Kafka - Carta Ao Pai

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CARTA AO PAI

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otimo

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Franz Kafka nasceu em 3 de julho de 1883 na cidade de Praga, Bomia (hoje Tchescolovquia), ento pertencente ao imprio Austro-Hngaro

CARTA AO PAI

Querido Pai:

Voc me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de voc. Como de costume, no soube responder, em parte justamente por causa do medo que tenho de voc, em parte porque na motivao desse medo intervm tantos pormenores, que mal poderia reuni-los numa fala. E se aqui tento responder por escrito, ser sem dvida de um modo muito incompleto, porque, tambm ao escrever, o medo e suas conseqncias me inibem diante de voc e porque a magnitude do assunto ultrapassa de longe minha memria e meu entendimento.

Para voc a questo sempre se apresentou em termos muito simples, pelo menos considerando o que falou na minha presena e, indiscriminadamente, na de muitos outros. Para voc as coisas pareciam ser mais ou menos assim: trabalhou duro a vida toda, sacrificou tudo pelos filhos, especialmente por mim, e graas a isso eu vivi " larga", desfrutei de inteira liberdade para estudar o que queria, no precisei ter qualquer preocupao com o meu sustento e portanto nenhuma preocupao; em troca voc no exigiu gratido - voc conhece a "gratido dos filhos" - mas pelo menos alguma coisa de volta, algum sinal de simpatia; ao invs disse sempre me escondi de voc, no meu quarto, com meus livros, com amigos malucos, com idias extravagantes, nunca falei abertamente com voc, no templo no ficava a seu lado, nunca o visitei em Franzensbadi, alis nunca tive sentido de famlia, no dei ateno loja nem aos seus outros negcios, a fbrica eu deixei nas suas costas e depois o abandonei, apoiei a obstinao de Ottlaii e, se por um lado no movo um dedo por voc (nem uma entrada de teatro eu lhe trago), pelos amigos eu fao tudo. Se voc fizesse um resumo do que pensa de mim, o resultado seria que na verdade no me censura de nada abertamente indecoroso ou mau (exceto talvez meu ltimo projeto de casamento), mas sim de frieza, estranheza, ingratido. E de fato voc me recrimina por isso como se fosse culpa minha, como se por acaso eu tivesse podido, com uma virada do volante, conduzir tudo para outra direo, ao passo que voc no tem a mnima culpa, a no ser talvez o fato de ter sido bom demais para mim.

Esse seu modo usual de ver as coisas eu s considero justo na medida em que tambm acredito que voc no tem a menor culpa pelo nosso distanciamento. Mas eu tambm no tenho a menor culpa. Se pudesse lev-lo a reconhecer isso, ento seria possvel, no uma nova vida - para tanto ns dois estamos velhos demais - mas sem dvida uma espcie de paz; no a cessao, mas certamente um abrandamento das suas interminveis recriminaes.

Curiosamente voc tem alguma intuio daquilo que eu quero dizer. Assim, por exemplo, me disse h pouco tempo: "Eu sempre gostei de voc, embora na aparncia no tenha sido como costumam ser os outros pais, justamente porque no sei fingir como eles". Ora, no que me diz respeito, pai, nunca duvidei da sua bondade, mas considero incorreta essa observao. Voc no sabe fingir, verdade, mas querer afirmar s por esse motivo que os outros pais fingem, ou mera mania de ter razo e no se discute mais, ou ento - como de fato acho - a expresso velada de que as coisas entre ns no vo bem e de que voc tem a ver com isso, mas sem culpa. Se realmente pensa assim, esto estamos de acordo.

Naturalmente no digo que me tornei o que sou s por influncia sua. Seria muito exagerado (e at me inclino a esse exagero). E bem possvel que, mesmo que tivesse crescido totalmente livre da sua influncia, eu no pudesse me tornar um ser humano na medida do seu corao. Provavelmente seria um homem sem vigor, medroso, hesitante, inquieto, nem Robert Kafka nem Karl Hermanniii, mas completamente diferente do que sou na realidade - e teramos podido nos tolerar um ao outro de uma forma magnfica. Eu teria sido feliz por t-lo como amigo, chefe, tio, av, at mesmo (embora mais hesitante) como sogro. Mas justo como pai voc era forte demais para mim, principalmente porque meus irmos morreram pequenos, minhas irms s vieram muito depois e eu tive, portanto, de suportar inteiramente s o primeiro golpe, e para isso eu era fraco demais.

Compare-nos um com o outro: eu, para express-lo bem abreviadamente, um Lwy com certo fundo Kafka, mas que no acionado pela vontade de viver, fazer negcios e conquistar dos Kafka, e sim por um aguilho dos Lwy, que age mais secreto, mais tmido, numa outra direo, e muitas vezes cessa por completo. Voc, ao contrrio, um verdadeiro Kafka na fora, sade, apetite, sonoridade de voz, dom de falar, auto-satisfao, superioridade diante do mundo, perseverana, presena de esprito, conhecimento dos homens, certa generosidade - naturalmente com todos os defeitos e fraquezas que fazem parte dessas qualidades e para as quais o precipitam seu temperamento e por vezes sua clera. Talvez voc no seja totalmente um Kafka na sua viso geral do mundo, at o ponto em que posso compar-lo com tio Philipp, Ludwig, Heinrichiv. Isso curioso, aqui tambm no vejo muito claro. Todos eles eram sem dvida mais alegres, mais dispostos, mais desenvoltos, mais despreocupados, menos severos que voc. (Nisto, alis, herdei muito de voc e administrei bem demais a herana, sem no entanto ter no meu ser os contrapesos necessrios, como voc tem). Por outro lado, porm, voc nesse sentido atravessou pocas diferentes, talvez fosse mais alegre antes que os filhos - eu em particular - o decepcionassem e oprimissem em casa (se vinham estranhos, voc era outro) e talvez agora tambm tenha ficado de novo mais alegre, uma vez que os netos e o genro lhe devolvem algo daquele calor que os filhos no lhe puderam dar, a no ser talvez Valliv. Seja como for, ramos to diferentes e nessa diferena to perigosos um para o outro, que se algum por acaso quisesse calcular antecipadamente como eu, a criana que se desenvolvia devagar, e voc o homem feito, se comportariam um com o outro, poderia supor que voc simplesmente me esmagaria sob os ps e que no sobraria nada de mim. Ora, isso no aconteceu - o que vivo no comporta clculo - mas talvez tenha acontecido algo pior. Aqui, contudo, peo-lhe encarecidamente que no se esquea de que nem de longe acredito numa culpa da sua parte. Voc influiu sobre mim como tinha de influir, s que precisa deixar de considerar como uma maldade especial da minha parte o fato de eu ter sucumbido a essa influncia.

Eu era uma criana medrosa; claro que apesar disso tambm era teimoso como o so as crianas; certamente tambm minha me me mimou, mas no posso crer que fosse um menino difcil de lidar, nem que uma palavra amvel, um silencioso levar pela mo, um olhar bondoso no pudessem conseguir de mim tudo o que se quisesse. Ora, no fundo voc um homem bom e brando (o que se segue no vai contradizer isso, estou falando apenas da aparncia na qual voc influenciava o menino), mas nem toda criana tem a resistncia e o destemor de ficar procurando at chegar bondade. Voc s pode tratar um filho como voc mesmo foi criado, com energia, rudo e clera, e neste caso isso lhe parecia, alm do mais, muito adequado, porque queria fazer de mim um jovem forte e corajoso.

Naturalmente, hoje no posso descrever sem mediaes seus mtodos pedaggicos nos primeiros anos, mas posso talvez imagin-los por deduo dos anos posteriores e a partir da maneira como voc trata Flixvi. Neste caso entra em considerao, como agravante, o fato de que naquele tempo voc era mais jovem, portanto mais disposto, mais genuno, mais despreocupado do que hoje, e de que, alm disso, inteiramente ligado aos negcios, mal podia se mostrar uma vez ao dia para mim e por isso a impresso que me causava era mais profunda ainda, tanto que jamais se banalizou em hbito.

De imediato eu s me recordo de um incidente dos primeiros anos. Talvez voc tambm se lembre dele. Uma noite eu choramingava sem parar pedindo gua, com certeza no de sede, mas provavelmente em parte para aborrecer, em parte para me distrair. Depois que algumas ameaas severas no haviam adiantado, voc me tirou da cama, me levou para a pawlatschevii e me deixou ali sozinho, por um momento, de camisola de dormir, diante da porta fechada. No quero dizer que isso no estava certo, talvez ento no fosse realmente possvel conseguir o sossego noturno de outra maneira; mas quero caracterizar com isso seus recursos educativos e os efeitos que eles tiveram sobre mim. Sem dvida, a partir daquele momento eu me tornei obediente, mas fiquei internamente lesado. Segundo a minha ndole, nunca pude relacionar direito a naturalidade daquele ato inconseqente de pedir gua, com o terror extraordinrio de ser arrastado para fora. Anos depois eu ainda sofria com a torturante idia de que o homem gigantesco, meu pai, a ltima instncia, podia vir quase sem motivo me tirar da cama noite para me levar pawlatsche e de que, portanto, eu era para ele um nada dessa espcie.

Na poca isso foi s um pequeno comeo, mas esse sentimento de nulidade que freqentemente me domina (alis, visto de outro ngulo, um sentimento nobre e fecundo) deriva por caminhos complexos da sua influncia. Eu teria precisado de um pouco de estmulo, de um pouco de amabilidade, de um pouco de abertura para o meu caminho, mas ao invs disso voc o obstruiu, certamente com a boa inteno de que eu devia seguir outro. Mas para isso eu no tinha condies. Voc me estimulava, por exemplo, quando eu batia continncia e marchava direito, no entanto eu no era um futuro soldado; ou me estimulava quando eu comia vigorosamente e alm disso conseguia beber cerveja; ou quando sabia repetir canes que no compreendia, ou arremedar suas expresses prediletas; nada disso, entretanto, fazia parte do meu futuro. E significativo que at hoje voc si me encoraje de fato naquilo que o afeta pessoalmente, quando se trata do seu amor-prprio, que eu firo (por exemplo, com o meu projeto de casamento) ou que ferido em mim (quando, por exemplo, Pepaviii me insulta). Ento sou estimulado, lembrado do meu valor, remetido s partilhas que tenho o direito de fazer, e Pepa inteiramente condenado. Mas deixando de lado o fato de que hoje, na minha idade, j estou quase inacessvel ao encorajamento, no que iria ele me ajudar, se s se manifesta onde em primeira linha no se trata de mim?

Era ento, em tudo e por tudo, que eu teria precisado de estmulo. J estava esmagado pela simples materialidade do seu corpo. Lembro-me por exemplo de que muitas vezes nos despamos juntos numa cabine. Eu magro, fraco, franzino, voc forte, grande, largo. J na cabine me sentia miservel e na realidade no s diante de voc, mas do mundo inteiro, pois para mim voc era a medida de todas as coisas. Mas quando saamos da cabine diante das pessoas, eu na sua mo, um pequeno esqueleto, inseguro, descalo sobre as pranchas de madeira, com medo da gua, incapaz de imitar seus movimentos para nadar, que com boa inteno, mas de fato para minha profunda vergonha, voc no parava de me mostrar - ento nesses momentos eu ficava muito desesperado e todas as minhas mas experincias em todas as reas confluam em grande estilo. S me sentia melhor quando voc algumas vezes se despia primeiro e eu ficava sozinho, podendo adiar a vergonha da apario pblica at o momento em que voc vinha ver o que estava acontecendo e me tirava da cabine. Ficava grato porque voc parecia no notar minha aflio e tambm tinha orgulho do corpo do meu pai. Alis, essa diferena entre ns subsiste ainda hoje de forma parecida.

A isso correspondia, ademais, sua superioridade espiritual. Voc havia subido to alto, contando apenas com a prpria fora, que tinha confiana ilimitada na sua opinio pessoal. Enquanto criana, isso no foi para mim to ofuscante como mais tarde para o jovem adolescente. Da sua poltrona voc regia o mundo. Sua opinio era certa, todas as outras disparatadas, extravagantes, meshuggeix, anormais. To grande era sua autoconfiana, que voc no precisava de modo algum ser conseqente, sem no entanto deixar de ter razo. Podia tambm ser o caso de voc no ter opinio alguma sobre um assunto, e, conseqentemente, todas as opinies possveis relativas a ele precisavam ser sem exceo erradas. Voc podia, por exemplo, xingar os tchecos, depois os alemes, depois os judeus, na verdade no sob este ou aquele aspecto, mas sob todos, e no final no sobrava mais ningum alm de voc. Voc assumia para mim o que h de enigmtico em todos os tiranos, cujo direito est fundado, no no pensamento, mas na prpria pessoa. Pelo menos assim me parecia.

Ora, no que me dizia respeito, voc efetivamente tinha razo com assombrosa freqncia; numa conversa isso era evidente, pois mal chegvamos a conversar; mas tambm na prtica voc tinha razo. Entretanto isso no era nada de especialmente incompreensvel: em todos os meus pensamentos eu estava sob forte presso da sua parte, mesmo naqueles que no coincidiam com os seus, e particularmente nesses. Todas aquelas idias na aparncia independentes de voc estavam desde o incio gravadas pelo seu juzo desfavorvel: suportar isso at a exposio completa e duradoura do pensamento era quase impossvel. No falo aqui de pensamentos elevados de qualquer natureza, mas de todos os pequenos empreendimentos da infncia. Bastava estar feliz com alguma coisa, ficar com a alma plena, chegar em casa e express-la, para que a resposta fosse um suspiro irnico, um meneio de cabea, o bater do dedo sobre a mesa: "J vi coisa melhor", ou "Para mim voc vem contar isso?", ou "Minha cabea no to fresca quanto a sua", ou "D para comprar alguma coisa com isso?", ou "Mas que acontecimento!". Naturalmente no se podia exigir de voc entusiasmo por qualquer ninharia de criana, vivendo como vivia, cheio de preocupao e trabalho pesado. Nem era disso que se tratava. Pelo contrrio, tratava-se do fato de que voc precisava causar essas decepes ao filho, sempre e por princpio, graas ao seu ser contraditrio, mais ainda: de que o esprito de contradio se fortalecia incessantemente pela acumulao de material, de tal forma que no fim ele acabava se impondo at como costume, mesmo que s vezes voc tivesse opinio igual minha, e finalmente, j que essas decepes no eram as decepes da vida comum, elas acertavam no cerne, pois isso dizia respeito sua pessoa, medida de todas as coisas. A coragem, a determinao, a confiana, a alegria em torno disto ou daquilo no se sustentavam at o fim quando voc era contra ou quando a sua oposio podia ser meramente presumida; e ela podia sem dvida ser presumida em praticamente tudo o que eu fazia.

Isso se relacionava tanto a idias quanto a pessoas. Bastava que eu tivesse um pouco de interesse por algum - o que alis no acontecia com freqncia por causa do meu modo de ser - para que voc, sem qualquer respeito pelo meu sentimento e sem considerao pelo meu julgamento, interviesse logo com insulto, calnia e humilhao. Gente inocente, ingnua, como por exemplo o ator judeu Lwy, teve de pagar por isso. Sem conhec-lo, voc o comparou, de uma maneira horrvel, da qual j me esqueci, com inseto daninho e, como muitas vezes em relao a pessoas que me eram caras, voc automaticamente tinha mo o ditado sobre ces e pulgasx. Lembro-me aqui em particular do ator, porque anotei as coisas que ento voc disse dele para mim, com uma observao: " assim que meu pai fala sobre o meu amigo (que absolutamente no conhece) s porque ele meu amigo. Poderei sempre retrucar isso quando me recriminar por falta de amor e de gratido filial". Para mim, sempre foi incompreensvel sua total falta de sensibilidade em relao dor e vergonha que podia me infligir com palavras e juzos: era como se voc no tivesse a menor noo da sua fora. Tambm eu com certeza muitas vezes o magoei com palavras, mas depois sempre o reconheci, isso me doa mas eu no podia me dominar, refrear a palavra, j me arrependia enquanto a pronunciava. Mas voc desfechava sem mais as suas, no se condoa de ningum, nem durante nem depois, contra voc estava-se completamente sem defesa.

No entanto, toda a sua educao foi assim. Creio que voc tem talento de educador; a uma pessoa da sua ndole voc certamente teria sido til atravs da educao; ela teria percebido a sensatez daquilo que voc lhe estava dizendo, no teria se preocupado com nada alm disso e desse modo levaria as coisas calmamente a termo. Mas para mim, quando criana, tudo o que voc bradava era logo mandamento do cu, eu jamais o esquecia, ficava sendo para mim o recurso mais importante para poder julgar o mundo, sobretudo para julgar voc mesmo, e nisso o seu fracasso era completo. Como em criana eu ficava junto de voc principalmente na hora das refeies, a sua lio principal era em grande parte uma lio sobre o comportamento correto mesa. O que vinha mesa precisava ser comido, no era permitido falar sobre a qualidade da comida - mas voc freqentemente achava a comida intragvel; chamava-a de "grude", a "besta" (a cozinheira) a tinha estragado. Como voc por natureza tinha um apetite vigoroso e uma predileo especial por comer tudo rpido, quente e em grandes bocados, o filho tinha de se apressar, reinava mesa um silncio sombrio, interrompido por admoestaes: "Primeiro coma, depois fale", ou "Mais depressa, mais depressa", ou "Veja: j terminei de comer faz muito tempo". No era permitido partir os ossos com os dentes, mas voc podia. No era permitido sorver o vinagre, mas voc podia. O principal era que se cortasse o po direito, mas o fato de que voc o fizesse com uma faca pingando molho era indiferente. Era preciso prestar ateno para que no cassem restos de comida no cho, no final a maioria deles ficava embaixo de voc. mesa no era permitido se ocupar de outra coisa a no ser da refeio, mas voc polia e cortava as unhas, apontava lpis, limpava os ouvidos com o palito de dentes. Por favor, pai, me entenda bem, esses pormenores teriam sido em si mesmos totalmente insignificantes, eles s me oprimiam porque voc, o homem to imensamente decisivo, no atendia ele mesmo aos mandamentos que me impunha. Com isso o mundo se dividia para mim em trs partes: uma onde eu, o escravo, vivia sob leis que tinham sido inventadas s para mim e s quais, alm disso, no sabia por que, nunca podia corresponder plenamente; depois, um segundo mundo, infinitamente distante do meu, no qual voc vivia, ocupado em governar, dar ordens e irritar-se com o seu no-cumprimento; e finalmente um terceiro mundo, onde as outras pessoas viviam felizes e livres de ordens e de obedincia. Eu vivia imerso na vergonha: ou seguia as suas leis, e isso era vergonha porque elas s valiam para mim; ou ficava teimoso, e isso tambm era vergonha, pois como me permitia ser teimoso diante de voc?, ou ento no podia obedecer porque, por exemplo, no tinha a sua fora, o seu apetite, a sua destreza, embora voc exigisse isso de mim como algo natural: esta era com certeza a vergonha maior. Desse modo se moviam no as reflexes, mas os sentimentos do menino.

Minha situao na poca talvez fique mais clara se eu e a comparar com a de Flix. Voc o trata de forma semelhante, at mesmo emprega contra ele um mtodo de ensino particularmente terrvel, na medida em que, quando ele faz durante a refeio alguma coisa que na sua opinio no limpa, voc no se contenta em dizer como antigamente para mim: "Voc um porcalho", mas ainda acrescenta: "Voc um autntico Hermann", ou "Igualzinho ao seu pai". Talvez porm - mais que "talvez" no se pode dizer - isso de fato no prejudique essencialmente Flix, pois para ele voc s um av, embora especialmente importante, mas sem dvida no tudo, como foi para mim; alm disso Flix um carter calmo e j agora, de certo modo, viril, que se deixa talvez aturdir por uma voz de trovo, mas no ser comandado por muito tempo; acima de tudo, ele s fica relativamente pouco com voc e est sob outras influncias; para ele voc muito mais algo caro e bizarro do qual pode escolher o que quer levar. Para mim voc no era uma coisa bizarra, eu no podia escolher, tinha de levar tudo.

E na verdade sem poder argumentar nada, pois lhe de antemo impossvel falar serenamente sobre uma coisa com a qual no concorda ou que simplesmente no parta de voc: seu temperamento dominador no o permite. Nos ltimos anos voc explica isso pelo seu nervosismo cardaco, eu no saberia dizer se voc foi alguma vez em essncia diferente, no mximo o nervosismo cardaco um meio para o exerccio mais estrito da dominao, j que a lembrana da doena, deve sufocar nos outros a ltima rplica. Naturalmente isto no uma censura, apenas a constatao de um fato. Por exemplo, em relao a Ottla voc costuma dizer: "Com essa no se pode falar nada: ela logo pula no pescoo"; mas na realidade no ela a primeira a fazer isso; voc confunde a coisa com a pessoa; a coisa que pula no seu pescoo e imediatamente voc toma uma deciso sobre ela, sem ouvir a pessoa; o que depois ainda se argumenta s pode irrit-lo, jamais convenc-lo. Ouve-se ento apenas o seguinte: "Faa o que quiser; por mim voc est livre; voc maior de idade; no tenho conselhos para lhe dar" - e tudo naquela inflexo terrvel e rouca da ira e da completa condenao, diante da qual eu hoje s tremo menos que na infncia porque o sentimento de culpa exclusivo da criana foi em parte substitudo pela compreenso do nosso comum desamparo.

A impossibilidade do intercmbio tranqilo teve uma outra conseqncia na verdade muito natural: desaprendi a falar. Certamente eu no teria sido, em outro contexto, um grande orador, mas sem dvida teria dominado a linguagem humana fluente e comum. No entanto, logo cedo voc me interditou a palavra, sua ameaa: "Nenhuma palavra de contestao!" e a mo erguida no ato me acompanharam desde sempre. Na sua presena - quando se trata das suas coisas voc um excelente orador - adquiri um modo de falar entrecortado, gaguejante, para voc tambm isso era demais, finalmente silenciei, a princpio talvez por teimosia, mais tarde porque j no podia pensar nem falar. E como voc era meu verdadeiro educador, isso repercutiu em todos os aspectos da minha vida. No geral um curioso equvoco voc acreditar que nunca me submeti sua vontade. "Sempre do contra em tudo" no foi realmente meu princpio de vida diante de voc, como acredita e me recrimina por isso. Pelo contrrio: se eu tivesse obedecido menos, voc na certa estaria muito mais satisfeito comigo. O fato que as suas medidas educativas acertaram no alvo; no me esquivei a nenhuma investida sua; assim como sou (naturalmente pondo de lado os fundamentos e a influncia da vida), sou o resultado da sua educao e da minha docilidade. Que esse resultado apesar disso lhe seja penoso, que voc se recuse inconscientemente a reconhec-lo como produto da sua educao, se deve justamente ao fato de que a sua mo e o meu material eram to estranhos um ao outro. Voc dizia: "Nenhuma palavra de contestao!" e com isso queria silenciar em mim as foras contrrias que Ihe eram to desagradveis, mas essa influncia era muito forte para mim, eu era dcil demais, emudecia por completo, me escondia de voc e s ousava me mexer quando estava to distante que o seu poder no me alcanava mais, pelo menos diretamente. Mas voc estava ali, diante de mim, e tudo Ihe parecia ser novamente "do contra", quando era apenas a conseqncia natural da sua fora e da minha fraqueza.

Seus recursos oratrios extremamente eficazes e que nunca falhavam, pelo menos comigo, eram: insulto, ameaa, ironia, riso malvolo e - curiosamente - auto acusao.

No consigo me lembrar se voc me insultava diretamente com improprios explcitos. Tambm no era necessrio, voc dispunha de muitos outros meios, nas conversas em casa e especialmente na loja os xingamentos voavam em cima de outras pessoas ao meu redor numa tal quantidade, que quando eu era menino ficava quase anestesiado e no tinha motivo algum para no remet-los tambm a mim, pois as pessoas que insultava certamente no eram piores que eu, e sem dvida voc no estava muito mais insatisfeito com elas do que comigo. E tambm aqui se manifestava mais uma vez a sua enigmtica inocncia e intangibilidade: xingava sem se importar com isso, no entanto condenava o insulto nos outros e o proibia.

Voc reforava o xingamento com ameaas e ento isso j valia para mim. Era terrvel, por exemplo, aquele "Vou fazer picadinho de voc",xi embora eu decerto soubesse que nada de mais grave se seguiria (quando pequeno, entretanto, eu no o sabia); mas quase correspondia idia que eu tinha do seu poder, o fato de que voc tambm era capaz de chegar a tanto. Era terrvel ainda quando voc corria gritando em torno da mesa para agarrar um de ns: evidentemente voc no queria agarrar, mas agia como se quisesse, e a aparncia era de que a minha me finalmente chegava para salvar. criana parecia que mais uma vez havia conservado a vida por clemncia e que continuava a mant-la como um presente imerecido da sua parte. Tambm faziam parte desse quadro as ameaas decorrentes da desobedincia. Quando eu comeava a fazer alguma coisa que no lhe agradava e voc me ameaava com o malogro, ento o respeito pela sua opinio era to grande que com ele o fracasso era inevitvel, mesmo que s ocorresse numa poca posterior. Perdi a confiana nos meus prprios atos. Tornei-me instvel, indeciso. Quanto mais velho ficava, tanto maior era o material que voc podia levantar como prova da minha falta de valor; aos poucos voc num certo sentido acabou tendo realmente razo. Previno-me outra vez de afirmar que me tornei assim s por sua causa; voc apenas reforou o que existia, mas reforou muito, justamente porque diante de mim voc era muito poderoso e aplicou nisso todo o seu poder.

Voc tinha especial confiana na educao pela ironia, era ela a que melhor correspondia sua superioridade sobre mim. Em voc uma admoestao tinha comumente esta forma: "Ser que voc no pode fazer isto assim e assado? Ser que demais para voc? Naturalmente para isso voc no tem tempo, no ?", e coisas semelhantes. Nessa hora cada pergunta era acompanhada por um riso maldoso e uma cara feia. De certo modo a pessoa j estava punida antes mesmo de saber que tinha feito algo errado. Eram provocadoras tambm as repreenses em que se era tratado na terceira pessoa, ou seja, como algum indigno at da interpelao malvola, na qual voc se dirigia formalmente minha me, mas na realidade a mim; assim, por exemplo: "Naturalmente no se pode exigir isso do senhor meu filho" e coisas do gnero. (A contrapartida foi que eu, por exemplo, no ousava e mais tarde nem mesmo cogitava de lhe fazer perguntas diretas quando minha me estava presente. Era muito menos arriscado para o filho perguntar por voc me sentada ao seu lado; ento se indagava: "Como vai o meu pai?" e assim se evitavam surpresas). Evidentemente havia casos em que se estava muito de acordo com a ironia mais acerba, quando ela dizia respeito a outra pessoa, por exemplo Ellixii, com quem estive em ms relaes durante anos. Para mim era uma festa da maldade e do jbilo pela infelicidade alheia quando, em quase todas as refeies, se falava dela assim: "A ampla mocinha precisa ficar sentada a dez metros de distncia da mesa", lance em que voc, ento, maldoso na sua cadeira, sem o menor vestgio de amabilidade ou de humor, mas sim na postura de um inimigo encarniado, procurava imitar, com exagero, a maneira como ela se sentava, extremamente repulsiva para o seu gosto. Com que freqncia essa e outras coisas parecidas tiveram de se repetir, quo pouco voc alcanou na prtica efetiva? Acredito que isso se devia ao fato de que o dispndio de ira e malevolncia no parecia estar numa proporo certa com a coisa propriamente dita; no havia o sentimento de que a ira tivesse sido provocada por aquela ninharia de se sentar longe da mesa, mas que ela existia de antemo em toda a sua magnitude e que s casualmente fora tomada como pretexto para se desencadear. Uma vez que se estava convencido de que o pretexto seria encontrado de qualquer modo, no havia nenhuma preocupao especial com a conduta; alm do que ficava-se insensibilizado com as constantes ameaas, pois aos poucos j se estava quase seguro de que ningum iria apanhar. A criana se tornava rabugenta, desatenta, desobediente, sempre pensando numa fuga, a maioria das vezes numa fuga interior. Assim voc sofria, assim soframos ns. Do seu ponto de vista voc tinha toda razo quando, com os dentes cerrados e o riso gorgolejante, que haviam transmitido ao filho, pela primeira vez, as imagens do inferno, costumava dizer (como ainda recentemente a respeito de uma carta de Constantinopla): "Isto sim que companhia!".

Totalmente incompatvel com essa sua postura perante os filhos parecia ser o fato de que voc se lamentava publicamente, o que acontecia com muita freqncia. Admito que quando criana eu no tinha empatia alguma por isso (mais tarde sim) e no entendia como pudesse de algum modo esperar que se condoessem de voc. Voc era to gigantesco em todos os sentidos - que interesse podia ter pela nossa comiserao ou simplesmente pela nossa ajuda? Na realidade devia desprez-las assim como nos desprezava. Por isso eu no acreditava nas queixas e procurava por trs delas alguma inteno secreta. S mais tarde compreendi que voc de fato sofria muito por causa dos filhos; mas naquela poca, em que as lamentaes poderiam, em circunstncias diferentes, encontrar uma resposta infantil aberta, sem preveno, disposta a qualquer ajuda, elas s poderiam ser, para mim, novos meios mais que manifestos de ensino e humilhao, no muito fortes como tais, mas com o efeito secundrio nocivo de que a criana se acostumava a no levar a srio exatamente aquilo que deveria levar a srio.

Felizmente havia tambm excees a isso, sobretudo quando voc sofria em silncio e o amor e a bondade superavam com a sua fora qualquer oposio e comoviam de forma imediata. Embora raro, era maravilhoso. Por exemplo, quando nas tardes quentes de vero eu o via dormir um pouco, cansado, na loja, com os cotovelos apoiados no balco; ou quando voc chegava aos domingos, esfalfado, para nos visitar nas frias de vero; ou a vez em que, durante uma doena grave da minha me, voc se apoiou nas estantes de livros, trmulo de tanto chorar; ou quando na minha ltima doena voc veio em silncio me ver no quarto de Ottla, ficou parado na soleira da porta, apenas esticou o pescoo para me avistar na cama e por considerao s fez um cumprimento com a mo. Naqueles momentos eu me estendia no leito e chorava de felicidade, e choro ainda agora enquanto escrevo.

Voc tinha tambm um jeito de sorrir particularmente belo, bem raro de se ver, um riso tranqilo, satisfeito, afvel, que podia tornar muito feliz aquele a quem se dirigia. No consigo me lembrar de que ele tivesse sido expressamente concedido a mim na infncia, mas isso sem dvida deve ter acontecido, pois por que voc o teria negado naquela poca, j que eu ainda lhe parecia inocente e era a sua grande esperana? Alis, tambm essas impresses amveis no lograram com o tempo outra coisa seno aumentar a minha conscincia de culpa e tornar o mundo ainda mais incompreensvel para mim.

Eu preferia ater-me ao que era concreto e duradouro. S para me afirmar um pouco diante de voc, em parte tambm por uma espcie de vingana, logo comecei a observar, colecionar e exagerar pequenos ridculos que notava em voc, por exemplo, o modo como se deixava deslumbrar por pessoas na maioria das vezes apenas aparentemente em posio mais elevada, das quais voc podia contar coisas sem parar - porventura algum conselheiro imperial ou algo do gnero (por outro lado, esse tipo de coisa me doa, pelo fato de que voc, meu pai, acreditava precisar dessas confirmaes fteis do seu valor e se gabar delas). Ou observar a sua predileo por frases indecorosas, de preferncia proferidas em voz alta, das quais ria como se tivesse dito alguma coisa particularmente brilhante, quando se tratava apenas de uma pequena e banal indecncia (contudo, isso era ao mesmo tempo uma nova manifestao da sua fora vital, que me envergonhava). Naturalmente havia uma grande variedade de observaes como essas; eu ficava feliz com elas, pois me davam pretexto para mexerico e diverso; s vezes voc percebia e se zangava com isso, tomava-o por maldade, falta de respeito; mas acredite-me, para mim no eram outra coisa seno um meio de resto inoperante de autoconservao, eram gracejos como os que se espalham sobre deuses e reis, gracejos que no s se associavam ao mais profundo respeito, como at faziam parte dele.

Alis, voc tambm tentou uma espcie de contra-ataque, correspondente situao semelhante que tinha diante de mim. Costumava apontar como as coisas iam exageradamente bem para mim e como, de fato, eu era bem tratado. verdade, mas no creio que nas circunstncias ento reinantes isso tivesse sido uma ajuda substancial.

certo que minha me era de uma bondade ilimitada comigo, mas para mim tudo isso estava relacionado com voc, ou seja, numa relao nada boa. Inconscientemente ela exercia o papel de isca na caa. Se nalguma hiptese improvvel sua educao tivesse me tornado independente, ao engendrar obstinao, antipatia ou at mesmo dio - ento minha me iria restabelecer o equilbrio pela bondade, pelo discurso sensato (na confuso da infncia ela era o prottipo da razo), pelos rogos, e eu me veria trazido novamente de volta sua rbita, da qual em outro em caso talvez tivesse me evadido para vantagem sua e minha. Ou ento ocorria que no se chegava a nenhuma reconciliao de fato, que minha me me protegia de voc s escondidas e me dava alguma coisa, me permitia algo em segredo; a eu me tornava de novo, diante de voc, a criatura que teme a luz, que engana, que est consciente da prpria culpa, algum que por causa da prpria nulidade s pode chegar por caminhos tortuosos quilo que considera o seu direito. Isso representava outra vez aumento da conscincia de culpa.

fato tambm que voc nunca me bateu de verdade. Mas os gritos, o enrubescimento do seu rosto, o gesto de tirar a cinta e deix-la pronta no espaldar da cadeira para mim eram quase piores. como quando algum deve ser enforcado. Se ele realmente enforcado, ento morre e acaba tudo. Mas se precisa presenciar todos os preparativos para o enforcamento e s fica sabendo do seu indulto quando o lao pende diante do seu rosto, ento ele pode ter de sofrer a vida toda com isso. Alm do mais, das muitas vezes em que, na sua opinio declarada, eu teria merecido uma surra, mas escapara por um triz por causa da sua clemncia, se acumulava de novo um grande sentimento de culpa. De todos os lados eu desembocava na sua culpa.

Voc sempre me recriminou (s na minha presena ou na de estranhos - para a humilhao que isso representava voc no tinha sensibilidade, os assuntos dos seus filhos eram sempre pblicos) que, graas ao seu trabalho, eu vivia sem qualquer privao, na tranqilidade, no calor e na fartura. Penso aqui em certas observaes que devem ter literalmente riscado sulcos no meu crebro, como: "J aos sete anos eu precisava levar a carroa pelas aldeias"; "Precisvamos dormir todos num cubculo"; "Ficvamos felizes quando tnhamos batatas"; "Durante anos, por falta de roupa de inverno suficiente, fiquei com feridas abertas nas pernas"; "Quando eu ainda era menino j precisava ir para a loja em Pisek"; "Dos meus eu no recebia nada, nem mesmo durante o servio militar, ainda tinha que mandar dinheiro para casa"; "Mas apesar de tudo - de tudo - o pai era sempre o pai. Quem que sabe disso hoje? O que que os filhos sabem? Ningum sofreu assim. Ser que um filho entende isso hoje?" Essas histrias poderiam ter sido, em outras circunstncias, um excelente recurso educativo, teriam podido oferecer estmulo e fora ao filho para resistir s mesmas trabalheiras e privaes pelas quais o pai tinha passado. Mas voc no queria isso, pois graas justamente aos seus esforos a situao era outra, no havia chance para algum se distinguir como voc o tinha feito. Essa oportunidade s se poderia criar pela violncia e pela subverso, seria preciso fugir de casa (supondo-se que tivesse existido capacidade de deciso e fora para tanto e minha me, por seu lado, no tivesse trabalhado contra por outros meios). Mas voc no queria nada disso, qualificava-o de ingratido, extravagncia, desobedincia, traio, loucura. Portanto, se por um lado voc induzia a isso atravs do exemplo, das narrativas e da vergonha, por outro o proibia da maneira mais rigorosa. Se no fosse assim, por exemplo, abstradas as circunstncias acessrias, voc teria na verdade de ficar encantado com a aventura de Ottla em Zrauxiii. Ela queria ir para o campo de onde voc tinha vindo, queria passar por trabalho e privaes como voc, no queria desfrutar dos seus xitos no trabalho, do mesmo modo que voc tambm tinha sido independente do seu pai. Eram intenes to terrveis assim? To distantes do seu exemplo e ensinamento? Bem, as intenes de Ottla afinal falharam no resultado, tornaram-se talvez ridculas, foram executadas com muito barulho, ela no teve considerao suficiente pelos pais. Mas ser que a culpa foi exclusivamente dela, no foi culpa tambm das condies e sobretudo do fato de voc estar to distanciado dela? Ser por acaso que ela (como mais tarde voc quis se convencer) estava menos distante de voc na loja do que depois em Zrau? Ser que voc com toda certeza no teria tido fora (supondo-se que tivesse conseguido superar a si mesmo) para fazer dessa aventura algo muito bom, atravs encorajamento, do conselho e da orientao, talvez at s da tolerncia?

Em seguida a essas experincias voc costumava dizer, num gracejo amargo, que as coisas iam bem demais para ns. Mas em certo sentido no um gracejo. Recebemos da sua mo aquilo que voc precisou Iutar para conseguir, mas a luta pela vida material, que no seu caso foi imediata, e da qual naturalmente no somos poupados, essa ns s tivemos de travar mais tarde, com energia de criana na idade adulta. No digo que por causa disso nossa situao seja necessariamente menos favorvel do que foi a sua, provavelmente ela equivalente (ainda que as situaes de base no possam, claro, ser comparadas); estamos em desvantagem no sentido de que no podemos nos vangloriar das nossas privaes, nem humilhar ningum com elas, como voc fez com as suas. Tambm no nego que teria sido possvel que eu frusse e valorizasse na justa medida os frutos do seu grande e bem sucedido trabalho e pudesse lev-los em frente para Ihe dar alegria; mas justamente nosso distanciamento se opunha a isso. Eu podia desfrutar o que voc me dava, mas s com vergonha, cansao, fraqueza, conscincia de culpa. Conseqentemente, por tudo isso eu s conseguia ser grato como um mendigo, nunca atravs da ao.

O resultado exterior imediato de toda essa educao foi que fugi de tudo o que, mesmo distncia, lembrasse voc. Primeiro foi a loja. Em si mesma, particularmente na infncia, enquanto era uma pequena loja, ela teria me agradado muito , era to viva, iluminada noite, a gente via e ouvia muita coisa, podia aqui e ali ajudar, chamar a ateno, mas sobretudo admir-lo nos seus extraordinrios talentos comerciais, o modo como voc vendia, tratava as pessoas, fazia brincadeiras, se mostrava infatigvel, em casos de dvida sabia tomar logo uma deciso e assim por diante; alm disso era um espetculo digno de ser visto o jeito como voc fazia um embrulho ou abria uma caixa, e tudo no conjunto no era a pior das escolas para uma criana. Mas quando aos poucos voc foi me aterrorizando por todos os lados e a loja e a sua pessoa se tornaram para mim uma coisa s, ento tambm ela j no era mais acolhedora. Coisas que no incio eram naturais para mim me atormentavam, envergonhavam, principalmente o tratamento que voc dispensava aos empregados. No sei, talvez fosse assim na maioria das lojas (na "Assicurazioni Generali"xiv no meu tempo, por exemplo, o tratamento era de fato parecido, l eu apresentei ao diretor minha demisso alegando de um modo no totalmente sincero, mas tambm no de todo falso, que no podia suportar os insultos, que alis nunca me atingiram diretamente; nesse ponto eu era dolorosamente sensvel desde pequeno), mas na infncia no me importavam as outras lojas. Era na loja, porm, que eu o via e escutava xingar e se enfurecer de um modo que, na minha opinio da poca, no acontecia em nenhuma outra parte do mundo. E no s xingar como tambm exercer as demais formas de tirania. Como, por exemplo, atirar do balco, com um golpe, mercadorias que voc no queria ver confundidas com outras - s o desculpava um pouco a irreflexo da sua clera - e o caixeiro tinha de ergu-las do cho. Ou a expresso que voc usava constantemente a respeito de um caixeiro doente dos pulmes: "Esse cachorro doente devia rebentar de uma vez!" Voc chamava os empregados de "inimigos pagos", e eles com efeito o eram, mas antes ainda de terem se transformado nisso voc me parecia ser o "inimigo pagante" deles. L tambm eu recebi o grande ensinamento de que voc podia ser injusto; eu no o teria notado logo, se fosse comigo mesmo, porque tinha acumulado tanto sentimento de culpa, que lhe dava razo; mas ali, na minha opinio de criana - mais tarde naturalmente corrigida um pouco, embora no muito - ali havia pessoas estranhas, que afinal trabalhavam para ns, e em troca tinham de viver num medo permanente de voc. Evidentemente a eu exagerava, em verdade porque assumia, sem mais, que voc agia sobre elas do mesmo modo aterrador que atuava sobre mim. Se tivesse sido assim, elas efetivamente no teriam podido viver; mas como eram pessoas adultas, a maioria com nervos excepcionais, descartavam sem esforo os improprios e finalmente isso prejudicava mais a voc do que a elas. Mas para mim essa circunstncia tornava a loja insuportvel, ela lembrava demais minha relao com voc: pondo inteiramente de lado o interesse do empresrio e o seu despotismo, j como comerciante voc era to superior a todos os que ali fizeram o seu aprendizado, que nenhuma realizao deles podia satisfaz-lo; de forma semelhante, voc tinha de estar eternamente insatisfeito comigo. Por isso eu pertencia necessariamente ao partido dos empregados, mesmo porque j por temor, no entendia como era possvel insultar um estranho daquele jeito; da que, por temor, eu quisesse de alguma maneira conciliar os empregados - a meu ver terrivelmente revoltados - com voc e a nossa famlia; em nome da minha prpria segurana. Para tanto no bastava mais o comportamento costumeiro, decente, diante do pessoal, nem mesmo o comportamento discreto: eu precisava, antes, ser humilde: no s cumprimentar primeiro, mas demonstrar, o quanto possvel, que no exigia a retribuio do cumprimento. E mesmo que eu; personagem insignificante, tivesse, l embaixo, lambido os ps deles, ainda assim no seria uma compensao pelos golpes que l de cima voc, o senhor, disparava sobre eles. O relacionamento que estabeleci na loja com os semelhantes foi alm dela e repercutiu no meu futuro (algo parecido, mas no to perigoso e profundo como o meu caso era, por exemplo, a predileo de Ottla pelo contato com gente pobre, a intimidade com as empregadas, que tanto o indignava, e coisas do gnero). No fim a loja quase me dava medo e, seja como for, antes ainda de comear o ginsio ela j no era assunto meu fazia muito tempo, e assim continuei a me distanciar cada vez mais. Parecia-me algo inteiramente inacessvel s minhas foras, uma vez que, como voc dizia, ela consumia at as suas energias. Voc ento procurou (ainda hoje isso me comove e envergonha) extrair da minha averso loja, sua obra - averso que lhe era muito dolorosa - um pouco de doura, afirmando que me faltava tino comercial, que eu tinha na cabea idias mais elevadas e coisas desse estilo. Naturalmente minha me ficava satisfeita com essa explicao que voc extorquia de si mesmo e at eu, na minha vaidade e aflio, me deixava influenciar por isso. Mas se tivessem sido realmente, ou principalmente, "idias mais elevadas" as que me apartaram da loja (que agora, mas s agora, eu de fato odeio sinceramente), elas teriam de se manifestar de outro modo, em vez de me fazerem navegar calmo e medroso pelo secundrio e pelo estudo de Direito, at desembarcar definitivamente na escrivaninha de funcionrio.

Se eu queria fugir de voc, tinha tambm de fugir da famlia, at de minha me. Na realidade sempre era possvel encontrar nela proteo, mas s em relao a voc. Ela o amava demais e lhe dedicava demasiada fidelidade para que, na luta do filho, pudesse ter por muito tempo um poder espiritual autnomo. Alis, um instinto certo do filho, pois com os anos minha me se tornou ligada a voc ainda mais estreitamente; ao passo que sempre conservou, de um modo bonito e delicado, sua autonomia nos limites mnimos daquilo que dizia respeito a si mesma, ela com os anos assumiu cegamente, de uma maneira cada vez mais total, os seus juzos e preconceitos sobre os filhos, principalmente no caso sem dvida difcil de Ottla. preciso ter sempre em mente, claro, como era desgastante ao extremo a posio de minha me na famlia. Ela tinha se estafado na loja, na casa, tinha sofrido em dobro todas as doenas na famlia, mas o coroamento de tudo foi o que padeceu na posio de intermediria entre ns e voc. Voc sempre foi afetivo e atencioso com ela, mas nesse aspecto voc a poupou to pouco como ns a poupamos. Sem contemplao assestamos nossos golpes sobre ela, voc do seu lado, ns do nosso. Era um deslocamento, no havia nisso ms intenes, s se pensava na luta que travvamos, voc conosco, ns com voc, e descarregvamos em cima de minha me. Tampouco foi uma boa contribuio para a educao dos filhos a maneira como voc - naturalmente sem culpa - a atormentou por nossa causa. Na aparncia isso at justificava o nosso comportamento com ela, de outro modo injustificvel. Quanto ela sofreu de ns por sua causa e de voc por nossa causa! Sem contar aqueles casos em que voc tinha razo porque elas nos estragava com agrados, embora at essa indulgncia pudesse s vezes ter sido apenas uma demonstrao silenciosa e inconsciente contra o seu sistema. Evidentemente minha me no teria podido suportar tudo se no tivesse extrado do amor a todos ns e da felicidade desse amor a energia para suportar.

Minhas irms s me acompanharam em parte. A mais feliz com a prpria situao era Valli. Sendo dentre ns a que estava mais prxima da me, ela se sujeitava a voc de modo anlogo, sem muito esforo ou prejuzo. Justamente porque ela lembrava minha me, voc a acolhia com mais amabilidade, embora nela existisse menos material tpico dos Kafka. Mas do seu ponto de vista talvez fosse precisamente isso o certo: onde no havia matria dos Kafka, nem mesmo voc podia exigir uma coisa assim; aqui tambm no havia de sua parte o sentimento, vlido para ns outros, de que se estava perdendo algo que precisava ser resgatado fora. Alis o elemento Kafka talvez nunca tivesse sido do seu gosto quando ele se manifestava em mulheres. Quem sabe a relao de Valli com voc teria sido mais amvel se ns no tivssemos interferido um pouco.

Elli o nico exemplo de xito quase total de uma evaso do seu crculo. Dela, na infncia, era de quem eu menos teria esperado isso. Era uma criana to morosa, cansada, medrosa, amuada, cheia de culpa, servil, maldosa, preguiosa, voraz, avarenta, que eu mal podia olhar para ela, dirigir-lhe a palavra, de tanto que me fazia lembrar de mim mesmo, de tanto que se submetia, de um jeito semelhante ao meu, ao jugo da educao. Especialmente sua avareza me era repulsiva, uma vez que em mim ela era, se possvel, mais forte ainda. A avareza sem dvida um dos sinais mais confiveis de infelicidade profunda; eu estava to inseguro de tudo, que s possua, de fato, o que j segurava nas mos ou na boca, ou que pelo menos estava a caminho, e era exatamente isso o que Elli, que se achava em situao parecida, mais gostava de me tirar. Mas tudo mudou quando, j moa - e isso o mais importante - ela saiu de casa, se casou, teve filhos, tornou-se alegre, despreocupada, corajosa, generosa, altrusta, cheia de esperana. quase inacreditvel como voc na verdade no notou absolutamente essa mudana, ou de qualquer modo no a avaliou como merecia, to ofuscado est pelo rancor que sempre teve contra ela e que no fundo permanece inalterado; s que esse rancor agora ficou muito menos atual, uma vez que Elli no mora mais conosco, e da sua parte o amor por Flix e a simpatia por Karl tornaram-no irrelevante como sentimento. Apenas Gertixv precisa ainda s vezes pagar por ele.

Sobre Ottla quase no me atrevo a escrever; sei que com isso ponho em jogo todo o efeito almejado desta carta. Em condies normais, ou seja, quando ela no est passando necessidade ou perigo especial, voc tem s dio por ela; pessoalmente j me confessou que, na sua opinio, ela lhe causa de propsito, permanentemente, dor e raiva que, quando voc sofre por causa dela, ela fica satisfeita e se alegra. Ou seja, uma espcie de demnio. Que estranhamento monstruoso, maior ainda do que entre mim e voc, deve ter se interposto entre os dois para que tamanha incompreenso seja possvel! Ela est to longe de voc, que praticamente no a v mais, mas coloca um fantasma onde supe que ela esteja. Admito que os problemas que teve com ela foram particularmente difceis. No penetro na essncia desse caso to complicado, mas seja como for existia aqui algo como um Lwy equipado com as melhores armas dos Kafka. Entre ns no houve propriamente uma luta; fui logo liquidado; o que restou foi fuga, amargura, luto, luta interior. Mas vocs dois estavam sempre em p de guerra, sempre dispostos, sempre providos de todas as foras. Uma viso to grandiosa quanto desoladora. Nos primeiros tempos ambos certamente estiveram muito prximos, pois ainda hoje Ottla , de ns quatro, talvez a representao mais pura do matrimnio entre voc e minha me e das energias que nele se juntaram. No sei o que os fez perder a felicidade da concrdia entre pai e filho; tendo a crer que a evoluo foi semelhante minha. Do seu lado, a tirania do temperamento, do lado dela a obstinao, a suscetibilidade, o sentimento de justia, a inquietao dos Lwy, tudo isso sustentado pela conscincia da fora dos Kafka. Eu bem que a influenciei, embora no por iniciativa prpria, mas pelo mero fato da minha existncia. Alis, ela entrou por ltimo nas relaes de fora j fixadas e conseguiu formar o prprio julgamento a partir do grande material disponvel. Posso at imaginar que o ser dela vacilou algum tempo entre lanar-se ao seu peito ou ao dos adversrios; ao que parece voc cometeu na poca algum descuido e a repeliu, mas ambos teriam sido, caso fosse possvel, um magnfico casal na concrdia. Eu perderia com isso um aliado, mas a viso de vocs dois iria me ressarcir regiamente; alm do que, com a felicidade incomensurvel de encontrar pelo menos em um filho a satisfao plena, voc teria se transformado muito a meu favor. Entretanto tudo isso hoje apenas um sonho. Ottla no tem nenhuma ligao com o pai; como eu, precisa procurar sozinha o seu caminho, e o grau a mais em firmeza, autoconfiana, sade, despreocupao que ela tem em comparao comigo a torna aos seus olhos mais malvada e traioeira do que eu. Compreendo isso; do seu ponto de vista, Ottla no pode ser diferente. Decerto ela mesma capaz de se enxergar com os seus olhos, de sentir a sua dor e de, no digo se desesperar - desespero assunto meu - mas se entristecer muito. Em aparente contradio com isso voc de fato nos v muitas vezes juntos, cochichando, rindo, e aqui e ali ouve uma meno ao seu nome. A impresso que tem a de atrevidos conspiradores. Estranhos conspiradores! Seja como for, voc desde sempre um tema central tanto das nossas conversas como dos nossos pensamentos, mas na realidade no nos reunimos para maquinar coisas contra a sua pessoa, e sim para analisar juntos, de longe e de perto, com todo empenho, brincadeira, seriedade, amor, obstinao, ira, averso, resignao, conscincia de culpa, com todas as energias da cabea e do corao, esse processo terrvel que paira entre ns e voc, em todos os pormenores, por todos os lados, sob todos os pretextos - processo em que voc afirma constantemente ser juiz, embora seja, ao menos no principal (aqui deixo aberta a porta para todos os equvocos, que naturalmente podem me suceder; uma parte to fraca e ofuscada como ns.

Um exemplo instrutivo da sua influncia pedaggica nesse contexto geral foi Irmaxvi. Por um lado, ela era certamente uma estranha, j chegou adulta sua loja, voc era antes de mais nada um patro, portanto ela estava apenas em parte exposta sua influncia e numa idade j apta a oferecer resistncia, mas por outro lado era tambm uma parente consangnea, respeitava em voc o irmo do pai, o seu poder sobre ela era muito maior que o simples poder de um chefe. E apesar disso Irma, que com o seu corpo franzino era to ativa, esperta, diligente, modesta, confivel, altrusta e fiel, que o amava como tio e admirava como chefe, que antes e depois provou o seu valor em outros empregos, no foi uma funcionria muito boa para voc. De fato, diante de voc - naturalmente tambm pressionada por ns - ela estava prxima posio dos filhos; o poder impositivo da sua personalidade era ainda to grande que se desenvolveram nela (contudo s diante de voc e - espero - sem o sofrimento mais fundo do filho) falta de memria, negligncia, humor acre, talvez at mesmo um pouco de teimosia, na medida em que era capaz disso - no que no levo em linha de conta nem o fato de que era doentia nem, de resto, muito feliz, e de que pesava sobre ela uma vida familiar sem consolo. Para mim, a riqueza de referncias da sua relao com ela foi resumida numa frase quase blasfema, que se tornou clssica entre ns, mas que comprova precisamente a candura do seu modo de tratar as pessoas: "Essa bem-aventurada me deixou um monte de porcaria".

Ainda poderia descrever outros crculos da sua influncia e da luta em sentido contrrio, mas a j entraria em terreno inseguro e teria de inventar; alm disso, quanto mais voc se distancia dos negcios e da famlia, tanto mais amvel, flexvel, polido, atencioso (quero dizer: tambm exteriormente) voc se torna, do mesmo modo, por exemplo, que um autocrata, quando est fora dos limites do seu pas, no tem motivo para continuar sendo tirnico e estabelece relaes bondosas at com as pessoas mais humildes. Com efeito, nas fotos em grupo tiradas em Franzensbad, por exemplo, voc aparece sempre grande e alegre, entre as pequenas pessoas amuadas, como um rei em viagem. Tambm os filhos teriam na certa podido tirar proveito disso, se j na infncia tivessem sido capazes - o que era impossvel - de perceb-lo e se eu, por exemplo, no precisasse viver sempre de algum modo no crculo mais ntimo, mais estrito, mais sufocante da sua influncia, como de fato fiz.

Com isso no perdi apenas o sentido de famlia, como voc diz; pelo contrrio: sentido de famlia eu ainda tinha, s que ele era em essncia negativo para me separar internamente de voc (tarefa naturalmente interminvel). Mas as relaes com as pessoas fora da famlia sofriam talvez ainda mais com a sua influncia. Voc se equivoca por completo se acredita que, por amor e fidelidade, eu fao tudo pelos outros, e por frieza e traio, no fao nada por voc e pela famlia. Repito pela dcima vez: mesmo em outras circunstncias eu teria me tornado um homem acanhado e medroso, mas da at o ponto aonde realmente cheguei ainda existe um caminho longo e escuro. (At aqui silenciei de propsito, nesta carta, relativamente pouca coisa, mas, agora e depois, terei de silenciar algumas que ainda me so difceis demais de confessar. Digo isso para que voc, caso a imagem do conjunto fique aqui e ali algo imprecisa, no julgue que a culpa da falta de provas; pelo contrrio, existem provas que poderiam tornar a imagem insuportavelmente crua. No fcil encontrar um meio-termo). Alis, aqui basta recordar coisas ditas anteriormente: eu perdi a autoconfiana, que foi substituda por uma ilimitada conscincia de culpa. (Lembrando-me dessa falta de limites, certa vez escrevi acertadamente sobre algum: "Teme que a vergonha sobreviva a ele"xvii). Eu no podia sofrer uma sbita metamorfose, ao entrar em contato com outras pessoas; pelo contrrio, ficava com uma conscincia de culpa ainda mais profunda em relao a elas, pois, como disse, precisava reparar os danos que, com a minha cumplicidade, voc lhes havia causado. Alm disso, voc sempre tinha alguma objeo aberta ou velada contra quem quer que eu freqentasse, e tambm por isso eu precisava pedir desculpas. A desconfiana que voc procurou me ensinar, na loja e na famlia, contra a maioria das pessoas (aponte-me uma s, de algum modo importante para mim na infncia, que voc ao menos uma vez no tenha criticado de alto a baixo) e que curiosamente no o incomodava nem um pouco (voc era forte o suficiente para suport-la e alm do mais ela na realidade talvez no passasse de um emblema do soberano) - essa desconfiana, que enquanto eu era pequeno no se confirmou aos meus prprios olhos em lugar nenhum, uma vez que eu via em toda parte apenas pessoas incansavelmente distintas, transformou-se na minha cabea em desconfiana de mim mesmo e em medo permanente dos outros. No geral, portanto, eu na certa no podia me salvar da sua influncia. O fato de que nesse ponto voc se enganava, talvez se devesse circunstncia de que na realidade no sabia de nada a respeito das minhas relaes pessoais, supondo, desconfiado e ciumento (acaso nego que goste de mim?), que eu tinha de me compensar em alguma parte pela evaso da vida familiar, j que de fato seria impossvel que eu vivesse da mesma maneira l fora. Nesse sentido, alis, ainda na minha infncia eu tinha um certo consolo justamente na desconfiana pelo meu julgamento; eu me dizia: "Voc decerto exagera, e como os jovens sempre fazem, sente demais que as pequenas coisas so grandes excees". Mas depois que se ampliou minha viso do mundo, praticamente perdi esse consolo.

Tampouco o judasmo pde me salvar de voc. Aqui sem dvida seria pensvel a salvao em si mesma; mas teria sido ainda mais pensvel que ambos tivssemos nos encontrado no judasmo, ou mesmo que nele tivssemos um ponto de partida comum. Mas que judasmo foi o que recebi de voc! No decorrer dos anos eu me situei diante dele mais ou menos de trs maneiras diferentes.

Quando menino eu me recriminava, em consonncia com voc, porque no ia bastante ao templo, no jejuava e assim por diante. Acreditava desse modo cometer uma falta no s contra mim, mas tambm contra voc, quando ento me invadia a conscincia de culpa, que estava sempre pronta.

Mais tarde, quando adolescente, eu no entendia como voc, com o nada de judasmo de que dispunha, podia me recriminar pelo fato de no me esforar (mesmo que fosse por piedade, como voc se exprimia) para realizar um nada semelhante ao seu. At onde posso ver, era realmente um nada, uma brincadeira, nem mesmo isso. Voc ia ao templo quatro dias por ano e nele ficava no mnimo mais prximo dos indiferentes do que daqueles que o faziam a srio, livrando-se, pachorrento, das oraes como formalidade, causando-me s vezes espanto por conseguir me mostrar no livro de oraes a passagem que estava sendo recitada; de resto eu podia, quando estava no templo (o principal era isso), divagar como quisesse. Em meio, pois, a bocejos e cabeadas de sono, eu passava horas e horas ali (s me entediei assim mais tarde, acho eu, nas aulas de dana), procurando na medida do possvel me alegrar com as pequenas variaes que l ocorriam, por exemplo quando abriam a Arca-da-Aliana, o que sempre me lembrava as barracas de tiro ao alvo, onde tambm se abria uma porta de armrio quando se acertava no alvo, s que l de dentro sempre saa alguma coisa interessante, e aqui sempre as mesmas velhas bonecas sem cabeaxviii. Alis, no templo eu sentia tambm muito medo, no apenas, como era bvio, das inmeras pessoas com as quais se entrava em contato mais estreito, mas tambm porque certa vez voc mencionou de passagem que at eu podia ser chamado para ler a Tor. Durante anos tremi diante dessa possibilidade. No mais, porm, meu tdio no foi essencialmente perturbado, a no ser no mximo pelo Barmitzvxix, que no entanto s exigia um ridculo esforo de decorar e que portanto s levava a uma prova ridcula; depois, no que dizia respeito a voc, por pequenos incidentes pouco importantes, por exemplo, quando era chamado para ler a Tor e se saa bem nesse acontecimento que no meu modo de sentir era exclusivamente social, ou quando na Reza dos Mortos voc permanecia no templo e eu era mandado embora, o que durante muito tempo, evidentemente por causa de ser mandado embora e da falta de uma participao mais profunda, suscitava em mim o sentimento - que mal chegava conscincia - de que aqui se tratava de algo indecente. Assim era no templo, e em casa se possvel pior ainda, limitando-se ao primeiro Sederxx, que se tornava cada vez mais uma comdia com acessos de riso, decerto por influncia dos filhos que cresciam. (Por que voc precisava se submeter a essa influncia? Porque a tinha provocado.) Esse, pois, o material de f que me foi transmitido, ao qual se acrescentava no mximo a mo estendida apontando para "os filhos do milionrio Fuchs", que iam ao templo nas grandes solenidades em companhia do pai. Eu no entendia que com esse material se pudesse fazer coisa melhor do que se desfazer dele o mais rpido possvel; para mim justamente livrar-se disso parecia ser a ao mais piedosa.

Ainda mais tarde, no entanto, encarei as coisas de outro modo e entendi por que voc podia acreditar que tambm neste aspecto eu o traa malevolamente. Da pequena comunidade alde, semelhante a um gueto, voc tinha de fato trazido um pouco de judasmo; no era muito e um tanto se perdeu na cidade e no servio militar; mesmo assim as impresses e as lembranas da juventude bastavam, em escassa medida, para uma espcie de vida judaica, especialmente porque voc no necessitava desse tipo de ajuda: era de uma estirpe muito forte e dificilmente a sua pessoa podia ser abalada por escrpulos religiosos quando estes no estavam muito misturados com escrpulos sociais. No fundo, a f que guiava sua vida consistia em acreditar na correo indiscutvel das opinies de uma determinada classe social judaica; portanto, na medida em que essas opinies faziam parte do seu ser, voc na realidade acreditava em si mesmo. Tambm a ainda havia bastante judasmo, mas para ser transmitido ao filho era muito pouco, e enquanto voc o transmitia ele foi-se perdendo lentamente at a ltima gota. Eram em parte impresses intransferveis da juventude, em parte o seu temido ser. Impossvel tambm tornar compreensvel a um filho com uma capacidade de observao exacerbada por puro medo que as poucas futilidades que voc praticava em nome do judasmo - com uma indiferena correspondente a elas - podiam ter um sentido mais alto. Para voc elas tinham sentido como pequenas recordaes dos tempos passados e por isso queria transmiti-las a mim; mas uma vez que tambm para voc elas no tinham valor intrnseco, isso s era possvel atravs da insistncia ou da ameaa; por um lado, a coisa no podia dar certo, por outro, na medida em que aqui voc no reconhecia de modo algum a fraqueza da sua posio, tinha de ficar furioso comigo por causa da minha aparente teimosia.

Certamente esse conjunto no um fenmeno isolado; sucedia coisa semelhante a uma grande parte dessa gerao de transio de judeus que emigraram do campo ainda relativamente religioso para as cidades; era um resultado espontneo, s que acrescentava nossa relao, na qual por certo no faltavam atritos, mais um, bastante doloroso. Por outro lado, tambm aqui voc deve, da mesma maneira que eu, acreditar na sua ausncia de culpa, mas precisa explic-la pelo seu modo de ser e pelas relaes histricas, e no meramente pelas circunstncias externas; portanto, no dizer que, por exemplo, teve trabalho e preocupaes demais para poder alm disso se ocupar dessas questes. Era desse modo que costumava virar as coisas e transformar a sua inquestionvel ausncia de culpa numa acusao injusta contra os outros. muito fcil rebater isso em qualquer parte e aqui tambm. Sem dvida no se tratava de algum ensinamento que voc devesse ter dado aos seus filhos, mas sim de uma vida exemplar; se o seu judasmo tivesse sido mais forte, o seu exemplo tambm teria sido mais convincente; isso bvio e mais uma vez no constitui, de modo algum, uma recriminao, apenas uma defesa contra as recriminaes que voc faz. No faz muito tempo, voc leu as memrias de juventude de Franklinxxi. Realmente eu as dei de propsito para que as lesse; no porm, como voc observou com ironia, por causa de um pequeno trecho sobre vegetarianismo, mas por causa da relao entre o autor e seu pai, tal como ela ali descrita, e da relao entre o autor e seu filho, tal como ela se manifesta claramente nessas recordaes escritas para o filho. Mas no quero destacar nenhum detalhe.

Recebi uma certa confirmao posterior dessa concepo do seu judasmo tambm atravs do seu comportamento nos ltimos anos, quando Ihe pareceu que eu me ocupava mais com os assuntos judaicos. Como voc tem, de antemo, antipatia por qualquer ocupao minha, e particularmente pela maneira como esse interesse se expressa, tambm neste caso voc a sentiu. Mas mesmo assim seria possvel esperar que aqui voc fizesse uma pequena exceo. Sem dvida era o judasmo do seu judasmo que a revivia e com ele tambm a possibilidade de estabelecer novas relaes entre ns. No nego que essas coisas, caso voc tivesse mostrado interesse por elas, teriam, justamente por isso, se tornado suspeitas para mim. claro que no me ocorre querer afirmar que neste aspecto eu seja de algum modo melhor que voc. Mas comprovao disto nunca se chegou. Por meu intermdio o judasmo se tornou repulsivo para voc, os escritos judaicos , "ilegveis" , "causavam-lhe asco" . Isso podia significar que voc insistia em que a nica coisa certa era exatamente o judasmo que me havia mostrado na minha infncia; alm dele no existia nada. Mas que voc insistisse nisso era uma coisa quase inconcebvel. Sendo assim o "asco" (sem levar em conta que ele se dirigia em primeiro lugar no contra o judasmo, mas contra a minha pessoa) s podia significar que voc reconhecia inconscientemente a fragilidade do seu judasmo e da minha educao judaica, e no queria de forma alguma ser lembrado disso, reagindo a qualquer lembrana com dio declarado. Alis, a sua supervalorizao negativa do meu novo judasmo era muito exagerada; em primeiro lugar, ele j inclua a sua maldio e, em segundo - uma vez que a relao fundamental com os semelhantes era decisiva para o seu desenvolvimento - ele foi mortal no meu caso.

Com a sua antipatia voc atingiu, de modo mais certeiro, a minha atividade de escritor e as coisas relacionadas com ela, que lhe eram desconhecidas. Aqui de fato eu me havia distanciado com certa autonomia, embora lembrasse um pouco a minhoca que, esmagada por um p na parte de trs, se liberta com a parte dianteira e se arrasta para o lado. De certa maneira eu estava em segurana, havia um sopro de alvio, a averso que naturalmente voc logo teve pelo que eu escrevia foi neste ponto excepcionalmente bem-vinda. fato que minha vaidade e minha ambio sofriam com a acolhida que dava aos meus livros, famosa entre ns: "Ponha em cima do criado-mudo!" (em geral voc estava jogando baralho quando chegava um livro), mas no fundo eu me sentia bem com isso, no s por uma maldade que se insurgia, no s por jbilo com uma nova confirmao do modo como eu concebia a nossa relao, mas sim porque, bem na sua origem, aquela frmula soava para mim mais ou menos como: "Agora voc est livre!" Tratava-se, claro, de um engano: nem eu era livre nem, no melhor dos casos, ainda no o era. Meus escritos tratavam de voc, neles eu expunha as queixas que no podia fazer no seu peito. Eram uma despedida intencionalmente prolongada de voc; s que ela, apesar de imposta por voc, corria na direo definida por mim. Mas como tudo isso era pouco! S vale a pena falar a respeito porque aconteceu na minha vida, em qualquer outro lugar essa atividade no seria absolutamente notada, e mesmo assim porque dominava minha vida, na infncia como pressentimento, mais tarde como esperana, mais tarde ainda como desespero, ditando-me - se se quiser, novamente de acordo com o seu figurino - minhas poucas e pequenas decises.

Por exemplo, a escolha da profisso. Claro, aqui voc me deu plena liberdade, sua maneira generosa e neste sentido at paciente. No obstante, tambm neste caso voc seguiu o tratamento geral dispensado aos filhos pela classe mdia judaica, ou pelo menos os juzos de valor dessa classe, tratamento que lhe servia de modelo. No final, ainda aqui, interveio um dos seus mal-entendidos sobre a minha pessoa. que por orgulho de pai, por desconhecimento da minha verdadeira natureza, por influncia da minha fragilidade voc sempre me considerou particularmente trabalhador. Na sua opinio, estudei sem parar quando era criana e mais tarde escrevi sem parar. Ora, nem de longe isso verdade. Pode-se dizer, pelo contrrio, com muito menos exagero, que estudei pouco e no aprendi nada; no de admirar muito que alguma coisa tenha ficado, em tantos anos, com uma memria mediana e uma capacidade de compreenso que no das piores; mas de qualquer forma o resultado geral em conhecimento, e sobretudo em fundamentao do conhecimento, extremamente lastimvel diante do dispndio de tempo e dinheiro, em meio a uma vida externa despreocupada e tranqila, principalmente em comparao com quase todas as pessoas que eu conheo. E lastimvel, mas para mim compreensvel. Desde que comecei a pensar, tive uma preocupao to profunda com a afirmao espiritual da minha existncia, que tudo o mais me foi indiferente. Os ginasianos judeus entre ns so muito estranhos, encontra-se a o que h de mais inverossmil, mas a minha indiferena - fria, apenas velada, indestrutvel, infantilmente desamparada, chegando s raias do ridculo, de uma auto-satisfao animal, num menino parcamente dotado de fantasia como eu - isso no voltei a ver em lugar nenhum; no entanto aqui ela era a nica proteo contra o desgaste dos nervos provocado pelo medo e pela conscincia de culpa. Eu s cuidava da preocupao comigo mesmo, mas ela assumia diversas formas. Por exemplo, preocupao com a minha sade; comeou leve, de vez em quando me assaltava um pequeno temor por causa da digesto, da queda dos cabelos, de um desvio da coluna e assim por diante; ela aumentava em gradaes incontveis, at no fim acabar numa doena real. Mas uma vez que eu no estava seguro de coisa alguma, como precisava obter de cada instante uma nova confirmao da minha existncia e no possua nada de um modo prprio, indubitvel, exclusivo, decidido apenas por mim - um filho deserdado, na verdade - era natural que at a coisa mais prxima, o prprio corpo, se tornasse incerto para mim; cresci e espichei para cima, mas no sabia o que fazer com isso, o fardo era pesado demais, a coluna ficou encurvada; mal ousava me mover, menos ainda fazer exerccios, e permaneci fraco; tudo aquilo de que dispunha me espantava como um milagre, por exemplo minha boa digesto; isso foi o bastante para perd-la, e assim ficou aberto o caminho para toda hipocondria, at que, com o esforo sobre-humano de querer casar (vou ainda falar sobre isso), o sangue me saiu dos pulmes, para o que deve ter contribudo o apartamento do palcio Schnbornxxii - do qual eu precisava s porque o achava necessrio para escrever, e por isso que ele tambm deve constar desta carta. Portanto nada provinha do trabalho excessivo, como voc sempre imagina. Houve anos em que, com plena sade, passei vegetando no canap mais tempo do que voc a vida inteira, incluindo todas as doenas. Quando eu corria de voc, sumamente atarefado, era, na maioria das vezes para ficar deitado no meu quarto. Tanto no escritrio (onde entretanto a preguia no chama muito a ateno e onde, alm disso, ela era mantida dentro de limites pelo meu medo), como em casa, meu rendimento geral era mnimo; voc ficaria horrorizado se tivesse uma idia geral a esse respeito. Provavelmente no sou preguioso por natureza, mas eu no tinha nada para fazer. Onde quer que vivesse, eu me sentia recriminado, condenado, batido, e na verdade o meu maior esforo era fugir para qualquer outro lugar, mas isso no era trabalho, pois se tratava de algo impossvel e, com raras excees, inacessvel s minhas foras.

Foi nesse estado, pois, que recebi a liberdade de escolher uma profisso. Mas ser que eu ainda era realmente capaz de usar essa liberdade? Julgava-me ainda em condies de chegar a ter uma verdadeira profisso? Minha auto-avaliao era muito mais dependente de voc do que de qualquer outra coisa, por exemplo de um xito externo. Este era o reforo de um instante, mais nada, no entanto do outro lado o seu peso me puxava para baixo com muito mais vigor. Eu pensava: nunca vou passar do primeiro ano primrio, mas consegui e at recebi um prmio; certamente porm no vou ser aprovado na admisso ao ginsio, mas fui bem-sucedido; agora entretanto vou sem dvida fracassar no primeiro ano ginasial - no, no fracassei, e assim continuei sempre em frente. Mas o efeito no foi um incremento de confiana; pelo contrrio, sempre estive convencido - e tinha a prova formal disso na sua cara de rejeio - de que quanto mais xito tivesse, pior deveria ser o resultado final. Muitas vezes eu via mentalmente a medonha assemblia de professores (o ginsio apenas o exemplo mais homogneo, mas por toda parte ao meu redor era parecido), que iria se reunir quando eu tivesse passado a primeira srie, ou seja, estivesse na segunda; quando tivesse passado esta, ou seja, na terceira, e assim por diante - para investigar esse caso nico, que clamava ao cu, e perguntar como eu, o mais incapaz e seja como for o mais ignorante, tinha conseguido chega sub-repticiamente at aquela srie; e uma vez que a ateno geral estava voltada para mim, eles naturalmente me cuspiriam fora sem mais delongas, para jbilo de todos os justos libertados desse pesadelo. Para uma criana no fcil viver com essas imagens. Em tais circunstncias, que me importavam as aulas? Quem era capaz de arrancar de mim uma fagulha de interesse? A mim as aulas - e no s elas, mas tudo em volta, nessa idade decisiva - interessavam mais ou menos como interessam a um funcionrio de banco que deu um desfalque, mas que ainda est no emprego e treme de medo de ser descoberto, as pequenas operaes correntes do negcio bancrio que ele ainda precisa realizar como funcionrio. Tudo to pequeno, to distante em relao ao essencial. Assim continuaram as coisas at o exame final do curso secundrio, no qual realmente s fui aprovado graas em parte fraude, e ento tudo estacou: agora eu estava livre. Se a despeito da coero do ginsio e do colgio eu j me preocupava s comigo mesmo, como seria agora, que estava livre? Para mim, portanto, no houve propriamente liberdade de escolha da profisso, pois eu sabia que diante do essencial tudo me seria to indiferente como todas as matrias letivas do secundrio; tratava-se pois de encontrar uma profisso que, sem ferir demais a minha vaidade, permitisse, mais que qualquer outra, essa indiferena. O mais natural, portanto, era Direito. Pequenas tentativas em sentido contrrio, nascidas da vaidade e da esperana insensata, como duas semanas de estudo de Qumica, meio ano de estudos germansticos, s fortaleciam aquela convico bsica. Estudei, pois, Direito. Isso significava que nos poucos meses antes das provas, com rgio prejuzo dos nervos, eu alimentava o esprito literalmente de serragem, que alm do mais j tinha sido mastigada por mil bocas antes de mim. Mas em certo sentido isso me sabia bem - justamente como antes, num certo sentido, tambm o secundrio e, mais tarde, a profisso de burocrata, pois tudo correspondia perfeitamente minha situao. Seja como for, mostrei aqui uma previso espantosa: quando menino j tinha pressentimentos suficientemente claros a respeito de estudos e profisso. A partir da no esperava nenhuma salvao, fazia muito tempo que havia renunciado a ela.

Mas no mostrei previso alguma a respeito do significado e da possibilidade de um casamento: para mim esse terror, at agora o maior da minha vida, sobreveio de maneira quase inteiramente inesperada. O menino tinha evoludo to devagar, essas coisas estavam to apartadas dele, de vez em quando se manifestava a necessidade de pensar nisso, mas no era possvel reconhecer que aqui se preparava uma prova duradoura, decisiva, at mesmo a mais amarga de todas. Mas na realidade as tentativas de casamento se tornaram a tentativa de salvao mais grandiosa e mais cheia de esperana, e o fracasso depois foi com certeza de uma grandiosidade correspondente.

Uma vez que nessa rea tudo me sai mal, temo que tambm no vou conseguir tornar compreensvel a voc minhas tentativas de casamento. E no entanto o xito de toda esta carta depende disso, pois por um lado tudo aquilo de que eu dispunha em foras positivas se reunia nessas tentativas e, por outro, aqui tambm se juntavam, com verdadeira fria, todas as foras negativas que eu descrevi como seqela da sua educao, ou seja, a fraqueza, a falta de autoconfiana, a conscincia de culpa, que literalmente estendiam um cordo de isolamento entre mim e o casamento. A explicao tambm ser difcil porque repensei e revolvi tudo sem cessar, durante dias e noites, de tal modo que agora a viso confusa at para mim. A explicao s me fica facilitada pela compreenso, a meu ver totalmente equivocada, que voc tem do problema; no parece demasiado difcil corrigir, um pouco, mal-entendido to completo.

Em primeiro lugar, voc inclui na lista dos meus outros fracassos o malogro diante do casamento; eu no teria nada contra isso desde que voc aceitasse a explicao que dei at agora do meu insucesso. De fato ele entra na lista s porque voc deprecia o significado da questo - e o deprecia de tal forma que ns, quando conversamos a respeito, na verdade falamos de coisas inteiramente diferentes. Ouso dizer que em toda a sua vida no aconteceu nada que tivesse assumido um tal significado para voc como, para mim, as tentativas de casamento. No quero dizer com isso que no tenha vivido nada to importante; pelo contrrio, sua vida foi muito mais rica, cheia de preocupaes e densa do que a minha, mas exatamente por isso no lhe aconteceu nada dessa natureza. como se algum tivesse de subir cinco degraus de escada e uma segunda pessoa apenas um degrau, mas que, pelo menos para ela, to alto quanto aqueles cinco juntos; o primeiro vai vencer no s os cinco degraus, mas tambm centenas e milhares de outros, ter levado uma vida ampla e muito fatigante, porm nenhum dos degraus que subiu ter sido para ele to importante como, para o segundo, aquele degrau nico, primeiro, alto, impossvel de escalar com as foras todas de que dispe, e que ele no s no pode subir, como tambm passar por cima.

Estou convencido de que casar, fundar uma famlia, acolher todos os filhos que vierem, mant-los neste mundo inseguro e gui-los um pouco, o mximo que um homem pode em geral conseguir. O fato de serem tantos os que o conseguem no uma prova em contrrio, pois em primeiro lugar efetivamente no so muitos os que conseguem, e em segundo esses poucos no o "fazem", simplesmente "acontece" com eles; na verdade no aquele mximo, mas algo muito grande e muito honroso (principalmente porque "fazer" e "acontecer" no se deixam distinguir nitidamente um do outro). E afinal tambm no se trata de modo algum desse mximo, e sim de alguma aproximao remota, porm decente; sem dvida no necessrio voar para o meio do sol, mas ir rastejando at um lugarzinho limpo sobre a terra, onde ele s vezes brilha e onde possvel se aquecer um pouco.

Como que eu estava preparado para isso? Da pior maneira possvel. J se pode deduzi-lo do que foi dito at aqui. Mas at o ponto em que existe uma preparao direta do indivduo e uma criao direta das condies bsicas gerais, voc exteriormente interveio pouco. Tambm no h outra possibilidade, pois aqui decidem os costumes sexuais gerais da classe, do povo e da poca. Seja como for, tambm a voc interveio, no muito, pois o pressuposto para essa interveno s pode ser a forte confiana mtua, e ela nos faltou a ambos j muito antes do momento decisivo; e no foi uma interveno muito feliz porque nossas necessidades eram completamente diferentes: o que me arrebata capaz de deix-lo quase insensvel e vice-versa; o que em voc inocncia, em mim pode ser culpa e vice-versa; o que para voc no tem conseqncias pode ser a tampa do meu caixo.

Eu me recordo: certa vez estava passeando noite com voc e minha me; era na Josefsplatz, perto do atual Banco das Provncias e eu comecei a falar tolamente, com empfia, superioridade, orgulho, sobriedade (falsa), frieza (autntica) e gaguejando, como na maioria das vezes falava com voc, sobre coisas de interesse, recriminei-os pelo fato de ter sido deixado na ignorncia, de que s os meus colegas de classe precisaram se dar conta de que eu tinha chegado perto de grandes perigos (aqui, minha maneira, menti vergonhosamente, para me mostrar corajoso, pois em decorrncia da minha timidez no tinha uma idia mais precisa dos "grandes perigos"), mas para concluir insinuei que agora felizmente j sabia de tudo, no precisava mais de conselho e as coisas estavam em ordem. Seja como for, eu tinha comeado a falar daquilo porque me dava gosto, pelo menos de falar a respeito, mas depois tambm por curiosidade e finalmente para de algum modo me vingar em vocs de alguma coisa.

De acordo com a sua natureza, voc conduziu o assunto de um modo muito simples, disse apenas mais ou menos que poderia me dar um conselho sobre como eu poderia fazer essas coisas sem perigo. Talvez eu tivesse querido justamente provocar uma resposta assim, que sem dvida correspondia lubricidade do menino supernutrido de carne e de todas as coisas boas, fisicamente inativo e eternamente preocupado consigo mesmo, mas apesar disso o meu pudor ficou to ferido - ou ento eu acreditava que devia estar to ferido assim - que contra a minha vontade no pude mais falar sobre aquilo com voc e interrompi a conversa com uma altiva insolncia.

No fcil julgar a resposta que ento voc me deu: por um lado ela sem dvida tinha algo de brutalmente franco, de certo modo primitivo, mas por outro, quanto ao ensinamento propriamente dito, ela de uma desenvoltura muito do nosso tempo. No sei que idade eu ento tinha, certamente no mais que dezesseis anos. Mas para um rapaz como eu era uma resposta muito curiosa - e a distncia entre ns dois se mostra tambm no fato de que era em verdade o primeiro ensinamento direto, de alcance para a vida, que eu recebia de voc. Mas o seu verdadeiro sentido, que j ento mergulhou no meu ser e que s muito mais tarde me veio pela metade conscincia, era o seguinte: aquilo que me aconselhava - na sua opinio e mais ainda na minha opinio da poca - era a coisa mais suja que havia. O fato de voc querer impedir que eu trouxesse para casa sujeira no corpo era secundrio; com isso protegia s a si prprio e a sua casa. O essencial era muito mais que voc ficava fora do seu conselho, um homem casado, um homem limpo, superior a essas coisas; para mim, provavelmente, naquela poca, isso se agravava mais ainda pela circunstncia de que tambm o casamento me parecia desavergonhado e que, portanto, era impossvel que eu aplicasse aos meus pais o que eu tinha ouvido sobre o casamento em geral. Desse modo voc se tornava mais puro ainda, elevava-se ainda mais. A idia de que tivesse podido dar, tambm a si mesmo, um conselho semelhante antes do casamento, me era totalmente impensvel. Assim, pois, no havia quase nenhum restinho de sujeira terrena em voc. E no entanto, com algumas palavras francas voc me atirava nessa sujeira como se eu estivesse destinado a ela. Pois se o mundo consistia apenas em mim e voc - uma idia a que muito me inclinava - ento essa pureza do mundo acabava em voc e comigo comeava a sujeira, por fora do seu conselho. A rigor era incompreensvel que voc me condenasse assim; a nica coisa que me poderia tornar isso claro era a antiga culpa e o mais profundo desprezo da sua parte. Desse modo, portanto, eu era outra vez arrebatado no mais ntimo do meu ser - e muito duramente.

Talvez seja aqui tambm o ponto em que a ausncia de culpa de ambos fica mais clara. A d a B um conselho franco, correspondente sua concepo de vida, no muito bonito, mas de qualquer modo ainda hoje perfeitamente usual na cidade e que talvez impea prejuzos sade. Moralmente esse conselho no muito reconfortante para B, mas no h razo alguma para que, no curso dos anos, ele no se recupere do dano; de mais a mais, ele certamente no precisa seguir o conselho e, seja como for, no h no prprio conselho nenhum motivo para que todo o mundo futuro de B desmorone. E no entanto alguma coisa assim aconteceu, mas s porque voc A e eu sou B.

Consigo ter uma viso global particularmente boa dessa ausncia de culpa de ambos os lados porque, cerca de vinte anos mais tarde, voltou a ocorrer, em condies completamente diferentes, uma coliso semelhante entre ns - horrenda como fato concreto, mas em si mesma muito menos danosa, pois afinal onde havia em mim, aos trinta e seis anos de idade, alguma coisa que ainda pudesse ser danificada? Refiro-me a um breve pronunciamento seu num dos dias agitados depois da comunicao do meu ltimo projeto de casamento. Voc me disse mais ou menos o seguinte: "Provavelmente ela vestiu alguma blusa escolhida, como sabem fazer as judias de Praga, e naturalmente voc logo decidiu casar com ela. E na verdade o mais rpido possvel, numa semana, amanh, hoje. Eu no o entendo, voc j uma pessoa adulta, vive na cidade, e no lhe ocorre coisa melhor do que se casar imediatamente com qualquer uma que aparece. Ser que no existem outras possibilidades? Se voc tem medo, eu o acompanho pessoalmente". Voc falou isso de um modo mais minucioso e mais claro, mas j no consigo me lembrar dos pormenores, talvez a minha vista tenha ficado um pouco nublada, minha me quase me despertava mais interesse quando - no obstante estivesse completamente de acordo com voc - pegou alguma coisa da mesa e saiu com ela da sala. Dificilmente voc me humilhou mais fundo com palavras do que dessa vez, nem nunca o seu desprezo se mostrou mais ntido para mim. Quando, vinte anos antes, voc falou comigo de forma semelhante, seria possvel ver naquilo, inclusive com os seus olhos, um pouco de respeito pelo jovem precoce da cidade que, na sua opinio, j podia ser introduzido sem rodeios na vida. Hoje essa considerao poderia aumentar ainda mais o desprezo, pois o jovem, que na poca tomava impulso, ficou empacado nele, e atualmente voc o v no mais rico em experincias, mas sim vinte anos mais deplorvel. O fato de eu ter me decidido por uma moa no significa absolutamente nada para voc. Voc (inconscientemente) sempre manteve l embaixo minha capacidade de deciso, e acreditava agora (inconscientemente) saber o que ela valia. Das minhas tentativas de salvao em outras direes voc no sabia nada, por isso tambm no podia saber nada dos processos de pensamento que me haviam levado a essa deciso de me casar; precisava tentar adivinh-los e, de acordo com o julgamento geral que tinha a meu respeito, me aconselhou o que h de mais abominvel, grosseiro e ridculo. E no hesitou um s instante em me dizer isso exatamente daquela maneira. A vergonha que assim me causou no era nada em comparao com a vergonha que, na sua opinio, eu iria infligir ao seu nome com esse casamento.

Ora, voc pode me responder muitas coisas - e j o fez - a respeito das minhas tentativas de casamento: no seria possvel ter muito respeito pela minha deciso, j que duas vezes desfiz e duas vezes assumi o noivado com F.xxiii , e j que arrastei inutilmente a Berlim voc e minha me para o noivado e coisas desse gnero. tudo verdade, mas como se chegou a isso?

A idia bsica das duas tentativas de casamento era inteiramente correta: estabelecer um lar, ficar independente. Uma idia que certamente lhe simptica, s que na realidade ela no se realiza, maneira do jogo infantil em que um segura a mo do outro, inclusive apertando-a, e grita: "V embora, v embora! Por que voc no vai embora?" O que, neste caso, se complicou, porque o "v embora!" sempre foi dito com sinceridade, uma vez que desde sempre, sem o saber, apenas pela fora do seu temperamento, voc me retinha, ou melhor: me subjugava.

As duas moasxxiv foram de fato escolhidas por casualidade, mas extremamente bem escolhidas. Mais um indcio da sua compreenso totalmente equivocada o fato de que voc possa crer que eu, o medroso, o hesitante, o desconfiado, me decida de um golpe por um casamento, fascinado talvez por uma blusa. Pelo contrrio, ambos os casamentos teriam se tornado casamentos dirigidos pela razo, na medida em que toda a fora do meu raciocnio foi dia e noite empregada nesse plano, a primeira vez durante anos, a segunda vez durante meses.

Nenhuma das moas me decepcionou, s eu as decepcionei. Meu juzo sobre elas exatamente o mesmo do tempo em que queria despos-las.

No que na segunda tentativa de casamento em tenha desconsiderado as experincias da primeira, ou seja: que tenha sido leviano. Os dois casos eram completamente diferentes um do outro, justamente as experincias anteriores podiam ter-me dado esperana no segundo caso, que tinha perspectivas mais ricas. No quero aqui entrar em detalhes.

Por que ento no me casei? Havia obstculos especficos, como em toda parte, mas a vida consiste exatamente em aceitar tais obstculos. O obstculo essencial, porm - infelizmente autnomo em relao ao caso individual - era que, do ponto de vista espiritual, sou manifestamente incapaz de me casar. Isso se expressa no fato de que, a partir do momento em que decido me casar, no consigo dormir, a cabea arde dia e noite, isto j no vida, fico oscilando desesperado de um lado para outro. No so propriamente as preocupaes que provocam isso, na verdade correm juntas inmeras preocupaes, de acordo com a minha melancolia e meticulosidade, mas no so elas o decisivo; de fato, elas levam a cabo, como os vermes, o trabalho no cadver; o que me atinge de modo decisivo uma outra coisa. a presso generalizada do medo, da fraqueza, do autodesprezo.

Quero tentar explic-lo melhor: na tentativa de casamento confluem, nas minhas relaes com voc, duas coisas aparentemente opostas, to fortes como em nenhuma outra parte. O casamento certamente a garantia da mais ntida autolibertao e independncia. Eu teria uma famlia, o mximo que na minha opinio se pode alcanar, ou seja: tambm o mximo que voc alcanou; eu seria igual a voc, a velha e eternamente nova vergonha seria apenas u