KAFKA, Franz - Os Melhores Contos de Kafka

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    Este um trabalho de divulgao de livros encontrados por mim na internet para que possaproporcionar o benefcio de um acesso queles que no teriam um outro meio para tal.Segundo a filosofia budista existem quatro formas de generosidade:- Partilhar os ensinamentos que geram paz interior da forma adequada mente e cultura daspessoas, sem esperar pagamento ou recompensa.- Oferecer coisas materiais, como nosso corpo e nossos recursos.

    - Oferecer proteo, consolo e coragem. Podemos proteger os outros de perigose outros humanos, de no-humanos e dos elementos.- Oferecer amor (oferecer incondicionalmente aos outros nosso tempo, apoio emocional, energiapositiva e boas vibraes).Aps sua leitura considere, dentro do possvel, a possibilidade de adquirir o original, pois assim vocestar incentivando o autor e a publicao de novas obras.

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    Contos

    Franz Kafka

    O Exame

    Sou um criado, mas no h trabalho para mim. Sou medroso e no me

    ponho em evidncia; nem sequer me coloco em fila com os outros, mas isto

    apenas uma das causas de minha falta de ocupao; tambm possvel que

    minha falta de ocupao nada tenha a ver com isso; o mais importante , em

    todo caso, que no sou chamado a prestar servio; outros foram chamados e

    no fizeram mais gestes que eu; e talvez nem mesmo tenham tido alguma vez

    o desejo de serem chamados, enquanto que eu o senti, s vzes, muito

    intensamente. Assim permaneo, pois, no catre, no quarto de criados, o olhar

    fixo nas vigas do teto, durmo, desperto e, em seguida, torno a adormecer. s

    vzes cruzo at a taverna onde servem cerveja azda; algumas vzes por

    desfastio emborquei um copo, mas depois volto a beber.

    Gosto de sentar-me ali por que, atrs da pequena janela fechada e sem que

    ningum me descubra, posso olhar as janelas de nossa casa. No se v grande

    coisa; sbre a rua, do, segundo creio, apenas as janelas dos corredores, e

    alm do mais, no daqueles que conduzem aos aposentos dos senhores;

    possvel tambm que eu me engane; algum o sustentou certa vez, sem que eulho perguntasse, e a impresso geral da fachada o confirma. Apenas de vez em

    quando so abertas as janelas, e quando isso acontece, o faz um criado, o qual,

    ento, se inclina tambm sbre o parapeito para olhar para baixo um

    instantinho. So, pois, corredores onde no se pode ser surpreendido. Alm do

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    mais no conheo esses criados; os que so ocupados permanentemente na

    parte de cima, dormem em outro lugar; no em meu quarto.

    Uma vez, ao chegar hospedaria, um hspede ocupava j o meu posto de

    observao; no me atrevi a olhar diretamente para onde estava e quis voltar-me na porta para sair em seguida. Mas o hspede me chamou e, assim, ento,

    percebi que era tambm um criado ao qual eu tinha visto alguma vez e em

    alguma parte, embora sem ter falado nunca com ele at aquele dia. Por que

    queres fugir? Senta-te aqui e bebe. Eu pago. Sentei-me, pois. Perguntou-me

    algo, mas no pude responder-lhe; no compreendia sequer as perguntas. Pelo

    menos eu disse: Talvez agora te aborrea o fato de ter-me convidado. Vou-

    me, pois. E quis erguer-me. Mas ele estendeu a mo por cima da mesa e me

    manteve em meu lugar. Fica-te!, disse. Isto era somente um exame. Aquele

    que no respondesse s perguntas est aprovado no exame.

    A Ponte

    Eu era rgido e frio, eu era uma ponte; estendido sobre um precipcio eu

    estava. Aqum estavam as pontas dos ps, alm, as mos, encravadas; no ldo

    quebradio mordi, firmando-me. As pontas da minha casaca ondeavam aos

    meus lados. No fundo rumorejava o gelado arroio das trutas. Nenhum turista

    se extraviava at estas alturas intransitveis, a ponte no figurava ainda nos

    mapas. Assim jazia eu e esperava; devia esperar. Nenhuma ponte que tenha

    sido construda alguma vez, pode deixar de ser ponte sem destruir-me. Foicerta vez, para o entardecer se foi o primeiro, se foi o milsimo, no o sei

    meus pensamentos andavam sempre confusos, giravam, sempre em crculo.

    Para o entardecer, no vero, obscuramente murmurava o arroio, quando ouvi o

    passo de um homem.

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    A mim, a mim. Estira-te, ponte, coloca-te em posio, viga rf de

    balastres, sustm aquele que te foi confiado. Nivela imperceptivelmente a

    incerteza de seu passo, mas se cambaleia, d-te a conhecer e, como um deus

    da montanha, atira-o terra firme. Veio, golpeou-me com a ponta frrea deseu basto, depois ergueu com ela as pontas de minha casaca e arrumou-as

    sbre mim. Com a ponta andou entre meu cabelo emaranhado e a deixou

    longo tempo ali dentro, olhando provavelmente com olhos selvagens ao seu

    redor. Mas ento quando eu sonhava atrs dele sobre montanhas e vales

    saltou, caindo com ambos os ps na metade de meu corpo. Estremeci-me em

    meio da dor selvagem, ignorante de tudo o mais.

    Quem era? Uma criana? Um sonho? Um assaltante de estrada? Um

    suicida? Um tentador? Um destruidor? E voltei-me para v-lo. A ponta de

    volta! No me voltara ainda, e j me precipitava, precipitava-me e j estava

    dilacerado e varado nos pontiagudos calhaus que sempre me tinham olhado

    to aprazilvelmente da gua veloz.

    Comunidade

    Somos cinco amigos; uma vez samos um atrs do outro de uma casa;

    primeiro veio um e ps-se junto entrada, depois veio, ou melhor dito,

    deslizou-se to ligeiramente como se desliza uma bolinha de mercrio, o

    segundo e se ps no distante do primeiro, depois o terceiro, depois o quarto,

    depois o quinto. Finalmente, estvamos todos de p, em uma linha. A gente

    fixou-se em ns e assinalando-nos, dizia: os cinco acabam de sair dessa casa.A partir dessa poca vivemos juntos, e teramos uma existncia pacfica se um

    sexto no viesse sempre intrometer-se. No nos faz nada, mas nos incomoda,

    o que j bastante; porque se introduz por fra ali onde no querido? No o

    conhecemos e no queremos aceit-lo. Ns cinco tampouco nos conhecamos

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    antes e, se quer, tampouco nos conhecemos agora, mas aquilo que entre ns

    cinco possvel e tolerado, no nem possvel nem tolerado com respeito

    quele sexto.

    Alm do mais somos cinco e no queremos ser convivncia permanente, seentre ns cinco tampouco tem sentido, mas ns estamos j juntos e

    continuamos juntos, mas no queremos uma nova unio, exatamente em razo

    de nossas experincias. Mas, como ensinar tudo isto ao sexto, psto que

    longas explicaes implicariam j em uma aceitao de nosso crculo?

    prefervel no explicar nada e no o aceitar. Por muito que franza os lbios,

    afastamo-lo, empurrando-o com o cotovelo, mas por mais que o faamos,

    volta outra vez.

    Das Alegorias

    Muitos se queixam de que as palavras dos sbios sejam sempre alegorias,

    porm inaplicveis na vida diria, e isto o nico que possumos. Quando o

    sbio diz: "Anda para ali", no quer dizer que algum deva passar para o outro

    lado, o que sempre seria possvel se a meta do caminho assim o justificasse,

    porm que se refere a um local legendrio, algo que nos desconhecido, que

    tampouco pode ser precisado por ele com maior exatido e que, portanto, de

    nada pode servir-nos aqui.

    Em realidade, todas essas alegorias apenas querem significar que o

    inexeqvel inexeqvel, o que j sabamos. Mas aquilo em que

    cotidianamente gastamos as nossas energias, so outras coisas. A estepropsito disse algum: "Por que vos defendeis? Se obedecsseis s alegorias,

    vs mesmos vos tereis convertido em tais, com o que vos tereis libertado da

    fadiga diria." Outro disse: "Aposto que isso tambm uma alegoria." Disse o

    primeiro: "Ganhaste".

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    Disse o segundo: "Mas por infelicidade, apenas naquilo sobre alegoria". O

    primeiro disse: "Em verdade, no; no que disseste da alegoria perdeste."

    De NoiteSubmergir-se em a noite! Assim como s vezes se enterra a cabea no peito

    para refletir, fundir-se assim por completo em a noite. Em redor dormem os

    homens. Um pequeno espetculo, um auto-engado inocente, o dormir em

    casas, em camas slidas, sob teto seguro, estendidos ou encolhidos, sobre

    colches, entre lenis, sob cobertas; na realidade, encontram-se reunidos

    como outrora uma vez e como depois em uma comarca deserta: um

    acampamento intemprie, uma incontvel quantidade de pessoas, um

    exrcito, um povo sob um cu frio, sobre uma terra fria, atirados ao solo ali

    onde antes se esteve de p, com a fronte apertada contra o brao, e a cara

    contra o solo, respirando tranqilamente. E tu velas, s um dos vigias,

    encontras ao prximo agitando o madeiro aceso que tomaste do monto de

    estilhas, junto a ti. Por que velas? Algum tem que velar, se disse. Algum

    precisa estar a.

    Diante da Lei

    Diante da Lei est um guarda. Vem um homem do campo e pede para

    entrar na Lei. Mas o guarda diz-lhe que, por enquanto, no pode autorizar lhe

    a entrada. O homem considera e pergunta depois se poder entrar mais tarde.

    " possvel" diz o guarda. "Mas no agora!". O guarda afasta-se entoda porta da Lei, aberta como sempre, e o homem curva-se para olhar l dentro.

    Ao ver tal, o guarda ri-se e diz. "Se tanto te atrai, experimenta entrar,

    apesar da minha proibio. Contudo, repara sou forte. E ainda assim sou o

    ltimo dos guardas. De sala para sala esto guardas cada vez mais fortes, de

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    tal modo que no posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim".

    O homem do campo no esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser

    acessvel a toda a gente e sempre, pensa ele. mas, ao olhar o guarda envolvido

    no seu casaco forrado de peles, o nariz agudo, a barba trtaro, longa, delgadae negra, prefere esperar at que lhe seja concedida licena para entrar. O

    guarda d-lhe uma banqueta e manda-o sentar ao p da porta, um pouco

    desviado. Ali fica, dias e anos. Faz diversas diligncias para entrar e com as

    suas splicas acaba por cansar o guarda. Este faz-lhe, de vez em quando,

    pequenos interrogatrios, perguntando-lhe pela ptria e por muitas outras

    coisas, mas so perguntas lanadas com indiferena, semelhana dos grandes

    senhores, no fim, acaba sempre por dizer que no pode ainda deix-lo entrar.

    O homem, que se provera bem para a viagem, emprega todos os meios

    custosos para subornar o guarda. Esse aceita tudo mas diz sempre: "Aceito

    apenas para que te convenas que nada omitiste". Durante anos seguidos,

    quase ininterruptamente, o homem observa o guarda. Esquece os outros e

    aquele afigura ser-lhe o nico obstculo entrada na Lei.

    Nos primeiros anos diz mal da sua sorte, em alto e bom som e depois, ao

    envelhecer, limita se a resmungar entre dentes. Torna-se infantil e como, ao

    fim de tanto examinar o guarda durante anos lhe conhece at as pulgas das

    peles que ele veste, pede tambm s pulgas que o ajudem a demover o guarda.

    Por fim, enfraquece-lhe a vista e acaba por no saber se est escuro em seu

    redor ou se os olhos o enganam. Mas ainda apercebe, no meio da escurido,

    um claro que eternamente cintila por sobre a porta da Lei. Agora a morte estaprxima. Antes de morrer, acumulam-se na sua cabea as experincias de

    tantos anos, que vo todas culminar numa pergunta que ainda no fez ao

    guarda. Faz lhe um pequeno sinal, pois no pode mover o seu corpo j

    arrefecido. O guarda da porta tem de se inclinar at muito baixo porque a

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    diferena de alturas acentuou-se ainda mais em detrimento do homem do

    campo.

    "Que queres tu saber ainda?", pergunta o guarda. "s insacivel".

    "Se todos aspiram a Lei", disse o homem. "Como que, durante todosesses anos, ningum mais, seno eu, pediu para entrar. O guarda da porta,

    apercebendo se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase

    inerte. "Aqui ningum mais, seno tu, podia entrar, porque s para ti era

    feita esta porta. Agora vou me embora e fecho-a".

    Fbula Curta

    "Ai de mim!", disse o rato, "o mundo vai ficando dia a dia mais estreito".

    "Outrora, to grande era que ganhei medo e corri, corri at que finalmente

    fiquei contente por ver aparecerem muros de ambos os lados do horizonte,

    mas estes altos muros correm to rapidamente um ao encontro do outro que

    eis-me j no fim do percurso, vendo ao fundo a ratoeira em que irei cair". "

    Mas o que tens a fazer mudar de direo", disse o gato, devorando-o.

    O Abutre

    Era um abutre que me dava grandes bicadas nos ps. Tinha j dilacerado

    sapatos e meias e penetrava-me a carne. De vez em quando, inquieto,

    esvoaava minha volta e depois regressava faina. Passava por ali um

    senhor que observou a cena por momentos e me perguntou depois como eu

    podia suportar o abutre. que estou sem defesa respondi. Ele veio eatacou-me. Claro que tentei lutar, estrangul-lo mesmo, mas muito forte, um

    bicho destes! Ia at saltar-me cara, por isso preferi sacrificar os ps. Como

    v, esto quase despedaados. Mas deixar-se torturar dessa maneira!

    disse o senhor. Basta um tiro e pronto! Acha que sim? disse eu.

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    Quer o senhor disparar o tiro? Certamente disse o senhor. s ir a

    casa buscar a espingarda. Consegue agentar meia hora? No sei lhe dizer

    respondi. Mas sentindo uma dor pavorosa, acrescentei: De qualquer

    modo, v, peo-lhe. Bem disse o senhor. Vou o mais depressapossvel. O abutre escutara tranqilamente a conversa, fitando-nos

    alternadamente. Vi ento que ele percebera tudo. Elevou-se com um bater de

    asas e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lanador de dardo,

    enfiou-me o bico pela boca at ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti,

    com que alvio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos

    infinitos do meu sangue.

    O Escudo da Cidade

    Quando se comeou a construir a torre de Babel, tudo estava muito em

    ordem; e talvez a ordem fosse excessiva; pensava-se demais em indicadores

    de caminhos, intrpretes; alojamentos para trabalhadores e rotas de enlace,

    como se se dispusesse de sculos e outras tantas probabilidades de trabalhar

    livremente. A opinio ento reinante chegava at a estabelecer que toda

    lentido para construir seria pouca; no era preciso exagerar muito esta

    opinio para retroceder ante a prpria idia de pr as bases. Argumentava-se

    deste modo: em toda a empresa, o positivo a idia de construir uma torre que

    chegue ao cu.

    Diante desta idia o resto acessrio. Uma vez captado o pensamento em

    toda sua grandeza, no pode desaparecer j: enquanto existem os homens,perdurar o desejo intenso de terminar a construo da torre. Neste sentido

    no h o que temer pelo futuro, pois antes do mais, o saber da humanidade vai

    em aumento, a arte da construo fez progressos e far ainda outros novos; um

    trabalho para o qual necessitamos uma ano, ser realizado dentro de um

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    sculo, talvez em apenas seis meses e, por acrescentamento, melhor e mais

    duradouramente.

    Por que esgotar-se, pois, desde j at o limite das foras? Isso teria sentido

    se se pudesse esperar que a torre fosse construda num lapso de uma gerao.Isto, contudo, de nenhum modo era dado acredit-lo. Pois bem, poderia

    pensar-se que a prxima gerao, com seus mais amplo saber, haveria de

    achar mau o trabalho da gerao precedente e que teria de demolir o

    construdo para tornar a comear. Pensamentos deste gnero paralisavam as

    foras, e a edificao da cidade operria deslocava a construo da torre.

    Cada grupo regional queria possuir o bairro mais formoso, pelo que

    sobrevieram regras que redundaram em sangrentos combates. Estas lutas eram

    incessantes; o que serviu de argumento aos chefes para que, por falta da

    necessria concentrao, a torre fosse erguida muito lentamente, ou, melhor

    ainda, apenas ao fim de estipulada uma paz geral. Mas no se perdeu tempo

    to somente em combates, pois durante as trguas se embelezou a cidade, o

    que deu origem a novas invejas e novas lutas. Assim transcorreu o lapso da

    primeira gerao, mas nenhuma das que seguiram foi diferente; apenas a

    destreza ia em aumento constante e, com ela, a sede de luta. A isso veio

    somar-se que a segunda ou terceira gerao reconheceram a insensatez da

    construo da torre, mas os vnculos mtuos eram j demasiado fortes como

    para que se pudesse deixar a cidade. Tudo quanto est entroncado com a lenda

    e a cano que surgisse na cidade est cheio da nostalgia para o anunciado dia

    no qual a cidade seria aniquilada por cinco breves golpes e sucessivamentedescarregados sobre ela por um punho gigantesco. Por isso tem a cidade um

    punho no escudo.

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    O Timoneiro

    No sou acaso timoneiro? exclamei. Tu? perguntou um homem

    alto e escuro, e passou as mos pelos olhos, como se dissipasse um sonho. Eu

    estivera ao timo em noites escuras, com a dbil luz do farol sobre a minhacabea, e agora tinha vindo aquele homem e queria pr-me de lado.

    E como eu no cedesse, ps o p sobre o meu peito e empurrou-me

    lentamente contra o solo, enquanto eu continuava sempre aferrada roda do

    timo e a arrancava ao cair. Ento o homem apoderou-se dela, p-la em seu

    lugar e me deu um empurro, afastando-me. Refiz-me depressa, contudo, fui

    at a escotilha que levava ao alojamento da tripulao, e gritei: Tripulantes!

    Camaradas! Venham depressa! Um estranho tirou-me do timo! Chegaram

    lentamente, subindo pela escadinha, eram formas poderosas, oscilantes,

    cansadas. Sou eu o timoneiro? perguntei. Assentiram, porm apenas

    tinham olhares para o estranho, ao qual rodeavam em semicrculo, e quando

    com voz de mando ele disse: "No me aborream", reuniram-se, olharam-me

    assentindo com a cabea e desceram outra vez a escadinha. Que povo este?

    Pensa tambm, ou apenas se arrasta sem sentido sobre a terra?

    O Vizinho

    Meu negcio descansa inteiramente sobre os meus ombros. Duas

    senhoritas com suas mquinas de escrever e seus livros comerciais no

    primeiro quarto, e uma escrivaninha, caixa, mesa de informaes, cadeiras de

    braos e telefone no meu, constituem todo meu aparelhamento de trabalho. muito fcil controlar isso com uma vista de olhos, e dirigi-lo. Sou muito

    jovem e os negcios se acumulam aos meus ps.

    No me queixo, no me queixo. Desde o Ano Novo, um jovem alugou sem

    hesitar a sala contgua, pequena e desocupada, que por tanto tempo titubeei,

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    estupidamente, em tomar para mim. Trata-se de um quarto com antecmara e,

    alm do mais, uma cozinha. Tivesse podido utilizar o quarto e a antecmara

    minhas duas empregadas sentiram-se mais uma vez sobrecarregadas em suas

    tarefas , mas, para que me teria servido a cozinha? Esta pequena hesitao foia causa de permitir que me tirassem a sala. Nela est instalado, pois, esse

    jovem. Chama-se Harras. Com exatido no sei o que faz ali. Sobre a porta l-

    se: "Harras, escritrio". Pedi informaes, comunicaram-me que se trataria de

    um negcio idntico ao meu. Na realidade, no vem ao caso dificultar-lhe a

    concesso de crdito, pois se trata de um homem jovem e de aspiraes, cujas

    atividades tenham talvez futuro, mas no se poderia, contudo, aconselhar que

    se lhe outorgue crdito, pois atualmente, segundo todas as pressunes,

    careceria de fundos. Quer dizer, a informao que se d habitualmente quando

    no se sabe de nada.

    s vezes encontro Harras na escada, deve ter sempre uma pressa

    extraordinria, pois se escapule diante de mim. Nem msmo pude v-lo bem

    ainda, e j tem pronta na mo a chave do escritrio. Num instante abre a porta,

    e antes que o observe bem j deslizou para dentro como a cauda de uma rata e

    a tenho outra vez minha frente o cartaz "Harras, escritrio", que li muitas

    mais vezes do que o merece. A miservel finura das paredes, que denunciam o

    homem eternamente ativo, ocultam porm o desonesto. O telefone est apenso

    parede que me separa do quarto de meu vizinho. No obstante, destaco-o

    apenas como constatao particularmente irnica. Mesmo quando pendesse da

    parede oposta, ouvir-se-ia tudo da sala vizinha. Evitei o meu costume depronunciar ao telefone o nome de meus clientes.

    Mas no necessria muita astcia para adivinhar os nomes atravs de

    caractersticos mas inevitveis torneiros da conversao. s vezes, aguilhoado

    pela inquietao, sapateio nas pontas dos ps em volta do aparelho, com o

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    receptor no ouvido, mas no posso impedir que se revelem segredos.

    Naturalmente, as resolues de carter comercial se tornam assim inseguras e

    minhas voz, trmula.

    Que faz Harras enquanto telefono? Se quisesse exagerar muito o que preciso fazer com freqncia para ver claro , poderia dizer: Harras no

    precisa telefone, usa o meu, colocou o sof contra a parede e escuta; eu, em

    troca, quando o telefone toca, devo ir atender, tomar nota dos desejos do

    cliente, adotar resolues graves, sustentar conversaes de grandes

    propores, porm, antes de tudo, proporcionar a Harras informaes

    involuntrias, atravs da parede. Ou antes, nem mesmo espera o fim da

    conversao, porm que se ergue depois da passagem que lhe informa

    suficientemente sobre o caso, atira-se, segundo o seu costume, atravs da

    cidade e, antes de eu ter pendurado o receptor, est talvez trabalhando j

    contra mim.

    Poseidon

    Poseidon estava sentado sua mesa de trabalho e fazia contas. A

    administrao de todas contas. A administrao de todas as guas dava-lhe um

    trabalho infinito. Poderia dispor de quantas foras auxiliares quisera, e com

    efeito, tinhas muitas, mas como tomava seu emprego muito a srio, verificara

    novamente todas as contas, e assim as foras auxiliares lhe serviam de pouco.

    No se pode dizer que o trabalho lhe era agradvel e na verdade o realizava

    unicamente porque lhe tinha sido imposto; tinha-se ocupado, sim, comfreqncia, em trabalhos mais alegres, como ele dizia, mas cada vez que se lhe

    faziam diferentes propostas, revelava-se sempre que, contudo, nada lhes

    agradava tanto como seu atual emprego. Alm do mais era muito difcil

    encontrar uma outra tarefa para ele. Era impossvel designar-lhe um

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    determinado mar; prescindindo de que aqui o trabalho de clculo no era

    menor em quantidade, porm em qualidade, o Grande Poseidon no podia ser

    designado para outro cargo que no comportasse poder. E se se lhe oferecia

    um emprego fora da gua, esta nica idia lhe provocava mal-estar, alterava-se seu divino alento e seu frreo torso oscilava.

    Alm do mais, suas queixas no eram tomadas a srio; quando um

    poderoso tortura, preciso ajustar-se a ele aparentemente, mesmo na situao

    mais desprovida de perspectivas. Ningum pensava verdadeiramente em

    separar a Poseidon de seu cargo, j que desde as origens tinha sido destinado a

    ser deus dos mares e aquilo no podia ser modificado. O que mais o irritava

    e isto era o que mais o indispunha com o cargo era inteirar-se de que como

    representavam com o tridente, guiando como um cocheiro, atravs dos mares.

    Entretanto, estava sentado aqui, nas profundidades do mar do mundo e fazia

    contas ininterruptamente; de vez em quando uma viagem da qual alm do

    mais, quase sempre regressava furioso. Da que mal havia visto os mares, isso

    acontecia apenas em suas fugitivas ascenes ao Olimpo, e no os teria

    percorrido jamais verdadeiramente. Gostava de dizer que com isso esperava o

    fim do mundo, que ento teria certamente ainda um momento de calma,

    durante o qual, justo antes do fim, depois de rever a ltima conta, poderia

    fazer ainda um rpido giro.

    Renncia!

    Era muito cedo, pela manh, as ruas estavam limpas e vazias, eu ia estao. Ao verificar a hora em meu relgio com a do relgio de uma torre, vi

    que era muito mais tarde do que eu acreditara, tinha que apressar-me bastante;

    o susto que me produziu esta descoberta me fez perder a tranqilidade, no me

    orientava ainda muito bem naquela cidade. Felizmente havia um policial nas

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    proximidades, fui at ele e perguntei-lhe, sem flego, qual era o caminho.

    Sorriu e disse: Por mim queres conhecer o caminho? Sim disse , j

    que no posso encontr-lo por mim mesmo. Renuncia, renuncia disse e

    voltou-se com grande mpeto, como as pessoas que querem ficar a ss com oseu riso.

    Sobre a Questo das Leis

    Em geral as nossas leis no so conhecidas, seno que constituem um

    segredo do pequeno grupo de aristocratas que nos governa. Embora estejamos

    convencidos de que estas antigas leis so cumpridas com exatido

    extremamente mortificante ver-se regido por leis que no se conhecem. No

    penso aqui nas diversas possibilidades de interpretao nem nas desvantagens

    que se derivam de que apenas algumas pessoas, e no todo o povo, possam

    participar da interpretao.

    Talvez estas desvantagens no sejam to grandes. As leis so to antigas

    que os sculos contriburam para sua interpretao e esta interpretao j se

    tornou lei tambm, mas as liberdades possveis a respeito da interpretao,

    mesmo que ainda subsistam, acham-se muito restringidas. Alm do mais a

    nobreza no tem evidentemente nenhum motivo para deixar-se influir na

    interpretao por seu interesse pessoal em nosso prejuzo, j que as leis foram

    estabelecidas desde as suas origens por ela mesma; a qual se acha fora da lei,

    que, precisamente por isso, parece ter-se posto exclusivamente em suas mos.

    Isto, naturalmente, encerra uma sabedoria quem duvida da sabedoria dasantigas leis , mas ao mesmo tempo nos mortificante, o que provavelmente

    inevitvel.

    Alm do mais, estas aparncias de leis apenas podem ser na realidade

    suspeitadas. Segundo a tradio existem e foram confiadas como segredo

  • 7/29/2019 KAFKA, Franz - Os Melhores Contos de Kafka

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    nobreza, mas isto no mais do que uma velha tradio, digna de crdito pela

    sua antiguidade, pois o carter destas leis exigem tambm manter em segredo

    sua existncia. Mas se ns, o povo, seguimos atentamente a conduta da

    nobreza desde os mais remotos tempos, e possumos anotaes de nossosantepassados referentes a isso, e as temos prosseguido conscienciosamente at

    acreditar discernir nos fatos inumerveis certas linhas diretrizes que permitem

    concluir sobre esta ou aquela determinao histrica, e se depois destas

    dedues finais cuidadosamente peneiradas e ordenadas procuramos adaptar-

    nos de certo modo ao presente e ao futuro, tudo aparece ento como incerto e

    talvez como simples jogo de inteligncia, pois talvez essas leis que aqui

    procuramos decifrar no existam. H um pequeno partido que sustenta

    realmente esta opinio e que procura provar que quando uma lei existe apenas

    pode rezar: o que a nobreza faz a lei. Esse partido v apenas atos arbitrrios

    na atuao da nobreza e rechaa a tradio popular, a qual, seguindo o seu

    parecer, apenas comporta benefcios casuais e insignificantes, provocando em

    troca graves danos, ao dar ao povo uma segurana falsa, enganosa e

    superficial com respeito aos acontecimentos do futuro. No pode negar-se este

    dano, mas a maioria esmagadora de nosso povo v sua razo de ser no fato de

    que a tradio no nem mesmo ainda suficiente, que portanto h ainda muito

    que investigar nela e que, sem dvida, seu material, por enorme que parea,

    ainda demasiado pequeno, pelo que tero que transcorrer sculos antes de que

    se revele como suficiente.

    O obscuro nesta viso aos olhos do presente apenas est iluminado pela fde que vir o tempo em que a tradio e sua investigao conseqente

    ressurgiro de certo modo para pr ponto final, que tudo ser aclarado, que a

    lei apenas pertencer ao povo e a nobreza ter desaparecido. Isto no dito

    por ningum e de modo algum com dio contra a nobreza. Melhor, devemos

  • 7/29/2019 KAFKA, Franz - Os Melhores Contos de Kafka

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    odiar-nos a ns mesmos, por no sermos dignos ainda de ter lei. E por isso,

    esse partido, na realidade to atraente sob certo ponto de vista e que no

    acredita, em verdade, em lei alguma, no aumentou as suas fileiras, e isso

    porque ele tambm reconhece a nobreza e o direito de sua existncia. Emrealidade, isto apenas pode ser expresso com uma espcie de contradio: um

    partido que, junto crena nas leis, repudiasse a nobreza, teria imediatamente

    a todo o povo a seu lado, mas um partido semelhante no pode surgir porque

    ningum se atreve a repudiar a nobreza. Sobre o fio deste cutelo vivemos. Um

    escritor resumiu isto certa vez da seguinte maneira: a nica lei, visvel e isenta

    de dvida, que nos foi imposta, a nobreza, e desta lei haveramos de nos

    privar a ns mesmos?

    Um Cruzamento

    Tenho um animal singular, metade gatinho, metade cordeiro. Herdei-o com

    uma das propriedades de meu pai. Contudo, apenas se desenvolveu ao meu

    tempo, pois anteriormente possua mais de cordeiro que de gatinho. Agora

    participa das duas naturezas igualmente. Do gato, a cabea e as unhas; do

    cordeiro, o tamanho e a figura; de ambos, os olhos, selvagens e acesos; o plo,

    suave e bem assentado; os movimentos, j saltitantes, j lnguidos. Ao sol,

    sobre o parapeito da janela, faz-se uma bola e ronroneia. No prado corre como

    enlouquecido e mal se pode alcan-lo. Foge dos gatos e pretende atacar os

    cordeiros. Em noites de lua so as telhas o seu caminho preferido. No pode

    miar e tem repugnncia pelos ratos. capaz de passar horas inteiras espreitadiante do galinheiro, mas at agora no aproveitou nunca a ocasio de matar.

    Alimento-o com leite doce; o que melhor lhe assenta. Bebe-o sorvendo-o a

    longos tragos por entre seus dentes ferozes. Naturalmente, um espetculo

    completo para as crianas.

  • 7/29/2019 KAFKA, Franz - Os Melhores Contos de Kafka

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    No domingo pela manh hora de visitas. Ponho o animalzinho sobre os

    meus joelhos e as crianas de toda a vizinhana detm-se ao meu redor. Ento

    so formuladas as perguntas mais maravilhosas, essas que nenhum ser

    humano pode responder: por que existe apenas um animal como este, por queeu o tenho, exatamente eu, se antes dele existiu outro animal assim e como

    ser depois de morto, se se sente muito s, por que no d cria, como se

    chama, etc. No me dou ao trabalho de responder, e contento-me em mostrar,

    sem mais explicaes, aquilo que possuo. s vzes, as crianas vm com

    gatos e uma vez, at trouxeram dois cordeiros. Mas contrariamente s suas

    esperanas, no se produziram cenas de reconhecimento. Os animais olhavam-

    se tranqilamente com olhos animais e consideraram, sem dvida,

    reciprocamente, sua existncia como uma obra divina. Sobre os meus joelhos,

    este animal no conhece nem o medo nem desejos de perseguir ningum.

    Acocorado contra mim como se sente melhor.

    Est apegado famlia que o criou. Isto no pode ser considerado, por

    certo, como uma demonstrao de fidelidade extraordinria, porm como o

    reto instinto de um animal que na terra tem inumerveis parentes polticos,

    mas talvez nem um s consangneo, e para o qual, por isso, lhe parece

    sagrada a proteo que encontrou entre ns. s vezes me faz rir quando me

    fareja, desliza-se por entre minhas pernas, e no h modo de afast-lo de mim.

    No satisfeito em ser gato e cordeiro, quer ser quase cachorro. Aconteceu uma

    vez que, como pode ocorrer a qualquer um, no encontrava soluo para meus

    problemas de negcios e para tudo o que se relacionasse com eles, e pensavaabandonar tudo; em tal estado de esprito enterrei-me na cadeira de palha, com

    o animal sobre os joelhos, e ao olhar para baixo percebi casualmente que dos

    longussimos pelos de sua barba gotejavam lgrimas. Eram minhas? Eram

    suas? Tinha tambm aquele gato com alma de cordeiro ambio humana?

  • 7/29/2019 KAFKA, Franz - Os Melhores Contos de Kafka

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    No herdei grande coisa do meu pai, mas esta herana digna de ser

    mostrada. Tem ambas as inquietaes em si, a do gato e a do cordeiro, por

    diversas que sejam uma e outra. Por isso a pele lhe estreita. s vezes salta

    sobre o assento, ao meu lado, apia-se com as patas dianteiras em meu ombroe pe o focinho junto ao meu ouvido. como se me dissesse algo e ento se

    inclina para diante e olha-me cara a cara para observar a impresso que a

    comunicao me fz. E para ser complacente com ele, fao como se tivesse

    compreendido algo e confirmo com a cabea. Ento salta ao solo e comea a

    bailar ao meu redor. Talvez o faco de aougueiro fosse uma libertao para

    este animal, mas como o recebi em herana devo evitar isso. Por isso ter de

    esperar que o alento lhe falte por si, apesar de que, s vezes, me olhe com

    olhos humanamente compreensivos que incitam a agir compreensivamente.

  • 7/29/2019 KAFKA, Franz - Os Melhores Contos de Kafka

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    Este um trabalho de divulgao de livros encontrados por mim na internet para que possaproporcionar o benefcio de um acesso queles que no teriam um outro meio para tal.Segundo a filosofia budista existem quatro formas de generosidade:- Partilhar os ensinamentos que geram paz interior da forma adequada mente e cultura daspessoas, sem esperar pagamento ou recompensa.- Oferecer coisas materiais, como nosso corpo e nossos recursos.

    - Oferecer proteo, consolo e coragem. Podemos proteger os outros de perigose outros humanos, de no-humanos e dos elementos.- Oferecer amor (oferecer incondicionalmente aos outros nosso tempo, apoio emocional, energiapositiva e boas vibraes).Aps sua leitura considere, dentro do possvel, a possibilidade de adquirir o original, pois assim vocestar incentivando o autor e a publicao de novas obras.