piedade, nacionalismo, etc.) e anti-sociais (dio, inveja, avareza, etc.). 24 Mais adiante, Rafael Garfalo fez estudos sobre o delito, o delinqente e a pena, sendo o primeiro a usar a denominao "Criminologia" para as Cincias Penais. Dividiu sua principal obra em trs partes: o delito, o delinqente a represso penal, procurou um conceito uniforme de crime e buscou criar o delito natural, como ofensa feita parte do senso moral, formada pelos sentimentos altrustas de piedade e justia. Para ele, delinqente no seria um ser normal, mas portador de anomalia no sentido moral. Afirmava esse pensador que a pena no teria apenas um fim retributivo, mas tambm uma finalidade de proteo social que se realizaria atravs dos meios de correo, intimidao ou eliminao.25 O perodo criminolgico do Direito Penal teve a influncia do pensamento determinista e da Escola Positiva, que tambm repercutiu no mbito criminal. De acordo com a filosofia determinista, os fenmenos do universo, abrangendo a natureza, a sociedade e a histria, seriam subordinados a leis e causas necessrias, de modo que se pode prev-los, provoc-los ou control-los. O delito, como fato jurdico, estaria tambm sujeito ao mencionado controle, uma vez que por trs do crime haveria sempre razes suficientes que o determinaram. O determinismo seria assim incompatvel com a idia da ao deliberada e responsvel, e negaria o livre arbtrio. O pensamento da Escola Positiva, surgida numa poca de franco domnio do positivismo no campo da filosofia e das teorias evolucionistas, proclamava ser o Direito resultado da vida em sociedade e sujeito s variaes no tempo e no espao, consoante a lei da evoluo.

1.2

A pena privativa de liberdade sabido que na Roma antiga, a priso era desprovida do carter de castigo, no constituindo espao de cumprimento de uma pena, mesmo porque o rol de sanes se restringia quase unicamente s corporais e capital. Este era um meio empregado para reter o acusado enquanto se aguardava o julgamento ou a execuo da sentena. J na Grcia, era costume encarcerar os devedores at que saldassem suas dvidas, a custdia servindo para obstar-lhes a fuga, e garantir a presena nos Tribunais. 26

A Igreja, na Idade Mdia, recolhia os monges infratores a aposentos dos mosteiros, que chamavam de celas ou penitencirios, para que se reconciliassem com Deus mediante o24 25

FERRI, Enrico. Sociologia criminal. So Paulo: Minneli, 2006. GARFALO, Rafael. Criminologia. Estudo sobre o delito e a represso penal. Trad. Jlio Matos. So Paulo: Teixeira & Irmos, 1983. 26 LEAL, Csar Barros. Priso: crepsculo de uma era. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p.31.

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recolhimento e a orao. As prises leigas comearam a aparecer na Europa para recolher mendigos, vagabundos, prostitutas e jovens provenientes da crise na vida feudal. Na Filadlfia idealizou-se um sistema de confinamento solitrio em celas semelhantes quelas utilizadas nos mosteiros da Idade Mdia, que ficou conhecido como Sistema Pensilvnico. O sistema solitrio serviria de alicerce ao Sistema Auburniano, aplicado pela primeira vez na penitenciria de Auburn, em Nova Iorque. Este sistema mantinha o isolamento celular somente no turno da noite. Durante o dia os presos tinham vida em comum, sendo, porm, obrigados a manter absoluto silncio, sob pena de sofrerem castigos corporais. 27 Na Europa, Jeremias Benthan, filsofo e criminalista ingls, idealizou um modelo de priso celular chamado de panptico, no qual os aposentos dos presos eram dispostos formando um crculo ao redor de uma torre, da qual eram continuamente vigiados. O Panptico, ademais, no se limitava ao desenho arquitetnico, associando-se, em seu projeto, a um regime caracterizado pela separao, higiene e alimentao adequadas, alm da aplicao, embora excepcional, de castigos disciplinares.28 O declnio dos sistemas pensilvnico e auburniano abriu caminho para novas propostas, que incluam o trabalho e a observao da conduta do apenado, como meios de decrscimo no rigor e preparao gradativa para uma futura vida em sociedade. Molina (1796-1868), que advogava a funo reeducativa da pena, criou, no presdio de San Augustin, em Valncia (Espanha), o tratamento humanitrio, com trabalho remunerado, sem castigos corporais e com aplicao de regras orientadoras da execuo penal, que se tornaram precursoras dos Cdigos e Regulamentos Penitencirios da atualidade. Maconochie (1787-1860) criou o sistema de marcas na Austrlia para criminosos de grande periculosidade, para os quais o tempo de cumprimento de pena era repartido entre o isolamento, no estilo pensilvnico, seguido do isolamento auburniano, at chegar ao livramento condicional, obtido como prmio pela conduta e pelo trabalho. Tal sistema seria ainda adotado na Irlanda e recepcionado pelo Cdigo Penal Brasileiro de 1940. 29 A partir do sculo XIX, a pena privativa de liberdade tornou-se a principal resposta infrao penal. A meta deste tipo de pena mudou ao longo do tempo, das quais se faz referncia retribuio, intimidao, incapacitao e ressocializao dos apenados: a retribuio representa a imagem do castigo, a intimidao representa a ameaa ao apenado, a27 28

Ibid., 1998. Ibid., 1998, p.33. 29 Ibid., 1998.

21

incapacitao consiste no impedimento ao apenado, de cometer novos crimes, o que atende presso de uma sociedade traumatizada pela violncia e temerosa pela prpria segurana. Tal significado da pena privativa de liberdade traz consigo tambm a idia do isolamento do apenado dentro do presdio, para evitar agresses aos outros habitantes da unidade prisional. Quanto ao significado ressocializador da pena privativa de liberdade, tem sido alvo de crticas e questionamentos, a par da presso social a favor de sua aplicao. 30 Atualmente, predomina o questionamento acerca da possibilidade do aprisionamento como forma adequada para reabilitar o delinqente para um posterior convvio com a sociedade. Dentre estes figuram os seguintes: Como se pode ensinar algum, no cativeiro, a viver em liberdade? Como socializar aqueles que, em sua grande maioria, nem sequer fora antes socializado? Os usos, costumes, hbitos e valores pervertidos da grande massa carcerria no acabariam, pelo convvio, por funcionar como meio ainda mais corruptor para aqueles que acabam de se iniciar na delinqncia? Seria possvel reverter o estigma social com o qual sai o apenado do meio prisional, aps o cumprimento da pena? Zaffaroni assim considera os seguintes prejuzos da pena privativa de liberdade:A priso ou jaula, uma instituio que se comporta como uma verdadeira mquina deteriorante: gera uma patologia cuja caracterstica mais saliente a regresso, o que no difcil de explicar.O prisioneiro levado a condies de vida que nada tm a ver com as que o adulto conhece. Por outra parte, sua autoestima lesionada de todas as formas imaginveis: perda de perda de privacidade e de seu prprio espao, sumetimento a situaes degradantes [...]. (Traduziu-se). 31

Bitencourt considera simplista a idia de que a pena privativa de liberdade tenha surgido como ato humanitrio com a finalidade de reformar o delinqente, e elege outras causas para a transformao da priso-custdia em priso-pena: uma maior valorizao dada liberdade, a partir das idias racionalistas surgidas no sculo XVI; a supresso da publicidade de alguns castigos, que acabava dando lugar mais compaixo pelo apenado do que ao horror ao crime; o crescimento excessivo do nmero de delinqentes na Europa em razo dos transtornos socioeconmicos surgidos na passagem da Idade Mdia para a idade Moderna e a utilizao

Ibid., 1998. La prisin o jaula es una instituicin que se comporta como una verdadera mquina deteriorante: genera una patologa cuya caracterstica ms saliente es la regressin, lo que no es difcil de explicar. El prisionero es llevado a condiciones de vida que nada tienen que ver con las del adulto o no conoce. Por otra parte, se le lesiona la autoestima en todas las formas imaginables: prdida de privacidad y de su propio espacio, sometimiento a requisas degradantes [...]. ZAFFARONI, Eugenio Ral. En busca de las penas perdidas. Buenos Aires: Ediar, 1989, p.59.31

30

22

do confinamento para absorver a mo-de-obra dos desempregados, dissimular a misria e evitar os inconvenientes polticos de uma possvel agitao social.32 A obra Vigiar e Punir 33 , de Paul-Michel Foucault, renomado filsofo francs, foi fruto da investigao do contraste que o direito penal ganhou nos regimes absolutistas europeus e nos regimes democrticos que se consolidaram na Europa, a partir do final do sculo XVIII, especificando as duas formas de exerccio de poder manifestadas no tratamento concedido ao criminoso na priso. Conforme sua observao, a instituio carcerria muda seu estilo penal da poca medieval para o capitalismo moderno: na poca medieval, o poder de punir se manifesta atravs do suplcio do corpo, em aterrorizante espetculo pblico, que narra com riqueza de detalhes. A pena recaa sobre o corpo do condenado, mas seu objetivo seria dirigido a afirmar, diante da massa do povo, a vitria do soberano sobre o criminoso, aps um processo inquisitorial e secreto, que dispensava provas. A pena reproduzia a atrocidade do crime e realizava o controle social pelo medo:O suplcio judicirio deve ser compreendido tambm como um ritual poltico. Faz parte, mesmo num modo menor, das cerimnias pelas quais de manifesta o poder. [...] O crime, alm de sua vtima imediata, ataca o soberano; ataca-o pessoalmente, pois a lei vale como a vontade do soberano; ataca-o fisicamente, pois a fora da lei fora do prncipe. 34

Segundo Foucault, o espetculo medieval seria contrastado pela moderna tecnologia do poder de punir, o sistema carcerrio. As classes populares, ao serem julgadas, revelavam a gesto discriminatria da pena dirigida a elas, uma vez que a burguesia ficava imune punio ou era sancionada com multas. Os corpos antes supliciados eram agora adestrados e tornados dceis e teis para o domnio da energia produtiva prprio das sociedades modernas. E a vigilncia hierrquica seria exercida atravs de dispositivos como o panptico, j descrito neste captulo. Tal dispositivo disciplinar seria um mecanismo aplicado ao novo tipo de sociedade, a ser utilizado no somente em prises, mas em fbricas, asilos e escolas: preciso que o prisioneiro possa ser mantido sob um olhar permanente; preciso que sejam registradas e contabilizadas todas as anotaes que se possa tomar sobre eles. O tema do Panptico ao mesmo tempo vigilncia e observao, segurana e saber, individualizao e totalizao, isolamento e transparncia encontrou na priso o seu local privilegiado de realizao. 35

32 33

BITENCOURT, Cezar Roberto, op.cit., 2006. v. 1. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrpolis: Vozes, 1987. 34 Ibid., 1987, p.45. 35 Ibid., 1987, p.221.

23

Para Foucault, o isolamento carcerrio, a ruptura das relaes horizontais, a troca do crime pelo tempo do indivduo e as tcnicas de correo fazem parte do isomorfismo reformista que, em lugar de reprimir e reduzir a criminalidade, organiza a delinqncia e produz a reincidncia:O sentimento de injustia que um prisioneiro experimenta uma das causas que mais podem tornar indomvel seu carter. Quando se v assim exposto a sofrimentos que a lei no ordenou nem mesmo previu, ele entra num estado habitual de clera contra tudo o que o cerca; s v carrascos em todos os agentes da autoridade; no pensa mais ter sido culpado; acusa a prpria justia. 36

A teoria criminolgica construda por Foucault no aceita o conceito de natureza crimingena, mas mostra o crime como um jogo de foras, produzido pela situao de juiz e ru, que tiveram diferentes padres de vida e conseqentemente de oportunidades. O poder de punir legitimado pelas tarefas judiciais daqueles que medem, avaliam, julgam e punem, produzindo o criminoso nas prises e colnias penais: No se pune, portanto, para apagar um crime, mas para transformar um culpado. [...] o castigo deve levar em si uma certa tcnica corretiva. 37 Segundo Foucault, o poder no pode ser concedido de modo exclusivo a alguns, deixando que outros lhe fiquem totalmente submetidos, mas deve circular, para que no haja quem se aproprie dele. Compreendido como a multiplicidade de correlaes de foras que se manifestam articuladamente, tendo em vista a sustentao das estruturas e instituies polticas e econmicas, o poder seria o nome dado a uma situao estratgica, que est em toda parte e provm de todos os lugares. 38 A indagao de Foucault gira em torno do fundamento do direito de punir, que torna aceitvel ser punido, aps a Revoluo. Para o filsofo, a resposta estaria na Teoria do Contrato, com a fico de um sujeito jurdico que d aos outros o poder de exercer sobre ele o poder que ele mesmo detm sobre eles. O instrumento carcerrio seria o instrumento de base da nova economia do poder, com sua mistura de legalidade e natureza, de prescrio e constituio, e o desejo de medir, avaliar, diagnosticar, reconhecer o normal e o anormal; e a honra reivindicada de curar ou readaptar. Este poder se tornou uma das funes mais importantes da sociedade. Nela h juzes da normalidade em toda parte:

36 37

Ibid., 1987, p.235. Ibid., 1987, p.112. 38 Ibid., 1987.

24

Estamos na sociedade do professor-juiz, do mdico-juiz, do educador-juiz, do assistente social-juiz; todos fazem reinar a universalidade do normativo; e cada um no ponto em que se encontra, a submete o corpo, os gestos, os comportamentos, as condutas, as aptides, os desempenhos. A rede carcerria, em suas formas concentradas ou disseminadas, com seus sistemas de insero, distribuio, vigilncia, observao, foi o grande apoio, na sociedade moderna, do poder normalizador. 39

Na instituio carcerria, o homem, como objeto de anlise, de observao, de domnio, explicaria a solidez da priso. Assim, o que se torna desaparecer no a priso-sano penal, mas a priso como recurso de recuperao na rede geral das disciplinas e das vigilncias, como funciona num regime panptico. Entretanto, isso no implica que no possa ser modificada ou dispensvel definitivamente para a sociedade moderna. Foucault enumerou como os processos seriam capazes de restringir seu uso e transformar seu procedimento: um deles seria o que diminui a utilidade de uma delinqncia organizada em escala nacional ou internacional ligada aos aparelhos polticos e econmicos ou prostituio desde o momento em que previses econmicas sobre o prazer sexual foram feitas pela venda de anticoncepcionais, ou atravs de publicaes, filmes e espetculos; outro seria o crescimento das redes disciplinares, com os poderes cada vez mais amplos que lhe so dados, lhes transferindo funes judicirias. medida que a medicina, a psicologia, a educao, a assistncia social tomam uma parte maior nos poderes de controle e de sano, o aparelho penal poder se medicalizar, se psicologizar, se pedagogizar e tornar-se menos til ligao que a priso constitua quando ela articulava o poder penal e o poder disciplinar. No meio de todos esses dispositivos de normalizao, seu papel e especificidade perdem parte de sua razo de ser. Deste modo, viu como desafio poltico global em torno da priso, no o seu papel corretivo, mas saber se os juzes, os psiquiatras ou os socilogos exerceriam nela mais poder que os administradores e guardas. 40

1.3

As escolas penaisPara uma melhor compreenso da repercusso do pensamento filosfico sobre a histria

da reao ao delito, cumpre que, neste captulo, seja apresentada uma breve descrio das Escolas Penais surgidas no ocidente a partir do chamado perodo humanitrio do Direito Penal, quando os doutrinadores do Direito Penal identificam o surgimento das chamadas Escolas Penais, sendo a primeira delas intitulada Escola Clssica, a qual foi seguida de

39 40

Ibid., 1987, p.251. Ibid., 1987.

25

outras escolas, como a Positiva, a Terza Italiana, a Escola Alem, a Tcnico-Jurdica, a Correcionalista, a de Defesa Social e outros modelos apresentados na

contemporaneidade.

1.3.1 Escola clssicaDenominou-se Escola Clssica o conjunto de escritores, pensadores, filsofos e doutrinadores que adotaram as teses ideolgicas bsicas do iluminismo. As bases dessa Escola foram as seguintes: o Direito teria uma ordem transcendente e imutvel, porque dada por Deus no momento da criao, devendo o homem livrar-se da tirania de suas prprias paixes para alcanar a liberdade; o delinqente seria aquele que, possuindo o livre arbtrio para optar entre o bem e o mal, optou pelo ltimo; a pena seria vista como meio de tutela jurdica e retribuio da culpa moral comprovada, tendo como finalidade primeira o restabelecimento da ordem na sociedade, alterada pelo delito. Assim, sua aplicao deveria ser pblica, proporcional ao crime, clere e justa; os objetos de estudo do Direito Penal so o delito, a pena e o processo. 41 Na Escola Clssica, dois grandes perodos se distinguiram: o filosfico ou terico e o jurdico ou prtico:O primeiro perodo se caracterizou por sua linha filosfica, de cunho liberal e humanitrio. Tem origem na filosofia grega antiga, que sustentava ser o Direito afirmao da justia, no contratualismo e no jusnaturalismo. O sistema contratual e o direito natural se insurgiam contra toda limitao arbitrria da liberdade, como uma conquista capital em relao ao Estado absoluto at ento dominante. Inspirados pelo Contrato Social, fruto de um pacto livre estabelecido pelos cidados, que abdicam de uma parcela da sua liberdade e a depositam na mo do soberano, cederiam aqueles ao Estado o direito de punir os atos atentatrios ao interesse geral, mas somente na medida em que as restries liberdade fossem necessrias manuteno do pacto. Proclamava como princpios limitadores da funo de punir do Estado: s a lei poderia fixar legitimamente a pena para cada delito, sem considerar nenhum caso especial; as penas excessivas e cruis deveriam ser abolidas e ao juiz corresponderia apenas ajustar o caso letra da lei, sem interromper o esprito da lei que poderia conduzir ao arbtrio e ao personalismo. 42

No segundo perodo, chamado de jurdico ou prtico, defendeu-se a concepo do delito como ente jurdico, constitudo por duas foras: a fsica (movimento corpreo e dano causado pelo crime) e a moral (vontade livre e consciente do delinqente). O crime foi definido como infrao lei do Estado, promulgada para proteger a segurana dos cidados, resultante de um

41 42

PRADO, Luiz Regis, op.cit., 2006. v. 1. BECCARIA, Cesare Bonesana Marqus de, op.cit., 2007.

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ato externo do homem, positivo ou negativo, moralmente imputvel e politicamente danoso. A essncia do delito residia na violao de um direito tutelado pelo Estado, sendo o criminoso submetido ao juzo penal, s podendo ser condenado quando se reconhecesse a sua culpa e no podendo sofrer um mal maior que o exigido pela necessidade da tutela jurdica, calculada sobre a exata verificao do fato criminoso. 43 Para a Escola Clssica, o mtodo que deve ser utilizado no Direito Penal o dedutivo ou lgico-abstrato. O crime a violao de um direito e, portanto, a defesa contra ele deveria encontrar-se no prprio direito, e a pena no poderia ser arbitrria, mas haveria de regular-se pelo dano sofrido pelo direito. Outro postulado da escola seria o pressuposto da responsabilidade penal, fundado no livre arbtrio. O homem est submetido s leis criminais em virtude de sua natureza moral, como conseqncia, no poderia ser politicamente responsvel por um ato do qual no fosse antes responsvel moralmente. A imputabilidade moral seria o precedente indispensvel da imputabilidade poltica. Segundo Nucci, os clssicos baseavam a responsabilidade penal do criminoso no livrearbtrio, merecedor de castigo:Passou-se a considerar que a responsabilidade penal fundava-se na responsabilidade moral, justamente porque deu nfase ao livre-arbtrio. O crime passou a ser tratado como um ente jurdico e no como um simples fato do homem. O escopo da pena era retribuir o mal do crime com o mal da sano, embora pudesse haver e at fosse desejvel que ocorresse a emenda do infrator. Essa situao, no entanto, no concernia ao Direito Penal. 44

1.3.2

Escola positivaA Escola Positiva surgiu durante o predomnio do pensamento positivista no campo da

filosofia, coincidindo com o nascimento dos estudos biolgicos e sociolgicos, e aps a necessidade de defender o corpo social contra a ao do delinqente, priorizando os interesses sociais sobre os individuais. Perdem assim a importncia o fundamento de punir e a liberdade de deciso no cometimento do crime. O delinqente e o delito foram admitidos como patologias sociais, dispensando a necessidade de fundar a responsabilidade penal em conceitos morais. A pena, ento, passa a ter um carter utilitarista, na medida em que seus

CARRARA, Francesco. Programa de direito criminal: parte geral. Trad. Jos Luiz V. de A. Franceschini e J. R. Prestes Barra. So Paulo: Saraiva, 1956. v. 1. 44 NUCCI, Guilherme de Souza, op.cit., 2006, p.62.

43

27

fundamentos no so mais a natureza e a gravidade do crime, mas a personalidade do ru, sua capacidade de adaptao e sua periculosidade. 45 Opondo-se ao conceito de Direito preexistente ao homem, que era prprio da Escola Clssica, a escola Positiva reportou a origem do Direito vida em sociedade, estando, pois, sujeito s variaes no tempo e no espao, de acordo com a lei da evoluo. As caractersticas seguintes referem-se Escola Positiva: o crime e o criminoso deveriam ser expostos observao e anlise experimental atravs do mtodo indutivo. O delito no seria visto como um ente jurdico, mas como um fato humano, resultante de fatores endgenos e exgenos. A pena teria por escopo a defesa social, no havendo correspondncia entre ela e o crime. O crime, para a Escola Positiva, seria um fenmeno natural e social, oriundo de causas biolgicas, fsicas e sociais e sujeito s influncias do meio e de mltiplos fatores, exigindo o estudo pelo mtodo experimental. A responsabilidade penal seria social como decorrncia do determinismo e da periculosidade, por viver o criminoso em sociedade, e a pena teria por fim a defesa social e no a tutela jurdica: a pena seria uma medida de defesa social, visando recuperao do criminoso ou a sua neutralizao. A Escola Positiva apresentou trs fases distintas, cujos principais expoentes j foram citados ao se dissertar sobre o perodo humanitrio do Direito Penal: na primeira fase, chamada de antropolgica, destaca-se Cesare Lombroso, fundador da Escola Positivista Biolgica, com a teoria do criminoso nato; na segunda fase, destaca-se Rafael Garfalo, jurista que deu uma sistematizao jurdica Escola Positiva, estabelecendo a periculosidade como fundamento da responsabilidade do delinqente, a preveno como fim da pena e a permisso ao cientista criminlogo para identificar a conduta que lhe interessasse mais. Sugeriu ainda a pena de morte aos que fossem considerados criminosos natos, uma vez que no nutria preocupao com a correo, recuperao ou ressocializao do delinqente; a terceira fase da Escola Positiva consolidou o nascimento da Sociologia Criminal. Seu principal expoente foi Enrico Ferri, que adotou a concepo da defesa social atravs da intimidao geral, mas considerou incorrigveis apenas os criminosos habituais, entendendo

45

BITENCOURT, Cezar Roberto, op.cit., 2006. v. 1.

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que a maioria dos delinqentes era readaptvel, o que marcou o incio da preocupao com a ressocializao. 46 Para Leal, a Escola Positiva cometeu um equvoco ao acreditar na possibilidade de se descobrir uma causa nica (biolgica) para o fenmeno criminal, mas teve o mrito de criar espao para o aparecimento de uma nova disciplina no campo das cincias criminais: a Criminologia, tendo como objetivo o estudo dos fatores da delinqncia, de sua preveno e conseqncias para o meio social. 47 Nucci ressalta a influncia da Escola Positiva na individualizao da pena, princpio at hoje utilizado pelo Direito Penal, ao levar em conta personalidade e conduta do delinqente na aplicao da sano. Entretanto assevera que ambas as Escolas (Clssica e Positiva) merecem crticas pela sua radicalidade:Enquanto a clssica olvidava a necessidade de reeducao do condenado, a positiva fechava os olhos para a responsabilidade resultante do fato, fundando a punio no indeterminado conceito de periculosidade, conferindo poder ilimitado ao estado, ao mesmo tempo em que no resolve o problema do delinqente ocasional, portanto, no perigoso. 48

1.3.3

Terceira Escola CrticaA Terceira Escola Crtica surgiu na Itlia. Situando-se entre a Escola Clssica e a Escola

Positiva aceita os dados da antropologia e da sociologia criminal, ocupando-se do delinqente. Embora faa distino entre o imputvel e o inimputvel, distingue-os pelo determinismo psicolgico e no pelo livre-arbtrio. O crime tido como fenmeno social e a pena a defesa social, mas de carter aflitivo. 49 Os pontos bsicos dessa corrente so: o respeito personalidade do direito penal, que no pode ser absorvida pela sociologia criminal; inadmissibilidade do tipo criminal antropolgico, fundando-se na causalidade e no-fatalidade do delito; reforma social com imperativo do Estado, na luta contra a criminalidade. 50 Prado assevera que as mais importantes caractersticas dessa corrente so: a responsabilidade penal com base na imputabilidade moral, sem o livre-arbtrio, que 46 47

BITENCOURT, Cezar Roberto, op. cit., 2006. v. 1. LEAL, Joo Jos. Direito penal geral. So Paulo: Atlas, 1998. 48 NUCCI, Guilherme de Souza, op.cit., 2006, p. 63. 49 BITENCOURT, Cezar Roberto, op. cit., 2006. v. 1. 50 LYRA, Roberto. Direito penal normativo. Rio de Janeiro: Jos Konfino, 1975.

29

substitudo pelo determinismo psicolgico; o delito visto como fenmeno real e social; a funo defensiva ou preservadora da sociedade, que concedida pena. 51

1.3.4

Escola Moderna AlemNo ltimo quartel do sculo XIX, surge, na Alemanha, um movimento reformista liderado pelo austraco VON LISZT, autor do programa de Margburgo e das Tarefas Poltico-criminais, combatendo o pensamento de LOMBROSO, sobre a existncia do criminoso nato, e mostrando que as razes do crime situavam-se nas relaes sociais. Defendia VON LISZT a necessidade de conhecer as causas do crime, especialmente as de natureza antropolgica e sociolgica, para a construo de uma pena que conseguisse combater o crime, com uma funo eminentemente preventiva especial. 52

Segundo esta corrente, a explicao causal do delito e da pena haveria de ser entendida como criminolgica, penolgica e de pesquisa histrica sobre o desenvolvimento da delinqncia e dos sistemas penais, sendo necessria a elaborao de uma poltica criminal, como sistemas de princpios, em bases experimentais, para a crtica e reforma da legislao penal. Entretanto, a poltica criminal encontraria seu limite na lei penal, onde o princpio da legalidade representa um baluarte de defesa social. Da Escola Moderna Alem resultou grande influncia no terreno das realizaes prticas, como a elaborao de leis.

1.3.5

Escola Tcnico-JurdicaTrata-se de uma corrente de renovao metodolgica criada na Itlia por Arturo Rocco

que, sem negar a importncia das pesquisas causal-explicativas do crime, sustenta a autonomia da Cincia Penal, com objeto, mtodo e fins prprios. Para a Escola TcnicoJurdica, o delito seria pura relao jurdica, de contedo individual e social; a pena significaria uma reao e conseqncia do crime com funo preventiva aplicvel aos imputveis e medida de segurana aplicada aos inimputveis. 53

1.3.6

Escola CorrecionalistaSurgiu na Alemanha, em 1839, mas encontrou seus principais seguidores na Espanha.

De acordo com esta corrente, o fim nico e exclusivo da pena seria a correo ou emenda do delinqente, considerado um ser anormal, incapaz para uma vida jurdica livre, por possuir uma vontade defeituosa. Neste caso, a sano penal era vista como um bem, por afastar o51 52

PRADO, Luiz Regis, op. cit., 2006. v. 1. TELES, Ney Moura, op. cit., 2006. v. 1, p.25. 53 BITENCOURT, Cezar Roberto, op. cit., 2006. v. 1.

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delinqente dos estmulos delitivos, corrigindo sua vontade defectvel. Dentro desta tica, o juiz seria visto como mdico social e a administrao da justia estaria visando higiene e profilaxia social. A responsabilidade penal seria coletiva, solidria e difusa, sendo a funo da pena uma verdadeira tutela social. O tipo de pena seria a privao da liberdade por tempo indeterminado e o arbtrio judicial deveria ser ampliado em relao individualizao da pena. 54

1.3.7

Defesa SocialConstituiu-se como movimento poltico-criminal que pregava uma nova postura em

relao ao delinqente, com base nos princpios da filosofia humanista e da valorizao das cincias humanas. Embora a Teoria da Defesa Social tenha surgido somente com a revoluo positivista, encontram-se antecedentes na filosofia grega e no Direito Cannico Medieval. Segundo esta Teoria, o Direito Penal deveria ser substitudo por um direito de defesa social capaz de adaptar o indivduo ordem social. A reao social teria como objetivo a proteo dos seres humanos e a garantia dos direitos do cidado, e as cincias humanas seriam chamadas a contribuir interdisciplinarmente no estudo e combate do problema criminal. 55 Esta Escola Penal, surgida aps a segunda Grande Guerra, afasta-se do positivismo e se aproxima novamente do livre arbtrio como fundamento da imputabilidade, e descreve a priso como um mal necessrio, mas prega a descriminalizao de certas condutas, para evitar o encarceramento indiscriminado. 56

1.4

As teorias da penaArgindo estreita relao entre modelo socioeconmico, forma de Estado e sistema

sancionador, Bitencourt descreve as notrias rupturas ocorridas no decurso histrico do Direito Penal entre concepes retributivas e preventivas da pena, elegendo aquelas as quais considera mais importante explicar o sentido, a funo e a finalidade. 57

1.4.154 55

Teorias absolutas ou retributivas da pena

BITENCOURT, Cezar Roberto, op. cit., 2006. v. 1. BITENCOURT, Cezar Roberto, op. cit., 2006. v. 1. 56 NUCCI, Guilherme de Souza, op. cit., 2006. 57 BITENCOURT, Cezar Roberto, op. cit., 2006. v. 1.

31

O Estado absolutista, caracterizado por sua identidade com o soberano, alm da metafsica afirmao de que o seu poder era-lhe concedido por Deus, concentrava na pessoa do rei a realizao da justia, sendo qualquer delito de seus sditos considerado uma ofensa a sua pessoa e a pena considerada um castigo pelo mal cometido. Com o surgimento do mercantilismo, o Estado Absoluto entra em decomposio, dando lugar ao Estado burgus, expresso soberana do povo, tendo como fundamento o Contrato Social. Conseqentemente, a pena no era mais concebida como uma retribuio ofensa cometida contra Deus e o soberano, mas como uma retribuio perturbao da ordem jurdica adotada pelos homens e consagrada pelas leis. Kant e Hegel, dois pensadores do idealismo alemo, se destacaram como representantes das Teorias Absolutas ou Retributivas da Pena. A idia kantiana de Direito Penal justifica-se em sua viso tica a respeito do homem. Para o filsofo, no seria eticamente permitido castigar o delinqente por razes de utilidade social, porque isto significaria considerar o homem como um meio, e no como um fim em si mesmo: Kant considera que o ru deve ser castigado pela nica razo de haver delinqido, sem nenhuma considerao sobre a utilidade da pena, para ele ou para os demais integrantes da sociedade. 58 Quanto espcie e medida da pena, Kant opta pelo jus talionis, ressalvando a condio de ser apreciada por um Tribunal e no pelo julgamento particular. A idia hegeliana de Direito Penal uma aplicao de seu mtodo dialtico: a tese corresponde vontade geral simbolizada na Ordem Jurdica; a anttese corresponde ao delito como negao do Ordenamento Jurdico, que representa a vontade geral; e a sntese corresponde pena, como negao da negao, restabelecimento da Ordem Jurdica quebrada, ou seja, da vigncia da vontade geral. Para Hegel, a pena demonstra apenas equivalncia valorativa com a leso da Ordem Jurdica, no sendo possvel aplicar, de modo literal, a lei do Talio. 59

BITENCOURT, Cezar Roberto, op. cit., 2006. v. 1, p.109. HEGEL, Friedrich. Princpios da filosofia do direito. Trad. Orlando Vitorino. So Paulo: Martins Fontes, 1997.59

58

32

1.4.2

Teorias relativas ou preventivas da penaConforme este grupo de teorias, a pena imposta para que no se volte a delinqir, ou

seja, para inibir a prtica de novos fatos delitivos, sendo as mais conhecidas a Teoria da Preveno Geral e a Teoria da Preveno Especial. De acordo com a Teoria da Preveno Geral, pode-se dar uma soluo ao problema da criminalidade com a ameaa de pena e sua aplicao, que prova a disposio de cumprir a ameaa realizada. Deste modo, o fim da pena no seria a punio de seu autor, mas a intimidao de toda a sociedade. Trata-se assim de uma coao psicolgica, que tem como clebre representante Von Feuerbach. Uma das crticas de Roxin a esta Teoria que a mesma no teria efeito sobre delinqentes profissionais, nem sobre delinqentes impulsivos ocasionais; outra indaga se seria justo o uso de um indivduo, que seria objeto da coao estatal para atingir outros. 60 A Teoria da Preveno Especial nasceu no perodo da ilustrao, esteve em baixa durante o apogeu da Teoria Retributiva, mas apareceu novamente no final do sculo XIX, com Von Lizt. Ela prope a ressocializao, com a finalidade de neutralizar o delinqente, a fim de que no venha a reincidir. Para Roxin, tal teoria no poderia delimitar os pressupostos e as conseqncias do Direito Penal, porque no teria o condo de explicar a punibilidade dos delitos sem perigo de reincidncia, alm de propor uma adaptao social forosa e sem legitimao. A pena aplicada no teria limites, uma vez que deveria perdurar at que se alcanasse a correo do apenado, que ficaria ilimitadamente merc do Estado. 61 Alm da existncia de teorias unificadoras das anteriores, subdivididas em Teoria Unificadora Aditiva e Teoria Unificadora Dialtica, ainda se registra a Teoria da Preveno Geral Positiva, que se subdivide em Fundamentadora e Limitadora. Segundo Bittencourt, a primeira impe ao indivduo, de forma coativa, padres ticos e elimina os limites do jus puniendi, tanto formal como materialmente. J de acordo com a segunda, a pena deve manterse dentro dos limites do Direito Penal do fato e da proporcionalidade, s podendo ser imposta atravs de um procedimento cercado de garantias jurdico-constitucionais. 62

60

ROXIN, Clauss. Problemas basicos del derecho penal. Trad. Diego-Manuel Luzon Pena. Madrid: Rus, 1976. 61 Ibid., 1976. 62 BITENCOURT, Cezar Roberto, op. cit., 2006. v. 1.

33

O Modelo Penal Garantista de Luigi Ferrajoli ser descrito em item especial dada a sua importncia para a anlise do Direito do Adolescente em conflito com a lei penal.

1.4.3

O Modelo Penal Garantista de Luigi FerrajoliPrefaciando a obra Direito e Razo: Teoria do Garantismo Penal, de Luigi Ferrajoli,

na qual foi baseado todo este subitem 63 , o grande filsofo Norberto Bobbio assim define a posio jurdica do terico do direito:FERRAJOLI pertence famlia dos juspositivistas na tradio de KELSEN, de HART e do juspositivismo italiano deste ltimo quarto de sculo. Mas um positivista particularmente atento a distinguir a validade forma o vigor das normas da sua validade substancial e a sublinhar que em um ordenamento que tenha recebido os direitos fundamentais de liberdade, a validade no pode ser somente formal, e, portanto existe nele um problema de justia interna das leis, e no somente externa: um juspositivista bem consciente de que, depois que a maior parte das constituies modernas constitucionalizou os direitos naturais, o tradicional conflito entre direito positivo e direito natural e entre juspositivismo e jusnaturalismo perdeu grande parte do seu significado, com a conseqncia que a diferena entre o que o direito e o que o direito deveria ser, expressa tradicionalmente sobre a forma de contraste entre lei positiva e lei natural, veio transformado na diferena entre o que o direito e o que o direito deveria ser no interior de um mesmo ordenamento jurdico, ou, com as palavras usadas repetidamente pelo autor, entre efetividade e normatividade. Este contraste est, entre outros, na base daquela tarefa especfica do jurista, vez ou outra colocada em relevo, que a crtica do direito vigente: uma tarefa que contrasta com um dos cernes da cincia jurdica, segundo o positivismo de estrita observncia, da validao da cincia do direito. 64

Para explicar sua Teoria do Garantismo Penal, Ferrajoli define a origem do garantismo no campo penal como uma resposta diversidade encontrada na prtica jurdica, administrativa e policialesca entre normatividade do modelo em nvel constitucional e sua no efetividade nos nveis inferiores, como tambm uma resposta s culturas jurdicas e polticas que o tem ocultado, quase sempre em nome da defesa do estado de direito e do ordenamento democrtico. Ferrajoli atribui trs significados ao termo, diversos, mas conexos entre si: conforme o primeiro significado, o garantismo seria um modelo normativo de direito, no que diz respeito ao direito penal, de estrita legalidade, prprio do Estado de Direito, que sob o plano poltico se caracteriza como uma tcnica de tutela prpria para minimizar a violncia e maximizar a liberdade, e sob o plano jurdico como um sistema de vnculos impostos funo punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidados; conforme o segundo significado, seria uma teoria jurdica de validade e de efetividade das normas como categorias distintas entre si, tambm pela existncia ou vigor das normas, mantendo separados o ser e o dever ser;63 64

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razo: teoria do garantismo penal. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. BOBBIO, Norberto. Prefcio 1 Edio Italiana. In: FERRAJOLI, Luigi, op.cit., 2006, p.10-11.

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segundo o terceiro significado, designaria uma filosofia poltica que exige do Direito e do Estado justificao externa dos bens e interesses que tutela ou garante. 65 O modelo garantista busca seu fundamento no Ordenamento Jurdico onde as normas formam uma hierarquia, de modo que as normas inferiores dependem das normas superiores, at que se chegue a uma norma suprema sobre a qual repousa a unidade do ordenamento. nesta norma suprema que as outras encontram sua fonte de validade, no podendo contrarila, sob pena de serem expurgadas do ordenamento. Quando, em um Ordenamento Jurdico, a Constituio est no topo de todas as normas, ela se torna garantia dos direitos que estabelece contra todas as normas inferiores que venham a ameaar tais direitos, considerados fundamentais. E o Juiz, alm de aplicador das leis, torna-se tambm um guardio dos direitos fundamentais estabelecidos pela Constituio. Estes Direitos Fundamentais, na Teoria do Garantismo Penal, adquirem a funo de estabelecer o objeto e os limites do Direito Penal nas sociedades democrticas. 66 Ferrajoli considera os sistemas de controle penal prprios do Estado de Direito e do Estado Absoluto ou Totalitrio como dois extremos, os quais denomina, respectivamente, de Direito Penal Mnimo e Direito Penal Mximo. O primeiro seria expresso de um ordenamento no qual o Poder Pblico e especificamente o poder penal estariam rigidamente limitados e vinculados lei no plano dos contedos penalmente relevantes e submetidos a formas processualmente vinculantes; no segundo, os poderes pblicos, no disciplinados pela lei, so carentes de limites e condies. 67 O modelo de Direito Penal Mximo seria caracterizado por sua extrema severidade nas condenaes e penas, levando ao arbtrio punitivo, enquanto o modelo de direito penal mnimo exige intervenes potestativas e valorativas de excluso ou de atenuao da responsabilidade cada vez que subsista incerteza quanto aos pressupostos cognitivos da pena:A certeza perseguida pelo direito penal mximo est em que nenhum culpado fique impune, custa da incerteza de que tambm algum inocente possa ser punido. A certeza perseguida pelo direito penal mnimo est, ao contrrio, em que nenhum inocente seja punido custa da incerteza de que tambm algum culpado possa ficar impune. Os dois tipos de certeza e os custos ligados s incertezas correlativas refletem interesses e opinies polticas contrapostas: por um lado, a mxima tutela da certeza pblica acerca das ofensas ocasionadas pelo delito e, por outro lado, a

65 66

FERRAJOLI, Luigi, op. cit., 2006. GRECO, Rogrio. Curso de direito penal - parte geral. 6. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006. v. 1. 67 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., 2006.

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mxima tutela das liberdades individuais acerca das ofensas ocasionadas pelas penas arbitrrias. 68

A Teoria do Garantismo Penal traz um novo modelo de direito penal mnimo enquanto tcnica de tutela dos direitos fundamentais, que identifica o objetivo geral do direito penal com o impedimento do exerccio das prprias razes ou com a minimizao da violncia na sociedade:Tanto o delito como a vingana constituem exerccio das prprias razes. Em ambos os casos ocorre um violento conflito solucionado mediante o uso da fora: da fora do ru, no primeiro caso; da fora do ofendido, no segundo. E, em ambos os casos, a fora arbitrria e incontrolada no apenas, como bvio, na ofensa, mas tambm na vingana, que , por natureza, incerta, desproporcional, desregulada, e, s vezes, dirigida contra um inocente. A lei penal voltada a minimizar esta dupla violncia, prevenindo, atravs da sua parte proibitiva, o exerccio das prprias razes que a vingana e outras possveis reaes informais expressam. 69

Para Ferrajoli, a funo especfica das garantias no Direito Penal no tanto permitir ou legitimar, seno muito mais condicionar ou vincular, e, portanto, deslegitimar o exerccio absoluto da potestade punitiva. 70 O terico enumera princpios axiolgicos fundamentais que definem o modelo garantista de direito ou de responsabilidade penal, que a seu ver constituem garantias do cidado contra o arbtrio ou o erro penal: o princpio da retributividade ou da conseqencialidade da pena em relao ao delito; o princpio da legalidade; o princpio da necessidade ou da economia do direito penal; o princpio da lesividade ou da ofensibilidade do evento; o princpio da materialidade ou da exterioridade da ao; o princpio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; o princpio da jurisdicionariedade, no sentido lato ou no sentido estrito; o princpio acusatrio; o princpio do nus da prova ou da verificao; o princpio do contraditrio ou da defesa, ou da falseabilidade. E esclarece que tais princpios foram elaborados, sobretudo, pelo pensamento jusnaturalista dos sculos XVII e XVIII e posteriormente integrados s constituies e codificaes dos ordenamentos jurdicos, convertendo-se em princpios jurdicos do moderno Estado de Direito. 71 Ao debater sobre o controle social alternativo, Ferrajoli se refere a quatro modelos antigarantistas, que seriam: o social-selvagem, baseado na lei do mais forte e na vingana, como, por exemplo, o estatal-selvagem, prprio dos antigos ordenamentos absolutistas, mas tambm

68 69

FERRAJOLI, Luigi, op. cit., 2006, p.103. FERRAJOLI, Luigi, op. cit., 2006, p.313. 70 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., 2006, p.90-91. 71 FERRAJOLI, Luigi, op. cit., 2006.

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dos sistemas autoritrios modernos; o social-disciplinar, que se manifesta nas presses e linchamento moral de comunidades ideologizadas; e o estatal-disciplinar, que seria caracterizado tambm pelo desenvolvimento de funes preventivas de polcia e segurana pblica. 72

1.5

O sistema penal na viso de Eugenio Ral Zaffaroni 73Para Zaffaroni, a punio apenas uma das solues possveis para uma situao

conflitiva, existindo outras, como, por exemplo, a soluo teraputica, a reparatria e a conciliatria. A soluo punitiva admitiria duas variveis, sendo uma delas a eliminao ou isolamento do causador do conflito, e a segunda seria atingi-lo diretamente, pela retribuio da ofensa. Entretanto, quando a punio institucionalizada, o conflito no poder ser solucionado por nenhuma outra via. O autor ressalta ainda que, em aes conflitivas de gravidade e significado social muito diverso, apenas uma minoria, quase sempre formada pelos mais pobres, sofre essa soluo. O autor em estudo chama de Sistema Penal o controle social punitivo institucionalizado, que engloba a atividade do legislador, do pblico, da polcia, dos juzes, dos promotores e dos responsveis pela execuo penal. E esclarece o poder seletivo da sociedade, que com a delao tem a faculdade de pr em funcionamento o sistema penal. A lei penal fixa um mbito dentro do qual o sistema penal pode selecionar e criminalizar pessoas, o que, em sua opinio, acaba sendo extrapolado, sobretudo no contexto latino-americano, em questes de direitos humanos, pelo que se impe a aplicao de solues punitivas da maneira mais limitada possvel. Acerca do objeto que se deve atribuir legislao penal, expe duas respostas, ao seu ver contrrias e excludentes, que se costuma dar: a primeira seria de que o Direito Penal, entendido como Legislao Penal, teria por meta a segurana jurdica, ou seja, a preveno da delinqncia dirigida a toda a sociedade; e a segunda seria a defesa social, ou seja, a proteo da sociedade contra os delinqentes para que no voltem a delinqir. Para o terico, o sentimento de segurana jurdica da comunidade proporcionado apenas pela Legislao Penal seria um mito, dada a pluralidade de grupos sociais, com seus interesses, poderes e objetivosSICA, Leonardo. Justia restaurativa e mediao penal: o novo modelo de justia criminal e de gesto do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. 73 ZAFFARONI, Eugnio Ral; PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de direito penal brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.72

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diferentes, pelo que a segurana jurdica s ser criada com a participao direta da comunidade, como tambm no momento de interpretar a lei. Quanto defesa social, indaga se esta seria funo do Direito Penal, levando-se em conta dois conceitos de sociedade: um organicista e outro antropomrfico. Uma vez que ambos a supem como um ente superior ao homem, defesa social corresponderia um Direito Penal transpersonalista e autoritrio, diante do qual cada homem seria considerado pouco mais que nada, o que seria um acinte ao sistema positivo, Constituio e aos Direitos Humanos. Disto conclui-se que a defesa social no pode ser entendida de modo distinto da segurana jurdica. Zaffaroni define a concepo latino-americana da pena como uma retribuio, constituindo uma reao contra o positivismo, provocada por aqueles que se tm apercebido claramente do perigo que tal posicionamento representou e representa, para o pensamento democrtico. Por outro lado, encontra falha no retribucionismo, desenvolvido ao amparo da dogmtica neokantiana alem, pela perda do dado da realidade numa regio que pode ser considerada como um conjunto de pases perifricos, dentre aqueles de economia descentralizada:A retribuio no pode ser justa em sociedades altamente injustas quanto ao seu sistema de produo (na Amrica Latina mais de 40% da populao est margem do sistema de produo industrial) e quanto ao seu sistema de distribuio (a maior parte da renda concentra-se em uma minoria). Definitivamente, isto faz com que o retribucionismo, que tem a vantagem de denunciar os excessos biologistas e racistas do positivismo, converta-se em uma ideologia que, freqentemente, para no dizer quase sempre, sirva aos setores mais ou menos tecnocratas do segmento judicial e a seus vizinhos do sistema penal, fechando-se a qualquer dado da realidade que provenha da sociologia ou da economia, que no tem cabimento dentro da sua interpretao jurdica. 74

Para o mencionado terico do Direito, o perigosismo, filho do positivismo, continua sendo a ideologia das elites latino-americanas, manifestando-se em sentenas, artigos, discursos polticos e jurdicos, por exemplo. Segundo o autor, a realidade autoritria da segurana nacional adotou uma nova roupagem: a da segurana urbana, no tendo se desenvolvido ainda na Amrica Latina uma crtica aos seus sistemas penais, existindo apenas vozes isoladas, as quais no devem ser importadas, sob pena de surtir, na realidade perifrica, efeitos totalmente contrrios aos esperados.

74

Ibid., 2004, p.342.

38

1.6

A justia restaurativaConforme foi visto no incio deste captulo, em determinado momento da histria, que

coincide com o movimento liberal e o surgimento do Contrato Social, a reao ao delito foi atribuda ao Estado, a quem coube a exigncia de garantir a coexistncia pacfica da sociedade. At hoje, as situaes mais problemticas para o convvio social so remetidas ao Estado, que responde aos causadores do conflito com a punio, sendo a privao da liberdade resposta principal criminalidade. Entretanto, uma vez que os conflitos e as quebras das regras de convivncia so algo impossvel de ser eliminado, o castigo e a violncia punitiva, enquanto caractersticas principais da reao penal acabam por avolumar a prpria violncia que lhe deu causa. Diante de tal problemtica, prpria do paradigma da justia retributiva, ope ao mencionado paradigma uma justia criminal que recupere as idias de liberdade e humanizao do sistema penal, que Leonardo Sica apresenta como Novo Paradigma da Justia Restaurativa. 75 Para Sica, a formao de uma racionalidade penal mais humanista, oposta ao paradigma retributivo, passa pela reintroduo da vtima no processo penal, afastando do Estado o papel de vingador pblico, mas passa tambm pela reparao do dano e restaurao da ordem como uma das finalidades do Direito Penal. 76 O novo paradigma, que orienta todo este trabalho de dissertao, consiste na Justia Restaurativa, de longnqua origem como prtica, mas bem recente como teoria, que tem sua base em trs princpios, elencados por Sica:O crime primariamente um conflito entre indivduos, resultando em danos vtima e/ou comunidade e ao prprio autor; secundariamente, uma transgresso da lei; O objetivo central da justia criminal deve ser reconciliar pessoas e reparar danos advindos do crime; O sistema de justia criminal deve facilitar a ativa participao de vtimas, ofensores e suas comunidades. 77

So encontrados vestgios de prticas restaurativas no cdigo de Hammurabi (1.700 a.C.) e de Lipit-Ishtar (1.875 a.C.), que prescreviam medidas de restituio para os crimes contra os bens. O cdigo sumeriano (2.050 a.C.) e o de Eshunna (1.700 a.C.) previam a restituio nos casos de crimes de violncia. Os povos colonizados da frica, da Nova75 76

SICA, Leonardo, op. cit., 2007. SICA, Leonardo, op. cit., 2002. 77 SICA, Leonardo, op. cit., 2007, p.33.

39

Zelndia, da ustria, da Amrica do Norte e do Sul, bem como entre as sociedades prestatais da Europa, tambm deixaram sinais de tal prtica. Entretanto, o nascimento do Estado trouxe um sistema de direito penal nico e unificador que praticamente isolou a vtima do processo. As prticas restaurativas quase chegaram a desaparecer, mas, durante os processos de colonizao, vieram a ressurgir em alguns pases, ligadas a movimentos reivindicatrios de povos nativos, que demandaram administrao da justia estatal o respeito s suas concepes de justia, mas tambm os problemas de superpopulao dos nativos nos estabelecimentos penais e scio-protetivos. Os primeiros registros da prtica da Justia Restaurativa foram verificados nos Estados Unidos, em 1970, sob a forma de mediao entre ru e vtima, sendo depois adotada por outros pases, como, por exemplo, Nova Zelndia, Chile, Argentina e Colmbia. 78 Trs correntes de pensamento favoreceram o ressurgimento da Justia Restaurativa como prtica e dos processos que a ela esto associados nas sociedades contemporneas ocidentais: os movimentos de contestao das instituies repressivas, nas universidades americanas, os movimentos de descoberta da vtima e os movimentos de exaltao da comunidade. No trmino da Segunda Guerra Mundial, surgiu e se desenvolveu a vitimologia, primeiramente, na pura tradio positivista que caracteriza a criminologia da poca, que tentava identificar os fatores que predispem os indivduos a tornarem-se vtimas. O movimento vitimista inspirou a formalizao dos princpios da justia restaurativa, mas no endossou seus princpios nem participou diretamente de seu advento. Quanto ao princpio de exaltao da comunidade, valorizado como o lugar que recorda as sociedades tradicionais nas quais os conflitos so menos numerosos, mais bem administrados e onde reina a regra da negociao. 79 Quanto ao conceito de Justia Restaurativa, nasceu em 1977, da noo de restituio criativa, sugerida pelo psiclogo americano Albert Eglash, para reformar o modelo teraputico de justia. A restituio criativa consistiria na reabilitao tcnica do ofensor, que, debaixo de superviso apropriada, seria auxiliado a achar algumas formas de pedir perdo quele a quem atingiu com sua ofensa. Tal conceito ainda era muito distante do que seriam os

JACCOUD, Mylne. Princpios, tendncias e procedimentos que cercam a Justia Restaurativa. In: SLAKMON, C.; DE VITTO, R.; PINTO, R. Gomes (Org.). Justia restaurativa. Braslia DF: Ministrio da Justia e Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento PNUD, 2005. Disponvel em: . Acesso em: 03 mar. 2008. 79 Ibid., 2005.

78

40

princpios da justia restaurativa, uma vez que concedia pouca ateno s vtimas e tendia a limitar a reintegrao social s medidas materiais das conseqncias. 80 A descentralizao do poder do Estado controlado, a desagregao do modelo estatal de bem-estar social, a diferenciao e a complexidade crescente das relaes sociais, o simbolismo jurdico, o aparecimento de uma sociedade civil, bem como a elevao do neoliberalismo e a fragmentao dos centros de decises remodelaram profundamente as relaes entre os cidados e o Estado, que passaram a se estruturar em princpios de participao e de co-administrao em muitos setores da atividade social. Desta forma, Estado se liberou de uma parte da administrao da promoo da segurana, reforando a ao penal para delitos graves e delegando a administrao das ofensas secundrias s instancias sciocomunitrias. 81 Com relao ao seu fundamento filosfico, a Justia Restaurativa colocada em oposio ao modelo penal retributivo, do qual Kant se destaca como referencial. Kant fundamenta seu modelo penal naquilo que conceitua como lei universal da liberdade, ou seja, no entendimento de que o direito seria um conjunto de condies segundo as quais, dentro de uma sociedade, podendo o livre arbtrio de um se harmonizar com o livre arbtrio de outro. Para Kant, tal lei, que separa a Moral do Direito, que daria sentido pena. O homem no deveria ser punido com outros fins seno responder sua conduta ilcita, de modo que a pena nunca poderia servir apenas de meio para fomentar outro bem, quer para o prprio delinqente, quer para a sociedade civil, pois, do contrrio, o homem estaria sendo manejado como simples meio para os propsitos de outrem e seria confundido entre os objetos