Kafka - Nas Galerias

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Franz Kafka NAS GALERIAS Seleção, apresentação e tradução FLÁVIO R. KOTHE Estação Liberdade A parede e o sangue dela http://aparedeeosanguedela.blogspot.com Se gostou, compre o livro.

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Franz Kafka

NAS GALERIAS Seleção, apresentação e tradução

FLÁVIO R. KOTHE

Estação Liberdade

A parede e o sangue delahttp://aparedeeosanguedela.blogspot.com

Se gostou, compre o livro.

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© Tradução de Flávio R. Kothe Editora Clube do Livro Ltda. Estação Liberdade Rua Fagundes, 61 - Fone: (011) 279-2185 São Paulo - SP - CEP 01508 Fundador: Mário Graciotti

Responsabilidade editorial: Jiro Takahashi Supervisão editorial: Maria Carolina de Araújo (Sintagma Editorial) Revisão: Cássio de A. Leite Capa: Juan José Balzi Ilustração de capa: "No circo", de Juan José Balzi

MEC / UFF NDC / DST SEÇÃO D£ AQUISIÇÃO DE LIVROS I

Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Kafka, Franz, 1883-1924. Nas galerias / Franz Kafka ; seleção,

apresentação e tradução Flávio R. Kothe. São Pau­lo : Estação Liberdade, 1989.

1. Ficção alemã I. Kothe, Flávio R. II. Título.

89-1523 CDD-833.91

Índices para catálogo sistemático:

1. Ficção: Século 20: Literatura alemã 833.91 2. Século 20 : Ficção: Literatura alemã 833.91

"Há muita esperança, só não para nós."

Kafka

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SUMARIO

Formas da contradição em Kafka (por Flávio R. Kothe) 9 A sentença 25 Um relato a uma academia 37 Um cruzamento 46 A ponte 49 O silêncio das sereias 51 Prometeu 53 O abutre 54 Pequena fábula 56 Das comparações 57 Na colônia penal 58 Uma página antiga 88 Ante(s) (d)a lei 91 Sobre a questão das leis 93 Onze filhos 96 Uma pequena mulher 101 Nas galerias 109 Um artista da fome 111 Josefina, a cantora, ou O povo dos ratos 122 A verdade sobre Sancho Pança 140 O Autor 141 Cronologia dos textos 142

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Formas da contradição em Kafka

Toda narrativa tem por fulcro um conflito, que é sempre expressão de uma contradição existente na sociedade. Se a mani­festação e a administração dos conflitos sociais constituem a polí­tica, também o fulcro da narrativa é o político.

Como se dão e se encaminham essas contradições nos tex­tos de Kafka aqui reunidos?

Em "A sentença" tem-se primeiro uma rivalidade implícita e depois um antagonismo explícito entre pai e filho, o que acaba sendo "resolvido" com o suicídio, ou melhor, com a execução da sentença que o pai profere contra o filho, às vésperas de seu próprio aniquilamento natural. Se aí o filho é como que castrado, primeiro, para depois ser liqüidado pelo pai, que o condena à morte, em "A metamorfose" (escrito de 18 de novembro a 12 de dezembro de 1912 e publicado em 1915), ele morre enquanto gente, logo no início da história, como decorrência da explora­ção e alienação a que é submetido.

Já no começo da narrativa, Gregor Samsa aparece trans­formado num monstruoso inseto só que ele não acredita de ime­diato no que lhe aconteceu: imagina que se trata de um pesa­delo, trata de dormir mais um pouco etc. Sua metamorfose é paulatina: se o corpo já se alterou, a voz ainda se mantém humana, embora com um leve ruído diferente, para aos poucos ir-se tornando cada vez mais ininteligível até chegar ao incom-

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preensível. Nesse processo, há um momento em que Samsa res­ponde de dentro do quarto para o gerente (que está do lado de fora) e já não se sabe mais se, igual ou ao contrário do leitor, foi possível compreender o que ele disse, embora suas assertivas anteriores tenham sido entendidas. Ainda que os demais não saibam disso, Gregor continua entendendo tudo até o fim. Eles não entendem que ele entenda, e isso já os transforma de certo modo em insetos, e faz com que ele, sob uma aparência de inseto, alcance um estágio mais alto de humanidade e consciência.

Gregor Samsa acordar, certa manhã, metamorfoseado em inseto não é nenhuma ficção ou mera metáfora subjetiva: é pura realidade. Fantástico é apenas que nem ele nem os outros percebam que já estão transformados em insetos antes mesmo de Gregor aparecer sob a forma de inseto. A objeção de Lukács — a de que falta uma certa moldura para essa abrupta alegoria — diluiu-se, no entanto, diante do fato de que os índices dessa moldura vão aflorando a cada passo, ao longo da narrativa, da totalidade em que essa metamorfose encontra sua justifica­tiva e explicação. Gregor é explorado não só no trabalho como também na família: sob a aparência de bondade, rodeia-o de fato o puro interesse financeiro. Há inclusive uma dívida do pai para com o chefe de Gregor, que o prende ao serviço e que poderia ter sido resgatada com o dinheiro secretamente guar­dado pelo pai. No entanto, quando fica sabendo disso, ao invés de revoltar-se contra o pai, Gregor acaba por aceitar a safadeza como sabedoria. E não consegue sair jamais de seu estado de inseto.

Não se tem aí, contudo, apenas uma animalização (ou inse-tização) de um homem, pois enquanto inseto monstruoso ele consegue ser o mais humano dos personagens. A rigor também não se pode falar de uma antropomorfização de um animal, pois esse animal era e continua sendo um humano (pois pensa, sente, entende). Na forma aparente, os demais personagens não se transformam em insetos, mas no fundo, por seus gestos, com­portamentos, pensamentos, eles são todos insetos (só que não sabem que são e agem como se não fossem, o que os reduz ainda mais a insetos). De um ponto de vista formal, "A metamorfo­se" é uma narrativa em terceira pessoa com narrador onisciente;

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em nível de conteúdo, no entanto, todo o relato gira em torno de Gregor Samsa, mas não só enquanto protagonista, pois até o modo de os outros serem designados (o pai, a mãe, a irmã, o chefe) está de acordo com a perspectiva dele. Assim, as cate­gorias analíticas da retórica, teoria e crítica literárias mostram-se insuficientes diante, da estrutura e natureza dialética dessa fic­ção. Nela não ocorre, porém, apenas a metamorfose do homem em animal, mas também o inverso.

"Um relato a uma academia" tem por personagem-narra-dor um macaco que, após ser caçado, consegue transformar-se em humano: relata a uma academia de ciências como aprendeu a se comportar e a falar como gente. Só que o comportar-se humanamente começa com o cuspir, o fumar e o beber. O ensino lhe é ministrado por um marujo à custa de queimaduras. Mais tarde, os homens é que o servem: típica nesse sentido é a cena em que ele se refestela junto da escrivaninha, enquanto seu gerente aguarda instruções. Ele, o ex-macaco, é o senhor da fala; os homens da ciência estão reduzidos ao silêncio do ani­mal (assim como o estão os leitores, que aparentemente podem sentir-se acima dos acadêmicos, mas se encontram ironicamente na mesma posição de suposta superioridade).

Esse mundo às avessas, essa carnavalização, ao fazer do macaco um humano, também mostra os homens como animais, colocados como que na jaula do zoológico para a qual destina­vam o macaco-narrador. O macaco macaqueia o homem, mas o homem se torna macaco do macaco. A rigor, uma estranheza permanente os separa, assim como se instaura uma estranheza do ex-macaco diante dos outros macacos (o que se revela na rela­ção dele com a macaquinha, que não é explorada nesse conto, pois faria seu tom cômico naufragar na tragédia da solidão abso­luta e da estranheza sem remédio). Temas filosóficos fundamen­tais relativos à especificidade e superioridade do homem são tan­gidos ao longo do texto: a sabedoria enquanto desistência de qualquer teimosia (ou persistência ou auto-afirmação), a pene­tração no mundo humano como submissão a um jugo, o humano como reino da necessidade e não da liberdade, a liberdade como puro reconhecimento da necessidade mais premente, o livre-arbí-trio como mera tentativa de encontrar uma saída, o aprendi-

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zado como coação e não como opção, a opção como aceitação da alternativa aparentemente menos ruim etc.

É claro que o fato de Kafka pertencer à minoria de uma minoria, a um grupo social reprimido dentro de outro grupo social reprimido, tendo ao mesmo tempo a cultura do domina­dor austríaco, é o substrato social dessa relação entre um ex-macaco e os representantes oficiais do saber. O ex-macaco do conto é um absoluto solitário: não é nem propriamente um ser humano (afinal, guarda ainda as características físicas de um macaco) nem é mais um autêntico macaco (já porque fala e se comporta igual a um ser humano). Essa contradição irresolúvel (exceto pela morte) não aparece como tragédia, pois é abordada como comédia. O narrador precisa mostrar-se vencedor, como alguém que deu a volta por cima, e não como alguém que não sabe de que forma sair do encalacramento.

Não é esta, porém, a perspectiva final de "Um cruzamen­to" : o animal, meio-cordeiro e meio-gato, com feições e com­portamentos de cordeiro e de gato, é um ente absolutamente sin­gular, diferenciado, que não reconhece semelhantes. Pode até tentar comportar-se como cão ou ser humano, mas a única "so­lução" para essa antinomia sem síntese possível a aparecer no conto é a faca do açougueiro.

Do mesmo modo, "A ponte" — figura típica de ligação entre extremos opostos — não resiste às tentativas de apalpá-la e testá-la: acaba se rompendo e se aniquilando junto com aquele que a vai utilizar. A posição dela, nas alturas, em lugar remoto, fora dos mapas, representa de certo modo a própria consciência de Kafka enquanto criador literário, mas corresponde também ao que representa a tensão antinômica nesse animal meio-gato e meio-cordeiro ou no Samsa-inseto, incapaz de conviver com gente ou de encontrar insetos semelhantes.

"O silêncio das sereias" é uma obra-prima de alegoria dia­lética. Primeiro é rememorado o célebre episódio da Odisséia, o encontro de Odisseu com as sereias. Mas a versão clássica é logo negada como impossível de ser sustentada, pois recursos como cera e correias não seriam capazes de resistir ao poderio do canto das sereias (que, na tradição da cultura alemã, são vis­tas como apelo à regressão a um estado de natureza, enquanto

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as errâncias de Odisseu são vistas como uma alegoria da pró­pria marcha civilizatória). As sereias têm, no entanto, uma arma ainda mais poderosa do que seu canto, ou seja, seu silên­cio: ninguém resistiria à sensação de vitória por ter superado a quem homem nenhum conseguira superar. Para enfrentar Odis­seu, contudo, elas não cantam nem apenas negam o canto pelo silêncio: negam a negação, superam ambas as posições, ao nem cantar nem silenciar, mas apenas fazer de conta que cantam. Elas, as sedutoras, estão encantadas com Odisseu, mas este con­tinua intimamente encantado com sua antiga esposa; é a ela que está buscando; ela é a sereia pela qual está seduzido. Ele, que deveria ser seduzido, não pode ser seduzido (mas por causa não de recursos externos e sim de sua constelação interna). Numa reversão total da tradição, o seduzido seduz, as sedutoras são seduzidas. Mas se a cera e as correias são um modo de Odisseu neutralizar o poderio do canto das sereias, enquanto negação do canto ele tem sua eficácia renegada pelo texto. Essa negação da negação é, contudo, superada pelo adendo, no qual se afirma que Odisseu sabia que seus truques eram insuficientes: ele teria apenas fingido apostar neles para, assim, enganar a Deusa do Destino. Ocorre, então, uma espécie de superação negativa da negação da negação, de um modo semelhante ao que ocorrera com as sereias quando não cantavam nem apenas silenciavam, mas silenciosamente fingiam que cantavam.

"Prometeu" também retoma criticamente a tradição clás­sica grega, reinterpretando o mito, colocando diversas alternati­vas ao conflito entre esse deus e Zeus. O que Kafka não leva em conta é a solução — tão importante para o mito e para Marx — de que esse deus, que foi castigado por ter tentado sal­var a humanidade dando-lhe o princípio civilizatório do fogo, sabia que um dia ainda seria salvo por Hércules, a corporifica-ção da força bruta da humanidade. Nas versões de Kafka, ao invés de se ter a esperança implícita de que o operariado viesse um dia a liberar e libertar a própria possibilidade de o homem atingir um estágio mais elevado de desenvolvimento, aparece a hipótese de Prometeu confundir-se com a rocha, de ocorrer o olvido ou o cansaço de tudo, mas, mesmo que o conflito se resolvesse assim, diz ele, restaria sempre o inexplicável testemu-

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nho da montanha rochosa. Constrói-se assim um enigma, ao invés de uma solução para os caminhos do homem.

Em "O abutre", numa versão talvez em tom menor e até parodística da águia que ataca o deus grego, a vítima tem ape­nas, no momento, a possibilidade de optar pelo menor dos males, já que não consegue evitar o ataque: prefere sacrificar as botas e, depois, ainda os pés, para não perder o rosto, parte mais nobre e vital. Optar pela radicalização, tentando matar a ave, quando não haveria condições para sustentar isso, acaba se mostrando um comportamento suicida: exige na verdade um longo tempo de preparo e ajuda de mais alguém, mas o poder vigente, ao sentir-se de algum modo ameaçado, radicaliza e des­fecha o ataque. É um ataque mortal, em que os dois pólos da contradição se aniquilam mutuamente.

Na "Pequena fábula", um camundongo fala da imensi-dade do mundo e da sensação de segurança oferecida pelas pare­des. Prevê que logo adiante uma armadilha o espera. Ouve-se uma sábia voz dar-lhe um conselho fraternal, mas é a voz de seu inimigo natural (e nele o pequeno inocente havia confiado). O vôo da coruja de Minerva dá-se ao entardecer, depois do transcurso dos acontecimentos — só então é que se fica sabendo como se deveria ter agido antes, para não cometer tantos erros nem sofrer tamanhos prejuízos —, mas essa sabedoria de nada adianta para o camundongo, pois sua própria existência é o preço por ele pago. A vida dele se acaba, assim como se ani­quila e finda o texto (e este começa a existir no leitor assim como o camundongo dentro do gato). A contradição antagô­nica entre gato e camundongo acaba aqui — ao contrário do que acontece na narrativa trivial, em que o ratinho sempre vence o poderoso gatão — de seu modo mais lógico e natural: com a derrocada da parte mais fraca. Ao invés de fomentar a ilusão, a ficção aqui é, em seu realismo, resplendor da verdade.

"Das comparações" tem por tema exatamente o jogo entre o sentido literal e o metafórico, mas isso de um modo tão sagaz e astuto que repete o enigma contido em cada uma das histórias, fazendo com que aquilo que parece uma vitória, no sentido lite­ral, seja uma derrota, no sentido metafórico, e vice-versa. Como se viu, "A ponte" é a própria alegoria da tentativa de

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juntar margens opostas, levando contudo ao despedaçamento total, que é, aliás, o que normalmente ocorre como bad end nas histórias de Kafka, fazendo dele um autor antitético à narra­tiva trivial.

"Na colônia penal" trata de uma sofisticada máquina de tortura e aniquilamento, destinada a eliminar todo elemento que, naquela comunidade, possa representar, real ou suposta­mente, alguma espécie de contradição. Só que a natureza bár­bara, autoritária e arbitrária desse tipo de punição acaba desper­tando por si mesma sua oposição e negação. Todos se afastam da máquina, não assistem às execuções, e o novo comandante não é favorável a ela. Nessa constelação de confronto entre os favoráveis e os contrários à máquina, a presença do viajante torna-se estrategicamente importante, pois ele é encarado como corporificação da ciência. Ele se torna o elemento catalisador que desencadeia uma total reversão, pela qual o condenado é solto na hora de ser executado, enquanto o carrasco se torna réu e, enquanto juiz, aniquila a si mesmo sem encontrar a alme­jada paz. Assim, o conflito parece resolver-se com a eliminação de um dos pólos da contradição, mas a promessa de ressurrei­ção do antigo comandante, inscrita como ameaça em sua lápide, mantém o conflito, ainda que se tenha tido um percurso pelo qual o dominante de antes torna-se o dominado de agora (po­dendo haver, portanto, a reversão novamente, fazendo o domi­nante de agora tornar-se o dominado depois). O protagonista trata de escapar desse inferno, encerrando-se assim essa narra­tiva. Não se tem aí o modo como a história costuma resolver seus conflitos: pela ação organizada, sistemática, de todos os que partilham de um ideário contra aqueles que partilham de outro. Essa possibilidade chega a aparecer, contudo, na obra de Kafka.

"Uma página antiga" pode ser um reflexo da presença aus­tríaca em Praga, mas nem por isso deixa de ser uma alegoria de toda a situação de quando um país se encontra dominado, inclusive nós mesmos hoje. Estrangeiros chamados pelo palácio dominam a população e intimidam os soldados do país. A popu­lação é incapaz de se defender diante desses nômades agressivos e armados. Estes aparecem de modo caricato: seus cavalos

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comem carne junto com os donos e são capazes de comer um boi vivo. Essa caricatura que permite o cômico é, por sua vez, possibilitada pelo fato de se ter como que um deslocamento para uma situação "antiga" de algo que, enquanto atualidade e contexto, talvez tenha mais aspectos dolorosos. Quem deveria enfrentar os estrangeiros, ou seja, o rei com seus soldados, não o faz, mas apenas contempla complacente a exploração e o ter­ror a que o povo é submetido; quem acaba sendo obrigado a se defender dos estrangeiros — os artesãos e comerciantes ofen­didos em seus interesses — não tem condições de fazê-lo. Tam­bém não é possível conversar com os estrangeiros, pois sua lín­gua de gralha é ininteligível, e eles não estão nem um pouco inte­ressados nas instituições locais. Repete-se assim a situação pro­posta como fábula em "O abutre".

"Ante(s) (d)a lei" configura semelhante conflito: alguém quer resolver uma situação, a solução parece estar logo adiante, ele tenta alcançá-la de vários modos, mas jamais consegue. Tal­vez precisasse ter tido a coragem que, em "O abutre", o prota­gonista teve ao admitir a possibilidade da ação armada (mas do outro, para benefício próprio, esperando que o outro fosse resolver seu problema). Ao não assumir o risco de enfrentar os possíveis perigos, ao ficar aguardando as soluções, o protago­nista fica ante a lei, diante da lei, porque está antes da lei, aquém da lei: ele não chega até a lei, ele só aceita a lei do outro como a sua própria, ele mesmo não tenta fazer a lei. Daí o título suge­rir-se como "Ante(s) (d)a lei".

"Sobre a questão das leis" recoloca de modo magistral esse problema nevrálgico. Mais do que um sofisma jurídico, formula um sofisma político-ideológico. Numa comunidade, as leis supostamente existentes são todas da aristocracia (que não se confunde aí com a nobreza feudal, mas com a elite domi­nante de qualquer sociedade de classes). As leis não são explíci­tas nem claras; elas são um segredo da aristocracia, dos donos do poder (não basta o princípio formal da igualdade de todos perante a lei e o da transparência jurídica para se ter superado esse quadro, pois ele pode se recolocar no princípio de que "para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei"). Não só as leis são segredo da aristocracia, mas também a interpretação delas.

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Para o povo, torturado sob leis que não conhece, resta então — segundo o texto — procurar registrar os comportamentos dessa aristocracia para descobrir quais são essas leis e sua juris­prudência, tratando assim de sofrer menos. A possibilidade de que elas possam ser fundamentalmente a defesa dos interesses c privilégios dessa classe dominante, à base da exploração do trabalho do povo, é algo ironicamente descartado como sendo coisa fantástica demais para ser acreditada. Um pequeno par-Lido afirma, como consciência-limite, que lei é tudo aquilo que a aristocracia faz (ou aquilo que faz a aristocracia), mas ele reconhece, em última instância, o direito à existência da aristo­cracia, e isso o torna menos atraente (como se, paradoxalmente, o partido mais radical não tivesse mais adeptos por não ser bas­tante radical).

Conforme outra formulação, se a única lei que de fato se conheceu é a da aristocracia (já que, em termos marxistas, toda lei sempre foi uma lei que serviu para assegurar a dominação de classe e a exploração do homem pelo homem), como seria então possível lutar por algo que ainda acabaria sendo lei, mesmo que aparentasse ser a lei da igualdade efetiva de todos perante a lei? Não sendo suficiente a igualdade formal de todos perante a lei, então a lei de fato igualitária precisaria primeiro deixar de ser "lei". Ela precisaria ser, por exemplo, um princípio a que todos aderissem sem coação nem coerção. Assim se postula a questão da utopia. Se,a utopia — com sua "lei" ideal, numa estrutura e organização social completamente diversas das que a humanidade viveu até hoje — fica intrinsecamente marcada pela esperança nela projetada a partir da negatividade do exis­tente, então ela resguarda pelo avesso essa negatividade que, junto com a esperança, nela foi posta. Não deveria, portanto, ser concretizada; no entanto, não havendo sua concretização, também não haveria aquilo pelo qual lutar, aquilo que postu­lasse a diferença efetiva entre o existente (repleno de negativi­dade nos mais surpreendentes lugares) e aquilo que deveria exis­tir. Inclusive a aristocracia está ainda contida no gesto de um partido que se coloque como vanguarda de libertação das mas­sas. Só que a posição de parte do povo — querendo esperar ainda por séculos que se forme um acervo amplo dessas leis e

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de suas interpretações ditadas pela aristocracia — não permite que qualquer partido possa colocar-se de um outro modo que não seja a repetição e a reprodução do próprio princípio aristo­crático.

O que esse texto não mostra, contudo, é o fato de que a história não pára por causa de um impasse teórico, de um sofisma (uma vez que, de algum modo, ele não deve ser expressão da rea­lidade objetiva). A história não opera segundo uma lógica isenta de contradições: ela admite a hipótese de uma aristocracia, uma elite, liderar uma revolução destinada a liqüidar a superioridade de uma classe sobre outra e, portanto, a própria classe enquanto tal. O texto de Kafka estaria errado em seu horizonte por demais limitado se a ironia a ele subjacente e a permear todos os seus poros não acenasse com um horizonte de consciência que se encontra além de tudo aquilo que nele está dito, mas que, ao mesmo tempo, se encontra em cada um de seus momentos.

Ainda que não tenha sabido formular os caminhos políti­cos da revolução, Kafka buscou no seu tempo a informulada lei que leva à morte, criticou a alienação capitalista e o arbítrio das oligarquias, embora já tenha sido visto apenas como um autor sionista ou predestinado a combater avant la lettre a "burocra­cia stalinista". A publicação de seus escritos burocráticos revela que, por sua própria atividade profissional — tratar da questão do seguro trabalhista e em especial de acidentes no trabalho numa época em que essa assistência social não era garantida e estava na ordem do dia das reivindicações operárias —, Kafka estava no cerne da luta de classes de sua época. Mas a vida con­creta na produção aparecia para ele sob a forma de processos burocráticos, sob a forma de papel, de fantasmagoria. Isso é determinante de seu modo de produção literária. Que a contra­dição entre burguesia e proletariado seja, em última instância, antagônica, pode encontrar sua manifestação em diversos tipos de enredo e personagens, por maiores que tenham sido os deslo­camentos do contexto para o texto e vice-versa.

"Onze filhos" é um conto em que um pai passa em revista seus filhos, como que salmodiando alegoricamente e em tom menor os onze povos de Israel. Por maiores que sejam as quali­dades de cada um deles, o pai reconhece em cada um diversos

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defeitos graves: a própria proximidade consangüínea acarreta proporcional afastamento (e, ao mesmo tempo, permanente pro­ximidade apesar da distância).

Semelhante "contradição do amor" ocorre no conto "Uma pequena mulher", que gira em torno de uma mulher que odeia mortalmente o personagem-narrador: seja lá o que for que ele faça ou deixe de fazer, ela o odeia. Ela é uma alegoria do ódio absoluto: racial, político, ideológico, pessoal. Ele inclusive pro­cura modificar-se, poderia até mesmo tentar suicidar-se, mas tudo se torna sempre novo motivo de ódio; e a hipótese de que esse ódio seja amor às avessas precisa ser também descartada. Essa contradição entre os dois personagens se coloca de um modo tão profundo e tão sem remédio quanto o antagonismo intrínseco ao animalzinho que era meio-cordeiro e meio-gato. Só o aniquilamento final dos dois pólos da contradição enquanto tais é que se mostra capaz de resolver isso de algum modo.

O conflito é o cerne de todas as narrativas de Kafka, sem que jamais se encontre nelas (a não ser ironicamente) a solução positiva, ingenuamente otimista, que caracteriza a estrutura pro­funda das narrativas triviais (onde o Mal é extinto e o Bem ven­cedor, onde mais forte que o ódio é o amor, onde o bandido é liqüidado e o mocinho impõe a boa ordem, onde o esforçado rapaz acaba casando com a bela moçoila: e é disso que o povo gosta, pois de ruim já chega a realidade). Qual é então a posi­ção da arte? Qual deve ser a postura do artista? Que tipo de obra deve ser produzida?

"Nas galerias" é um texto curto, mas de construção com­plicada, com parágrafos longos cheios de orações intercaladas e um sutil jogo entre o ficticiamente real e o apenas suposto. Há dois diretores do circo: uma vez o tirano; outra, o pai. Qual o verdadeiro? Duas amazonas aparecem a cavalgar num picadeiro de circo: uma, hipotética, é decadente e tuberculosa; a outra, efetiva, é jovem e bonita. Ambas são, também, alego­rias do artista daquela época, espelhos em que um espectador se vê, possivelmente um alter ego do autor. A primeira amazona - a real? — é descartada (como se descarta a arte da negativi-

dade, a arte "doentia") na realidade, pois show is business, e o espetáculo precisa ser atraente para ser vendido (embora não

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precise ser nem seja verdadeiro: ao contrário, possui algo que efetivamente não há nele em tal grau, supremo perigo). Como as relações de poder desse sistema só permitem que a segunda cavalgue, revestindo-se de todo um fingimento de perícia e peri-culosidade através da encenação não só do empresário e diretor, mas de todos os auxiliares e da própria amazona, não chega a ocorrer para o público o surgimento da verdade, não se consuma a interrupção dessa deprimente palhaçada (coisa que só poderia eventualmente ocorrer se a primeira amazona, a hipotética, de fato aparecesse assim). Se a verdade da segunda amazona é a primeira (como no caso do diretor), o engodo encenado como arte não consegue, apesar do resplendor, superar a caricatura, a paródia dessa paródia, e sem que se tenha, contudo, uma ter­ceira amazona em que a arte pudesse resplandecer em toda a sua plenitude. Será que o espectador apenas chora sem saber que chora; será que chora por não saber, ou, porque sabe a dife­rença entre realidade e aparência, acaba chorando solitário?

É claro que a arte de cavalgar aparece aqui como alegoria da arte em geral e, especificamente, da literária. Não há no conto superação da contradição entre uma descoberta da ver­dade pela primeira amazona (primeiro parágrafo) e a aparência de beleza encenada, pela segunda (segundo parágrafo): o que dialeticamente supera essa contradição é algo que não é explici­tado, a não ser com o choro do espectador. Este se encontra em total antítese, por sua vez, em relação ao público ausente e aos que estão no picadeiro. Ele representa um estágio implicita­mente mais avançado do que o trivial da contemporaneidade; mesmo assim, no entanto, é preciso perguntar se, embora ele acuse com seu gesto o deprimente do espetáculo, ele próprio não é um espetáculo deprimente. Será que não haveria outras alternativas para ele? Será que não haveria alternativas nesse circo? E ainda que essa jovem amazona fosse a alegoria da quin­tessência de todo o circo da arte contemporânea, será que não haveria um mundo possível além do circo?

"Um artista da fome" é um conto cruel. Mais cruel do que ele, contudo, é a realidade que espelha: a fome do povo e a do artista na fase da acumulação primitiva de capital. O faquir é aí a própria alegoria do artista. Ele vive diversos para-

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doxos: torna espetáculo, destinado a atrair multidões, algo que por natureza é deprimente (mas como poderia a arte deixar de ser doentia se reflete uma sociedade doente?); faz com que várias pessoas possam comer e se divertir, enquanto ele mesmo não come nem sequer se diverte; a culminância na perfeição dessa arte significa o aniquilamento do artista. É provável que a gênese mais ou menos inconsciente desse conto derive da remu­neração do artista enquanto artista: como tal, o escritor se encon­tra condenado a morrer de fome. Há um profundo sarcasmo no gesto de se investir na pele de um faquir, que, dispensando qualquer vigilância, tinha, por ponto de honra, passar fome e, por ideal, bater todos os recordes de jejum. Depois de morto, o faquir é substituído na jaula por um jovem macho de pantera: assim como aquele era um ser para a morte, este último é um ser para a vida. Ambos estão em absoluto contraste, mas a obs­tinação do jejuador em superar todos os limites conhecidos e tolerados nessa arte acaba sendo também manifestação suprema de vida: com o olhar da pantera identifica-se o olhar do faquir, e negra é sua cor.

"Josefina, a cantora ou O povo dos ratos" tem em seu segundo título a sugestão da continuidade da linhagem das metamorfoses, mas nenhuma transformação animal ocorre. Ao acrescentar, na revisão, o segundo título, Kafka disse: "Títu­los com ou não são bonitos, mas aqui isso talvez tenha um sen­tido especial. Guarda algo de uma balança". É geralmente interpretado como uma reflexão sobre o próprio povo judaico, mas o narrador não pertence ao partido dos adeptos de Jose­fina e pode-se ler o conto inclusive como uma desconfiada e irô­nica reflexão de Kafka sobre sua própria obra. Por isso não se sabe ao certo se ela é ou não uma grande artista (como o pró­prio autor podia estar incerto sobre sua produção, mas ao mesmo tempo já refletir sobre certas reações do público e da crítica). E sugerido que ela não seja uma grande artista, ainda que uma série de coisas indique o contrário, restando de modo perma­nente o enigma do por que ela tanto fascinaria os outros. A artista tem uma série de reivindicações, que em geral não são atendidas pelo povo; ela também pretende influenciar nos tem­pos difíceis, mas também disso se duvida. A instância privile-

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giada da figura do/da artista é posta em dúvida; além disso, embora no fim seja reconhecida a fama dessa figura, e ela acabe sendo inserida na "incontável multidão dos heróis de nosso povo", isso de nada adianta, pois um povo que não cultive a memória histórica também não irá lembrar-se dela. Não há, portanto, razão para o artista pretender privilégios (que não são reconhecidos); é um engano pretender que ele possa ajudar a proteger o povo (pois de fato torna-o mais vulnerável); inclu­sive nem existe espaço para a arte quando se está lutando pela nua e crua sobrevivência física: também de nada adianta preten­der qualquer imortalidade mediante a arte (porque tudo acabará sendo esquecido, e quem morre morreu).

"A verdade sobre Sancho Pança" é uma reflexão sobre elementos da grande tradição humanística européia e sobre o próprio processo de criação artística. Ao contrário do que apa­rece no romance de Cervantes e muito mais de acordo com o funcionamento da ficção, não é Sancho Pança quem acompa­nha a Dom Quixote: este é uma invenção daquele. E Quixote fazendo suas estrepolias pelo mundo como uma espécie de alter ego, demônio interior de um pacato cidadão (proporcional inclu­sive a seu grau de pacatice), o espaço lúdico da fantasia permite não só que o cidadão se mantenha pacato, mas leva-o até mesmo a um proveitoso diálogo. As duas figuras antitéticas se mantêm, mas às avessas da tradição. Com essa nova antítese torna-se possível pensar numa síntese hipotética entre o proposto pela ficção e o imposto pela realidade.

Assim também outros textos de Kafka poderiam ser exami­nados, no levantamento das formas de contradição e dos modos de conflitos quê constituem a própria espinha-dorsal, a domi­nante, de suas narrativas. Que isso assim fosse, foi, não escolha de Kafka, mas imposição de sua experiência. Graças ao autor, contudo, cria-se um horizonte de consciência a que o leitor pode talvez ascender sem os enormes custos pagos por ele.

Goiânia, junho de 1986.

FLÁVIO R. KOTHE

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A sentença

Uma história de Franz Kafka Para a Srta Felice B.

Era manhã de um domingo da mais bela primavera. Georg Bendemann, um jovem comerciante, estava sentado em seu quarto particular, no primeiro andar de uma dessas casas baixas, de cons­trução leve, que se estendiam ao longo do rio numa longa série, quase só se diferenciando na altura e na coloração. Tinha recém-concluído uma carta a um amigo de juventude que se encontrava no estrangeiro, fechou-a com lúdica lentidão e, com o cotovelo apoiado sobre a escrivaninha, ficou então olhando para o rio, a ponte e as encostas da outra margem em seu verde suave.

Meditava sobre esse amigo que, insatisfeito com suas pers­pectivas de progresso em casa, há anos já se refugiara literal­mente na Rússia. Agora ele tinha negócios em Petersburgo, que no início haviam corrido muito bem, mas há muito já pareciam parados, como se queixava o amigo em suas cartas cada vez mais raras. Assim ele se matava inutilmente trabalhando no estrangeiro, a esquisita barba apenas escondia muito mal o rosto bem conhecido desde a infância, rosto cuja pele amarela parecia indicar uma doença progressiva. Segundo contava, ele não tinha nenhum relacionamento efetivo com a colônia dos seus compa­triotas lá existente, mas também quase nenhum relacionamento

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social com famílias locais e, assim, ele se estruturava para uma definitiva vida de solteiro.

O que é que se devia escrever para um homem desses, que evidentemente havia dado com os burros n'água, um homem do qual se podia sentir pena, mas que não se podia ajudar? Será que se devia, talvez, aconselhá-lo a voltar novamente para casa, transferir sua experiência de volta para cá, retomar todas as anti­gas relações de amizade — para o que não existia, aliás, nenhum obstáculo — e de resto confiar na ajuda dos amigos? Isso signifi­cava, no entanto, nada mais que dizer ao mesmo tempo a ele, de um modo preventivo sim, mas tanto mais melindroso, que suas tentativas até agora tinham fracassado, que ele finalmente deveria desistir delas, que devia voltar e, como alguém que vol­tou definitivamente, precisaria deixar-se contemplar por olhos espantados, que só seus amigos é que entendiam de alguma coisa e que ele era uma criança velha, que simplesmente teria de imitar os exitosos amigos que haviam ficado em casa. E será que ainda era, então, certo que todas as desgraças que precisariam ser apron­tadas contra ele teriam uma finalidade? Talvez nem sequer se con­seguisse trazê-lo de volta para casa — afinal, ele mesmo dizia não entender mais as condições vigentes na pátria — e então, apesar de tudo, permaneceria lá no seu estrangeiro, amargurado ainda mais um pouco com os conselhos e ainda mais um tanto distanciado dos amigos. Se, porém, seguisse realmente o conselho e viesse a ser sufocado — naturalmente não de propósito, mas através dos fatos —, e se ele não se achasse com seus amigos e também não sem eles, se ele se sentisse envergonhado, se real­mente não tivesse daí mais nenhuma pátria e nenhum amigo mais, será que não seria muito melhor para ele já ficar no estran­geiro, assim como estava? Nessas circunstâncias, será que se pode­ria pensar que ele efetivamente iria progredir aqui?

Por essas razões, caso ainda se quisesse de algum modo manter o contato epistolar, não se podiam fazer-lhe comunica­ções propriamente ditas, como se faria sem pruridos inclusive a conhecidos mais distantes. Agora o amigo já não havia estado por mais de três anos na pátria e tratava de explicar isso de modo muito precário com a insegurança das relações políticas na Rússia, que, nessa perspectiva, não permitiam nem mesmo

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um ínfimo afastamento de um pequeno comerciante, embora centenas de milhares de russos viajassem tranqüilamente pelo mundo. No decorrer desses três anos, no entanto, justamente para Georg muita coisa havia se modificado. Da morte de sua mãe, que ocorrera há cerca de dois anos e desde a qual Georg vivia com seu velho pai na mesma casa, o amigo ainda havia ficado sabendo e manifestado em uma carta suas condolências com uma secura que só podia ter sua explicação no fato de que a tristeza por um acontecimento desses torna-se completamente inimaginável no estrangeiro. Desde aquele momento, Georg havia, porém, se dedicado aos seus negócios com maior decisão. Talvez o pai tivesse, durante a época em que a mãe vivia, impe-dido-o de desenvolver atividades realmente próprias, por querer fazer valer nos negócios apenas seu próprio ponto de vista, tal­vez o pai tivesse, desde a morte da mãe, apesar de continuar ainda trabalhando na firma, se tornado mais reservado, talvez — o que era até muito provável — felizes acasos desempenhas­sem um papel muito importante, em todo caso o negócio havia, porém, se desenvolvido de um modo totalmente inesperado nes­ses dois anos, havia sido necessário duplicar o número de fun­cionários, o volume de negócios havia se quintuplicado, um pro­gresso ulterior se prenunciava indubitavelmente.

Mas o amigo não tinha nenhuma noção dessas mudanças. Anteriormente, pela última vez talvez em sua carta de pêsames, ele havia tentado convencer Georg a emigrar para a Rússia e se expandido sobre as perspectivas que existiam em Petersburgo justamente para o ramo de negócios de Georg. As cifras eram diminutas em comparação com o volume que a firma de Georg havia agora assumido. Mas Georg não tivera nenhum desejo de escrever ao amigo sobre seus êxitos nos negócios, e, se o tivesse feito agora adicionalmente, isso teria de fato tido uma aparência estranha.

Assim, Georg limitava-se a escrever para o amigo somente sobre eventos sem importância, como eles se acumulam na mente quando se fica meditando num domingo calmo. Ele não queria outra coisa senão deixar imperturbada a concepção que o amigo por certo havia formado da cidade natal nesse longo ínterim e com a qual ele havia se conformado. Assim aconteceu

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a Georg ter notificado, por três vezes, ao amigo o noivado de um ser humano qualquer com uma jovem igualmente indiferente, em cartas bastante espaçadas entre si, até que o amigo, em todo caso bem contra os propósitos de Georg, começou então a inte­ressar-se por esse bizarro evento.

Mas Georg preferia escrever-lhe sobre semelhantes coisas a confessar que ele mesmo, há um mês, tinha noivado com uma certa senhorita Frieda Brandenfeld, uma jovem de família abas­tada. Com freqüência falava com sua noiva sobre esse amigo e a singular relação epistolar em que estava com ele.

— Então ele nem vai vir para o nosso casamento — dizia ela — e eu tenho, afinal, o direito de conhecer todos os seus amigos.

— Eu não quero incomodá-lo — respondia Georg —, entenda-me direito, provavelmente ele viria, ao menos creio que sim, mas se sentiria forçado e prejudicado, talvez acabasse por invejar-me e ficasse insatisfeito, incapaz de algum dia eliminar essa insatisfação, ao ter de viajar novamente sozinho de volta. Sozinho, sabe você o que é isso?

— Sim, mas será que ele não pode ficar sabendo do nosso casamento de outro modo?

— Isso eu não posso, em todo caso, impedir, mas, com o modo de vida dele, isso é pouco provável.

— Se você tem amigos assim, Georg, não devia nem sequer ter noivado.

— Sim, isso é culpa de nós dois; mas mesmo agora eu não quereria outra coisa.

E se ela então, respirando ofegante sob seus beijos, ainda objetava:

— Na verdade isso me deixa doente — ele considerava realmente inofensivo escrever tudo ao amigo.

— Eu sou assim, e assim ele precisa me aceitar — dizia ele para si mesmo —, não posso recortar em mim e de mim uma pessoa que talvez fosse mais adequada do que eu para uma ami­zade com ele.

E, de fato, na longa carta que escrevera nesse domingo pela manhã, ele noticiava ao seu amigo, com as seguintes pala­vras, o noivado ocorrido: "A melhor novidade eu a poupei

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para o fim. Noivei com uma certa senhorita Frieda Brandenfeld, uma jovem de família abastada, que só fixou residência aqui bastante tempo após sua partida e que, portanto, você dificil­mente deve conhecer. Ainda hão de se encontrar oportunidades para contar-lhe maiores detalhes sobre minha noiva, por hoje basta dizer-lhe que estou bastante feliz e que em nosso relacio­namento só se alterou alguma coisa na medida em que, ao invés de você ter em mim um amigo completamente comum, terás um amigo feliz. Além disso, em minha noiva, que lhe envia de coração um abraço e que em breve irá escrever-lhe pessoalmente, recebes uma amiga sincera, o que para um solteirão não é total­mente despido de importância. Sei que muita coisa impede você de nos visitar, mas será que meu casamento não seria a oportu­nidade certa para passar por cima de todas as dificuldades? Mas seja lá como for, aja como melhor lhe aprouver e só de acordo com seus bons propósitos".

Com essa carta na mão, Georg havia ficado sentado longa­mente junto à sua escrivaninha, tendo o rosto voltado para a janela. A um conhecido que, ao passar pela ruazinha, o havia cumprimentado, ele mal havia respondido com um sorriso ausente.

Ele enfiou por fim a carta no bolso e saiu de seu quarto atra­vés de um corredor obliquamente na direção do quarto de seu pai, no qual ele há meses já não havia estado mais. Normalmente também não havia nenhuma necessidade de fazê-lo, pois estava em contato permanente com seu pai na firma, almoçavam ao mesmo tempo num restaurante, à noite cada um se ajeitava como melhor lhe aprouvesse, no entanto em geral ambos — quando Georg, como costumava então ocorrer, não estava junto com amigos ou, agora, visitando sua noiva — ficavam sentados ainda por algum tempo, cada um com seu jornal, na sala de estar.

Georg espantou-se com a escuridão reinante no quarto do pai, mesmo nessa manhã ensolarada. O alto muro, que se erguia do outro lado do pátio estreito, lançava portanto uma sombra assim. O pai estava sentado num canto junto à janela, recanto de­corado com diversas lembranças da finada esposa, e lia o jornal, que ele mantinha de lado ante os olhos, com o que procurava com­pensar uma fraqueza qualquer da vista. Sobre a mesa estavam os restos do desjejum, do qual parecia não ter sido consumido muito.

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— Ah, Georg! — disse o pai, indo logo ao seu encontro. O seu pesado chambre abriu-se enquanto andava, as pontas esvoaçavam à sua volta. "O meu pai ainda continua um gigan­te" — disse Georg para si mesmo.

— Ora, aqui está insuportavelmente escuro — disse ele então.

— Sim, está bastante escuro — respondeu o pai. — Você fechou até mesmo a janela? — Prefiro assim. — Mas está bem quente lá fora — disse Georg, como um

adendo ao anterior, e sentou-se. O pai retirou a louça do desjejum e colocou-a sobre uma

arca. — Eu só queria mesmo dizer-lhe — continuou Georg, que

acompanhava de modo bastante distraído os movimentos do velho homem — que acabei agora noticiando, afinal, meu noi­vado para Petersburgo. Puxou a carta um pouco para fora do bolso e deixou-a cair novamente de volta.

— De que modo para Petersburgo? — perguntou o pai. — Ora, para o meu amigo — disse Georg, procurando os

olhos do pai. — "Na firma ele é, no entanto, bem diferente" — pensou ele —, "com que solidez está ele aqui sentado, com os braços cruzados por cima do peito".

— Sim. O seu amigo — disse o pai com ênfase. — Você está sabendo, pai, que eu primeiro queria escon­

der diante dele o meu noivado. Por precaução, por nenhuma outra razão. Você mesmo sabe como ele é uma pessoa difícil. Eu disse para mim mesmo, ele bem que poderia ficar sabendo de meu noivado por algum outro modo, mesmo que isso tam­bém seja pouco provável com a vida solitária que ele leva — não posso impedir isso —, mas de mim mesmo é que ele não devia ficar sabendo.

— E agora você mudou outra vez de opinião? — pergun­tou o pai, colocando o enorme jornal sobre a borda da janela, e sobre o jornal os óculos, que ele cobriu com a mão.

— Sim, andei revendo minha opinião. Se ele é um bom amigo meu, disse comigo mesmo, então o meu feliz noivado deve ser uma felicidade também para ele. E por isso não demo-

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rei mais em dar-lhe a notícia. Antes de despachar a carta, eu quis, no entanto, dizê-lo a você.

— Georg — disse o pai e repuxou a boca desdentada em toda a sua extensão —, escute uma vez! Você veio até mim por causa dessa questão, para se aconselhar comigo. Isso honra você, sem dúvida. Mas isso não é nada, é pior que nada, se você agora não me disser toda a verdade. Eu não quero reme­xer em coisas que aqui não cabem. Desde o falecimento de nossa querida mãe, andaram acontecendo certas coisas pouco bonitas. Talvez também chegue a hora delas e talvez ela chegue mais cedo do que pensamos. Na firma não fico sabendo de diversas coisas, talvez elas não me sejam escamoteadas — não quero agora nem sequer estabelecer a suposição de que elas me são escamoteadas —, eu já não sou mais suficientemente forte, minha memória começa a falhar, não tenho mais olho para todas essas coisas. Esse é, em primeiro lugar, o curso da natu­reza e, em segundo lugar, a morte da nossa mãezinha me aba­teu muito mais que a você. — Mas já que estamos mesmo tra­tando dessa questão, por causa dessa carta, então eu lhe peço, Georg, trate de não me enganar. É uma coisinha de nada, não vale nem a pena mencioná-la, por isso não me engane. Você realmente tem esse amigo em Petersburgo?

Georg ergueu-se desconcertado. — Vamos deixar para lá os meus amigos. Mil amigos não

substituem o meu pai. Você sabe o que eu acho? Você não se cuida suficientemente. Mas a idade exige seus direitos. Você me é indispensável na firma, isso você sabe muito bem, mas se a firma chegar a ameaçar sua saúde, ainda amanhã fecho tudo para sempre. Assim não dá. Nós precisamos introduzir aí um novo modo de vida para você. Mas de modo radical. Você fica aqui sentado no escuro enquanto na sala você teria uma bela ilu­minação. Você fica só beliscando no café da manhã, ao invés de se reforçar a valer. Fica sentado com a janela fechada, quando o ar fresco lhe faria bem. Não, meu pai! Eu vou bus­car o médico e nós vamos seguir as recomendações dele. Nós vamos trocar de quarto, você vai lá para o quarto da frente, eu venho para cá. Não haverá nenhuma alteração para você, tudo vai ser levado junto. Mas tudo isso tem tempo, deite-se

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agora ainda um pouco na cama, você precisa muito de descanso. Venha, eu vou ajudá-lo a tirar a roupa, você vai ver que posso fazer isso. Ou se você quiser ir logo para o quarto da frente, então deite-se por enquanto na minha cama. Isso seria, aliás, muito sensato.

Georg estava parado logo ao lado de seu pai, que havia deixado cair sobre o peito a cabeça, com o cabelo branco desali­nhado.

— Georg — disse o pai em voz baixa, sem se mover. Georg logo ajoelhou ao lado do pai, viu as dilatadas pupi­

las no seu rosto cansado dirigidas de viés para ele. — Você não tem nenhum amigo em Petersburgo. Você

sempre foi um brincalhão e mesmo em relação a mim você não conseguiu conter-se. Como é que você teria, afinal, um amigo justamente lá! Eu nem consigo acreditar nisso.

— Lembre mais uma vez, pai — disse Georg, e levantou o pai da poltrona, tirou-lhe o chambre, enquanto ele se manti­nha de pé bastante fraco —, logo fará três anos que meu amigo veio nos visitar. Eu ainda me lembro de que você não gostava muito dele. Pelo menos duas vezes ocultei de você a presença dele, apesar de ele estar justamente sentado em meu quarto. Eu conseguia entender bastante bem, sim, sua aversão a ele; meu amigo tem lá suas esquisitices. Mas depois você chegou inclusive a palestrar muito bem com ele. Pois naquela ocasião eu fiquei ainda tão orgulhoso por você escutá-lo, menear a cabeça e fazer perguntas. Se você pensar um pouco, deve se lembrar. Ele contou naquela ocasião histórias incríveis da revolução russa. Como ele, por exemplo, numa viagem de negócios em Kiev, havia visto, durante um tumulto, um religioso, em cima de um balcão, e que se cortou uma enorme cruz de sangue na palma da mão, ergueu essa mão e conclamou a multidão. Você mesmo andou recontando algumas vezes essa história.

Enquanto isso, Georg havia conseguido fazer o pai nova­mente sentar e, com cuidado, despir-lhe a calça de tricô, que ele usava por cima das cuecas de linho, assim como as meias. Ao contemplar o estado da roupa de baixo, não especialmente lim­pa, ele se acusou de ter descuidado do pai. Seguramente teria sido também sua obrigação cuidar da troca dessa roupa de seu

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pai. Ainda não tinha falado expressamente com sua noiva sobre como pretenderiam organizar o futuro do pai, pois tinham pres­suposto tacitamente que ele ficaria sozinho na antiga moradia. Mas agora de repente decidiu, no entanto, levar com toda cer­teza o pai junto para sua futura residência. Olhando com maior cuidado, quase até parecia que já poderiam vir tarde demais os cuidados que lá precisariam ser ministrados ao pai.

Em seus braços ele carregou o pai para a cama. Teve uma horrível sensação ao notar que, durante os poucos passos na direção da cama, o pai brincava junto ao seu peito com sua cor­rente de relógio. Não pôde sequer deitá-lo na cama, tão firme ele se segurava nessa corrente de relógio.

Mas assim que estava na cama, tudo parecia bem. Ele mesmo se cobriu e puxou então o cobertor ainda especialmente acima dos ombros. Não foi inamistoso o olhar que lançou para cima, na direção de Georg.

— Não é verdade que você já está se lembrando dele? — perguntou Georg, meneando animadoramente a cabeça.

— Estou agora bem coberto? — perguntou o pai, como se não pudesse examinar se os pés estariam bem cobertos.

— Fique bem quieto, você está bem coberto. — Não! — exclamou o pai, de um modo que a resposta

se chocou com a pergunta, jogou a coberta de volta com uma força tal que, por um momento, ela, ao voar, abriu-se comple­tamente, e ele ficou de pé na cama. Com uma só mão apoiou-se levemente no teto.

— Você queria me deixar bem tapado, eu sei disso, meu filhotinho, mas eu ainda não estou tão tapado. E mesmo que sejam minhas últimas forças, elas são suficientes para você, até demais para você. Eu conheço bem esse seu amigo. De acordo com meu coração, ele seria um filho para mim. Por isso você também o andou enganando durante todos esses anos. Por que, se não? Será que você não acredita que eu chorei por ele? Por isso é que você, afinal, se tranca no escritório, ninguém deve perturbar, o chefe está ocupado — só para que você possa escre­ver suas falsas cartas para a Rússia. Mas felizmente ninguém precisa ensinar ao pai quem é o filho. Assim que você acreditou ter agora conseguido afundá-lo, afundá-lo tanto que você podia

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sentar com seu traseiro em cima dele e ele nem iria mexer-se, então o senhor meu filho decidiu casar-se!

Georg ficou olhando para o horrendo quadro pintado por seu pai. O amigo de Petersburgo, a quem o pai de repente conhe­cia tão bem, impressionou-o como nunca. Perdido na imensa Rússia, assim o viu. Junto à porta da firma vazia, saqueada, assim o viu. Entre as ruínas das prateleiras, das mercadorias arrebentadas, da iluminação a gás caída, mal se sustendo ainda de pé. Por que tivera ele de ir tão longe!?

— Mas olhe para mim! — gritou o pai, e Georg correu, quase fora de si, até a cama, para pegar tudo, mas parou no meio do caminho.

— Porque ela ergueu as saias — começou o pai a falar com a voz afetada — porque ela ergueu as saias assim, a galinha nojenta — e, para encenar isso, ele ergueu o camisolão tão alto que se via na sua coxa a cicatriz dos seus anos da guerra — por­que ela ergueu as saias assim e assim e assim, você se envolveu com ela, e para você poder gozar com ela sem ser atrapalhado, você desonrou a memória de nossa mãe, traiu o amigo e enfiou seu pai na cama para ele não poder fazer nada. Mas será que ele pode ou não pode fazer nada?

E ele ficou de pé sem se segurar e dançando lançava as per­nas. Ele resplandecia perspicácia.

Georg ficou parado num canto, o mais longe possível do pai. Há um bom tempo ele havia se decidido firmemente a observar tudo com a maior exatidão, para que não pudesse ser, de algum modo, surpreendido por avessas vias, de trás, de cima para baixo. Lembrou-se agora de novo da já olvidada decisão e esqueceu-a assim como se puxa uma linha curta demais atra­vés do buraco de uma agulha.

— Mas então o amigo não foi, afinal, traído! — gritou o pai, e seu dedo indicador, movendo-se para lá e para cá, refor­çava isso. — Eu era o representante dele aqui nesse lugar.

— Seu comediante! — não pôde Georg conter-se de excla­mar, reconhecendo logo o erro e mordendo, só que tarde demais — com os olhos arregalados — sua língua, a ponto de vergar os joelhos de tanta dor.

— Sim, é claro que encenei uma comédia! Comédia! Boa palavra! Que outro consolo restava ao velho pai viúvo? Diga —

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e no momento da resposta seja você ainda o meu filho vivo —, o que me restava então, naquele meu quartinho dos fundos, perse­guido por empregados desleais, velho até à medula? E meu filho andava em júbilo pelo mundo, concluía negócios que eu havia pre­parado, virava cambalhotas de satisfação e se afastava de seu pai com o rosto cerrado de um homem de bem! Será que você acre­dita que eu não teria amado você, eu, de quem você se originou?

— Agora ele vai inclinar-se para a frente — pensou Georg —, e se ele caísse e se arrebentasse! — Essas palavras zumbiram através de sua cabeça.

O pai inclinou-se para a frente, mas não caiu. Não tendo Georg se aproximado como ele havia esperado, levantou-se novamente.

— Fique onde está, eu não preciso de você! Você pensa que ainda tem forças para vir até aqui e só fica se contendo por­que quer. Mas não se engane! Sempre sou ainda o mais forte. Sozinho talvez eu tivesse de recuar, mas a mãe me deu a força dela, com seu amigo eu tenho um maravilhoso contato, e sua clientela eu tenho aqui no bolso!

— Até no camisolão ele tem bolsos! — disse Georg para si mesmo, acreditando que, com essa observação, ele podia torná-lo um homem impossível para o mundo inteiro. Só por um ins­tante pensou isso, pois continuava esquecendo tudo.

— Fique se pendurando na sua noiva e venha me enfrentar! Eu vou varrê-la de seu lado, você nem sabe como!

Georg fazia caretas como se não acreditasse nisso. O pai apenas meneava a cabeça, enfatizando a verdade daquilo que dizia, na direção do canto de Georg.

— Como você andou me divertindo hoje, quando veio e me perguntou se devia escrever para seu amigo sobre o noiva­do. Ele está sabendo de tudo, seu bobinho, ele está sabendo de tudo! Eu escrevi para ele, porque você esqueceu de me tirar o material para escrever. Por isso é que há anos ele não vem mais, ele sabe tudo mil vezes melhor do que você mesmo, suas cartas ele amassa na mão esquerda sem ler, enquanto na direita levanta as minhas para ler.

— Dez mil vezes! — disse Georg, para caçoar do pai, mas ainda dentro de sua boca essas palavras adquiriram um tom mortalmente sério.

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— Há anos já estou esperando que você me aparecesse com essa pergunta! Você acredita que alguma outra coisa ainda me preocupa? Você acredita que eu leio jornais? Olhe aí! — e jogou até Georg um jornal que de algum modo havia sido trazido junto para a cama. Um jornal antigo, com um nome já comple­tamente desconhecido a Georg.

— Quanto tempo você vacilou antes de tornar-se maduro! A mãe teve de morrer, ela não pôde vivenciar esse dia feliz; o amigo está se afundando lá na sua Rússia, há três anos ele já estava maduro para ser jogado fora, e eu, você está vendo como a coisa anda comigo. Para isso você bem que tem olhos!

— Quer dizer que você andou me espiando! — gritou Georg. Compassivo, sem dar-lhe importância, o pai disse: — Isso você provavelmente já queria dizer bem antes.

Agora já nem cabe mais. E em tom mais alto: — Agora você sabe, portanto, o que ainda existia além de

você; até há pouco só sabia de você mesmo. Era com certeza uma criança inocente, mas, com ainda maior certeza, era um homem demoníaco! — E por isso fique sabendo: eu sentencio você à morte por afogamento!

Georg sentiu-se expulso para fora do quarto; carregou ainda consigo o estrondo com que atrás dele o pai caíra na cama. Na escadaria, sobre cujos degraus ele se apressou como sobre um plano inclinado, ele esbarrou com sua empregada, que estava então querendo subir para arrumar o apartamento após a noite.

— Jesus! — gritou ela, e cobriu o rosto com o avental, mas ele já havia desaparecido.

Ele saltou portão afora, ia sendo arrastado pela estrada na direção da água. Já segurava o parapeito como um faminto segura um alimento. Balançou-se por cima do parapeito, como o destacado ginasta que ele fora, para orgulho de seus pais, em sua juventude. Ainda segurou-se com mãos cada vez mais fracas, espreitando, por entre as barras do parapeito, um ôni­bus que, facilmente, iria sufocar sua queda, e exclamou baixinho:

— Queridos pais, afinal eu sempre amei vocês — e deixou-se cair.

Nesse instante passava sobre a ponte um fluxo interminá­vel de tráfego.

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Um relato para uma academia

Excelentíssimos Senhores da Academia!

Os Senhores concederam-me a honra de convidar-me para apresentar um relato à Academia sobre a minha anterior vida de macaco.

Infelizmente não posso atender ao convite neste sentido. Quase cinco anos me separam do estado macacal, tempo talvez curto se medido pelo calendário, mas infinitamente longo para atravessar a galope, como eu o fiz, acompanhado em alguns tre­chos por homens aprimorados, conselhos, aplausos e música orquestral, no fundo porém sozinho, pois toda a companhia se manteve, para ficarmos dentro da imagem, longe da barreira. Tal resultado teria sido impossível, se eu tivesse me agarrado teimosamente à minha origem, às minhas recordações da juven­tude. Desistir de qualquer teimosia foi, para ser exato, a lei mais alta que eu havia me imposto; eu, macaco livre, submeti-me a esse jugo. Mas com isso minhas recordações obscureceram-se cada vez mais. Se no início, caso os homens o quisessem, a volta ainda teria sido possível através do imenso portão que o céu constitui sobre a terra, foi este se tornando, com a evolução imposta a chicote, cada vez mais baixo e estreito; cada vez me senti melhor e mais incluído no mundo dos homens; a tempes­tade que soprava lá do meu passado foi se amainando; hoje é

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apenas uma aragem que me refresca os calcanhares; e o buraco longínquo, por onde ela vem e por onde eu vim outrora, tornou-se tão pequeno que, se para tanto me bastassem as forças e a vontade de correr até lá, eu teria de mandar rapar o pêlo do corpo para atravessá-lo. Falando francamente, por mais que eu goste de escolher imagens para essas coisas, francamente afirmo que a sua macaquidade, meus Senhores, desde que os Senhores tenham algo semelhante atrás de si, não lhes pode estar mais distante do que a minha em relação a mim. Ela coça os calcanhares de qualquer um que anda aqui sobre a terra: tanto do pequeno chipanzé quanto do grande Aquiles.

Contudo, no sentido mais estrito talvez eu possa responder à questão dos Senhores, e faço-o até com grande alegria. A pri­meira coisa que aprendi foi: dar o aperto de mão; aperto de mão revela franqueza; tomara que hoje, quando estou no ápice de minha carreira, acrescente-se a palavra sincera àquele pri­meiro aperto de mão. Para a Academia, isso não vai acrescen­tar essencialmente nada de novo, vai ficar muito aquém do que me foi solicitado e do que, com a melhor das boas vontades ainda posso dizer — mesmo assim, deve mostrar a linha-mestra de como um ex-macaco penetrou e se afirmou no mundo dos homens. Eu certamente não deveria, porém, dizer nada do que direi, se não estivesse totalmente seguro de mim mesmo e se minha posição em todos os teatros de variedades do mundo civi­lizado já não tivesse se firmado inabalavelmente.

Sou oriundo da Costa do Ouro. Sobre como fui capturado, dependo do relato de terceiros. Uma expedição de caça da firma Hagenbeck — aliás, com o chefe dela já andei esvaziando desde aquela época alguma garrafa de bom vinho tinto — estava emboscada nas moitas da margem, quando à noitinha fui beber com o bando de macacos. Tiros foram disparados; fui o único a ser atingido; levei dois tiros.

Um na fuça; este era leve; mas deixou uma grande cicatriz vermelha e sem pêlo que me trouxe o horrível nome de Pedro Ver­melho, totalmente inadequado, de certo inventado por um macaco, como se eu me diferenciasse, apenas pela mancha vermelha na bochecha, de um macaco adestrado chamado Pedro, há muito já falecido e famoso apenas aqui e ali. Isso dito só de passagem.

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O segundo tiro me atingiu na parte inferior da região ilíaca. Foi grave; por causa dele até hoje eu manco um pouco. Há alguns dias li um artigo de um desses dez mil cabeças-de-vento que se manifestam sobre mim nos jornais: que minha natureza de macaco não estaria ainda bem reprimida; prova disso seria que, quando pessoas me visitam, eu teria prazer em tirar as cal­ças para mostrar onde aquele tiro acertou. De um sujeitinho desses, se devia arrancar a tiros um por um cada dedinho de sua mão de escriba. Eu, eu posso tirar minhas calças à frente de quem eu quiser; ali nada mais vai-se encontrar do que pêlo bem cuidado e — escolhamos aqui, para um determinado fim uma palavra determinada, mas que não deve ser mal-entendida — a cicatriz de um tiro sacrílego. Tudo está bem à mostra; não há nada a esconder; quando se trata da verdade, todo megalo­maníaco joga fora as melhores maneiras. Se, no entanto, aquele escriba tirasse as calças quando viessem visitas, isso teria outra aparência e sentido. Quero até considerar como sendo um sinal de juízo que ele não o faça. Mas então ele que me deixe em paz com suas sutilezas.

Depois daqueles tiros, acordei — e aqui começam aos pou­cos minhas próprias recordações — numa jaula da coberta média do vapor hagenbeckiano. Não era uma jaula com quatro paredes de grades; mais pareciam três paredes fixadas numa caixa; a caixa constituía, portanto, a quarta parede. Isso tudo era baixo demais para ficar de pé e estreito demais para sentar. Eu estava, portanto, de cócoras, com os joelhos dobrados e tre­mendo, e, como eu provavelmente não queria ver ninguém, só queria ficar no escuro, voltado para a parede da caixa, enquanto atrás de mim as grades me espetavam a carne. Considerava-se vantajoso guardar animais selvagens desse modo durante os pri­meiros tempos, e hoje, depois de minha experiência, não posso negar que este é, de fato, o caso (dentro da perspectiva humana).

Naqueles tempos, porém, eu não pensava nisso. Pela pri­meira vez em minha vida não tinha saída; ao menos para a frente eu não tinha; à minha frente o que havia era a parede da caixa, tábua presa com tábua. Reconheço que entre as tábuas havia uma fresta de alto a baixo, fresta que, quando a descobri pela primeira vez, saudei com o uivo mais feliz da irracionali-

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dade, mas essa fresta não era nem de longe suficiente sequer para pôr o rabo de fora, nem era possível alargá-la com toda a força de um macaco.

Conforme me foi contado mais tarde, devo ter feito excep­cionalmente pouco barulho, donde se concluiu que em breve eu iria morrer ou, caso me fosse possível sobreviver aos críticos pri­meiros tempos,seria muito fácil de amestrar. Sobrevivi a este período. Soluços abafados, catação dolorida de pulgas, cansada lambeção de coco, bater na parede da caixa com a cabeça, exibir a língua quando alguém passasse por perto — essas foram as pri­meiras ocupações da nova vida. Em tudo isso, porém, apenas um sentimento: a falta de saída. Hoje só posso, naturalmente, retratar com palavras humanas o que outrora foi sentido à moda símia; por isso faço-o mal, mas, se não posso mais atingir a antiga verdade do macaco, ela ao menos se encontra na direção do que descrevo. Quanto a isso, não resta a menor dúvida.

Até então eu sempre tinha tido muitas saídas, e agora mais nenhuma. Estava completamente preso. Se tivessem me pregado com pregos, minha liberdade de movimentos não se teria tor­nado menor. Por que isso? Coce entre os dedos de seu pé até rasgar, e você não vai encontrar a causa. Fique se apertando contra as grades até que elas quase o partam em dois, e você não vai encontrar a causa. Eu não tinha saída, mas precisava me arranjar uma, pois, sem ela, eu não podia viver. Enjaulado para sempre nessa caixa, eu seguramente teria morrido. Na firma Hagenbeck, porém, macacos ficam em jaulas desse tipo. Deixei, portanto, de ser macaco. Um claro, bonito raciocínio, que eu, de algum modo, tive de chocar em minha barriga, pois macacos pensam com a barriga.

Temo que o que eu entendo por saída não seja entendido de maneira exata. Uso a palavra em seu sentido mais comum e pleno. Propositadamente não digo "liberdade". Não quero me referir a esse grande sentimento de liberdade para todos os lados. Como macaco, talvez eu o tivesse conhecido e já conheci homens que sentem saudades disso. Quanto a mim, porém, eu não que­ria liberdade nem então nem agora. Cá entre nós: entre os homens, vezes demais a gente se engana com liberdade. E assim como a liberdade está entre os sentimentos mais sublimes, assim

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também está o engano correspondente. Muitas vezes, no teatro de variedades, antes de subir ao palco, vi pares de artistas traba­lhando no trapézio. Eles oscilavam, balançavam, saltavam, sus­pendiam-se nos braços um do outro, um suspendia o outro pelos cabelos com a boca. "Também isso é liberdade humana", pen­sei eu, "movimento autocontrolado". Tu, escárnio da divina natureza! Com essa visão, nenhuma elaboração ficaria de pé diante do escárnio da macacada.

Não, eu não queria liberdade. Eu só queria uma saída: à direita, à esquerda, para onde fosse; eu não impunha outras exi­gências; mesmo que a saída fosse um engano; a exigência era pequena, o engano não seria maior. Em frente! Em frente! Só não ficar parado com os braços para cima, apertado contra as paredes de um caixote.

Hoje. percebo claramente: sem a máxima calma interior, eu jamais teria escapado. E, de fato, devo talvez tudo o que me tornei à calma que me sobreveio lá no navio após os primei­ros dias. A calma, por sua vez, devo-a ao pessoal do navio.

Apesar de tudo, eram boa gente. Ainda hoje gosto de lem­brar o som de seus pesados passos, passos que outrora ecoavam em minha dormência. Os marinheiros tinham o costume de fazer tudo com o máximo de lentidão. Se um deles queria esfregar os olhos, levantava a mão como se fosse um peso. Seus chistes eram pesados, mas cordiais. O sorriso deles estava sempre mistu­rado com uma tosse que parecia perigosa, mas que nada signifi­cava. Eles sempre tinham na boca alguma coisa para cuspir e era-lhes indiferente onde iriam cuspir. Sempre se queixavam de que minhas pulgas pulavam neles; mas nem por isso ficavam seriamente bravos comigo; eles sabiam simplesmente que no meu pêlo se desenvolveram pulgas e que pulgas pulam; confor­mavam-se com isso. Quando não estavam de serviço, alguns se sentavam em meia-lua ao meu redor; espichados sobre caixas, pitavam cachimbo; e às vezes um pegava um pauzinho e me coçava onde me fosse agradável. Caso me convidassem hoje a fazer uma viagem nesse navio, eu certamente recusaria o con­vite, mas é certo também que não seriam apenas recordações desagradáveis que eu poderia ter daquela entrecoberta.

A tranqüilidade que consegui no círculo dessas pessoas me absteve de qualquer tentativa de fuga. Revendo a partir de

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hoje, parece-me que ao menos eu tinha intuído que, se eu qui­sesse viver, teria de encontrar uma saída, mas que ela não seria atingível através da fuga. Não sei mais se uma fuga teria sido possível, mas creio que sim; a um macaco a fuga deve sempre ser possível. Com meus dentes de hoje preciso tomar cuidado até para quebrar uma simples noz; naquela época, porém, creio que com o tempo me deveria ter sido possível rebentar a tranca da porta. Não o fiz. E o que eu poderia conseguir com isso? Mal teria posto a cabeça fora, eles teriam me prendido de novo e enfiado numa jaula ainda pior; ou então, sem querer, eu have­ria de esconder-me com outros animais, com as enormes cobras do outro lado, e teria expirado em seus abraços; ou então pode­ria conseguir sair furtivamente até à coberta superior e pular para fora do navio; eu teria balançado sobre o oceano por uns instantes e depois me afogado. Atos de desespero. Eu não calcu­lava de maneira tão humana, mas sob o impacto das circunstân­cias comportei-me como se tivesse calculado.

Eu não calculava, mas observava com toda a calma. Eu via esses homens subirem e descerem, sempre os mesmos rostos, os mesmos movimentos, muitas vezes eles me pareciam ser um só. O homem ou esses homens se locomoviam, sem serem molesta­dos. Uma elevada meta alvorecia em mim. Ninguém me prome­teu que as grades seriam abertas se eu me tornasse igual a eles. Tais promessas não são feitas para realizações aparentemente impossíveis. Se, contudo, elas são completadas, as promessas depois também aparecem exatamente onde antes foram procura­das em vão. Só que não havia nada nesses homens que me atraísse muito. Se eu fosse partidário daquela liberdade já citada, certa­mente teria preferido a saída pelo oceano, que me era mostrada no olhar sombrio desses homens. De qualquer modo, eu já os observava muito antes de pensar tais coisas. Sim, as observa­ções acumuladas é que me levaram na direção determinada.

Era tão fácil imitar as pessoas. Cuspir eu já sabia nos pri­meiros dias. Nós nos cuspíamos daí reciprocamente na cara; a diferença era apenas que eu depois me limpava a cara lambendo, e eles não. Em breve eu já fumava o cachimbo como um velho; se, além disso, eu comprimia o fornilho com o dedão, toda a entrecoberta rejubilava; o que, por muito tempo, eu não entendi foi apenas a diferença entre o cachimbo cheio e o cachimbo vazio.

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Tive mais trabalho com a garrafa de cachaça. O cheiro me desagradava; eu me esforcei e me forcei com todas as forças, mas passaram semanas até que eu me dominasse. As pessoas levaram essas lutas interiores surpreendentemente mais a sério do que qualquer outra coisa em mim. Eu também não distingo nitidamente as pessoas em minhas recordações, mas havia alguém que, de dia ou de noite, sozinho ou acompanhado, vinha sem­pre de novo, nas horas mais variadas; ele se colocava na minha frente e me dava aulas. Ele não me entendia, queria resolver o enigma do meu ser. Girava devagarinho a rolha da garrafa e me olhava para ver se eu havia entendido; reconheço que eu sempre o olhava com uma atenção selvagem, atabalhoada; um tal discípulo dos homens nenhum professor de humanos encon­tra sobre o globo terrestre; depois que a garrafa estava desarro-Ihada, ele a erguia até a boca; eu o seguia com o olhar até a goela: ele acena, satisfeito comigo, e põe a garrafa nos lábios; encantado com o conhecimento paulatino, eu me coço no com­primento e na largura onde compete; ele se alegra, coloca a gar­rafa na posição e toma um gole; eu, impaciente e desesperado por imitá-lo, sujo-me todo em minha gaiola, o que lhe traz de novo grande satisfação; e agora, estendendo a garrafa longe de si e trazendo-a em curva ascendente outra vez aos lábios, ele, inclinado para trás com um exagero didático, bebe-a até o fim de uma talagada só. Eu, esgotado pela exigência excessiva, não posso mais prestar atenção e pendo fraco na grade enquanto ele conclui a lição teórica coçando a barriga e mostrando os dentes.

Só agora começa o ensaio prático. Será que não estou esgo­tado demais pelo ensinamento teórico? Certamente, esgotado demais. Isso faz parte de meu destino. Apesar disso, pego, tão bem quanto posso, a garrafa que me é estendida, tremendo, tiro-lhe a rolha; com o êxito, novas forças surgem aos poucos; já difícil de distinguir do original, ergo a garrafa; coloco-a na posi­ção e — e jogo-a fora com nojo, apesar de ela estar vazia e só o cheiro ainda enchê-la, jogo-a com nojo ao chão. Para grande pesar de meu mestre, para meu maior pesar; não faço as pazes nem com ele nem comigo mesmo jogando fora em seguida a garrafa, não esquecendo de coçar a barriga com capricho e arre-ganhando os dentes ao mesmo tempo.

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Vezes demais a aula transcorria assim. E para honra de meu professor: ele não ficava irritado comigo, de fato às vezes ele me punha o cachimbo aceso no pêlo, até que, nalgum ponto quase fora de meu alcance, começasse a chamejar, mas daí ele mesmo apagava o fogo com sua mão cheia de bondade; ele não estava bravo comigo, compreendia que combatíamos lado a lado contra a natureza macacal e que eu ficava com a parte mais pesada.

Mas que grande vitória para ele e para mim quando, numa noite, diante de um auditório imenso — talvez houvesse uma festa, um gramofone tocava, um oficial passeava entre as pes­soas — eu, naquela noite, apanhei, sem ser notado, uma gar­rafa de cachaça deixada por descuido em frente à minha jaula, arranquei, sob a atenção crescente da sociedade, a rolha con­forme os ensinamentos, coloquei a garrafa na boca e sem vaci­lar, sem fazer caretas, como um pau-d'água diplomado, esva­ziei-a toda, deveras e verdadeiramente; joguei fora a garrafa, não mais como um desesperado, mas como um artista; de fato esqueci de coçar a barriga; em compensação, porém, porque eu não podia fazer diferente, porque eu precisava, porque os sentidos me zumbiam, eu exclamei "a lô" em alto e bom tom, esvaí-me num som humano. Com este grito pulei para a comu­nidade humana e senti o eco "ouçam só, ele fala" como um beijo sobre todo o meu corpo suado.

Repito: não me atraía imitar os seres humanos, eu só imi­tava porque procurava urna saída. Por nenhum outro motivo. Mesmo a cada vitória pouco estava feito. A voz me abandonou logo de novo; só se ajustou depois de meses; o horror à garrafa de cachaça voltou até mais forte. Mas minha diretriz estava defi­nitivamente tomada.

Quando em Hamburgo fui confiado ao primeiro amestra-dor, logo reconheci as duas possibilidades que me estavam aber­tas: jardim zoológico ou teatro de variedades. Não vacilei. Eu me disse: invista todas as suas energias para entrar no teatro de variedades; esta é a saída; o zoológico é apenas uma nova jaula, se entras nele, estás perdido.

E eu aprendi, meus Senhores. Ah sim, a gente aprende quando precisa; a gente aprende quando quer uma saída; a gente aprende sem comiseração. A gente se vigia a si mesmo com o chicote; a gente se arrebenta à mínima oposição. A natu-

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reza de macaco corria veloz para longe de mim, aos trambolhões, de tal modo que meu primeiro professor quase ficou besta com isso, em pouco tempo teve de desistir das aulas e ser levado para um sanatório. Felizmente em breve ele pôde sair.

Mas gastei e desgastei muitos professores, até vários profes­sores simultaneamente. Quando já havia me tornado mais seguro de minhas capacidades, o público acompanhava meus progressos e meu futuro começava a brilhar, contratei eu mesmo os professo­res, deixei-os em cinco quartos contíguos e aprendia com todos ao mesmo tempo, pulando de um quarto para o outro sem parar.

Esses progressos! De todos os lados, esse penetrar dos raios do saber num cérebro que desperta! Não o nego; isso me ale­grava. Mas também reconheço: eu não superestimava isso, nem naquela época, muito menos hoje. Através de um esforço que até agora não se repetiu na face da terra, alcancei o nível médio de cultura de um europeu. Em si talvez isso não fosse nada, mas é, contudo, alguma coisa na medida em que me ajudou a sair da jaula e me arranjou esta saída especial, esta saída humana. Existe uma esplêndida expressão idiomática: "dar no pé"; foi isso o que fiz, dei no pé. Eu não tinha outra saída, sem­pre se pressupondo que a liberdade não era uma escolha.

Se contemplo minha evolução e seu objetivo até agora, não me lastimo nem estou satisfeito. Com as mãos nos bolsos, a gar­rafa de vinho sobre a mesa, estou meio sentado, meio deitado na cadeira de balanço e olho pela janela. Se alguém me visita, recebo-o conforme é devido. Meu empresário está na antecâ-mara; se toco a campainha, ele vem e ouve o que tenho a dizer. A noite quase sempre tenho apresentações no teatro e alcanço êxitos dificilmente superáveis. Se, tarde da noite, volto para casa depois de banquetes, sociedades científicas, encontros agra­dáveis, uma pequena chipanzé seminua me espera e eu me dou um tempo com ela à moda dos macacos. Durante o dia não quero vê-la, pois ela tem no olhar a loucura do animal domés­tico perturbado; só eu reconheço isso, e não consigo suportá-lo.

Em suma, consegui de algum modo o que eu queria. Que não se diga que não valeu a pena. Aliás, não quero o julga­mento de nenhum homem, só quero difundir conhecimentos, eu relato apenas; também aos Senhores, ilustres membros da Academia, eu apenas relatei.

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Um cruzamento

Tenho um animal muito singular, meio-gatinho, meio-cor-deiro. É parte da herança de meu pai. Só se desenvolveu, no entanto, à minha época; antes ele era muito mais cordeiro do que gatinho. Mas agora tem de ambos a mesma parcela. Do gato, cabeça e garras; do cordeiro, tamanho e formato; de ambos, os olhos, que são inquietos e selvagens, a pelugem, que é macia e rala, os movimentos, que são tanto um saltar quanto um rastejar. Em cima do parapeito da janela, sob a luz do sol, ele se enrosca todo e ronrona, no campo corre como louco e mal se consegue apanhá-lo de novo. Dos gatos foge, cordeiros ele quer atacar. Nas noites de luar, as ripas do telhado são seu caminho predileto. Miar não sabe, e de ratos ele tem horror. Pode ficar horas espreitando à beira do galinheiro, só que nunca ainda aproveitou uma oportunidade para matar.

Eu o alimento com leite adocicado, é o que mais lhe agrada. Em longos goles, sorve-o para dentro de si por entre seus den­tes de felino. Naturalmente, é um grande espetáculo para as crianças. Domingo pela manhã é horário de visita. Fico com o bichinho no colo e a criançada de toda a vizinhança põe-se ao meu redor. São então feitas as perguntas mais mirabolantes, perguntas que pessoa alguma consegue responder: por que só existe um único animal desses, por que justamente eu o tenho, se já existiu antes dele um bicho assim e como é que vai ser

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depois de sua morte, se ele se sente solitário, por que motivo ele não tem filhotes, como é que ele se chama e assim por diante.

Não me dou ao trabalho de responder, mas me contento em mostrar aquilo que tenho. Às vezes as crianças trazem gatos consigo, uma vez até trouxeram dois cordeiros junto. Mas, con­tra as expectativas, não houve cenas de reconhecimento. Os ani­mais ficaram se olhando calmamente com olhos de animal e, ao que parece, aceitaram sua existência como um fato divino.

No meu colo, o bicho não sabe o que é medo nem perse­guição. Grudado em mim, mais se sente bem. É fiel à família que o criou. Isso não é, obviamente, nenhuma fidelidade fora do comum, e sim o correto instinto de um animal que efetiva­mente tem inúmeros aparentados, mas talvez nenhum parente consangüíneo, e para o qual é, portanto, sagrada a proteção que encontrou entre nós.

Às vezes preciso rir quando ele fica me farejando, enrosca-se entre minhas pernas e nem pode mais ser separado de mim. Não satisfeito em ser cordeiro e gato, quase quer ser também ainda um cão. — Uma vez quando eu — como pode, afinal, acontecer a qualquer um — não conseguia achar saída em meus negócios e em tudo o que com isso se relaciona, eu queria dei­xar ruir e descambar tudo e, nesse estado de ânimo, eu estava em casa, atirado na cadeira de balanço, com o animal no colo; olhei então, por acaso, uma vez para baixo, e vi que lágrimas pingavam de seus imensos bigodes. — Eram minhas, eram dele? — Teria esse animal com alma de cordeiro também um coração humano? — Não herdei muito de meu pai, mas essa é uma herança que bem se pode exibir.

Ele tem as duas inquietações dentro de si, a do gato e a do cordeiro, por mais diversas que sejam. Por isso é que sua pele lhe é estreita e apertada demais. — Às vezes ele pula ao meu lado em cima da poltrona, apóia-se com as pernas diantei­ras em meu ombro e encosta seu focinho junto à minha orelha. É como se ele me dissesse alguma coisa e, de fato, ele se inclina então para trás e me olha no rosto para observar o efeito que a comunicação exerceu sobre mim. E, para ser agradável, faço de conta que entendi alguma coisa, e meneio a cabeça. — Então ele pula para o chão e põe-se a dançar de um lado para o outro.

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Talvez a faca do açougueiro fosse para esse animal uma redenção, mas esta eu tenho de negar a ele enquanto parte de uma herança. Por isso ele terá de esperar até que a respiração nele desapareça por si mesma, ainda que às vezes fique me olhando como que com compassivos olhos de gente, a clamar por uma ação compassiva.

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A ponte

Eu era rígida e fria, eu era uma ponte, sobre um abismo eu jazia. Do lado de cá estavam as pontas dos pés, do lado de lá as mãos encravadas, na lama inconsistente meus dentes afer-rci. As abas de meu casacão flutuavam dos meus lados. Nas pro-fundezas murmurejava o gélido regato de trutas. Nenhum turista errava por essas inviáveis alturas, a ponte não estava ainda regis­trada nos mapas. — Assim eu jazia e esperava; eu tinha de espe­rar. Sem ter desmoronado, nenhuma ponte um dia erigida con­segue deixar de ser ponte.

Uma vez, por volta do anoitecer — era a primeira vez, era milésima, não sei — meus pensamentos andavam sempre para

lá e para cá, e sempre em círculos. Por volta do anoitecer de um dia de verão, mais sombrio ressoava o riacho, súbito passos de um homem escutei! Na minha direção, na minha direção.

Estende-te, ponte, coloca-te em posição; viga sem balaústre, sustenta o que te foi confiado. Sem que se note, trata de com­pensar e equilibrar a insegurança do seu passo; mas, se ele vaci-l.n , dá-te então a conhecer e, como um deus da montanha, pro-jeta-o em terra.

Ele chegou, e com a ponta de ferro de seu bordão me aus-Bllltou; em seguida ergueu com ele as abas de meu casaco, colo­cando-as ordenadamente em cima de mim. Meu cabelo desali­nhado ele percorreu com a ponta e, provavelmente olhando de

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modo selvagem ao redor, deixou-a por longo tempo enfiada den­tro dele. Mas depois — eu já o sonhava por montes e vales além — ele me pulou com os dois pés bem no meio do corpo. Em selvagem dor estarreci, completamente sem saber, toda inocente. Quem era? Uma criança? Um sonho? Um salteador? Um sui­cida? Um tentador? Um aniquilador? E eu me voltei e virei para vê-lo. — Uma ponte a se revolver. Eu nem sequer havia ainda me voltado toda e já ia despencando então, despencando, já ia sendo escangalhada e empalada pelos pedregulhos pontu-dos, que sempre me haviam olhado com tanta cordialidade lá da água a correr.

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O silêncio das sereias

Prova de que inclusive meios insuficientes, até mesmo infan­tis, podem servir para a salvação:

Para se precaver contra as sereias, Odisseu encheu os ouvi­dos de cera e fez-se amarrar ao mastro. Naturalmente, desde sempre todos os viajantes poderiam ter feito algo semelhante, exceto aqueles que as sereias já de longe seduzissem, mas no mundo inteiro se sabia que era impossível que isso pudesse aju­dar. O canto das sereias transpassava tudo e a paixão dos sedu­zidos teria arrebentado mais que correntes e mastro. Mas Odis­seu nem pensou nisso, embora talvez tenha ouvido falar disso. Confiava plenamente no punhado de cera e no emaranhado de correntes e, em inocente alegria quanto a seus meiozinhos, nave­gou em direção às sereias.

Ora, as sereias possuem, no entanto, uma arma ainda mais assustadora do que o canto: seu silêncio. Embora isso nunca tenha acontecido, talvez se possa pensar que alguém tenha se salvo de seu canto, certamente não porém de seu silêncio. À sensação de tê-las vencido com a própria força, à arrasadora arrogância daí decorrente, não há nada terrestre que se possa contrapor.

E, de fato, quando Odisseu chegou, as poderosas cantoras não cantavam, seja porque acreditassem que a esse adversário

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só o silêncio saberia enfrentar, seja porque o olhar de felici­dade no rosto de Odisseu, que não pensava senão em cera e correntes, fez com que esquecessem todo canto.

Mas Odisseu não ouviu, por assim dizer, seu silêncio, acre­ditou que cantavam e que somente a ele seria dado ouvir. Avis­tou primeiro fugazmente os movimentos de seus pescoços, a respiração profunda, os olhos replenos de lágrimas, as bocas semi-abertas, mas acreditava que isso fizesse parte das árias que inauditas ressoavam ao seu redor. Logo, porém, tudo resva­lou nos olhares que ele lançava ao longe; formalmente as sereias desapareceram diante de sua pertinácia e, justamente quando mais junto a elas estava, já não sabia mais nada delas.

Elas porém — mais lindas do que nunca — se espreguiça-vam e se distendiam, deixavam o horripilante cabelo flutuar solto ao vento e estiravam as garras livremente sobre os reci­fes. Elas não queriam mais seduzir, apenas queriam ainda cap­tar de Odisseu, tanto quanto possível, o rebrilhar de seu imenso par de olhos.

Tivessem as sereias consciência, teriam sido então aniquila­das. Mas, assim, permaneceram, só Odisseu delas escapou.

Aliás, quanto a isso a tradição nos acresce um adendo. Diz-se que Odisseu era tão astuto, era uma raposa tal, que mesmo a Deusa do Destino não conseguia penetrar em seu íntimo. Embora isso já não possa mais ser entendido pela razão humana, talvez ele realmente tenha notado que as sereias silen­ciavam e só tenha, de certo modo, anteposto a elas e aos deu­ses, como um escudo, o procedimento simulador supracitado.

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Prometeu

De Prometeu relatam-se quatro sagas: de acordo com a primeira, ele, por ter traído os deuses em favor dos homens, foi preso com cadeias ao Cáucaso, e os deuses enviaram águias, que comiam do seu fígado sempre a crescer.

De acordo com a segunda, Prometeu, de tanta dor diante dos bicos que o atacavam, comprimiu-se cada vez mais fundo na rocha, até tornar-se uno com ela.

De acordo com a terceira, com os milênios foi esquecida sua traição, os deuses esqueceram, as águias, ele mesmo.

De acordo com a quarta, acabou se cansando daquilo que se havia tornado sem razão. Os deuses ficaram cansados, as águias ficaram cansadas, a ferida fechou-se de cansaço.

Restou a inexplicável montanha rochosa. — A saga busca explicar o inexplicável. Já que ela se origina de um fundo de verdade, precisa acabar de novo no inexplicável.

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O abutre

Havia um abutre que bicava os meus pés. Botas e meias ele já havia arrebentado, agora já bicava os pés. Atacava sem­pre, em seguida voava inquieto várias vezes ao meu redor e depois prosseguia o trabalho. Veio passando um cavalheiro, ficou a olhar por algum tempo e perguntou então por que eu tolerava o abutre.

— Ora, estou indefeso — disse eu —, ele veio e começou a bicar, daí eu naturalmente quis afugentá-lo, tentei até estrangulá-lo, mas um animal desses tem muita força,, queria inclusive pular no meu rosto, por isso preferi sacrificar os pés. Agora eles já estão quase arrebentados.

— Mas que o senhor se deixe torturar desse jeito — disse o cavalheiro —, um tiro e o abutre está liquidado!

— É mesmo? — perguntei eu. — E o senhor quer providen­ciar isso?

— Com prazer — disse o cavalheiro —, só preciso ir até em casa e buscar minha arma. Será que o senhor pode esperar meia hora ainda?

— Isso eu não sei — disse eu, e fiquei paralisado de dor por algum tempo, até dizer: — Por favor, tente isso em todo caso.

— Bom — disse o cavalheiro —, vou me apressar. Durante a conversa, o abutre tinha ficado escutando bem

quieto e deixado correr seus olhares entre mim e o cavalheiro.

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Agora eu via que ele entendera tudo; alçou vôo, distanciou-se em curva ao longe para conseguir bastante impulso e, então, como um arremessador de dardos, lançou o bico através de minha boca profundamente em mim. Senti, aliviado, ao cair para trás, como ele se afogava sem salvação em meu sangue, que ia preenchendo todas as minhas entranhas, transbordando todas as margens.

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Pequena fábula

— Ah — disse o camundongo —, a cada dia o mundo se torna mais estreito. No início ele era tão amplo que eu tinha medo, continuei correndo e fiquei feliz por finalmente avistar, à esquerda e à direita, muros ao longe, mas esses longos muros correm tão rápido um na direção do outro que já estou no último quarto e ali, no canto, está parada a armadilha para dentro da qual vou correndo.

— Você apenas precisava alterar a direção da corrida — disse o gato, e devorou-o.

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Das comparações

Muitos se queixam de que as palavras dos sábios seriam sempre de novo apenas comparações, inúteis porém na vida coti­diana, sendo que só temos esta. Quando o sábio diz: "vá para o lado de lá", então ele não quer dizer que se deva ir para o outro lado, o que de qualquer modo ainda se poderia fazer se o resultado do caminho valesse a pena, mas ele quer indicar algum fabuloso Além, algo que nós não conhecemos, que ele também não sabe definir com maior exatidão e que, portanto, em nada nos pode aqui ajudar. Todas essas comparações que­rem apenas dizer, a rigor, que o inconcebível é inconcebível, e disso nós já sabíamos. Mas aquilo com que nos esfalfamos a cada dia são outras coisas.

Em seguida disse alguém: — Por que vocês reclamam? Se vocês seguissem as compa­

rações, então vocês mesmos se teriam tornado comparações e, com isso, já estariam livres das preocupações diárias.

Um outro disse: — Aposto que também isso é uma comparação. O primeiro disse: — Você ganhou. O segundo disse: — Mas lamentavelmente apenas na comparação. O primeiro disse: — Não, na realidade; na comparação você perdeu.

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Na colônia penal

— É um aparelho singular — disse o oficial ao pesquisa­dor em viagem e, com um olhar até certo ponto de admiração, deu uma olhada nesse aparelho que lhe era, afinal, bastante fami­liar. O viajante parecia ter aceito só por cordialidade o convite do comandante, que insistira para que ele acompanhasse a exe­cução de um soldado que havia sido condenado por desobediên­cia e ofensa a um superior. O interesse por essa execução tam­bém não era muito grande na colônia penal. Ao menos estavam aqui presentes — nesse pequeno vale profundo, arenoso, circun­dado por escarpas desnudas —, além do oficial e do viajante, apenas o condenado (um homenzinho idiota, de boca larga, cabelo e rosto maltratados) e um soldado, que segurava a pesada corrente, da qual saíam as pequenas correntes com as quais o condenado estava preso pelos pulsos e pelos tornozelos, bem como pelo pescoço, e que por sua vez estavam interligados atra­vés de correntes. O condenado se mostrava, aliás, tão canina-mente resignado que até parecia que se poderia deixá-lo correr pelas escarpas e, à hora da execução, apenas assobiar para que ele viesse.

O viajante possuía pouco senso para o aparelho e cami­nhava quase visivelmente isento e neutro atrás do condenado, para cima e para baixo, enquanto o oficial providenciava os últimos preparativos, ora rastejando debaixo do aparelho pro-

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fundamente mergulhado dentro da terra, ora subindo em uma escada para examinar as partes de cima. Eram operações que, a rigor, poderiam ter sido deixadas por conta de um maquinista, mas o oficial executava-as com grande zelo, seja porque fosse um especial aficionado desse aparelho, seja porque por outras razões não podia confiar isso a mais ninguém.

— Agora está tudo pronto! — proclamou ele por fim, des­cendo a escada.

Estava extremamente cansado, resfolegava com a boca bem aberta e havia enfiado dois lenços macios de senhora atrás da gola do uniforme.

— Esses uniformes são, afinal, grossos demais para os tró­picos — disse o viajante, ao invés de, como o oficial havia espe­rado, procurar informar-se sobre o aparelho.

— Certamente — disse o oficial, lavando numa cuba de água aí colocada as mãos sujas de óleo e graxa —, mas eles sig­nificam a pátria; nós não queremos perder a pátria. — Mas agora dê uma olhada nesse aparelho — acrescentou ele em seguida, secando as mãos com uma toalha e apontando ao mesmo tempo para o aparelho. — Até agora ainda foi necessário traba­lho manual, mas de agora em diante o aparelho trabalha total­mente sozinho.

O viajante acenou com a cabeça e acompanhou o oficial. Este procurava prevenir todas as eventualidades e disse então:

— Naturalmente ocorrem defeitos; na verdade espero que hoje não ocorra nenhum, mesmo assim preciso contar com eles. Afinal, o aparelho deverá ficar em funcionamento por doze horas seguidas. Mas se chegarem a aparecer defeitos, então serão apenas defeitos bem pequenos e logo superados.

Por fim ele perguntou: — O senhor não quer sentar? — e, de uma pilha de cadei­

ras de vime, tirou uma, oferecendo-a ao viajante; este não pôde recusar. Ele estava agora sentado à beira de uma fossa, na qual lançou um rápido olhar. Não era muito funda. De um lado dela a terra escavada formava um montículo, do outro estava o apa­relho.

— Eu não sei — disse o oficial — se o comandante já lhe explicou o aparelho.

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O viajante fez um movimento indeterminado com a mão; o oficial não queria nada mais que isso, pois agora ele mesmo podia explicar o aparelho. — Este aparelho — disse ele, e segu­rou uma manivela, na qual se apoiou —, é uma invenção de nosso antigo comandante. Colaborei já nas primeiras tentativas e participei também de todos os trabalhos até a conclusão. Mas o mérito do invento é todo dele, somente dele. Já ouviu falar de nosso antigo comandante? Não? Ora, não estou afirmando demais quando digo que a organização de toda a colônia penal é obra dele. Nós, os amigos dele, sabíamos já por ocasião de sua morte que a organização da colônia era algo tão acabado em si que seu sucessor, e tenha ele milhares de novos planos na cabeça, ao menos por muitos anos não conseguiria alterar nada do anterior. Nossa previsão também se concretizou; o novo comandante teve de reconhecer isso. É pena que o senhor não tenha conhecido o antigo comandante! Mas — interrompeu-se o oficial —, eu fico falando fiado e o aparelho dele está aqui parado diante de nós. Consiste, como o senhor percebe, de três partes. Com o correr do tempo, para cada uma dessas partes andaram se desenvolvendo designações até certo ponto populares. A parte de baixo chama-se cama, a de cima chama-se desenhador e aqui, a do meio, a parte móvel, chama-se grade.

— Grade? — perguntou o viajante. Ele não tinha escutado bem atento, o sol envolvia-o com

força demais nesse vale sem sombras, era difícil ordenar os pró­prios pensamentos. Tanto mais digno de admiração parecia-lhe o oficial que em jaquetão militar bem justo, de parada, guarne-cido, de ombreiras, cheio de cordões dependurados, explicava com tanto zelo suas coisas e além disso, enquanto falava, punha-se ainda a trabalhar aqui e acolá com uma chave em algum para­fuso. Num estado de ânimo semelhante ao do viajante parecia estar o soldado. Tinha enrolado em torno do pulso a corrente do condenado, apoiava-se com uma mão sobre sua arma, dei­xava a cabeça pender e não se preocupava com coisa alguma. O viajante não ficou admirado com isso, pois o oficial falava francês, e é claro que nem o soldado nem o condenado enten­diam francês. Tanto mais chamava, portanto, a atenção que, mesmo assim, o condenado se esforçasse em acompanhar as

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explicações do oficial. Com uma espécie de sonolenta teimosia, ele voltava sempre seus olhos lá para onde o oficial estivesse apontando no momento e, quando este foi então interrompido pelo viajante com uma pergunta, também ele ficou, como o ofi­cial, olhando para o viajante.

— Sim, a grade — disse o oficial —, o nome é adequado. As agulhas são ordenadas como em uma grade dentada, a coisa toda é inclusive conduzida como uma grade, ainda que em ape­nas um lugar e de modo muito mais artístico. O senhor logo vai, aliás, entender isso. O condenado é estendido aqui em cima da cama. — Quero, em suma, primeiro descrever o aparelho e só depois explicar o próprio processo. Daí o senhor vai poder entendê-lo melhor. Também uma engrenagem na grade está pon-tuda demais; range muito quando em funcionamento; daí quase não se consegue mais conversar; lamentavelmente, só com difi­culdades é que se conseguem peças de reposição. — Portanto, aqui está a cama, como eu disse. Ela está completamente reco­berta com uma camada de algodão; a finalidade o senhor logo vai ficar sabendo. O condenado é deitado de bruços sobre esse algodão, naturalmente nu; aqui estão as correias para as mãos, aqui para os pés, aqui para o pescoço, para amarrá-lo bem fir­me. Aqui na cabeceira da cama, onde o homem, como eu disse, fica primeiro deitado com o rosto, há essa pequena mordaça de feltro, que pode ser facilmente regulada, de tal maneira que entre direitinho na boca da pessoa. Serve para evitar que grite ou morda a língua. A pessoa naturalmente é obrigada a aceitar o feltro, porque senão a nuca lhe é quebrada pela correia do pescoço.

— Isso é algodão? — perguntou o viajante, inclinando-se para a frente.

— Sim, é claro — disse o oficial sorrindo —, experimente o senhor mesmo. — Ele tomou a mão do viajante e conduziu-a por sobre a cama. — É um algodão especialmente preparado, por isso é que parece tão irreconhecível; ainda vou chegar a falar da finalidade dele.

O viajante já estava um pouco interessado pelo aparelho; com a mão por cima dos olhos para proteger as vistas, ele ficou olhando para o alto do aparelho. Era uma grande construção.

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A cama e o desenhador tinham o mesmo tamanho e pareciam dois baús escuros. O desenhador estava colocado dois metros acima da cama; os dois estavam ligados pelos cantos através de quatro barras de latão, que expostas ao sol quase lançavam raios. Entre os baús pendia a grade num fio de aço.

O oficial mal tinha reparado na antiga indiferença do via­jante, mas estava bem cônscio de seu interesse, que ora princi­piava; por isso interrompeu suas explicações para dar tempo ao viajante para que observasse sem ser perturbado. O conde­nado imitou o viajante; já que não podia colocar a mão por cima da vista, piscou os olhos desprotegidos ao olhar para o alto.

— Agora então o homem está deitado — disse o viajante inclinando-se para trás em sua cadeira e cruzando as pernas.

— Sim — disse o oficial, empurrando o boné um pouco para trás e passando a mão pelo rosto afogueado —, agora escute! Tanto a cama quanto o desenhador têm sua própria bate­ria elétrica; a cama precisa dela para si mesma, o desenhador para a grade dentada. Assim que a pessoa está amarrada, a cama é posta em movimento. Vibra em pequenas oscilações, muito rápidas, ao mesmo tempo de lado, bem como para cima e para baixo. O senhor deve ter visto aparelhos semelhantes em sanatórios; só que em nossa cama todos os movimentos estão calculados com exatidão; ou seja, precisam estar ajustados com exatidão aos movimentos da grade dentada. Mas é para essa grade que se deixa a execução propriamente dita da sentença.

— O que diz, então, a sentença? — perguntou o viajante. — Nem isso o senhor sabe? — disse o oficial espantado,

mordendo os lábios. — Desculpe se minhas explicações talvez sejam desordenadas; peço mil desculpas. O comandante antiga­mente costumava dar ele mesmo as explicações; mas o novo comandante esquivou-se dessa honrosa obrigação; que ele nem sequer tenha, no entanto, a um visitante tão ilustre — o viajante procurou rejeitar essa honraria com as duas mãos, mas o ofi­cial insistiu na formulação —, dado a um visitante tão ilustre informações quanto à forma de nosso julgamento é mais uma vez uma inovação que — ele tinha um desaforo pairando nos lábios, mas controlou-se, dizendo apenas: — não fui informado

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disso, não sou culpado disso. Aliás, eu estou em todo caso mais bem qualificado para explicar nossos tipos de sentença, pois trago aqui comigo — ele bateu em seu bolso da frente — os correspondentes desenhos à mão do antigo comandante.

— Desenhos do próprio comandante? — perguntou o via­jante. — Será que ele juntava tudo isso numa só pessoa? Era ele soldado, juiz, construtor, químico, desenhista?

— Sim senhor — disse o oficial, acenando afirmativamente com a cabeça e com um olhar severo, meditabundo.

Em seguida ele olhou pensativamente para suas mãos; elas não lhe pareciam suficientemente limpas para tocar nos dese­nhos; por isso foi até a cuba e lavou-as novamente. Puxou então uma carteira de couro e disse:

— Nossa sentença não soa severa. Escreve-se no corpo do condenado, com a grade, o regulamento que ele tenha violado. Nesse condenado, por exemplo — o oficial apontou para o homem —, vai ser inscrito no corpo: respeita teus superiores!

O viajante olhou rapidamente para o homem; quando o oficial havia apontado em sua direção, ele mantivera a cabeça inclinada, parecendo empregar todas as forças auditivas para perceber alguma coisa. Mas os movimentos de seus lábios gros­seiramente apertados um contra o outro mostravam de modo evidente que não conseguira entender nada. O viajante teria dese­jado perguntar diversas coisas, mas vendo o homem perguntou apenas:

— Conhece ele sua sentença? — Não — disse o oficial novamente, parando então por

um instante, como se fosse exigir do viajante uma fundamen­tação mais detalhada para a pergunta, e disse então: — Seria inútil anunciá-la para ele. Vai ficar sabendo dela no próprio corpo.

O viajante já queria calar, mas daí sentiu como o conde­nado dirigia o olhar em sua direção; parecia perguntar se ele aprovava o processo descrito. Por isso o viajante, que já havia se refestelado para trás, curvou-se novamente para a frente e perguntou ainda:

— Mas que ele tenha de algum modo sido sentenciado, disso ele sabe, não é?

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— Também não — disse o oficial e sorriu para o viajante, como se esperasse agora dele ainda algumas observações inco-muns.

— Não? — disse o viajante, e passou a mão pela testa —, então ele até agora não sabe, portanto, como sua defesa foi rece­bida?

— Ele nem teve oportunidade de se defender — disse o ofi­cial, e olhou para o lado, como se falasse para si mesmo e não quisesse envergonhar o viajante contando coisas tão óbvias para ele.

— Mas ele deve ter tido oportunidade de se defender — disse o viajante, levantando-se da cadeira.

O oficial percebeu que estava correndo o risco de ser inter­rompido por longo tempo na explicação do aparelho; por isso foi até o viajante, agarrou-se em seu braço, apontou com a mão para o condenado, que agora se mantinha na posição de sentido já que a atenção estava tão evidentemente voltada para ele — o soldado também puxou na corrente — e disse: — O caso é o seguinte. Aqui na colônia penal fui incumbido de ser o juiz. Apesar de minha pouca idade. Pois inclusive já com o antigo comandante eu acompanhava todas as questões penais e também conheço melhor que todos o aparelho. O princípio básico com que decido é: a culpa é sempre indubitável. Outros tribunais não podem cumprir essa lei fundamental, pois sempre têm diver­sos membros e também ainda outros tribunais acima deles. Não é isso o que ocorre aqui, ou ao menos não era com o antigo comandante. O novo já mostrou, no entanto, desejo de se meter em meu julgamento, mas até agora consegui mantê-lo longe, e isso eu também vou continuar conseguindo. — O senhor queria uma explicação desse caso; ele é tão simples como qualquer outro. Um capitão apresentou hoje pela manhã a denúncia de que este homem, que foi designado para ser seu ajudante e que dorme em frente à sua porta, havia dormido durante o serviço. Ora, ele tem a obrigação de levantar de hora em hora e bater continência em frente à porta do capitão. Como se vê, não é uma obrigação difícil, mas sim necessária, pois ele deve estar alerta tanto para vigiar quanto para servir. Na noite de ontem o capitão quis verificar se o ajudante cumpria sua obrigação.

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Ao bater duas horas, abriu a porta e o encontrou dormindo lodo encolhido. Pegou o relho e bateu no rosto dele. Ora, ao invés de levantar e pedir desculpas, o homem pegou seu senhor pelas pernas, sacudiu-o e gritou: "Joga o chicote fora ou eu te devoro". — Este é o ocorrido. Há uma hora o capitão veio até mim, anotei suas informações e logo em seguida a sentença. Daí mandei colocar as correntes no homem. Isso foi tudo muito simples. Se eu primeiro tivesse chamado o homem e interrogado, então só teria surgido confusão. Ele teria mentido, teria, caso eu tivesse conseguido refutar as mentiras, substituído estas por novas mentiras e assim por diante. Mas agora eu o tenho preso e não vou soltá-lo mais. — Está tudo agora esclarecido? Mas 0 tempo está passando, a execução já devia começar e eu ainda não terminei a explicação do aparelho.

Ele obrigou o viajante a sentar na cadeira, aproximou-se novamente do aparelho e recomeçou:

— Como o senhor pode ver, a grade dentada corresponde ao formato do ser humano; aqui está a grade para a parte supe­rior do corpo, aqui estão as agulhas para as pernas. Para a cabeça está destinado apenas esse pequeno estilete. Está claro isso para o senhor? — Ele curvou-se cordialmente para o via­jante, pronto para explicações mais abrangentes.

O viajante ficou olhando com a testa franzida para a grade. Os informes sobre o processo judicial não o haviam satisfeito. Mesmo assim, teve de dizer para si mesmo que aqui se tratava de uma colônia penal, que aqui eram necessárias medidas espe­ciais e que era preciso agir militarmente até o fim. Mas, além disso, ele depositava alguma confiança no novo comandante, o qual evidentemente pretendia, ainda que de modo lento e gra­dual, introduzir um novo tipo de processo, que não conseguia entrar na limitada cabeça desse oficial. A partir dessa linha de raciocínio, o viajante perguntou:

— O comandante vai assistir à execução? — Não é certo — disse o oficial, penosamente atingido

pela pergunta sem rodeios, e sua expressão facial amistosa des­fez-se —, exatamente por isso é que precisamos nos apressar. Por mais que eu o lastime, terei até de encurtar minhas explica­ções. Mas eu poderia amanhã, quando o aparelho novamente

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estiver limpo — que ele fique tão sujo é seu único defeito —, acrescentar explicações mais detalhadas. Agora, portanto, ape­nas o mais necessário. — Quando o homem está deitado na cama e ela começa a vibrar, a grade dentada desce sobre o cor­po. Ela se regula automaticamente de tal maneira que as agu­lhas mal tocam o corpo; assim que o ajustamento tenha se com­pletado, essa tira de aço logo se torna uma barra bem rija. E então começa a brincadeira. Um não-iniciado não nota, exter­namente, nenhuma diferença entre as penas. A grade parece tra­balhar sempre de modo igual e uniforme. Vibrando, ela finca suas agulhas para dentro do corpo, que além disso vibra com a cama. Para permitir a qualquer um controlar e examinar a execução da sentença, a grade foi feita de vidro. Causou algu­mas dificuldades técnicas fixar as agulhas aí dentro, mas após muitas tentativas conseguiu-se. Nós simplesmente não recuamos diante de nenhum esforço. E agora qualquer um pode ver, atra­vés do vidro, como é executada a inscrição no corpo. O senhor não quer chegar mais perto para dar uma olhada nas agulhas?

O viajante levantou-se lentamente e curvou-se por cima da grade. — O senhor pode ver — disse o oficial — duas espé­cies de agulhas em um múltiplo ordenamento. Cada agulha longa tem uma curta de seu lado. Ou seja, a longa escreve, e a pequena borrifa água para lavar o sangue e manter a escrita sempre clara. A água ensangüentada passa a ser então conduzida aqui por pequenas canaletas e finalmente corre nesse canal principal, cujo escoamento leva à fossa.

O oficial mostrou com o dedo exatamente o caminho que a água ensangüentada tinha de percorrer. Quando ele, para tor­nar isso, na medida do possível, ainda mais plástico, captou-a formalmente com as duas mãos na desembocadura do cano de escoamento, o viajante levantou a cabeça e queria, tateando para trás com a mão, voltar para sua cadeira. Foi quando ele percebeu, para seu espanto, que também o condenado havia, como ele, atendido ao convite do oficial para olhar de perto a disposição da grade. Havia arrastado o sonolento soldado um pouco para a frente com a corrente e também se curvado por cima do vidro. Via-se como ele, com olhos inseguros, procurava também aquilo que os dois cavalheiros tinham observado há

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pouco, mas como ele, à falta das explicações, não conseguia ati­nar com nada. Ele se curvava aqui e acolá. Sempre de novo per­corria o vidro com o olhar. O viajante queria fazê-lo recuar, pois o que estava fazendo era provavelmente punível. Mas o oficial reteve o viajante com uma mão, pegou com a outra um torrão do montículo de terra e atirou-o na direção do soldado. Este ergueu de súbito os olhos, viu o que o condenado ousara fazer, deixou a arma cair, firmou os pés com os saltos no chão, arrastou de volta o condenado, de tal modo que este logo caiu, e daí ficou olhando como ele, em baixo, se revirava e fazia res­soar as correntes.

— Ponha-o de pé! — berrou o oficial, pois notou que o viajante havia ficado demasiado entretido com o condenado. O viajante inclusive se curvou por cima da grade, sem preocu­par-se com ela, só querendo verificar o que estava acontecendo com o condenado.

— Trate dele com cuidado — berrou novamente o oficial. Ele deu a volta no aparelho, pegou pessoalmente o condenado por baixo dos braços e, com a ajuda do soldado, colocou-o de pé, embora escorregasse várias vezes.

— Agora eu já sei tudo — disse o viajante quando o ofi­cial voltou até ele.

Mas não o mais importante — disse este, tomando o via­jante pelo braço e apontando para o alto. — Lá no alto está a engrenagem que determina o movimento da grade dentada, e esta engrenagem é programada de acordo com a inscrição que corresponde à sentença. Ainda emprego as inscrições do antigo comandante. Aqui estão elas — puxou algumas folhas da car­teira de couro —, mas infelizmente não posso colocá-las em sua mão, elas são a coisa mais preciosa que tenho. Sente-se, vou mostrá-las para o senhor a essa distância, então o senhor vai poder ver tudo muito bem.

Ele mostrou a primeira folha. O viajante teria gostado de dizer algo que mostrasse reconhecimento, mas viu apenas linhas em forma labiríntica, cruzando-se entre si de modo múltiplo e cobrindo o papel de modo tão denso que só com esforço é que se reconheciam os espaços brancos intermediários.

— Leia — disse o oficial.

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— Não consigo — disse o viajante. — Mas está bem claro — disse o oficial. — É muito artificioso — disse o viajante evasivamente —,

mas não consigo decifrá-lo. — Sim — disse o oficial, deu uma risada e guardou nova­

mente a carteira —, não é nenhuma caligrafia para crianças de escola. É preciso ler por longo tempo. Também o senhor com certeza acabaria por decifrá-la. Naturalmente não deve ser nenhuma escrita simples; ela não deve matar logo, mas em média apenas num espaço de tempo de doze horas; para a sexta hora está previsto o ponto crítico. Muitos ornamentos precisam, portanto, circundar a escrita propriamente dita; a escrita pro­priamente dita ocupa o corpo numa estreita faixa; o resto do corpo está destinado à ornamentação. Será que o senhor já con­segue agora apreciar o trabalho da grade e de todo o aparelho? — Pois veja! — Ele saltou em cima da escada, girou uma roda, gritou para baixo: — Atenção, fique de lado!

E tudo começou a se movimentar. Se a roda não rangesse, teria sido maravilhoso. Como se o oficial estivesse surpreso com essa roda perturbadora, ele a ameaçou com o punho, abriu em seguida os braços na direção do viajante como a pedir descul­pas e desceu apressadamente a escada para observar de baixo o andamento do aparelho. Ainda alguma coisa, que só ele notava, não estava em ordem; subiu novamente, agarrou com as duas mãos para dentro do mostrador e, então, para chegar mais depressa embaixo, ao invés de usar a escada deslizou por uma, das barras e gritou em seguida, para se fazer entender na barulheira, com a máxima intensidade para dentro do ouvido do viajante:

— O senhor entende o processo? A grade começa a escre­ver; estando pronta com o primeiro rascunho da escrita nas cos­tas do homem, rola a camada de algodão e gira o corpo lenta­mente para o lado, a fim de oferecer à grade um novo espaço. Nesse ínterim, as partes em carne viva por causa da escrita são deitadas sobre o algodão que, devido a um preparado especial, logo faz o sangramento parar, e prepara para um novo aprofun­damento da escrita. Aqui as agulhas na borda da grade arran­cam então, com o subseqüente revirar do corpo, o algodão das

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feridas, jogam-no na fossa, e a grade tem de novo serviço. Assim ela trabalha cada vez mais fundo ao longo de doze horas. Nas primeiras seis horas o condenado vive quase como antes, ele apenas sofre dores. Depois de duas horas o feltro é afastado, pois o homem não tem mais força para gritar. Nessa tigela aque­cida eletricamente, aqui na cabeceira, coloca-se papa quente de arroz, da qual o homem pode, se tiver vontade, comer tudo o que conseguir alcançar com a língua. Nenhum perde essa opor­tunidade. Não sei de nenhum, e a minha experiência é grande. Só por volta da sexta hora é que ele perde o prazer na comida. Costumo então me ajoelhar aqui e observar esse fenômeno. Raramente o homem engole o último bocado, ele só o revolve na boca e cospe-o na fossa. Preciso então me inclinar, porque senão isso me voa na cara. Mas como o homem fica então quieto por volta da sexta hora! Até o mais idiota começa a entender. Isso começa pelos olhos. A partir deles é que tudo se espalha. Um olhar capaz de nos seduzir a deitarmos junto embaixo da grade. Não acontece nada demais, o homem apenas começa a decifrar a escrita, ele estica os lábios como se escutasse. O senhor já pôde notar, não é fácil decifrar a escrita com os olhos; o nosso homem decifra-a, porém, com suas feridas. Isso custa, no entanto, muito trabalho; ele precisa de seis horas para completá-lo. Mas depois a grade espeta-o completamente e joga-o na fossa, onde ele cai na água ensangüentada e no algo­dão. Daí a sentença está no fim e nós, o soldado e eu, o enter­ramos.

O viajante estava com o ouvido inclinado na direção do oficial e, com as mãos nos bolsos do casacão, contemplava o trabalho da máquina. Também o condenado olhava para ela, mas sem entender nada. Inclinava-se um pouco e acompanhava as agulhas em movimento quando o soldado, a um sinal do ofi­cial, cortou-lhe com uma faca a camisa e a calça na parte detrás, de tal modo que caíram do condenado; ele quis pegar a roupa caída para cobrir sua nudez, mas o soldado ergueu-o e sacudiu-lhe as últimas peças. O oficial ligou a máquina e, no silêncio que então se fez, o condenado foi colocado debaixo da grade. As correntes foram soltas e, no lugar delas, foram fixadas as correias; à primeira vista isso pareceu significar quase um alívio

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para o condenado. E em seguida a grade desceu mais um pouco, pois ele era um homem magro. Quando as agulhas o tocaram, um arrepio percorreu sua pele; enquanto o soldado estava ocu­pado com sua mão direita, ele estendeu a esquerda, sem saber para onde; era, porém, na direção em que estava o viajante. O oficial ficou olhando de lado, ininterruptamente, para o viajante, como se procurasse decifrar em seu rosto a impressão que lhe causava a execução que, ao menos superficialmente, ele havia lhe explicado.

A correia, que se destinava ao pulso, arrebentou; provavel­mente o soldado a havia esticado demais. O oficial precisaria ajudar, pois o soldado mostrava-lhe o pedaço de correia partida. O oficial também foi até ele e disse, voltando o rosto para o via­jante:

— A máquina é muito compacta, aqui e ali alguma coisa tem de acabar mesmo rasgando ou arrebentando; mas nem por isso o senhor pode deixar-se enganar no julgamento geral. Para a correia logo se consegue, aliás, arranjar um substitutivo; vou usar uma corrente; em todo caso, com isso a delicadeza das vibrações no braço direito vai ficar afetada.

E enquanto colocava as correntes, disse ainda: — Os recursos para a manutenção da máquina são agora

muito limitados. Sob o antigo comandante, havia uma verba destinada só para essa finalidade, e eu tinha livre acesso a ela. Havia aqui um almoxarifado, no qual se guardava tudo quanto é peça de reposição. Confesso que eu quase andei desperdiçando material, quero dizer antigamente, não agora como o novo comandante afirma; para ele tudo serve apenas de pretexto para combater antigas instituições. Agora ele tem a verba destinada à máquina sob seu próprio controle, e, se lhe mando pedir uma correia nova, a arrebentada é exigida como prova, a nova só chega em dez dias, mas é então de uma espécie pior e não presta para nada. Mas ninguém se preocupa em saber como devo fazer a máquina funcionar, nesse meio tempo, sem correia.

O viajante refletiu: é sempre problemático intervir de modo incisivo em questões alheias. Ele não era nem morador da colônia penal, nem cidadão do Estado ao qual ela pertencia. Caso pretendesse condenar ou até sabotar essa execução, pode-

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riam dizer-lhe: "Você é um estrangeiro, fique quieto". A isso ele não teria podido responder nada, mas só acrescentar que, nesse caso, ele mesmo não conseguia entender-se, pois viajava apenas com o propósito de observar, e não, de modo algum, para alterar concepções judiciais alheias. Mas aqui as coisas se dispunham, no entanto, de um modo muito tentador. Era indu-bitável a injustiça do processo e a desumanidade da execução. Ninguém poderia supor qualquer interesse pessoal do viajante, pois o condenado lhe era um estranho, não era um compatriota e nem sequer um ser humano que estimulasse a compaixão. O próprio viajante viera munido de recomendações de funcioná­rios graduados, havia sido recebido com grande cortesia, e que ele tivesse sido convidado para essa execução pareceu-lhe até indicar que se solicitava seu julgamento sobre esse processo. Isso era, contudo, tanto mais provável na medida em que o comandante, como ele havia agora escutado com extrema niti­dez, não era nenhum entusiasta desse tipo de procedimento e Se comportava de modo quase hostil em relação ao oficial.

Daí o viajante ouviu um berro irritado do oficial. Não sem esforço, ele havia acabado de empurrar na boca do condenado o feltro, quando o condenado, numa irresistível ânsia de vômito, fechou os olhos e vomitou. Depressa o oficial arran­cou-o do cepo para o alto querendo virar-lhe a cabeça na dire­ção da fossa; mas era tarde demais, a sujeira já escorria máquina abaixo.

— Tudo culpa do comandante! — gritou o oficial, sacu­dindo freneticamente a barra de bronze à sua frente. — A máquina vai ficar como um chiqueiro. — Ele apontava com mãos trêmulas, para o viajante, o que havia acontecido. — Como se eu não tivesse tentado durante horas fazer o comandante entender que um dia antes da execução não se deve ministrar nenhuma alimentação?! Mas a nova orientação, indulgente, tem outra opinião. As madames do comandante enchem o homem todo de doces, antes de ele ser levado embora. A vida toda ele andou se alimentando de peixe fedorento e agora precisa comer doçuras! Sim, isto seria, afinal, possível, eu nem iria objetar nada, mas por que não se arranja um feltro novo, como estou pedindo há meses e meses? Como pode alguém enfiar na boca,

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sem ficar com nojo, esse feltro, que mais de cem homens anda­ram chupando e mordendo enquanto morriam?

O condenado havia reclinado a cabeça e parecia tranqüilo, o soldado estava ocupado em limpar a máquina com a camisa do condenado. O oficial foi até o viajante, que por algum pres­sentimento deu um passo para trás, mas o oficial pegou-o pela mão e puxou-o para o lado.

— Quero falar algumas palavras em confiança com o senhor — disse ele —, posso fazê-lo, não é?

— É claro — disse o viajante, pondo-se a escutar com os olhos baixos.

— Esse processo e essa execução, que o senhor agora terá a oportunidade de admirar, já não têm atualmente mais adep­tos declarados em nossa colônia. Sou seu único defensor, ao mesmo tempo o único representante da herança do antigo comandante. Não posso mais pensar em qualquer ampliação do processo, gasto todas as minhas energias para manter o que já existe. Quando o antigo comandante vivia, a colônia estava cheia de adeptos dele; tenho em parte a capacidade de convenci­mento do antigo comandante, mas me falta completamente o poder dele; em decorrência disso, os adeptos têm andado se escondendo, ainda há muitos, mas nenhum se declara como tal. Se o senhor fôr hoje à casa de chá, portanto num dia de exe­cução, e se puser a escutar, talvez o senhor somente venha a ouvir manifestações ambíguas. São todos adeptos, mas, sob o atual comandante e com seus pontos de vista atuais, completa­mente inúteis para mim. E agora eu lhe pergunto: será que, por causa desse comandante e dessas mulheres que o influenciam, a obra de uma vida, uma obra como essa aí — ele apontava para a máquina — deve ser aniquilada? Será que se deve permi­tir isso? Mesmo quando se está somente como estrangeiro por alguns dias em nossa ilha? Não há, porém, tempo a perder, estão aprontando alguma coisa contra a minha jurisdição; já ocorrem reuniões na comandatura, para as quais não sou convidado; até a visita do senhor me parece significativa para a situação toda; eles são covardes e mandam na frente um estranho, o senhor. — Como a execução era diferente nos tempos antigos! Já um dia antes da execução o vale inteiro estava cheio de gente; todos

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vinham só para ver; cedo pela manhã aparecia o comandante com suas damas; fanfarras acordavam todo o acampamento; eu expedia o informe de que tudo estava preparado; a socie­dade — nenhum funcionário graduado podia faltar — se orde­nava em torno da máquina; esse monte de cadeiras de vime é um pobre restolho daquela época. A máquina resplandecia, recém-limpa; quase que para cada execução eu pegava novas peças de reposição. Diante de centenas de olhos — todos os espectadores estavam parados nas pontas dos pés até lá nas cumeeiras — o condenado era posto pelo próprio comandante debaixo da grade. O que hoje um reles soldado pode fazer, era naquela época trabalho meu, o presidente do tribunal, e me hon­rava. E daí começava a execução! Nenhum som dissonante per­turbava o trabalho da máquina. Muitos já nem ficavam mais então olhando, ficavam deitados de olhos fechados na areia; todos sabiam: agora se está fazendo justiça. Naquele silêncio ouviam-se apenas os gemidos do condenado, abafados pelo fel­tro. Hoje em dia a máquina não consegue mais arrancar do con­denado um gemido mais forte que o feltro não possa ainda aba­far; mas naquela época as agulhas escreventes pingavam um liqüido ácido, que hoje não se deve mais empregar. Bem, e daí chegava então a sexta hora! Era impossível atender a todos os pedidos feitos para poder olhar de perto. O comandante, em sua sensibilidade, ordenava que sobretudo as crianças deveriam ser levadas prioritariamente em consideração; eu, no entanto, graças à minha profissão, podia sempre ficar aí juntinho; com freqüência estava lá acocado, com duas criancinhas, à esquerda e à direita, em meus braços. Como absorvíamos nós todos a expressão de transfiguração do rosto martirizado, como expú­nhamos nossas faces ao resplendor dessa justiça finalmente alcançada e já a desaparecer! Que tempos aqueles, meu camarada!

O oficial tinha evidentemente esquecido quem estava diante dele; ele havia abraçado o viajante e reclinado a cabeça sobre seu ombro. O viajante estava em grande embaraço, impaciente ele olhava a distância por cima do oficial. O soldado havia con­cluído o trabalho de limpeza e agora derramava a papa de arroz na tigela. Assim que o condenado, que parecia já ter-se recupe­rado inteiramente, notou isso, começou a tentar alcançar a

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papa com a língua. O soldado empurrava-o sempre de novo de volta, pois a papa estava destinada a um momento posterior, mas também não era correto, em todo caso, que o soldado enfiasse aí suas mãos sujas e comesse da papa diante do ávido e ansioso condenado.

O oficial controlou-se rapidamente. — Eu não quis comovê-lo — disse ele —, sei que é impos­

sível dar hoje uma idéia daqueles tempos. De resto, a máquina ainda trabalha e impressiona por si mesma. Impressiona por si, ainda que esteja parada sozinha nesse vale. E ao término o cadá­ver continua caindo num vôo inconcebivelmente suave para den­tro da fossa, mesmo que não se reúnam como antigamente cen­tenas de pessoas feito moscas ao redor da fossa. Naquela época tivemos de colocar uma forte cerca em torno da fossa, há muito ela já foi arrancada.

O viajante queria afastar seu rosto do oficial e olhava sem objetivo ao redor. O oficial acreditava que ele contemplasse a solidão do vale; por isso segurou-o pelas mãos, girou ao seu redor para captar seus olhares e perguntou:

— Percebe, que vergonha? Mas o viajante calou. O oficial deixou-o em paz por um

momento; com as pernas abertas, as mãos nos quadris, perma­neceu quieto, olhando para o chão. Então ele deu um sorriso animador para o viajante e disse:

— Eu estava perto do senhor quando, ontem, o coman­dante o convidou. Escutei o convite. Conheço o comandante. Logo entendi o que ele pretendia com o convite. Embora o poder dele seja suficientemente grande para avançar contra mim, ele ainda não ousa fazê-lo, mas bem que gostaria de me submeter à sua avaliação, à avaliação de um respeitável estranho. O cál­culo dele é cuidadoso: o senhor está em seu segundo dia na ilha, o senhor não conheceu o antigo comandante e seu pensamento, o senhor está preso a perspectivas européias, talvez o senhor seja um adversário radical da pena de morte de um modo geral e, em especial, desse modo mecânico de execuções, além disso, o senhor percebe como uma execução sem participação do público transcorre de um modo triste e lúgubre, com uma máquina já um tanto escangalhada — será que não seria, levando em conta

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tudo isso (é assim que pensa o comandante), muito facilmente possível que o senhor acabasse não considerando meu processo como correto? E se o senhor não o considerasse correto, o senhor não iria calar-se (continuo ainda a falar dentro da pers­pectiva do comandante), pois o senhor certamente confia em suas convicções há muito já sedimentadas. O senhor de fato observou e estudou com atenção muitas peculiaridades de mui­tos povos; por isso o senhor provavelmente não iria manifestar-se com tanta energia contra esse processo, como o senhor talvez o fizesse em seu país. Mas o comandante nem sequer precisa disso. Basta uma palavrinha rápida, de passagem. Ela não pre­cisa nem mesmo corresponder à convicção do senhor, basta que pareça ir ao encontro do desejo dele. Que ele há de interrogá-lo com toda a argúcia, disso eu estou convicto. E as madames dele estarão sentadas à volta, com as anteninhas ligadas; o senhor vai dizer algo como — "entre nós o processo judicial é diferen­te", ou "entre nós o condenado é ouvido antes da sentença", ou "entre nós o condenado fica sabendo da sentença", ou "en­tre nós há também outras penas que não a pena de morte", ou "entre nós havia torturas somente na Idade Média". Todas essas são observações que estão tão corretas quanto elas lhe parecem óbvias, são inocentes observações que não atingem meu processo. Mas como há de recebê-las o comandante? Eu até posso vê-lo, o bom comandante, como ele logo há de empurrar a cadeira para o lado e como ele há de se apressar até o balcão, vejo as madames dele, como elas hão de se precipitar atrás dele, escuto até a voz dele — as madames a chamam de voz do trovão —, e ele dirá: "Um grande pesquisador ocidental, encarregado de ree­xaminar o sistema judicial em todos os países, acabou de assegu­rar que nosso sistema, feito de acordo com costumes antigos, é um processo desumano. Depois dessa avaliação de uma tal perso­nalidade, não me é, naturalmente, mais possível tolerar esse tipo de processualística. No dia de hoje ordeno, portanto, que — e assim por diante". O senhor ainda quer contestar, dizer ainda que o senhor não disse o que ele acaba de enunciar, que, ao con­trário, em sua compreensão mais profunda, o senhor considera esse o processo mais humano e o mais digno do homem, que o senhor também admira essa maquinaria — mas daí já é tarde

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demais: o senhor nem sequer consegue chegar até o balcão, que estará lotado de madames; o senhor vai querer fazer-se notar; o senhor vai querer gritar; mas a mão de uma dama irá tapar-lhe a boca — e eu e a obra do antigo comandante estaremos perdidos.

O viajante teve de reprimir um sorriso; tão fácil era, por­tanto, a tarefa que ele havia considerado tão difícil. Disse evasi­vamente:

— O senhor exagera minha influência; o comandante leu minha carta de recomendação, ele sabe que não sou um especia­lista em processos judiciais. Caso eu fosse manifestar uma opi­nião, então seria a opinião de uma pessoa privada, em nada mais importante do que a opinião de qualquer outra pessoa e, em todo caso, muito menos importante que a opinião do comandante, que tem, como acredito saber, direitos muito amplos nessa colônia penal. Se a opinião dele sobre esse tipo de processo é tão definitiva assim como o senhor crê, então temo que, em todo caso, já chegou o término desse sistema, sem que precise de minha modesta colaboração.

Será que o oficial já conseguia entender isso? Não, ele ainda não entendia. Ele sacudiu vivamente a cabeça, olhou rapida­mente de novo na direção do condenado e do soldado, que se encolheram e se afastaram do arroz, chegou bem perto do via­jante, olhou-o não no rosto, mas nalgum lugar de seu casaco, e disse ainda mais baixo do que antes:

— O senhor não conhece o comandante; está diante dele e diante de nós, o senhor é até certo ponto — desculpe a expressão — inofensivo; mas sua influência, pode crer-me, não pode nem deve ser subestimada. Sim, fiquei bem feliz quando ouvi que só o senhor iria assistir à execução. Essa ordem do coman­dante era para me atingir, mas agora eu a torço em meu proveito. Sem ser distraído por insinuações falsas e olhares desdenhosos — que não teriam sido evitáveis no caso de uma participação maior do público — o senhor escutou as minhas explicações, viu a máquina e está a ponto de contemplar a execução. Seu juízo já deve estar certamente formado; caso ainda persistam peque­nas dúvidas, a visão da execução há de dissipá-las. E agora eu lhe coloco o pedido: ajude-me em relação ao comandante!

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O viajante não deixou que ele continuasse falando. — Como é que eu poderia fazer uma coisa dessas! — excla­

mou ele. — Isso é completamente impossível. Posso ajudá-lo tão pouco quanto posso prejudicá-lo.

— O senhor pode — disse o oficial. Com algum temor, o viajante viu que o oficial cerrava os

punhos. — G senhor pode — repetiu o oficial com ainda maior insis­

tência. — Tenho um plano que precisa dar certo. O senhor acre­dita que a sua influência não baste. Eu sei que basta. Mesmo reconhecendo que o senhor tenha razão, será que não é necessá­rio, para manter esse sistema, tentar de tudo, até mesmo o que talvez seja insuficiente? Por isso, escute meu plano. Para executá-lo é sobretudo necessário que o senhor hoje se mostre, na colô­nia, reservado ao máximo quanto a seu juízo sobre o sistema. Se não lhe perguntarem diretamente, o senhor não deve manifes­tar-se de maneira nenhuma; suas manifestações devem ser, porém, breves e indefinidas; é preciso que notem que para o senhor é uma dificuldade falar sobre isso, que o senhor, caso fosse for­çado a falar abertamente, teria de rebentar em imprecações. Não estou pedindo que o senhor minta; de jeito nenhum; o senhor só deve responder bem curto, como "sim, eu vi a execução", ou "sim, eu escutei todas as explicações". Só isso, nada mais. Para a amargura que deverá ser notada no senhor, há motivos suficientes, ainda que não no sentido do comandante. Ele natu­ralmente irá entender tudo isso de um modo completamente errado e interpretá-lo no sentido dele. Nisso é que se baseia o meu plano. Amanhã haverá na comandatura, sob a direção do comandante, uma grande reunião de todos os altos funcionários administrativos. O comandante soube naturalmente transformar essas reuniões em espetáculos. Foi construída uma galeria, que sempre está lotada de espectadores. Sou obrigado a participar das reuniões do conselho, mas elas me enchem de nojo. Ora, em todo caso, o senhor certamente será convidado para a reu­nião; se o senhor comportar-se hoje de acordo com meu plano, o convite será um pedido insistente. Se o senhor, porém, por alguma razão inconcebível, não chegar a ser convidado, então o senhor teria de, em todo o caso, solicitar o convite; que o senhor

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iria então recebê-lo, não há dúvida. Então o senhor estará, por­tanto, sentado amanhã com as madames no camarote do coman­dante. Olhando para cima com freqüência, ele há de certificar-se de que o senhor está aí. Depois de diversos tópicos de conver­sação indiferentes, ridículos, somente destinados aos ouvintes — em geral se fala de construções portuárias, sempre de novo construções portuárias! —, também o processo judicial entrará em pauta. Se isso não ocorrer da parte do comandante, ou se não ocorrer logo, então vou providenciar para que isso aconteça. Vou me levantar e apresentar o informe quanto à execução de hoje. É verdade que um informe desses não é costumeiro lá, mas vou fazê-lo apesar de tudo. O comandante, como sempre, vai agradecer-me com um sorriso cordial e então, ele não pode dei­xar de fazê-lo, aproveite a bela oportunidade. "Há pouco foi", assim ou de modo parecido ele vai falar, "apresentado o informe sobre a execução. A esse informe eu gostaria de acrescentar que justamente esteve presente a essa execução o grande pesquisador, de cuja visita, que nos honra de modo tão extraordinário, os senhores todos estão informados. Também nossa reunião conta hoje com sua presença e, desse modo, vê elevada a sua importân­cia. Assim sendo, será que não deveríamos dirigir ao grande pes­quisador a questão de saber como ele avalia a execução feita segundo um antigo costume, e o processo que a precede?" Natu­ralmente, por toda parte aplausos, concordância generalizada, eu mais que todos me manifestando. O comandante se inclina diante do senhor e diz: "Então eu coloco a questão em nome de todos". E daí o senhor se achega à amurada. Ponha as mãos de um modo visível a todos, se não as damas as agarram e ficam brincando com os dedos. — E agora chega finalmente sua vez de falar. Não sei como vou conseguir suportar a tensão das horas até esse momento. Em seu discurso, o senhor não deve colocar-se limites, faça barulho com a verdade, incline-se por cima da amurada, berre, mas, claro, berre a sua opinião para o coman­dante, a sua inabalável opinião. Mas talvez o senhor não queira isso, pois talvez não corresponda a seu caráter, talvez em sua pátria as pessoas se comportem de modo diferente em tais situa­ções, então nem sequer se levante, diga apenas algumas palavras, sussurre-as de tal modo que apenas os funcionários as escutem

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entre si, isso basta, o senhor nem sequer precisa falar pessoal­mente da pouca participação de público nas execuções, da roda que range, da correia arrebentada, do feltro nojento, não, todo o resto eu mesmo assumo, e pode crer que, se meu discurso não puser o comandante para fora do salão, então vai obrigá-lo a cair de joelhos, de tal modo que ele terá de reconhecer: antigo comandante, diante de ti eu me curvo. — Este é meu plano; o senhor quer auxiliar-me a executá-lo? Mas naturalmente o senhor quer; mais que isso, o senhor precisa fazê-lo.

E o oficial agarrou o viajante pelos dois braços e olhou-o no rosto, respirando com dificuldade. Ele havia berrado as últi­mas frases de tal modo que mesmo o soldado e o condenado haviam ficado atentos; apesar de não poderem entender nada, continuavam no entanto a comer e, mastigando, olhavam na dire­ção do viajante.

A resposta, que ele precisava dar, era, para o viajante, indu-bitável desde o início; em sua vida ele havia experimentado coi­sas demais para poder vacilar aqui; no fundo ele era honesto e não tinha medo. Apesar disso, vacilou por um momento à vista do soldado e do condenado. Mas, por fim, disse, conforme preci­sava:

— Não. O oficial piscou várias vezes os olhos, mas não desviou o olhar. — O senhor quer uma explicação? — perguntou o viajante. O oficial meneou a cabeça calado. — Sou contra esse sistema processual — disse então o via­

jante —, ainda antes de o senhor ter-me feito suas confidências — naturalmente não vou, sob qualquer circunstância, trair essa confiança —, já andei pensando se eu teria o direito de intervir contra esse sistema e se minha intervenção poderia ter alguma perspectiva de êxito, ainda que pequena. A quem eu primeiro teria de me dirigir nesse caso estava claro para mim: natural­mente ao comandante. O senhor tornou isso ainda mais claro para mim, sem ter, no entanto, digamos, primeiro firmado minha decisão; ao contrário, sua honesta convicção me toca, ainda que não faça eu me enganar.

O oficial ficou calado, voltou-se para a máquina, agarrou-se a uma das barras de bronze e olhou então, um pouco incli-

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nado para trás, para cima na direção do desenhador, como se examinasse se tudo estava em ordem. O soldado e o condenado pareciam ter feito amizade um com o outro; por mais difícil que fosse devido à firme amarração, o condenado fazia sinais para o soldado; o soldado inclinou-se até ele; o condenado sus­surrou-lhe algo e o soldado meneou a cabeça.

O viajante foi atrás do oficial e disse: — O senhor ainda não sabe o que quero fazer. Vou de

fato apresentar ao comandante a minha visão do processo, mas não numa reunião formal e sim numa conversa confidencial; também não vou ficar por tanto tempo aqui que possa ser levado a qualquer reunião; amanhã cedo eu já vou viajar para longe ou ao menos vou embarcar no navio.

Não parecia que o oficial tivesse escutado. — Quer dizer que o processo não convenceu o senhor —

disse ele para si mesmo e deu um sorrizinho, como um ancião sorri da insensatez de uma criança, guardando atrás do sorriso o que realmente está pensando.

— Então já chegou a hora — disse ele por fim, e olhou de repente para o viajante, com olhos iluminados, que conti­nham algum desafio, algum apelo à participação.

— Já é hora de quê? — perguntou inquieto o viajante, mas não recebeu nenhuma resposta.

— Ora, você está livre — disse o oficial para o condenado, no idioma deste.

Ele primeiro não acreditou. — Ora, livre você está — disse o oficial. Pela primeira vez

o rosto do condenado ficou realmente animado. Será que era verdade? Ou será que era apenas um capricho do oficial e que podia passar? Será que o viajante estrangeiro havia conseguido seu perdão? O que era isso? Assim seu rosto parecia perguntar. Mas não por muito tempo. Fosse o que fosse, ele queria, podendo, estar realmente livre, e começou a debater-se, até onde a grade o permitia.

— Você vai arrebentar as correias — berrou o oficial —, fique quieto! Nós já vamos abri-las.

E, junto com soldado, a quem ele fez um sinal, pôs mãos à obra. O condenado ria baixinho sem dizer palavra, ora vol-

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laudo o rosto à esquerda para o oficial, ora à direita para o sol­dado, inclusive do viajante ele não esqueceu.

— Puxe-o para fora — ordenou o oficial ao soldado. Por causa da grade dentada, era preciso tomar um certo cuidado nisso. O condenado já estava, devido à sua impaciência, com alguns pequenos cortes nas costas.

Daí por diante, porém, o oficial pouco se preocupou ainda com ele. Dirigiu-se ao viajante, puxou de novo a carteira de couro, folheou dentro dela, encontrou finalmente a folha que procurava e mostrou-a para o viajante.

— Leia — disse ele. — Não consigo — disse o viajante —, eu já disse que não

consigo ler essas páginas. — Mas olhe com cuidado a página — disse o oficial, colo­

cando-se ao lado do viajante para ler com ele. Ao notar que também isso não adiantava, ele percorreu,

a grande altura, como se de modo algum a folha devesse ser tocada, com o dedo mínimo por cima do papel, para desse modo facilitar a leitura ao viajante. O viajante também se esfor­çou para, ao menos nisso, poder ser agradável ao oficial, mas não lhe foi possível ler. Então o oficial começou a soletrar a ins­crição e depois leu-a ainda uma vez no conjunto.

— SÊ JUSTO! é o que está escrito — disse ele —, mas agora o senhor deve conseguir ler.

O viajante curvou-se tão profundamente sobre o papel que, de medo de um contato, o oficial afastou-o ainda mais; agora o viajante não dizia na verdade mais nada, era no entanto claro que ele ainda não havia conseguido lê-lo.

— "Sê justo!", é o que está escrito — disse o oficial ainda uma vez.

— Talvez sim — disse o viajante —, acredito que esteja aí. — Pois bem — disse o oficial, ao menos em parte satisfeito,

e subiu com a folha pela escada; ajeitou a folha com grande cuidado no desenhador e aparentemente reordenou as engrena­gens de modo total; era um trabalho penoso, deviam tratar-se inclusive de rodas bem pequenas, às vezes a cabeça do oficial desaparecia completamente no desenhador, de tal maneira preci­sava ele examinar as engrenagens.

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O viajante acompanhou lá de baixo, ininterruptamente, esse trabalho, o pescoço dele ficou duro e os olhos lhe doíam sob esse céu repleno de luz do sol. O soldado e o condenado só estavam entretidos um com o outro. A camisa e a calça do condenado, já jogadas na fossa, foram puxadas para fora pelo soldado com a ponta da baioneta. A camisa estava horrivelmente suja, e o con­denado lavou-a na cuba d'água. Quando ele vestiu então a camisa e a calça, tanto o soldado quanto o condenado tiveram de rir alto, pois essas peças de roupa estavam cortadas atrás em duas. Talvez o condenado acreditasse estar obrigado a entreter o soldado, pois rodava na roupa cortada em frente ao soldado, que estava sen­tado no chão e, rindo, batia sobre seu joelho. Mesmo assim, con­trolavam-se ainda em função da presença dos cavalheiros.

Quando o oficial finalmente ficou pronto lá em cima, deu mais uma olhada, sorrindo, em todas as partes daquele conjunto, bateu cerrando dessa vez a tampa do desenhador, que até agora havia permanecido aberta, desceu a escada, olhou para dentro da fossa e daí para o condenado, notou aliviado que este havia tirado para fora suas roupas, foi então até a cuba d'água para lavar as mãos, reconheceu tarde demais a nojenta sujeira, entris­teceu-se com o fato de não poder agora lavar as mãos, mergu­lhou-as por fim — este substitutivo não o satisfez, mas teve de sujeitar-se — na areia, levantou-se em seguida e começou a desa-botoar a casaca de seu uniforme. Com isso caíram-lhe de início nas mãos os dois lencinhos femininos, que ele havia enfiado atrás da nuca.

— Aqui você tem os seus lencinhos — disse ele, e jogou-os na direção do condenado.

E ao viajante disse ele explicando: — Presentes das madames. Apesar da evidente pressa com que tirava a casaca do uni­

forme e depois se desnudava completamente, ele manuseava com muito cuidado cada peça de roupa, até passava de propósito com os dedos por cima dos cordões dourados de sua casaca mili­tar, sacudindo uma borla até ela ficar certa. Pouco se adequava, no entanto, a esse cuidado o fato de ele, logo após ficar pronto com uma peça, jogá-la em seguida na fossa com um involuntá­rio estremecimento. A última coisa que lhe restou foi a espada

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com o cinturão. Puxou a espada para fora da bainha, quebrou-a e, então, pegando tudo junto, os pedaços da espada, a bainha e o cinturão, jogou-os todos fora com tanta força que eles resso­aram lá embaixo na fossa.

Agora ele estava aí parado, nu. O viajante mordeu-se nos lábios, e não disse nada. Na verdade ele sabia o que iria acontecer, mas não tinha nenhum direito de perturbar o oficial em qualquer coisa. Se o processo judicial, do qual o oficial era tão afeiçoado, estava realmente tão perto de ser reformado — possivelmente devido à intervenção do viajante, para o que este sentia-se de sua parte comprometido —, então o oficial agia agora de modo plena­mente correto; em seu lugar, o viajante não teria agido diferente.

O soldado e o condenado primeiro não entenderam nada, de início nem sequer ficaram olhando. O condenado estava muito contente por ter conseguido de volta os lencinhos, mas não pôde alegrar-se com eles por muito tempo, pois o soldado tomou-os com um movimento brusco, inesperado. Agora o con­denado procurava puxar novamente de volta os lenços detrás do cinturão do soldado, mas este estava atento. Assim eles fica­ram brigando meio que de brincadeira. Só quando o oficial ficou completamente nu é que eles prestaram atenção. Especialmente o condenado parecia sentir-se atingido pela noção de alguma grande mudança. O que lhe havia acontecido, acontecia agora ao oficial. Talvez isso avançasse assim até seu extremo. Prova­velmente o viajante estrangeiro tinha dado ordens nesse sentido. Isso era, portanto, vingança. Sem ter ele mesmo sofrido até o fim, seria porém vingado até o fim. Uma risada larga, silenciosa, espraiou-se então em seu rosto e não mais desapareceu.

Mas o oficial havia se dirigido para a máquina. Se antes já ficara bem claro que ele entendia bem da máquina, agora era de deixar alguém quase atônito como ele a tratava e como ela obede­cia. Ele havia apenas aproximado a mão da grade dentada, e ela subiu e desceu várias vezes, até ter alcançado a posição correta para recebê-lo; ele tocou a cama apenas na beirada, e ela já come­çou a vibrar; a mordaça de feltro veio na direção de sua boca, viu-se como o oficial não queria propriamente recebê-la, mas a vacila-ção perdurou apenas por um instante, logo ele se submeteu e acei­tou-a. Tudo estava pronto, só as correias pendiam ainda pelas

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bordas abaixo, mas elas eram aparentemente desnecessárias, o ofi­cial não precisava ser amarrado. Daí o condenado notou as cor­reias soltas, em sua opinião a execução não seria completa se as correias não estivessem firmemente amarradas, ele acenou ansiosa­mente para o soldado e os dois acorreram para amarrar o oficial. Este já havia esticado um pé para empurrar a manivela que punha em movimento o desenhador; então ele viu que os dois tinham chegado; por isso puxou o pé de volta e deixou-se amarrar. Agora não podia mais, no entanto, alcançar a manivela; nem o soldado nem o condenado iriam encontrá-la, e o viajante estava decidido a não se mover. Não foi necessário; mal as correias estavam colo­cadas, a máquina também já começou a trabalhar: a cama vibrava, as agulhas dançavam por cima da pele, a grade oscilava para cima e para baixo. O viajante já havia ficado olhando por algum tempo até lembrar-se de que uma roda do desenhador deveria ter rangido; mas tudo estava silencioso, não se ouvia o menor zumbido.

Através desse silencioso trabalho, a máquina escapava for­malmente à atenção. O viajante olhou para o soldado e o conde­nado do outro lado. O condenado era o mais animado, tudo na máquina o interessava, ora ele se inclinava, ora se esticava, a todo momento apontava o dedo indicador para mostrar alguma coisa ao soldado. Para o viajante isso era penoso. Estava deci­dido a ficar aí até o fim, mas não teria suportado por muito tempo a visão dos dois.

— Vão para casa — disse ele. O soldado talvez estivesse disposto a isso, mas o condenado

sentiu a ordem diretamente como uma punição. Pediu, suplicando com as mãos postas, para que pudesse ficar aí, e quando o via­jante, sacudindo a cabeça, não quis ceder, ele até se ajoelhou. O viajante viu que ordens aqui não ajudavam, quis ir até o outro lado e forçar os dois a irem embora. Nesse momento ouviu lá em cima, no desenhador, um ruído. Olhou para o alto. Será que, afinal, aquela roda da engrenagem iria perturbar? Mas era outra coisa. Lentamente levantou-se a tampa do desenhador e, então, ela abriu completamente. Os dentes de uma roda se mos­traram e se ergueram, logo a roda toda apareceu, era como se uma força qualquer pressionasse todo o desenhador de tal modo que não restava mais lugar para essa roda: a roda girou até a

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beira do desenhador, caiu, rolou de pé por um trecho na areia e ficou deitada. Mas já uma outra ia subindo lá no alto, muitas outras a seguiram, grandes, pequenas e mal distinguíveis, com todas elas acontecendo a mesma coisa: sempre se acreditava que agora o desenhador devia estar, em cada caso, já vazio, mas daí aparecia um novo grupo, especialmente numeroso, que subia, caía, corria pela areia e ficava deitado. Com esses acontecimen­tos, o condenado esqueceu completamente a ordem do viajante, as engrenagens o fascinavam totalmente, sempre ele queria pegar uma, incitava ao mesmo tempo o soldado a ajudá-lo, puxava porém assustado a mão de volta, pois logo se seguia uma outra roda, que o assustava, ao menos quando aflorava.

O viajante, ao contrário, estava muito inquieto; a máquina caía obviamente aos pedaços; seu funcionamento silencioso era uma ilusão; ele tinha a sensação de que agora precisaria ocupar-se do oficial, já que este não podia mais tomar conta de si mesmo. Mas enquanto a queda das engrenagens absorvia toda a sua atenção, ele havia esquecido de observar o resto da máquina; quando ele, no entanto, depois de a última engrena­gem ter abandonado o desenhador, inclinou-se então por cima da grade, teve uma nova surpresa, ainda mais aborrecida. A grade dentada não escrevia, ela apenas fincava, e a cama não rodava o corpo, mas apenas o elevava tremendo para dentro das agulhas. O viajante queria fazer alguma coisa, se possível fazer tudo parar, isso não era afinal nenhuma tortura como o oficial queria alcançar, isso era um assassinato direto. Ele esten­deu as mãos. Mas daí a grade já se erguia oblíqua com o corpo espetado, como ela normalmente o faria apenas na duodécima hora. O sangue escorria em uma centena de filetes, mas não misturado com água, dessa vez inclusive as canaletas de água haviam falhado. E então falhou também a última coisa: o corpo não se soltou das longas agulhas, seu sangue escorria, ele porém pendia por cima da fossa sem cair. A grade já queria voltar à sua antiga posição, mas, como se notasse que não estava ainda livre de sua carga, permaneceu contudo por cima da fossa.

— Mas me ajudem! — gritou o viajante para o soldado e o condenado que estavam do outro lado, ele mesmo pegando os pés do oficial. Ele queria deste lado empurrar os pés, os dois outros deveriam, do outro lado, pegar a cabeça do oficial e,

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assim, este poderia ser lentamente retirado das agulhas. Mas agora os dois não conseguiam decidir-se a vir; o condenado virou-lhe descaradamente as costas; o viajante teve de ir até eles e empurrá-los à força até a cabeça do oficial. Com isso ele viu, quase contra sua vontade, o rosto do cadáver. Estava como havia estado em vida, nenhum sinal da prometida redenção nele se descobria; o que todos os outros haviam encontrado na máquina, o oficial não encontrara: os lábios estavam bem aper­tados, os olhos bem abertos, eles tinham a expressão que tinham tido em vida, o olhar estava tranqüilo e convicto, pela testa pas­sava a ponta do grande aguilhão de ferro.

Quando o viajante, com o soldado e o condenado atrás de si, chegou às primeiras casas da colônia, o soldado apontou para uma delas e disse:

— Aqui é a casa de chá. No andar térreo de uma casa havia um recinto profundo,

baixo, parecendo uma caverna, escuro de fumaça nas paredes e no teto. Na direção da rua, ele estava aberto em toda a sua extensão. Apesar de a casa de chá diferenciar-se pouco das demais casas da colônia, que estavam todas muito estragadas (com exceção das construções palacianas do comando), ela exer­ceu sobre o viajante a impressão de uma recordação histórica e ele sentiu o poder dos tempos antigos. Aproximou-se mais e, seguido por seus acompanhantes, caminhou por entre as mesas vazias, que estavam colocadas na rua em frente à casa de chá, e inspirou o ar frio, úmido e abafado, que vinha lá do interior.

— O Velho está enterrado aqui — disse o soldado —, um lugar no cemitério foi-lhe negado pelo sacerdote. Durante algum tempo houve indecisão sobre onde se deveria enterrá-lo, por fim enterrou-se ele aqui. Disso o oficial certamente não lhe contou nada, pois era o que naturalmente mais o envergonhava. Ele até tentou algumas vezes durante a noite desenterrar o Velho, mas sempre o afugentaram.

— Onde é a sepultura? — perguntou o viajante, que não conseguia acreditar no soldado.

Logo os dois correram à sua frente, tanto o soldado quanto o condenado, apontando com as mãos estendidas para ali onde a sepultura devia encontrar-se. Conduziram o viajante até a

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parede detrás, onde fregueses estavam sentados em algumas mesas. Eram provavelmente trabalhadores das docas, homens fortes com barbas curtas, negras retintas. Todos estavam sem casacão, suas camisas estavam rasgadas, eram um povo pobre, humilde. Quando o viajante se aproximou, alguns levantaram-se, comprimiram-se junto à parede e olharam na direção dele.

— É um estrangeiro — sussurrou-se ao seu redor —, ele quer ver a sepultura.

Eles empurraram uma das mesas para o lado, debaixo da qual realmente se encontrava uma lápide. Era uma pedra sim­ples, suficientemente baixa para poder ser escondida debaixo de uma mesa. Tinha uma inscrição com letras muito pequenas; para lê-las o viajante teve de ajoelhar-se. Rezava:

"Aqui jaz o antigo comandante. Seus adeptos, que agora não podem usar nome nenhum, cavaram-lhe esta sepultura e puseram esta lápide. Existe uma profecia de que o comandante, após um determinado número de anos, há de ressuscitar e, saindo desta casa, há de conduzir seus adeptos à reconquista da colônia. Crê e espera!"

Após ter lido isso e se levantado, o viajante viu ao seu redor os homens parados e sorrindo, como se tivessem lido com ele a inscrição, considerando-a ridícula e o incentivassem a par­tilhar sua opinião. O viajante fez de conta que não tinha notado isso, distribuiu algumas moedas entre eles, esperou ainda até que a mesa tivesse sido empurrada em cima da sepultura, aban­donou a casa de chá e foi para o porto.

O soldado e o condenado haviam encontrado na casa de chá conhecidos que os retiveram. Deviam ter-se livrado logo deles, pois o viajante ainda se encontrava na metade da longa escada que levava até os botes, quando já vinham correndo atrás dele. Provavelmente queriam no último instante obrigar o via­jante a levá-los junto. Enquanto o viajante negociava lá embaixo com um barqueiro o transporte até o vapor, os dois se precipita­ram escada abaixo, em silêncio, pois não ousavam gritar. Mas quando chegaram lá embaixo, o viajante já estava no bote, e o barqueiro justamente o soltava da margem. Eles ainda teriam podido saltar dentro da embarcação, mas o viajante levantou do bote uma pesada amarra cheia de nós, ameaçou-os com ela, evitando assim que pulassem.

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Uma página antiga

É como se muita coisa tivesse sido descurada na defesa de nossa pátria. Até agora não nos preocupamos com isso e nos entregamos ao nosso trabalho; mas os acontecimentos dos últi­mos tempos nos deixam preocupados.

Tenho uma sapataria em frente ao palácio imperial. Mal abro minha pequena loja, ao alvorecer, já vejo tomadas por homens armados todas as ruazinhas que aqui afluem. Eles não são, no entanto, os nossos soldados, mas, ao que parece, nôma­des vindos do norte. De um modo para mim incompreensível, eles penetraram até a capital, que se localiza, afinal, muito dis­tante da fronteira. Em todo caso, estão aí; parece que a cada manhã eles se tornam mais numerosos.

De acordo com sua natureza, acampam sob céu aberto, pois abominam casas. Eles se entretêm afiando as espadas, fazendo ponta nas flechas, praticando exercícios eqüestres. Dessa tranqüila praça, mantida sempre escrupulosamente limpa, fize­ram uma verdadeira pocilga. É claro que às vezes tentamos acor­rer até a frente de nossas lojas e eliminar ao menos a pior sujeira, mas isso acontece cada vez mais raramente, pois o esforço é inú­til e, além disso, acarreta-nos o perigo de ficarmos sob os cava­los selvagens ou sermos feridos pelos chicotes.

Falar com os nômades não se consegue. Nossa língua eles não conhecem, sim, eles mal têm uma língua própria. Entre si

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eles se entendem como se entendem as gralhas. Sempre de novo se escuta esse grasnido de gralhas. Nosso modo de vida, nossas instituições são-lhes tão incompreensíveis quanto indiferentes. Por causa disso, mostram-se também arredios a qualquer lingua­gem gestual. Você pode destroncar os queixais e tirar as mãos fora dos encaixes, de qualquer modo eles ainda não o entende­ram nem irão entendê-lo jamais. Com freqüência fazem caretas; reviram então o branco de seus olhos e espuma brota de suas bocas, mas não querem com isso dizer alguma coisa nem tam­pouco ainda atemorizar; eles o fazem porque esse é o jeito deles. Do que precisam, tomam. Não se pode dizer que empreguem a força. Ante seu avanço, a gente se põe de lado e deixa tudo para eles.

Também de minhas provisões andaram levando algumas boas peças. Mas não posso me queixar disso se, por exemplo, contemplo o que está ocorrendo com o açougueiro do outro lado. Mal chegam suas mercadorias, tudo já é arrancado dele e devorado pelos nômades. Inclusive os cavalos deles comem carne; com freqüência pode-se ver um cavaleiro ao lado de seu cavalo, ambos a se alimentarem do mesmo pedaço de carne, cada qual em uma ponta. O açougueiro está com medo e não tem coragem de cortar o fornecimento de carne. Mas nós enten­demos isso, juntamos dinheiro e o sustentamos. Se os nômades não recebessem carne alguma, quem sabe o que seriam capazes de fazer, quem sabe o que eles serão, em todo caso, capazes de fazer, mesmo que recebam carne diariamente.

Há pouco tempo, o açougueiro pensou que ao menos pode­ria poupar-se o trabalho de carnear, e trouxe pela manhã um boi vivo. Isso ele não pode fazer de novo. Passei mais de hora deitado bem lá nos fundos de minha loja, estendido no chão, tendo amontoado sobre mim todas as minhas roupas, cobertas e almofadas, só para não escutar os berros do boi, que os nôma­des atacavam de todos os lados, para arrancar com os dentes pedaços de sua carne quente. Tudo já estava quieto há um bom tempo quando me atrevi a sair: como bêbados em redor de um tonei de vinho, eles jaziam cansados em torno dos restos do boi.

Eu acreditava ter visto justamente naquela ocasião o impe­rador em uma janela do palácio; jamais ele chega em outras

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ocasiões até esses aposentos exteriores; vive sempre apenas no jardim mais íntimo; mas dessa vez ele estava parado, ao menos assim me pareceu, junto a uma das janelas e, com a cabeça incli­nada, olhava para a agitação em frente a seu castelo.

— Como é que vai acabar isso? — perguntamo-nos todos nós. — Até quando iremos suportar essa carga e esse tormento? O palácio imperial é que atraiu os nômades, mas agora não sabe como se livrar deles. O portão continua trancado; a guarda, que antes sempre entrava e saía marchando em pompa, mantém-se atrás de janelas com grades. A nós, artesãos, e comerciantes, está confiada a salvação da pátria; mas nós não estamos à altura de tal tarefa; também nunca nos vangloriamos de sermos capa­zes de cumpri-la. Trata-se de um mal-entendido, e ele é a nossa perdição.

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Ante(s) (d)a lei

Diante da lei está parado um guardião. Desse guardião se aproxima um homem do campo e pede entrada na lei. Mas o guardião diz que não pode agora permitir-lhe a entrada. O homem reflete e pergunta então se, portanto, poderá entrar mais tarde.

— É possível — diz o guardião —, mas não agora. Já que o portão para a lei está como sempre aberto e o

guardião se posta ao lado, o homem inclina-se para, através do portão, olhar lá para dentro. Ao notar isso, o guardião dá uma risada e diz:

— Se isso o atrai tanto, tente então entrar apesar de minha proibição. Note porém: eu sou poderoso. E sou apenas o último dos guardiães. De salão em salão estão, porém, postados guar­diães, um mais poderoso que o outro. Tão só a visão do terceiro, nem sequer eu consigo mais suportar.

Tamanhas dificuldades o homem do campo não havia espe­rado; a lei deve ser, afinal, acessível a todos, e sempre, pensa ele; mas ao olhar agora com cuidado para o guardião em seu casacão de couro, com seu narigão pontudo, a barba longa, rala, negra, tártara, ele decide que era preferível, em suma, espe­rar até obter permissão para entrar. O guardião dá-lhe um ban-quinho e permite que ele se assente ao lado da porta. Ali fica ele sentado por dias e anos. Faz muitas tentativas para que lhe seja permitido entrar e cansa o guardião com seus pedidos. Com

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freqüência o guardião organiza pequenas audiências com ele, questiona-o sobre sua terra e muitas outras coisas, mas são per­guntas neutras, como as formulam grandes senhores, dizendo-lhe por fim sempre de novo que ainda não poderia deixá-lo entrar. O homem, que se provera de muita coisa para sua via­gem, usa de tudo, por mais valioso que seja, para subornar o guardião. Este efetivamente tudo aceita, dizendo porém:

— Eu só aceito isso para que você não creia ter deixado de tentar alguma coisa.

Durante todos esses anos, o homem fica observando quase ininterruptamente o guardião. Ele esquece os outros guardiães e este primeiro parece-lhe o único obstáculo para a entrada na lei. Nos anos iniciais amaldiçoa sem peias e em alta voz o infe­liz acaso; mais tarde, ao ficar velho, apenas resmunga ainda para si. Torna-se infantil e, como nos anos de estudo e contem­plação do guardião chegou a conhecer até as pulgas em sua gola de peles, suplica inclusive às pulgas que o ajudem a conven­cer o guardião. Por fim, sua vista se torna fraca e ele já não sabe se realmente está ficando mais escuro ao seu redor ou se apenas seus olhos é que o enganam. Mas bem que ele reconhece agora, na escuridão, um brilho a brotar inextinguível lá das por­tas da lei. Pouco tempo de vida lhe resta. Antes de morrer, reú­nem-se em sua cabeça as experiências todas daqueles longos anos em uma pergunta que até agora ele não havia colocado ao guardião. Acena-lhe para que ele se aproxime, pois já não consegue mais pôr de pé seu corpo cada vez mais hirto. O guar­dião precisa inclinar-se profundamente até ele, pois a diferença de tamanho entre eles alterou-se em detrimento do homem.

— O que é que você ainda quer saber agora? — perguntou o guardião. — Você é insaciável.

— Todos almejam afinal a lei — diz o homem —, mas como é que em todos esses anos ninguém, exceto eu, pediu para entrar?

O guardião reconhece que o homem já está no fim e, para ainda atingir sua audição cada vez mais debilitada, precisa gritar-lhe:

— Aqui ninguém mais podia obter permissão para entrar, pois esta entrada estava destinada somente a você. Agora eu vou embora e vou fechá-la.

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Sobre a questão das leis

Nossas leis não são conhecidas por todos, elas são um segredo do pequeno grupo de aristocratas que nos domina. Estamos convencidos de que essas velhas leis são observadas com exatidão, mas é algo extremamente torturante ser domi­nado por leis que não se conhecem. Não estou aqui pensando nas diversas possibilidades de interpretação e nos prejuízos daí decorrentes, quando só alguns, e não o povo todo, podem parti­cipar da interpretação. Talvez esses prejuízos nem sejam tão grandes. Afinal, as leis são tão antigas, séculos trabalharam em sua interpretação, inclusive essa interpretação já deve ter-se tornado lei, e, embora possíveis liberdades exegéticas ainda per­sistam, elas devem ser, no entanto, muito limitadas. Além disso, a aristocracia não tem, evidentemente, nenhuma razão para se deixar influenciar na interpretação em nosso desfavor por seu interesse pessoal, pois, afinal, as leis foram fixadas desde o iní­cio a favor da aristocracia, a aristocracia está acima da lei e, justamente por isso, a lei parece ter-se colocado exclusivamente nas mãos da aristocracia. Nisso reside naturalmente sabedoria — quem duvida da sabedoria das antigas leis? —, mas igual­mente também tormento para nós; é provável que isso seja ine­vitável.

Aliás, a rigor essas leis aparentes só podem ser também supostas. Há uma tradição de que elas cxistiriam e que seriam

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confiadas à aristocracia como um segredo, mas mais do que uma antiga tradição — uma tradição em que se acredita por ser antiga — isso não é e nem consegue ser, pois o caráter dessas leis exige também a manutenção do segredo de sua existência. Mas se nós, o povo, acompanhamos atentamente desde os tem­pos mais remotos as ações da aristocracia (possuímos anotações de nossos antepassados sobre isso, demos conscienciosamente continuidade a elas e acreditamos reconhecer nos inúmeros fatos certas linhas-mestras que permitem concluir por essa ou aquela definição histórica) e se nós procuramos nos prevenir e organi­zar, para o presente e para o futuro, um pouco de acordo com essas conclusões cuidadosamente filtradas e ordenadas — tudo isso é, contudo, incerto, e talvez seja apenas uma brincadeira do intelecto, pois talvez nem sequer existam essas leis que aqui tentamos adivinhar. Há um pequeno partido que realmente defende essa opinião e procura demonstrar que, se existe uma lei, ela só pode rezar: o que a aristocracia faz, é lei. Esse par­tido enxerga em tudo isso tão-somente atos arbitrários da aristo­cracia e rejeita a tradição popular, que, em sua opinião, acar­reta apenas limitados proveitos ocasionais e que, ao contrário, na maioria dos casos provoca pesados prejuízos, já que dá ao povo, em relação aos eventos futuros, uma segurança falsa, enganosa, que conduz à leviandade. Esse prejuízo é inegável, mas a grande maioria de nosso povo vê a origem disso no fato de a tradição não ser nem de longe bastante, e que, portanto, seria preciso pesquisar muito mais nela e que, no entanto, todo o seu material, por mais imenso que pareça, ainda é demasiado reduzido e que séculos ainda precisariam transcorrer antes de isso ser suficiente. Para o presente, o sombrio dessa perspectiva ilumina tão-só a crença de que virá uma época em que a tradi­ção e sua pesquisa, até certo ponto respirando aliviadas, hão de chegar à conclusão de que tudo se tornou claro, que a lei pertence apenas ao povo e que a aristocracia desaparecerá. Isso não é dito com algo como ódio contra a aristocracia, de modo algum, nem por ninguém. Antes odiamos a nós mesmos por não podermos estar à altura da lei. E por isso é que, a rigor, aquele partido (em certo sentido, pois, um partido muito atra­ente, que não acredita em nenhuma lei propriamente dita) per-

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manece tão reduzido, pois também ele reconhece plenamente a aristocracia e seu direito à existência.

Só se pode exprimir isso através de uma espécie de contra­dição: um partido que, além da crença nas leis, também conde­nasse a aristocracia, teria logo de seu lado todo o povo, mas um partido desses não consegue constituir-se, pois ninguém ousa condenar a aristocracia. Sobre o fio dessa navalha nós vivemos. Uma vez um escritor sintetizou isso do seguinte modo: a única lei indubitável, visível, que nos é imposta, é a aristocra­cia, mas será que nós mesmos deveríamos nos deixar levar por essa única lei?

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Onze filhos

Tenho onze filhos. O primeiro tem uma aparência pouco agradável, mas é

sério e inteligente; apesar disso, por mais que eu o ame, como amo a todos os outros, não o tenho em alta conta. Seu modo de pensar me parece simples demais. Não enxerga nem à direita nem à esquerda e tampouco a distância; em seu restrito círculo mental, ele só fica sempre dando voltas, ou melhor, rodopiando.

O segundo é bonito, esbelto, bem proporcionado; é um encanto vê-lo na postura de esgrimista. Também é inteligente, mas além disso tem experiência de mundo; viu muita coisa e, por isso mesmo, a natureza da pátria parece falar-lhe com maior intimidade do que para aqueles que jamais saíram. É claro que essa vantagem não se deve apenas nem essencialmente às via­gens, mas pertence muito mais ao incomparável desse filho, algo reconhecido por exemplo por todo aquele que queira, diga­mos, imitar seu salto ornamental na água, salto de vários giros sobre si mesmo e, apesar disso, sob absoluto controle. O ânimo e a coragem do imitador vão até a ponta do trampolim, mas ali, ao invés de pular, ele senta-se de repente e., erguendo os bra­ços, pede desculpas. — E apesar de tudo isso (eu deveria, afi­nal, estar realmente feliz por ter um filho assim), meu relaciona­mento com ele não é despido de perturbações. Seu olho esquerdo é um pouco menor que o direito e pisca muito; apenas, é claro,

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um pequeno defeito, que torna seu rosto ainda mais ousado do que ele normalmente teria sido, e, considerando a incompará­vel perfeição de seu ser, ninguém há de fazer críticas quanto ao fato de o olho menor piscar. Mas eu, o pai, eu faço isso. Naturalmente não é esse defeito corpóreo que me dói e machuca, mas uma, de algum modo equivalente, pequena irregularidade em seu espírito, algum veneno errante em seu sangue, alguma incapacidade — só por mim perceptível — de aperfeiçoar plena­mente os potenciais de sua vida. Por outro lado, justamente isso é que, no entanto, faz dele um verdadeiro filho meu, pois este seu defeito é, ao mesmo tempo, o defeito de toda a nossa família e que só nesse filho se torna extremamente nítido.

O terceiro filho também é bonito, mas não é do tipo de beleza que me agrade. É a beleza de um cantor: lábios alados; olhar sonhador; cabeça a exigir um pano de fundo para impres­sionar; o peito desproporcionalmente abaulado; as mãos a subir e descer com facilidade demais; as pernas que requebram por­que nada sustentam. E além disso: a tonalidade de sua voz não é cheia; engana por um momento; faz o conhecedor dispor-se a ouvir; mas o desanima logo em seguida. Apesar de em geral tudo induzir à exibição desse filho, prefiro mantê-lo oculto; ele mesmo não procura se impor, não porque talvez conheça e reco­nheça suas falhas, mas sim por inocência. Ele inclusive se sente um estranho em nossa época: como se pertencesse à minha famí­lia, mas além disso a uma outra, para sempre perdida; com fre­qüência ele está deprimido e nada consegue animá-lo.

O meu quarto filho talvez seja o mais sociável de todos. Verdadeiro filho de sua época, todos o compreendem, ele pisa em solo comum a todo mundo e cada um se sente inclinado a aprová-lo. Talvez seu ser ganhe, através desse reconhecimento, uma certa leveza, seus movimentos uma certa liberdade, seus julgamentos uma certa despreocupação. Com freqüência gosta­mos de repetir algumas de suas assertivas, mas só algumas, pois no conjunto ele, porém, padece por sua vez de demasiada super­ficialidade. É como alguém que salte maravilhosamente bem, fenda o ar qual uma andorinha, mas acabe aterrissando desola-doramente em mísera poeira: um nada. Tais pensamentos me amarguram à visão desse filho.

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O quinto filho é amável e bom; prometia bem menos do que acabou concretizando; ele era tão insignificante que em sua presença a gente se sentia formalmente só; mas acabou conse­guindo conquistar um certo renome. Caso se pergunte como isso aconteceu, dificilmente eu saberia responder. Talvez a ino­cência consiga mais facilmente abrir caminho através do movi­mento caótico dos elementos nesse mundo, e inocente ele é. Tal­vez inocente demais. Amistoso com todos. Talvez amistoso demais. Reconheço: não me sinto bem quando ele é elogiado em minha frente. Pois quando se elogia alguém tão merecedor de elogios quanto esse filho meu, isso significa permitir que o elogio se torne demasiado fácil.

O meu sexto filho parece, pelo menos à primeira vista, o mais profundo de todos. Cabeça pensativa e, mesmo assim, um grande dispersivo. Por isso ele não é muito acessível. Quando está por baixo, cai numa invencível melancolia; quando alcança a supremacia, ele a preserva mediante dispersiva conversa. Não nego que possua, no entanto, uma certa paixão altruísta; em plena luz do dia, debate-se com freqüência em pensamentos como num sonho. Sem estar doente — tem, ao contrário, saúde muito boa —, cambaleia às vezes, especialmente ao entardecer, mas não precisa de ajuda, não cai. Talvez a culpa desse fenô­meno esteja em seu desenvolvimento físico, pois ele é grande demais para sua idade. Isso faz com que, no todo, ele seja feio e desengonçado, apesar de detalhes acentuadamente bonitos, como por exemplo as mãos e os pés. Desagradável também é, aliás, sua testa: tanto na pele quanto na conformação dos ossos, de certo modo ele é encarquilhado.

O sétimo filho talvez me pertença mais do que todos os outros. O mundo não o entende, não sabe reconhecer-lhe os méritos, não compreende seu peculiar tipo de humor. Não exa­gero seu valor; sei que ele é bastante insignificante; se o mundo não tivesse outro defeito senão esse, ainda continuaria sendo imaculado. Mas eu não gostaria de sentir a ausência desse filho dentro da família. Ele acarreta tanto inquietação quanto inclu­sive temor diante da tradição, sintetizando isso numa totalidade incontestável (ao menos dentro de minha perspectiva). Mas com essa totalidade ele próprio é quem menos sabe empreender algo;

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ele não há de fazer girar a roda do futuro; essa sua predisposi­ção é, porém, tão animadora, tão cheia de esperanças; eu gosta­ria que ele tivesse filhos, e estes por sua vez outros filhos. Lamentavelmente esse desejo parece não querer vingar. Com uma arrogância que me é, de fato, compreensível, mas igual­mente indesejável, arrogância que, no entanto, está em gran­diosa antítese em relação aos juízos de seu meio, ele anda por aí sozinho, não se preocupa com garotas e, apesar disso, jamais chega a perder o seu bom humor.

O meu oitavo filho é quem me causa maior mágoa e, a rigor, não sei de nenhuma razão para isso. Ele me olha com estranheza e, no entanto, eu me sinto estreitamente ligado a ele enquanto pai. O tempo remediou muita coisa; mas antigamente até me dava uma tremedeira só de pensar nele. Ele segue seu próprio caminho; rompeu totalmente relações comigo; e, com sua cabeça dura, com seu corpo pequeno e atlético — só as per­nas é que, quando jovem, ele as tinha um tanto fracas, mas isso talvez já tenha entrementes se equilibrado —, ele certamente há de conseguir vencer onde quiser. Com freqüência tive desejo de chamá-lo de volta, de perguntar-lhe às quantas de fato andava, por que se distanciava assim do pai e o que, no fundo, pretendia, mas agora ele está tão longe e já se passou tanto tempo que isso pode então ficar como está. Tenho ouvido dizer que ele é o único dos meus filhos a usar barba; num homem tão baixinho como ele, isso não fica bem.

O meu nono filho é muito elegante e, para as mulheres, tem aquele tipo de olhar bem doce. Tão doce que, em certas ocasiões, consegue seduzir até a mim, eu que bem sei que basta uma proto­colar esponja molhada para apagar todo esse brilho sobrenatural. Mas o singular nesse moço é que ele nem sequer pretende seduzir: para ele bastaria permanecer a vida toda deitado em cima do sofá e desperdiçar seus olhares pelo teto, ou, melhor ainda, deixá-los repousando atrás das pálpebras. Quando está nessa dileta posi­ção, ele conversa animadamente e nada mal; de um modo con­ciso e plástico; mas só dentro de limites bastante estreitos; ao ir além disso, o que com suas limitações acaba sendo inevitável, sua conversa se torna oca e vazia. Até que seria possível fazer sinais para ele parar, caso se pudesse ter a esperança de que seu olhar cheio de sono chegaria a notar qualquer coisa.

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O meu décimo filho é considerado um caráter não confiá­vel. Não pretendo negar totalmente esse defeito nem tampouco confirmá-lo plenamente. Certo é que quem o vê se achegando com uma pompa bem acima de sua idade, numa sobrecasaca sempre toda abotoada, com um chapéu velho mas cuidadosa­mente limpo, com o rosto impassível, o queixo um tanto proe­minente, as sobrancelhas pesadamente abauladas sobre os olhos, dois dedos andarilhando às vezes pela boca — quem assim o vê, pensa: este é um ilimitado hipócrita. Escute-se, porém, uma vez a conversa dele! Compreensivo; cauteloso; abrupto e áspero; terçando respostas com maldosa vivacidade; em espantosa con­cordância, natural e alegre, com o mundo inteiro, acordo que necessariamente enrijece o pescoço e empina o corpo. Diversas pessoas, que se consideram muito espertas e que, por isso, pen­savam sentir-se repelidas por seu aspecto externo, ele conseguiu atraí-las fortemente mediante sua palavra. Eu, como pai, não quero aqui decidir, tenho de reconhecer, no entanto, que esses últimos juizes são, em todo caso, mais dignos de consideração do que os primeiros.

O meu décimo primeiro filho é franzino, certamente o mais fraco dos meus filhos; mas sua fragilidade é enganadora, pois em certas épocas consegue ser forte e resoluto; mesmo então, no entanto, sua fragilidade é de algum modo fundamental. Não é, porém, uma fraqueza vergonhosa, mas algo que só nesse nosso território aparece como fraqueza. Será que, por exemplo, a capacidade de voar não é também fraqueza, já que ela é osci­lação e indeterminação e volubilidade? Algo semelhante se mos­tra em meu filho. A um pai naturalmente não alegram tais carac­terísticas; elas conduzem, obviamente, à destruição da família. Às vezes ele me olha como se quisesse dizer: "eu vou te passar na conversa, pai". Então eu penso: "tu serias o último em quem eu confiaria". E seu olhar parece replicar: "ao menos deixa, portanto, eu ser o último".

Esses são os onze filhos.

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Uma pequena mulher

É uma mulher pequena; de natureza bastante esbelta, anda, contudo, fortemente espartilhada; vejo-a sempre com o mesmo vestido, de um tecido cinza-amarelado, até certo ponto de uma cor de madeira, ornado minimamente com borlas ou pingentes em forma de botões da mesma cor; está sempre sem chapéu, seu cabelo loiro desbotado é liso e nada desordenado, mas man­tido bem solto. Ela, apesar de espartilhada, move-se no entanto com agilidade, exagerando, é claro, essa agilidade: gosta de colo­car as mãos nos quadris e, com surpreendente rapidez, move o torso para o lado com um meneio. Só posso reproduzir a impres­são que sua mão me causou dizendo que jamais vi mão em que todos os dedos estivessem tão acentuadamente separados entre si quanto nela; mesmo assim, sua mão não tem nenhuma peculia­ridade anatômica, é completamente normal.

Ora, essa mulherzinha está muito chateada comigo, sempre tem algo a censurar em mim, para ela estou sempre fazendo alguma coisa errada, eu a irrito a cada passo; caso se pudesse dividir a vida em partes mínimas e julgar cada partícula em sepa­rado, com certeza cada partezinha de minha vida seria para ela uma irritação. Já me perguntei com freqüência por que, afinal, eu a irrito tanto; pode ser que tudo em mim contrarie seu senso de beleza, seu sentimento de justiça, seus hábitos, suas tradi­ções, suas esperanças; afinal, existem naturezas a tal ponto

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incompatíveis entre si, mas por que ela sofre tanto com isso? Não há nenhuma relação entre nós que a force a sofrer por minha causa. Ela só precisaria decidir-se a encarar-me como um perfeito estranho (o que, aliás, eu também sou): eu nem me oporia a uma tal decisão; ao contrário, eu a receberia de bom grado. Ela só precisaria decidir-se a esquecer minha existên­cia, existência que eu jamais lhe impus ou sequer imporia — e todo esse tormento evidentemente acabaria. Faço aqui inteira abstração de mim mesmo e também do fato de que o comporta­mento dela também me é, naturalmente, penoso; faço disso abs­tração, pois reconheço claramente que todo esse sofrimento é nada, em comparação com sua dor. Estou, contudo, plenamente consciente de que não se trata de dor de amor; a ela realmente pouco importa aprimorar-me, uma vez também que tudo o que ela reprova em mim não é de tal natureza que seja capaz de atra­palhar minha carreira. Mas ela também não está preocupada com minha carreira, não se preocupa senão com seu interesse pessoal, ou seja, vingar-se do tormento que nela provoco e impe­dir o tormento que, de mim provindo, venha a ameaçá-la. Já tentei uma vez indicar a ela qual seria o melhor modo de acabar com essa irritação constante, mas justamente com isso consegui arrastá-la a uma tal comoção que jamais repetirei a tentativa.

Cabe a mim também, por assim dizer, uma certa responsa­bilidade, pois por mais estranha que me seja a mulherzinha e por mais que a única relação existente entre nós seja a irritação que lhe causo, ou melhor, a irritação que ela permite que eu lhe cause, não me deveria ser, porém, indiferente o quanto ela acaba, de modo visível, sofrendo com essa irritação, inclusive fisica­mente. De quando em quando chegam-me notícias — que vêm aumentando nos últimos tempos — de que mais de uma vez ela teria, pela manhã, estado pálida, tresnoitada, torturada por dores de cabeça e quase incapaz de trabalhar; com isso ela causa preocupações a seus familiares — pergunta-se para lá e para cá quanto às causas desse seu estado e, até agora, elas não foram ainda encontradas. Só eu as conheço — é aquela antiga e sem­pre renovada irritação comigo. Ora, é claro que não partilho das preocupações de seus familiares; ela é forte e resistente; quem consegue ficar tão irritada assim, provavelmente também

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consegue superar as seqüelas da irritação; tenho até a suspeita de que ela — ao menos em parte — só se apresenta doente para, assim, voltar contra mim as suspeitas do mundo. É orgulhosa demais para confessar francamente o quanto eu a atormento com minha existência; apelar a outros por minha causa, isso ela sentiria como uma degradação de si mesma; só se ocupa comigo por aversão, uma aversão que não cessa, que a instiga eterna­mente; comentar de público também essa impura questão, isto seria demais para seu pudor. Mas também acaba sendo demais silenciar por completo uma coisa que sem cessar a oprime. E, assim, em sua astúcia de mulher, ela procura um meio-termo: calada, procura, tão-só através dos signos externos de um secreto sofrimento, levar a questão ao tribunal da esfera pública. Tal­vez alimente inclusive a esperança de que, se a esfera pública vier um dia a dirigir até mim a plenitude de seu olhar, há de brotar contra mim um rancor coletivo e, com seus grandes pode­res, este há de me condenar, de modo total e absoluto, com maior vigor e rapidez do que o é capaz sua irritação privada, comparativamente mais fraca; mas depois ela se retiraria, respi­raria aliviada e me voltaria as costas. Ora, caso realmente sejam estas suas esperanças, então ela se engana. A opinião pública não há de assumir o papel dela; a esfera pública jamais terá tanto, tanto a censurar em mim, mesmo que me coloque sob a maior lente de aumento. Não sou pessoa tão inútil quanto essa mulherzinha acredita; não quero vangloriar-me, e especialmente não nesse contexto; mas mesmo que eu inclusive não chegue a me destacar por alguma peculiar utilidade, por certo também não devo chamar a atenção pelo inverso; só para ela, para seus olhos, que quase disparam brancura, é que eu sou assim, e a mais ninguém ela há de conseguir convencer disso. Será que eu poderia, pois, ficar completamente tranqüilo quanto a isso? Não, de modo algum; pois se de fato for divulgado que, com meu comportamento, eu realmente a deixo doente, e alguns observadores bem atentos — justamente os mais denodados espalhadores de notícias — já estão a ponto de perceber isso (ou ao menos se comportam como se o percebessem), e todo o mundo virá fazer perguntas sobre por que é que eu, afinal, tor­turo a pobre mulherzinha com essa minha incorrigibilidade e

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se eu pretendo, porventura, levá-la à morte, e quando é que vou ter, por fim, o bom senso e a simples compaixão humana para acabar com isso — se todo o mundo vier me interpelar assim, vai ser difícil responder. Deveria eu então confessar que não acredito muito nesses sintomas, provocando com isso a desagra­dável impressão de que, para me livrar de uma culpa, fico cul­pando a outros de modo tão deselegante? E será que por acaso poderia dizer com toda a franqueza que, mesmo acreditando numa enfermidade real, não tenho a menor compaixão, pois a mulher me é completamente estranha e que a relação existente entre nós só foi estabelecida por ela e só existe por parte dela? Não quero afirmar que não iriam acreditar em mim; ao contrá­rio, não acreditariam nem deixariam de acreditar; nem chega­riam ao ponto de falar sobre isso; simplesmente registrariam a resposta que dei em relação a uma mulher fraca, doente, e isso seria bem pouco favorável a mim. Com essa e com qualquer outra resposta me ficaria permanentemente atravessada no cami­nho a incapacidade do mundo em, num caso como esse, não deixar que emergisse a suspeita de uma ligação amorosa, embora seja extremamente claro e evidente que não existe tal ligação amorosa e que, se ela existisse, partiria antes de mim, já que eu seria capaz de admirar, de algum modo, a pequena mulher pelo caráter resoluto de seu juízo e pela natureza inquebrantá-vel de suas deduções, se eu não fosse sempre de novo punido justamente por sua predileção por mim. Em todo caso, nela não há, contudo, nenhum rastro de um relacionamento mais amis­toso para comigo; nisso ela é honesta e verdadeira; nisso repousa minha última esperança; nem sequer se servisse para seus pla­nos bélicos fazer acreditar em tal relação comigo, ela chegaria a olvidar e fazer coisa semelhante. Mas o público, completa­mente obtuso e insciente quanto a isso, manteria sua opinião e decidiria sempre contra mim.

Assim, a rigor só me restaria ainda, antes que o mundo intervenha, eu me modificar em tempo o suficiente para, não digo eliminar a irritação da mulherzinha (pois isso é impensá­vel), mas conseguir abrandá-la um pouco. E, de fato, já andei com freqüência me perguntando se, afinal, meu atual estado me satisfaz tanto que eu nem sequer pretenda modificá-lo, e se

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não seria, então, possível efetuar certas modificações em mim, mesmo que eu não as fizesse por estar convencido de sua neces­sidade, mas só para acalmar a mulher. E, sinceramente, tentei isso, não sem esforço e cuidados; isso correspondia inclusive a uma necessidade minha, até quase me divertia; certas mudanças resultaram disso, eram perceptíveis de longe, eu nem precisava chamar a atenção da mulher para elas, ela nota coisas assim bem mais cedo que eu, ela já percebe a expressão da intenção em meu ser; mas um êxito eu não consegui alcançar. E como teria sido possível? A insatisfação dela para comigo é, como agora percebo, uma insatisfação radical: nada consegue eliminá-la, nem mesmo a eliminação de mim mesmo; seus acessos de fúria, por exemplo, com a notícia de meu suicídio, seriam incon-troláveis. Só que não consigo imaginar que ela, essa mulher pers­picaz, não perceba isso tão bem quanto eu, ou seja, tanto a falta de futuro dos seus esforços quanto também a minha inocência, a minha incapacidade de mesmo com a maior das boas vontades, corresponder às suas exigências. Certamente ela entende isso, mas, por sua natureza combativa, ela o esquece na paixão da luta, e meu infeliz modo de ser — mas que não consigo mudar, pois ele me é, afinal, inerente e até inato — consiste em preten­der sussurrar uma suave admoestação a quem tenha perdido as estribeiras. Dessa maneira nós, naturalmente, jamais chegare­mos a nos entender. Sempre de novo sairei de casa, digamos, na felicidade das primeiras horas matutinas e verei esse rosto, azedo por minha causa, com os lábios carrancudamente franzi­dos, o olhar inquisidor (a conhecer já o resultado antes do exa­me) que me percorre e ao qual nada consegue escapar, por mais ligeiro que seja, um sorriso amargo encravado nas maçãs juve­nis, um lamuriento olhar erguido para os céus, um colocar as mãos nos quadris para se firmar e afirmar, e depois, de indigna­ção, palidez e tremor.

Ultimamente, e isso pela primeira vez (como na ocasião eu mesmo o reconheci, espantado), fiz algumas referências a essa questão para um amigo íntimo, só de passagem, bem de leve, algumas poucas palavras: por menor que externamente seja em última instância o significado disso tudo para mim, reduzi sua importância ainda um pouco abaixo da verdade. É

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estranho que, no entanto, o amigo não tenha deixado de escu­tar, mas inclusive chegasse a, por conta própria, emprestar-lhe a maior relevância, não se deixando desviar do assunto e insis­tindo nele. Mais curioso ainda é que, apesar disso, ele subava-liasse a questão num ponto decisivo, pois seriamente me aconse­lhou a viajar um pouco. Nenhum conselho poderia ser mais idiota; as coisas são de fato simples, qualquer um pode, ao se aprofundar um pouco, percebê-las, mas tão simples elas também não são que, com a minha partida, tudo — ou ao menos o mais importante — ficaria em ordem. Ao contrário, devo preca­ver-me contra viagens; se algum plano eu devo seguir, então que seja, em qualquer caso, o de manter a questão dentro de seus limites anteriores, estritos, ficando portanto quieto onde estou, não permitindo grandes alterações, mudanças marcantes provocadas por essa questão, o que implica inclusive não falar com ninguém sobre isso — e não porque seja um segredo peri­goso, mas porque se trata de uma questiúncula puramente pes­soal e, enquanto tal, facilmente suportável, devendo assim tam­bém manter-se. Quanto a isso, as observações do amigo não foram completamente inúteis: não me acrescentaram nada de novo, mas reforçaram minha resolução.

Como acaba se mostrando após considerações mais apro­fundadas, as mudanças que a situação parece ter sofrido no decorrer do tempo não são mudanças na própria questão, mas apenas o desenvolvimento de minha visão dela, à medida que essa visão se torna em parte mais serena, mais máscula, ficando mais próxima do cerne e acabando por ter, no entanto, em parte um certo nervosismo, devido à insuperável influência dos cons­tantes sobressaltos, por mais leves que sejam.

Fico mais calmo diante da questão quando acredito reco­nhecer que uma decisão, por mais próxima que às vezes pareça estar, ainda não haverá, porém, de chegar; especialmente quando se é jovem, tem-se a tendência de superestimar muito a veloci­dade com que decisões aparecem; cada vez que minha pequena juíza, debilitada por minha visão, afundava de lado na poltrona, segurando-se com uma mão no encosto e com a outra enrolando os dedos no colete, enquanto lágrimas de desespero despenca­vam por suas faces, sempre pensei que a decisão já tivesse sido

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tomada e que eu logo seria convocado para assumir responsabi­lidades. Mas nada de decisão, nada de responsabilização, mulhe­res sentem-se mal com facilidade, o mundo não tem tempo para cuidar de todos os casos. E o quê, afinal, andou acontecendo durante todos esses anos? Nada além de tais eventos se repeti­rem, ora mais fortes, ora mais fracos, e, portanto, sua soma global acabar sendo bem maior. E que pessoas fiquem a circu­lar pelas vizinhanças, com vontade de interferir caso encontrem uma oportunidade para isso; mas não encontram nenhuma, até agora confiam apenas em seu faro, e o faro sozinho serve, na verdade, para ocupar bastante seu detentor, só que não serve para outra coisa. No fundo, porém, sempre foi assim, sempre houve desses inúteis acomodados e paradões, que tratam de jus­tificar sua proximidade de algum modo superastucioso, de prefe­rência por parentesco, e sempre tiveram o nariz todo cheio de faro, mas o resultado de tudo é que continuam a estar aí. Toda a diferença é que aos poucos eu os reconheci, sei distinguir seus focinhos; antes eu acreditava que eles aqui se reuniam vindos pouco a pouco de todos os lados, que as dimensões do caso iriam aumentar, forçando, por si mesmas, uma decisão; hoje acredito saber que tudo isso já estava aí desde antigamente, pouco ou nada tendo a ver com uma tomada de decisão. E a própria deci­são, por que a denomino eu com uma palavra tão grandilo­qüente? Se um dia — e certamente não será amanhã, nem depois de amanhã, provavelmente não será nunca — vier a acon­tecer que a esfera pública chegue a se ocupar com essa questão (para a qual, como repetirei sempre, ela não é competente), não sairei ileso do processo, mas por certo há de se levar em conta o fato de que não sou um total desconhecido na esfera pública, que desde sempre vivo à sua luz, todo confiante e merecedor de confiança; por isso é que essa mulherzinha doente, surgida tardiamente — mulherzinha que, diga-se de passagem, um outro que não eu talvez há muito já tivesse comparado a um pega-pega e, sem fazer alarde disso diante da esfera pública, teria esmigalhado debaixo do seu tacão —, ela, na pior das hipóte­ses, apenas poderia acrescentar um pequeno e horrível garran­cho ao diploma no qual a esfera pública há tempos já me declara seu respeitável membro. Este é o estágio atual das coisas — pouco tendendo, portanto, a me intranqüilizar.

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Que com os anos eu tenha ficado um pouco inquieto não tem nada a ver com o significado propriamente dito da questão; simplesmente a gente não consegue se agüentar, começa-se a ficar — de certo modo apenas fisicamente — à espera de deci­sões, mesmo que racionalmente não se acredite muito nelas. Em parte se trata, porém, apenas de um sintoma de velhice; a juventude reveste tudo agradavelmente; detalhes menos belos perdem-se na incessante fonte da juventude; mesmo que alguém, quando jovem, tenha tido um olhar bastante espreitador, isso não foi levado a mal, não foi sequer notado, nem mesmo por ele próprio; mas o que sobra na velhice são resíduos: cada um deles é necessário, nenhum é renovado, todos ficam sob observa­ção — e o olhar espreitador de um homem que esteja envelhe­cendo é um olhar claramente de voyeur: e não é difícil percebê-lo. Apenas que aqui também não se trata, no entanto, de uma piora real e efetiva.

Portanto, de onde quer que eu observe isso, sempre de novo se mostra — e a isso é que me atenho — que, se eu conse­guir manter essa pequena questão apenas um pouco encoberta com a mão, também poderei continuar por muito tempo sem ser perturbado pelo mundo, continuar tranqüilamente essa vida que tenho levado até agora, apesar de toda a agitação dessa mulherzinha.

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Nas galerias

Se uma decadente e tuberculosa amazona qualquer se pusesse durante meses, sem interrupção, no picadeiro de um circo, a dar voltas em círculo sobre um cavalo ondulante, diante de um público incansável, tangida por um chefe a vibrar impla­cável seu chicote, com ela em cima do cavalo a soltar silvos, jogar beijos, rebolar as cadeiras, e se essa brincadeira fosse con­tinuada sob o ininterrupto fragor da orquestra e dos ventilado­res, na direção de um futuro a se inaugurar cada vez mais cin­zento, acompanhada por ondas de aplausos a decrescer e nova­mente crescer como autênticos martelos a vapor — talvez um jovem espectador descesse então correndo todos os degraus da longa escadaria, talvez ele se precipitasse para dentro do pica­deiro e gritasse um "parem!" por entre as fanfarras da sempre adequada orquestra.

Já que, no entanto, não é assim — uma bela dama, branca e vermelha, entra voando por entre os cortinados que orgulho­sos lacaios abrem diante dela; o diretor, buscando sequioso seus olhos, resfolega em sua direção como um cãozinho, ergue-a orgulhoso sobre o cavalo malhado, como se ela fosse sua neta predileta prestes a iniciar perigosa viagem: ele não consegue deci­dir-se a dar o sinal com o chicote; por fim, dominando-se, dá o sinal com um estalo; boquiaberto corre ao lado do cavalo; segue com olhar penetrante os saltos da amazona; mal consegue con-

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ceber sua habilidade; procura aconselhá-la com exclamações inglesas; adverte furibundo aos palafreneiros que seguram os arcos para que prestem a máxima atenção; com as mãos ergui­das conclama, antes do grande salto mortal, que a orquestra faça silêncio; e finalmente soergue a pequena do trêmulo corcel, beija-a em ambas as faces e não lhe parece jamais suficiente qualquer ovação do público, enquanto ela mesma, nele apoiada, erguida na ponta dos pés e envolta em pó, com os braços esten­didos, a cabecinha inclinada para trás, procura partilhar sua feli­cidade com o circo inteiro — já que isso é assim, o espectador das galerias reclina o rosto no parapeito e, imerso na marcha triunfal como num sonho sombrio, chora sem saber.

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Um artista da fome

O interesse por faquires decaiu muito nos últimos decênios. Enquanto antigamente era bastante compensador organizar por conta própria grandes apresentações desse tipo, hoje isso é com­pletamente impossível. Os tempos eram outros. Naquela época toda a cidade se ocupava com o artista da fome: dia após dia do jejum, crescia a participação popular; cada um queria ver o artista ao menos uma vez por dia; nos últimos dias havia assi­nantes de permanentes que ficavam dias seguidos sentados em frente à pequena jaula; mesmo à noite eram feitas visitas, com a luz de archotes ampliando os efeitos; nos dias de tempo bom a jaula era levada para o ar livre, sendo então o jejuador exi­bido especialmente às crianças; enquanto para os adultos ele fre­qüentemente era apenas uma diversão, da qual participavam em parte só porque estava na moda, as crianças olhavam assom­bradas, de boca aberta, uma segurando por garantia a mão da outra, vendo como ele, pálido, em malha preta, com as costelas fortemente marcadas, desdenhando até mesmo um recosto, assentava-se sobre palha esparsa, acenando às vezes polidamente e sorrindo com esforço, e respondia a perguntas, chegando a estender o braço através das grades para que sua magreza fosse apalpada, mas depois mergulhava de novo totalmente em si mesmo, não se preocupando com ninguém, nem sequer com as batidas do relógio, relógio tão importante para ele e acessório

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único da jaula, e ele só ficava fitando fixamente com os olhos quase cerrados, bebericando de quando em vez de um minús­culo copo para umedecer os lábios.

Além dos espectadores ocasionais, havia também vigias permanentes, escolhidos pelo público e que, curiosamente, em geral eram açougueiros: sempre três ao mesmo tempo, tinham por tarefa observar dia e noite o jejuador, para verificar se ele, de algum modo oculto e secreto, chegava a se alimentar. Isso era, porém, apenas mera formalidade, introduzida para acal­mar as massas, pois os iniciados sabiam que, durante o período de jejum, o artista da fome jamais, sob circunstância nenhuma, mesmo sob coação, teria comido a mínima coisa — a honra de sua arte o proibia. É claro que nem todo vigia era capaz de entender isso: às vezes havia grupos de vigilância noturna que exerciam a vigília com muita displicência, sentando-se proposita­damente num cantinho distante e lá mergulhando num jogo de cartas, com o evidente propósito de permitir ao jejuador fazer uma boquinha, coisa que, na opinião deles, ele podia levar a cabo lançando mão de secretas provisões. Nada atormentava tanto o artista da fome quanto tais guardas; eles o deixavam deprimido; faziam com que o jejuar se tornasse terrivelmente pesado e penoso; às vezes ele superava sua fraqueza e, enquanto podia, cantava durante a vigília para demonstrar às pessoas como era injusto suspeitarem dele. Mas isso de pouco adianta­va: eles então apenas se admiravam de sua habilidade de ao mesmo tempo comer e cantar. Eram-lhe preferíveis os vigias que se sentavam bem junto à grade e, não se contentando com a lúgubre iluminação noturna do recinto, focavam-no com lan­ternas portáteis que o empresário colocava à disposição. A luz intensa não o perturbava nem um pouco; embora ele não pudesse dormir nada, sempre conseguia cochilar um pouco sob qual­quer luminosidade e a qualquer hora, mesmo no salão superlo­tado e barulhento. Estava muito disposto a passar sem dormir a noite toda com esses vigias; estava disposto a gracejar com eles, contar-lhes histórias de sua vida errante, depois escutar his­tórias deles, tudo só para mantê-los acordados, para poder mos­trar-lhes sempre de novo que nada de comestível havia na jaula e que ele jejuava como nenhum deles seria capaz. Mas ele ficava

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mais feliz quando afinal chegava a manhã, e era trazido para os vigias, por sua conta, um desjejum bem farto e variado, sobre o qual eles se lançavam com o apetite de homens sadios após uma noite de laboriosa vigília. É verdade que havia pes­soas que inclusive queriam ver nesse desjejum uma indevida ten­tativa de corrupção dos guardas, mas isso era ir longe demais, c quando se perguntava a elas se porventura queriam assumir a vigia noturna em nome da causa e sem o café da manhã, tor­ciam a cara e tiravam o corpo fora, mas mesmo assim manti­nham suas suspeitas.

Isso já fazia, porém, parte das suspeitas não mais separá-veis da profissão de jejuador. Ninguém estava em condições de passar ininterruptamente todos os dias e noites junto ao artista da fome; portanto, ninguém podia saber, por observação pes­soal, se realmente havia sido jejuado ininterruptamente, sem falha alguma; só o próprio jejuador podia saber isso, somente ele podia ser, por conseguinte, considerado ao mesmo tempo o espectador plenamente satisfeito com seu jejum. Mas ele, de novo por um outro motivo, jamais estava satisfeito: talvez nem sequer estivesse tão emagrecido por causa do jejuar (a ponto de muitos, para sua lástima, terem de se manter longe das exibi­ções, pois não suportavam olhar para ele), talvez ele só estivesse tão magro por insatisfação consigo mesmo. É que só ele sabia — só ele e mais nenhum iniciado sabia disso — como era fácil jejuar. Era a coisa mais fácil do mundo. Ele inclusive não ocul­tava isso, mas não acreditavam nele: na melhor das hipóteses, era considerado modesto, mas em geral era considerado um con­tador de lorotas ou até mesmo um farsante, para o qual passar fome era, no entanto, fácil, pois sabia como torná-lo fácil, tendo ainda por cima tinha o topete de quase confessá-lo. Tudo isso tinha ele de engolir e, com o correr dos anos, até havia se acos-tumado, mas essa insatisfação sempre o roía por dentro e nun-ca, após qualquer período de jejum — tal crédito era preciso conceder-lhe —, chegara a deixar espontaneamente a jaula. O empresário havia fixado em quarenta dias o prazo máximo do jejum, mais que isso ele jamais permitia jejuar, mesmo nas gran­des metrópoles, e por uma boa razão. De acordo com a experi ência, por cerca de quarenta dias podia-se espicaçar cada vez

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mais o interesse de uma cidade por meio de uma propaganda gradativamente ativada, mas depois o público fraquejava, podia-se constatar uma substancial redução no comparecimento; natu­ralmente existiam, nesse aspecto, pequenas diferenças entre as cidades e entre os países, mas em regra quarenta dias era o limite máximo. Por isso, no quadragésimo dia, o portão da jaula enfeitado de flores era, então, aberto, uma platéia entusiasmada enchia o anfiteatro, uma banda militar tocava, dois médicos entravam na jaula para efetuar as necessárias mensurações no artista da fome, os resultados eram anunciados ao público atra­vés de um megafone e, por fim, duas jovens damas, felizes por terem sido justamente elas as sorteadas, pretendiam ajudar o faquir a descer alguns degraus até onde, sobre uma pequena mesinha, estava servida uma refeição de doente cuidadosamente preparada. E, nesse momento, o artista da fome sempre resistia. É verdade que ele ainda colocava voluntariamente seus braços ossudos nas mãos estendidas, prontas para ajudar, das damas sobre ele inclinadas, mas levantar-se ele não queria. Por que parar exatamente agora, após quarenta dias? Ele teria ainda agüentado por muito tempo, por um período ilimitado; por que parar justamente agora, quando estava no melhor do jejum, quando ainda nem sequer estava no melhor do jejum? Por que pretendiam privá-lo da glória de continuar passando fome, de se tornar não só o maior jejuador de todos os tempos — o que ele provavelmente já era —, mas ser inclusive ainda capaz de superar a si mesmo até o inconcebível, pois não sentia limites para sua capacidade de jejuar? Por que será que essa multidão, que fingia admirá-lo tanto, tinha tão pouca paciência com ele? Se ele agüentava continuar jejuando, por que ela não suporta­va? Além disso, ele estava cansado, muito bem acomodado na palha, e agora queriam que endireitasse o corpo todo, ficasse de pé, e andasse até a comida, comida que, só de pensar, cau­sava-lhe engulhos, cuja exteriorização ele só a custo reprimia em consideração às damas! E ele olhava nos olhos dessas moças tão amáveis na aparência, na verdade tão cruéis, e balançava a cabeça, demasiado pesada para o débil pescoço. Mas daí aconte­cia o que sempre acontecia. O empresário chegava e, calado (a música tornava impossível qualquer discurso), erguia os braços

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por cima do artista da fome, como se convidasse os céus a con­templarem mais uma vez sua obra aí em cima da palha, esse mártir digno de comiseração — mártir que o artista da fome efe­tivamente era, só que num sentido bem diverso —: agarrava o artista da fome em torno da cintura delgada, com um cuidado hiperbólico, com o qual procurava fazer acreditar que estava lendo de lidar com algo muito frágil; e — não sem sacudi-lo um pouco às escondidas, de tal modo que o artista da fome balançasse descontrolado de um lado para o outro com as per­nas e o tronco — tornava a entregá-lo para as jovens damas que, entrementes, tinham ficado mortalmente pálidas. Agora o artista da fome tolerava tudo: com a cabeça caída sobre o pei­to, era como se tivesse rolado e ali inexplicavelmente permane­cesse; o corpo estava como que esvaziado; as pernas, no instinto de autoconservação, comprimiam-se uma contra a outra à altura dos joelhos, mas raspavam no entanto o chão como se ele não fosse de verdade, como se ainda procurassem o verdadeiro; e o peso todo do corpo, embora bastante reduzido, recaía sobre uma das damas que, buscando ajuda e com a respiração ofe-gante — assim ela não havia se imaginado esse cargo honorífi­co! —, primeiro esticava ao máximo o pescoço para ao menos proteger e preservar o rosto do contato com o artista da fome, mas depois, já que não conseguia isso e a sua colega, mais feliz que ela, não a socorria (contentando-se com transportar trêmula a mão do jejuador, esse diminuto feixe de ossos, sob o riso deli­ciado da sala), rompia em prantos, tendo de ser substituída por um criado adrede já disposto para isso. Em seguida vinha a refei­ção, da qual o empresário fazia o artista da fome ingerir um pouco durante uma semidormência parecida com um desmaio, em meio a uma divertida patacoada, que servia para desviar a atenção quanto ao estado do artista da fome; em seguida erguia-se ainda um brinde ao público, um brinde supostamente suge­rido pelo artista da fome ao empresário; a orquestra reforçava tudo isso com uma grande fanfarra e todos se dispersavam, sem que ninguém tivesse o direito de ficar insatisfeito com o que havia visto: ninguém, exceto o artista da fome, sempre apenas ele.

Assim ele viveu por muitos e muitos anos, com pequenas pausas regulares de descanso, num resplendor aparente, respei-

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tado pelo mundo, mas, apesar de tudo, geralmente num estado de ânimo sombrio, que se tornava cada vez mais sombrio por ninguém levá-lo a sério. Aliás, como é que se poderia consolar o artista? O que lhe restava almejar? E se uma vez algum bem-intencionado se compadecesse dele querendo explicar-lhe que sua tristeza provavelmente provinha do jejuar, podia ocorrer — especialmente no estágio avançado do jejum — que o artista reagisse com um acesso de fúria, passando a sacudir as grades como um animal, para susto de todos. O empresário tinha, no entanto, para tais situações um castigo que gostava de aplicar. Desculpava o artista perante o público aí reunido, reconhecia que só a irritabilidade provocada pelo jejum — algo não muito compreensível para pessoas bem-alimentadas — poderia tornar perdoável o comportamento do artista da fome; nesse contexto, acabava referindo-se inclusive à assertiva do artista, assertiva a ser igualmente esclarecida, de que ele seria capaz de jejuar por ainda mais tempo do que estava jejuando; louvava tão elevada aspiração, a boa vontade, a grande negação de si mesmo que, por certo, também estavam contidas nessa assertiva, procurava, no entanto, refutá-la em seguida, simplesmente exibindo foto­grafias — que nesse ínterim estavam sendo vendidas —, pois nas fotos via-se o artista da fome no leito, no quadragésimo dia do jejum, quase morto de inanição. Essa distorção da verdade, ainda que já bem conhecida pelo artista da fome, mas sempre de novo enervante, era demais para ele. O que decorria do encer­ramento prematuro do jejum era apresentado como sua causa! Contra tamanha falta de compreensão, contra tal mundo de incompreensão era impossível lutar. Ainda que reiteradamente ele tivesse, junto às grades, escutado de boa-fé o empresário, quando apareciam as fotografias ele, no entanto, largava toda vez as grades, tornava a mergulhar soluçando na palha, e o público acalmado podia aproximar-se novamente e examiná-lo.

Quando as testemunhas de tais cenas voltavam a lembrar-se disso alguns anos mais tarde, muitas vezes não conseguiam mais entender a si mesmas. Pois entrementes já havia ocorrido a referida mudança; ela havia ocorrido quase de repente; talvez houvesse motivos mais profundos, mas quem iria tratar de des­cobri-los? Em todo caso, um dia o mimadíssimo artista da

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fome viu-se abandonado pelas multidões ávidas de diversão que preferiam afluir para outros espetáculos. Ainda uma vez c empresário percorreu com ele metade da Europa, para ver se aqui e acolá não se reencontrava o antigo interesse; tudo em vão; como que por um tácito acordo, por toda parte havia se cristalizado uma direta repulsa contra a exibição da fome. Natu-ralmente isso não podia, na realidade, ter ocorrido de modo tão súbito e, agora, a posteriori, relembravam-se muitos presságios que, à época da embriaguez do triunfo, não haviam sido suficien-temente respeitados nem suficientemente reprimidos; mas agora já era tarde demais para fazer qualquer coisa quanto a isso. É claro que, com toda a certeza, os tempos de passar fome ainda voltariam um dia, mas isso não era consolo nenhum para aque­les que agora viviam. Mas o que tinha de fazer agora um artista da fome? Quem fora aclamado por milhares não podia exibir-se em barracas nas pequenas feiras anuais e, para adotar uma outra profissão, o artista não só estava velho demais, mas sobre­tudo demasiado fanaticamente entregue ao jejuar. Assim sen­do, ele dispensou então o empresário, o companheiro de uma incomparável carreira, e aceitou empregar-se num grande circo; para poupar sua suscetibilidade, nem sequer olhou as condições contratuais.

Um grande circo, com seus inúmeros homens, animais e aparelhos sempre a se compensarem e complementarem, pode utilizar qualquer sujeito a qualquer momento, até mesmo um artista da fome (se, naturalmente, as pretensões dele forem modestas); e, além disso, nesse caso em especial, não era contra­tado apenas o artista, mas também seu antigo e renomado nome; de fato, dada a peculiaridade de sua arte — que não diminuía com o correr da idade —, não se podia afirmar que o veterano artista pretendia refugiar-se num posto tranqüilo de circo por não estar mais no auge de suas habilidades; ao contrá­rio, o artista da fome garantia que — e isso era plenamente digno de fé — continuava jejuando tão bem quanto antes; decla­rava inclusive que, caso o deixassem fazer sua vontade — e isso logo lhe foi prometido —, agora sim é que iria deixar o mundo em justo espanto, declaração que, em vista da mentalidade da época (que, em seu zelo, o artista da fome esquecia com facili-

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dade), apenas provocou, no entanto, um leve sorriso entre os especialistas.

Mas, no fundo, o jejuador também não chegava a perder de vista as condições reais e encarou com naturalidade não ter sido colocado com sua jaula, como número apoteótico, no cen­tro do picadeiro, mas sim fora, num lugar aliás bastante acessí­vel, situado perto dos estábulos. Grandes cartazes coloridos emolduravam a jaula e anunciavam o que nela havia para ser visto. Quando o público, nos intervalos do espetáculo, acorria às estrebarias para dar uma olhada nos animais, era quase inevi­tável que passasse em frente ao artista da fome e parasse um pouco; talvez as pessoas permanecessem ali por mais tempo, se aquelas que vinham atrás, sem entender essa parada a caminho das almejadas estrebarias, não tornassem impossível uma obser­vação mais detida e tranqüila. Essa também era a razão pela qual, por sua vez, o artista da fome tremia ante esses momen­tos de visitação, que ele naturalmente desejava enquanto meta de vida. Nos primeiros tempos ele mal podia esperar as pausas entre as apresentações; dirigia, encantado, o olhar para a multi­dão que se aproximava, até que logo — nem mesmo o mais per-tinaz e quase inconsciente auto-engodo resistia à experiência — se convenceu de que, quanto à meta, eram todos sempre de novo, sem exceção, apenas visitantes das estrebarias. E esse olhar a distância continuava sendo sempre ainda o mais bonito. Pois assim que os visitantes se aproximavam dele. logo o envolviam a gritaria e a xingação dos partidos que ininterruptamente sem­pre de novo se formavam: o partido daqueles que — em pouco tempo este se tornou o mais penoso para o artista da fome — queriam contemplá-lo comodamente, não por compreensão, mas por capricho e teimosia, e o partido daqueles que primeiro só queriam ir até as estrebarias. Tendo passado a turba maior, chegavam então os retardatários, mas mesmo estes, aos quais nada mais impedia de ficarem parados tanto quanto quisessem, apressavam-se em passar a passos largos, quase sem olhar para o lado, para chegarem em tempo até os animais. E não era um feliz acaso muito freqüente que um pai de família viesse com sua prole, apontasse com o dedo para o artista da fome e falasse dos tempos pretéritos, quando ele presenciara apresentações

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semelhantes, mas incomparavelmente mais grandiosas e, então, as crianças, por causa de seu preparo insuficiente na escola e na vida, continuavam sem entender — o que era, para elas, pas­sar fome? —, mas traíam no brilho de seus olhos perscrutado-res algo dos novos tempos, dos tempos vindouros, tempos mais clementes. Talvez — assim dizia às vezes para si mesmo o artista — tudo efetivamente ficasse um pouco melhor se seu local de exibição não fosse tão perto das estrebarias. Assim como estava, a escolha tornava-se demasiado fácil para as pessoas, sem falar que as emanações dos estábulos, a inquietação dos animais à noite, o transporte dos pedaços de carne crua para os felinos, os rugidos durante a alimentação, deixavam-no muito pertur­bado e permanentemente deprimido. Mas ele não ousava reivin­dicar algo junto à direção; mesmo assim, agradecia aos animais a multidão de visitantes, entre os quais se podia encontrar, aqui e acolá, algum destinado a ele; e como conseguir saber onde seria enfiado, caso quisesse fazer lembrar sua existência e, com isso, pensando bem, lembrar que era apenas um obstáculo no caminho para as estrebarias.

De qualquer modo um pequeno obstáculo, um obstáculo cada vez menor. As pessoas se acostumavam à estranheza de se querer, nos tempos atuais, chamar a atenção para um artista da fome e, com isso, já estava lavrada a sentença contra ele. Podia jejuar tão bem quanto quisesse — e ele o fazia —, mas nada mais poderia salvá-lo: passava-se direto por ele. Tente explicar a alguém a arte de passar fome! Para quem não sente isso, para esse não se pode explicar. Os belos cartazes ficaram sujos e ilegí­veis, foram arrancados, a ninguém ocorreu substituí-los; a pequena tabela com o número dos dias de jejum completados, que nos primeiros tempos era cuidadosamente renovada a cada dia, conti­nuava há muito já sempre a mesma, pois após as primeiras sema­nas inclusive esse pequeno trabalho havia se tornado uma cha­tura; e, assim, o artista continuou de fato a jejuar, como antiga­mente ele uma vez sonhara, e isso lhe era possível exatamente assim, sem esforço, como ele outrora o previra; mas ninguém contava os dias, ninguém, nem sequer o próprio artista da fome sabia qual já era a dimensão de seu feito, e seu coração tornou-se pesaroso. E se, nessa época, um folgadão qualquer se detinha,

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fazendo gozações sobre o velho número e pondo-se a falar de embuste, esta seria, nesse sentido, a mais estúpida mentira que a indiferença e a maldade inata poderiam inventar, pois não era o artista da fome quem fraudava — ele trabalhava com honesti­dade —, mas o mundo é que o enganava quanto a seus méritos.

Passaram-se ainda muitos dias, e também isso chegou ao fim. Certa vez um inspetor notou a jaula e perguntou aos ser­ventes por que se deixava aí parada, sem uso, essa jaula perfei­tamente aproveitável, com palha podre dentro; ninguém sabia, até que um deles, com a ajuda da tabuleta, lembrou-se do artista da fome. A palha foi levantada com pedaços de pau e, dentro dela, encontrou-se o artista.

— Você continua jejuando? — perguntou o inspetor. Quando é que você finalmente vai parar?

— Desculpem-me todos — sussurrou o artista da fome; só o inspetor, que estava com o ouvido colado às grades, conse­guia entendê-lo.

— É claro — disse o inspetor, e colocou o dedo junto à testa para indicar, com isso, o estado mental do artista — nós perdoamos você.

— Eu sempre quis que vocês admirassem meu jejum — disse o artista da fome.

— E nós também admiramos — disse o inspetor com sim­patia.

— Mas vocês não deviam admirar — disse o artista. — Ora, então nós também não admiramos — disse o inspe­

tor —, mas por que, afinal de contas, não devíamos admirar? — Porque eu tenho de jejuar, não posso fazer diferente

— disse o artista da fome. — Mas veja só isso — disse o inspetor. — Por que é que

você não pode fazer diferente? — Porque eu — disse o artista da fome, levantando a

minúscula cabeça e falando com os lábios em bico, como se fosse beijar, diretamente no ouvido do inspetor, para que nada se perdesse —, porque eu não pude achar comida que me agra­dasse. Se tivesse encontrado, acredite, eu não teria feito cerimô­nia e teria enchido a barriga, como você e todo o mundo.

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Estas foram suas últimas palavras, mas em seus olhos alquebrados persistia ainda a firme convicção, só que não mais orgulhosa, de que teria continuado jejuando.

— Mas agora ponham isso em ordem! — comandou o ins­petor, e o artista da fome foi enterrado junto com a palha.

Na jaula foi, porém, colocado um jovem macho de pante­ra. Até mesmo para o senso mais embotado era um sensível alí­vio ver esse animal selvagem a dar voltas na jaula por tanto tempo deserta. Nada lhe faltava. Sem muito pestanejar, os trata­dores traziam o alimento que lhe apetecesse; nem mesmo da liberdade parecia sentir falta esse nobre corpo, provido de todo o necessário até quase estourar, dando a impressão de carregar consigo inclusive a liberdade: ela parecia estar escondida em algum lugar de suas mandíbulas; e a alegria de viver brotava com tal intensidade de sua garganta que para os espectadores não era fácil não recuar diante disso. Mas eles se controlavam, apinhavam-se ao redor da jaula e de jeito nenhum queriam sair dali.

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Josefina, a cantora, ou O povo dos ratos

Nossa cantora se chama Josefina. Quem não a ouviu não conhece o poder do canto. Não há ninguém a quem seu canto não arrebate, e isso deve ser ainda mais valorizado na medida em que em geral nossa raça não ama a música. Silenciosa paz é nossa música predileta; para nós a vida é dura, e mesmo quando procuramos nos livrar de vez de todas as preocupações cotidianas, já não sabemos mais elevar-nos a coisas tão distan­tes de nossa vida diária como a música. Mas não lamentamos muito isso; nem sequer chegamos a tanto; uma certa astúcia prá­tica — da qual evidentemente precisamos com a maior premên-cia —, é isso que consideramos ser nossa maior vantagem; e é com o suave sorriso dessa astúcia que costumamos nos consolar de tudo, mesmo que alguma vez (o que, no entanto, não ocor­re) aspirássemos à felicidade que talvez emane da música. Somente Josefina constitui uma exceção; ela ama a música e também sabe transmiti-la; é a única; quando falecer, a música desaparecerá — quem sabe por quanto tempo — de nossas vidas.

Já andei meditando com freqüência sobre o que de fato ocorre com essa música. Pois somos completamente amusicais; como é que entendemos o canto de Josefina ou, já que Josefina nega que entendamos, como é que ao menos acreditamos enten­der? A resposta mais simples seria que o encanto desse canto é tão imenso que nem mesmo o sentido mais embotado é capaz

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de resistir a ele, mas essa resposta não é satisfatória. Se real­mente assim fosse, seria preciso ter diante desse canto, de uma vez por todas, a sensação do extraordinário, a sensação de que dessa garganta ressoa algo jamais ouvido antes, algo que nós inclusive nem sequer temos a capacidade de ouvir, algo para o qual só essa Josefina e ninguém mais nos capacita. Mas, na minha opinião, é exatamente isso o que não ocorre; eu não o sinto, e também não notei nada semelhante nos outros. Em cír­culos íntimos, admitimos entre nós que o canto de Josefina não representa nada de extraordinário enquanto canto.

Será que é, afinal, realmente um canto? Apesar de toda a nossa não-musicalidade, temos tradição de canto; nos tempos idos de nosso povo, havia canto; sagas falam disso, e até certas cantigas foram conservadas, cantigas que, é claro, ninguém mais sabe cantar. Temos, portanto, uma certa noção daquilo que seja canto e, a rigor, a arte de Josefina não corresponde a tal noção. Será que é, afinal, realmente um canto? Será que não é, talvez, tão-somente um assobio? E, no entanto, assobiar todos nós sabemos, esse é um autêntico talento de nosso povo, ou melhor, nem sequer um talento, mas uma expressão caracterís­tica da vida. Todos nós assobiamos, mas certamente ninguém pretende passar isso por arte; damos nossas assobiadas sem sequer prestar atenção nelas, sim, sem sequer notar, e entre nós inclusive há muitos que nem sequer sabem que assobiar pertence às nossas peculiaridades. Se, portanto, fosse verdade que Jose­fina nem sequer canta mas apenas assobia, e que, como ao menos me parece, talvez mal vá além das fronteiras do assobiar costumeiro — sim, talvez suas forças nem sequer bastem plena­mente para essa assobiação habitual, enquanto um comum tra­balhador da terra efetua isso sem esforço o dia todo ao longo de seu labor —, se tudo isso fosse verdadeiro, então o suposto talento artístico de Josefina estaria de fato refutado, mas daí sim é que ainda mais restaria por resolver o enigma de seu grande sucesso. .

Mas não é exatamente apenas assobio aquilo que ela pro­duz. Quando nos colocamos a uma boa distância dela e a escu­tamos ou, melhor ainda, quando fazemos um teste nesse sentido (se, portanto, Josefina canta, digamos, em meio a outras vozes

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e nos propomos a tarefa de identificar sua voz), então inegavel­mente não se escuta outra coisa senão um trinado comum, no máximo a se destacar um pouco por sua delicadeza ou debili­dade. Mas caso estejamos em frente a ela, então não é apenas um assobio: para entender sua arte é necessário não só ouvi-la, mas também vê-la. Mesmo que fosse apenas nosso assobio coti­diano, mesmo assim já existe nele, desde o início, a singulari­dade de alguém pôr-se de modo solene a não fazer outra coisa que não o trivial. Quebrar nozes não é, realmente, nenhuma arte; por isso ninguém há de ousar reunir um público e, para entretê-lo, dispôr-se a quebrar nozes diante dele. Se, mesmo assim, ele o fizer e alcançar êxito em seu propósito, então não pode tratar-se tão-somente de um quebrar nozes. Ou então se trata de um quebrar nozes e acaba se revelando que não havía­mos percebido essa arte porque a dominávamos completamente, arte que esse novo quebrador de nozes é o primeiro a nos mos­trar em sua autêntica essência, quando até poderia ser útil à impressão causada se ele fosse um pouco menos hábil em que­brar nozes do que a maioria de nós.

Talvez algo semelhante ocorra com o canto de Josefina; nela admiramos algo que não admiramos nem um pouco em nós; aliás, quanto a isso, ela está de pleno acordo conosco. Eu estava uma vez presente quando alguém — isso ocorre, natural­mente, com freqüência — chamou a atenção dela para a genera­lizada assobiação do povo, e o fez de modo bem discreto, mas para Josefina isso já foi demais. Jamais vi uma risada tão debo­chada, tão arrogante quanto a dela; ela, que externamente é a própria delicadeza em pessoa, acentuadamente delicada mesmo num povo tão rico quanto o nosso em semelhantes figuras femi­ninas, pareceu claramente mesquinha naquela ocasião; com sua imensa sensibilidade, ela logo pôde, aliás, sentir isso e controlar-se. Em todo caso, ela nega, em suma, qualquer relação entre a sua arte e o assobiar. Para os que forem de opinião contrária ela tem apenas desprezo e, provavelmente, inconfesso ódio. Isso não é vaidade comum, pois tal oposição, a que eu também per­tenço, com certeza, não a admira menos do que a multidão; mas Josefina não quer ser apenas admirada, ela quer ser admi­rada exatamente do modo por ela definido: mera admiração

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não lhe diz nada. E, quando se está sentado no público diante dela, consegue-se entendê-la; oposição só se faz a distância; quando se está sentado diante dela, sabe-se: o que ela está asso­biando não é um assobiar.

Já que assobiar pertence a nossos hábitos espontâneos, poder-se-ia supor que o público de Josefina também assobia; com sua arte nos sentimos bem e, quando nos sentimos bem, nós assobiamos; mas o público dela não assobia, nem um rato bole, como se partilhássemos de almejada paz, paz da qual nosso próprio assobio no mínimo nos apartaria e, portanto, calamos. Será que é seu canto o que nos encanta ou, ao contrá­rio, a solene calma a envolver sua débil e frágil voz? Aconteceu uma vez que, durante a cantoria de Josefina, um tipinho idiota qualquer também começou a assobiar, na maior inocência. Ora, era exatamente o mesmo que também ouvíamos de Jose­fina: lá na frente, o assobio ainda tímido, apesar de toda a prá­tica, e cá no auditório, a assobiação infantil e inconsciente; teria sido impossível apontar diferenças; mas, com sibilos e assobios, nós logo liqüidamos o perturbador, mesmo que isso nem sequer fosse necessário, pois de qualquer modo ele certamente se teria escondido de medo e vergonha, enquanto Josefina ensaiava sua assobiação triunfal e, completamente fora de si, estendia os bra­ços e esticava o pescoço até não mais poder.

Aliás, ela é sempre assim: qualquer ninharia, qualquer inci­dente, qualquer bulha, um estalido no assoalho, um ranger de dentes, uma falha na iluminação, ela os considera até convenien­tes para aumentar a eficácia de seu canto; em sua opinião, ela canta para ouvidos moucos; entusiasmo e aplausos não lhe fal­tam, mas há muito ela já aprendeu a desistir do verdadeiro entendimento, tal como ela o entende. Por isso é que todas as perturbações lhe vêm muito a propósito: tudo o que, de fora, se contrapõe à pureza de seu canto acaba sendo, em rápida dis­puta, até mesmo sem disputa, derrotado tão-somente através da contraposição, podendo servir para acordar a multidão, para ensinar-lhe, talvez, não compreensão, porém instintivo respeito.

Mas se o pequeno já assim lhe serve, ainda mais o grande Nossa vida é muito intranqüila, cada dia traz surpresas, temo-res, esperanças e sustos, de tal modo que o sujeito não seria

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capaz de suportar tudo isso se não tivesse a todo momento, dia e noite, o apoio dos companheiros; mas, mesmo assim, a vida com freqüência se torna bastante difícil; às vezes inclusive mil ombros tremem sob a carga que, a rigor, se destinava a apenas um. Josefina considera então chegada a sua hora. Ela está logo aí, delicado ser vibrando assustadoramente, sobretudo na parte debaixo do peito; é como se ela tivesse reunido toda a sua força no canto, como se tudo o que nela não sirva de modo imediato ao canto fosse privado de toda energia, de quase toda e qual­quer possibilidade de vida; como se ela estivesse despojada, abandonada, entregue apenas à proteção dos bons espíritos; como se ela pudesse — enquanto, despojada de si mesma, habita seu canto — ser morta por um hálito frio que por aí perpassasse. Mas é justamente diante dessa visão que nós, seus supostos opo­sitores, costumamos dizer uns aos outros: "Ela nem sequer sabe assobiar; ela precisa esforçar-se tremendamente para conse­guir extrair de si não um canto — não falemos de canto —, mas, até certo ponto, o usual assobio da terra". Assim nos parece; essa é, no entanto, como já foi aventado, uma impres­são talvez inevitável, mas superficial e muito fugaz. Em breve também nós mergulhamos no sentimento da massa que, cálida, corpo a corpo, calada escuta, com medo até de respirar.

E para reunir em torno de si tal multidão, desse nosso povo quase sempre em movimento, a zunir para lá e para cá por motivos nem sempre muito claros, Josefina em geral não precisa fazer outra coisa senão, com a cabecinha jogada para trás, a boca semi-aberta, os olhos voltados para o alto, assumir a postura que indica que pretende cantar. Ela pode fazer isso onde quiser, não precisa ser um lugar visível de longe; um recanto escondido qualquer, escolhido ao acaso do capricho momentâ­neo, é igualmente aproveitável. A notícia de que ela quer cantar logo se espalha e bem depressa procissões para ali se dirigem. Ora, por vezes surgem obstáculos, pois Josefina prefere cantar justamente em épocas agitadas, quando múltiplos deveres nos obrigam a diversificados caminhos, não sendo então possível nos reunirmos, ainda que tenhamos a maior das boas vontades, tão depressa quanto o deseja Josefina, e talvez ela permaneça alguma vez, por um tempo, em sua grandiosa postura e sem

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um número suficiente de ouvintes — então ela fica, é claro, furi-bunda, bate com o pezinho no chão, xinga de um modo bas­tante impróprio a moças, chega até a morder. Mas mesmo um comportamento desses não prejudica sua fama; ao invés de redu­zir um pouco suas exigências, há um esforço no sentido de atendê-las; mensageiros são enviados para convocar ouvintes; mantém-se diante dela segredo de que isso esteja acontecendo; nos caminhos ao redor vêem-se, por toda parte, colocadas senti-nelas que fazem gestos para os que estão chegando, a fim de que se apressem; isso durante um tempo suficiente para, por fim, estar então reunido um número razoável de ouvintes.

O que impele o povo a se esforçar tanto por Josefina? Per­gunta não menos difícil de responder do que aquela relativa ao canto de Josefina, com a qual também está, afinal, relacionada. Seria possível riscá-la e fundi-la com a segunda questão, caso fosse possível, por exemplo, afirmar que, por causa do canto, o povo está incondicionalmente entregue a Josefina. Mas certa­mente não é esse o caso; devoção incondicional o nosso povo mal conhece; esse povo que, acima de tudo, ama a astúcia ainda que sem maldade, o mexerico infantil, o fofocar embora ino­cente e que acaba só movimentando lábios — um povo desses não pode, de jeito nenhum, entregar-se incondicionalmente: até Josefina sente isso, e é o que ela combate com todo o vigor de sua frágil garganta.

É claro que não se deve, nesses julgamentos genéricos, ir longe demais: o povo é bastante devotado a Josefina, só que não incondicionalmente. Ele não seria, por exemplo, capaz de rir de Josefina. Pode-se admitir: em Josefina há muita coisa que convida ao riso; e, em si, ele sempre está bem próximo a nós; apesar de toda a miséria de nossa vida, um discreto riso mora sempre conosco (até certo ponto); mas de Josefina nós não rimos. Às vezes tenho a impressão de que o povo concebe seu relacionamento com Josefina de modo tal que ela, ente frá­gil e carente de proteção, ente de algum modo notável — na opinião dela, notável pelo canto —, está confiada a ele, e ele deve cuidar dela; a razão disso não é bem clara para ninguém, só o fato parece institucionalizado. Mas não se costuma rir daquilo que nos é confiado; rir disso seria violação do dever; o

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máximo de maldade que os mais maldosos dentre nós cometem é às vezes dizer: "Em nós se desvanesce o riso quando vemos Josefina".

Assim, o povo cuida de Josefina à maneira de um pai que toma conta de um filho que lhe estende a mãozinha — não se sabe ao certo se em súplica ou exigência. Talvez se deva pensar que nosso povo não serve para desempenhar tais deveres pater­nos, mas na realidade ele os cumpre de um modo exemplar (ao menos nesse caso); nenhum indivíduo sozinho seria capaz de fazer aquilo que, nesse sentido, o povo como um todo conse­gue. Evidentemente é tão gigantesca a diferença de forças entre o indivíduo e o povo que basta atrair o protegido para o calor de sua proximidade para ele já estar sob proteção suficiente. Para Josefina não se ousa, no entanto, falar semelhantes coisas. "Fico é tocando flauta em cima da proteção de vocês", diz ela então. "Sim, sim, você toca flauta", pensamos nós. E, além. disso, não há nenhuma contestação efetiva quando ela estrila; ao contrário, tudo é antes encarado como criancice e ingratidão infantil, e papel de pai é não fazer caso de coisas assim.

Mas nisso tudo existe ainda uma outra coisa, que é mais difícil de explicar nessa relação entre povo e Josefina. Ou seja, Josefina é de opinião contrária: acredita ser ela quem protege o povo. Supostamente seu canto nos salvaria de uma situação política ou econômica difícil — nada menos do que isso o canto mobilizaria - e, mesmo que não chegasse a expulsar a desgra ça, ao menos nos daria então forças para suportá-la. Isso ela não afirma desse modo nem de um outro modo qualquer; ela costuma falar pouco, mantém-se calada em meio aos tagarelas; mas é o que fulgura em seus olhos, pode ser lido em sua boca cerrada — entre nós, raros conseguem manter a boca fechada, e ela consegue. A cada má notícia — e em certos dias elas se acumulam, entre elas notícias falsas e outras apenas em parte corretas — logo ela se levanta, enquanto normalmente fica se arrastando cansada pelo chão: levanta-se e estica o pescoço e procura abranger com o olhar o seu rebanho como o pastor frente a uma tempestade. É claro que as crianças, à sua maneira selvática e descontrolada, também colocam exigências semelhan tes, mas no caso de Josefina as exigências não são tão infunda-

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das, É claro que ela não nos salva e não nos dá forças, é fácil fazer-se passar por salvador desse povo acostumado ao sofri­mento, povo que não se poupa, que é rápido nas decisões, que conhece a morte, que só aparentemente é medroso em meio à atmosfera de perigos onde constantemente vive, povo que, além disso, é tão fecundo quanto astucioso — é fácil, digo eu, fazer-se passar a posteriori por salvador de tal povo, povo que de algum modo sempre ainda conseguiu salvar-se a si mesmo, ainda que com vítimas, em relação às quais o pesquisador de história — em geral negligenciamos completamente a pesquisa histórica

- fica gélido de pavor. E mesmo assim é verdade que justa­mente em situações de emergência escutamos melhor que nunca a voz de Josefina. As ameaças, que pairam sobre nós, tornam nos mais quietos, mais comedidos, mais submissos ao mando-nismo de Josefina; de bom grado nos reunimos, de bom grado nos apinhamos, especialmente porque ocorre por um motivo completamente distante da torturante questão central; é como se juntos ainda bebêssemos rapidamente — sim, a pressa é neces­sária, disso Josefina se esquece com demasiada freqüência — uma taça de paz antes da luta, ante a luta. Não é tanto um recital de canto quanto uma assembléia do povo e, na verdade, uma assembléia em que, exceto o pequeno pipilar lá da frente, tudo está quieto: grave demais é a hora para que se queira des­perdiçá-la.

Ora, é claro que uma relação dessas, nem sequer poderia agradar a Josefina. Apesar de todo o nervoso mal-estar que acomete Josefina devido à sua posição jamais bem esclarecida, ela, ofuscada por sua presunção, não enxerga muita coisa e, sem grande esforço, pode ser levada a deixar de ver ainda mais coi­sas; neste sentido, portanto num sentido a rigor geralmente útil, um bando de aduladores está sempre a postos — mas cantar de passagem, sem atenção, num cantinho com um aglomerado de gente, não, para isso ela certamente não iria sacrificar seu canto, ainda que em si seja não seja pouco.

Mas ela também não precisa fazê-lo, pois sua arte não passa inadvertida. Embora no fundo estejamos ocupados e pre­ocupados, com coisas completamente distintas e o silêncio pre pondere não só por amor ao canto e vários nem sequer ergam

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o olhar, mas comprimam o rosto no casaco de pele do vizinho e, portanto, Josefina pareça esforçar-se inutilmente ali em cima, mesmo assim — e isso é inegável — algo de seu assobio inega­velmente abre caminho em nós. Esse assobiar, que se eleva onde o silêncio se impõe a todos os demais, chega ao indivíduo quase como uma mensagem do povo; em meio a difíceis deci­sões, o fino assobiar de Josefina é quase como a própria mísera existência de nosso povo em meio ao tumulto do mundo hostil. Josefina se afirma, esse nadinha de voz, esse zero em realiza­ções se afirma e constrói seu caminho até nós: faz bem pensar nisso. Numa época assim, não suportaríamos um verdadeiro artista do canto, caso uma vez houvesse um entre nós, e por unanimidade recusaríamos a insensatez de sua apresentação. Oxalá Josefina seja poupada de saber que o fato de nós a escu­tarmos é uma prova contra seu canto. Uma premonição disso ela certamente já tem, pois se assim não fosse por que negaria ela com tanta paixão que nós a escutamos? Mas sempre de novo ela canta, assobia para além dessa premonição, desse pres­sentimento.

Mas seja lá como for, sempre haveria ainda um consolo para ela: até certo ponto nós realmente a escutamos, talvez até de um modo parecido como se escuta um artista do canto; ela desperta reações que um artista do canto em vão procuraria alcançar entre nós e que justamente só se devem a seus recursos insuficientes. Isso está, é claro, relacionado principalmente com nosso modo de vida.

Em nosso povo não se conhece juventude, e mal uma dimi­nuta infância. Verdade é que regularmente aparecem reivindica­ções de que se deveriam garantir para as crianças uma especial liberdade, uma especial proteção, garantir a elas o direito a um pouco de despreocupação, a um pouco de correria desvai­rada por aí, a um pouco de jogos e brincadeiras, direito que deveria ser reconhecido e apoiado em sua concretização; reivin­dicações dessa ordem aparecem e quase todo o mundo as aprova, não há nada que mais precisaria ser aprovado, mas também não há nada que na realidade de nossas vidas menos possa ser apro­vado: aprovamos as reivindicações, fazemos tentativas no sen­tido de atendê-las, mas logo tudo volta à estaca zero. Ora, nossa

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vida é tal que uma criança, assim que consegue andar um pouco e alcança discernir um pouco o mundo que a cerca, precisa cui­dar tanto de si mesma quanto um adulto; as regiões, nas quais temos de viver espalhados por precauções econômicas, são tão imensas, são tantos os nossos inimigos, tão imprevisíveis e incalcu­láveis os perigos que nos esperam por toda parte — que não podemos manter as crianças distanciadas da luta pela sobrevivên­cia: se o fizéssemos, seria seu prematuro fim. A essas tristes razões acrescenta-se indubitavelmente ainda uma outra, mais elevada: a fertilidade de nossa descendência. Uma geração — e todas são numerosas — empurra a outra, as crianças não têm tempo de serem crianças. Talvez em outros povos as crianças possam ser cuidadas com desvelo, talvez lá possam ser construídas escolas para os pequeninos, talvez lá as crianças possam correr todo dia para fora dessas escolas, as crianças, futuro do povo: por longo tempo, dia após dia, são sempre as mesmas crianças que lá apare­cem. Nós não temos escolas, mas de nosso povo jorram, em inter­valos mínimos, os infindáveis bandos de nossas crianças, chiando ou chilreando alegremente, enquanto ainda não conseguem asso­biar, rolando ou rodando em frente por força de impulsos, enquanto ainda não conseguem andar, arrastando atabalhoada­mente consigo tudo por força de sua massa, enquanto ainda não conseguem enxergar — nossos filhos! E não, como naquelas esco­las, as mesmas crianças, não, sempre, sempre de novo outras, sem fim, sem interrupção; mal aparece uma criança, e já não é mais criança, já a empurram novas feições de crianças, indiscerníveis em sua quantidade e pressa, róseas de felicidade. É claro que por mais bonito que isso possa parecer e por mais que outros, com toda razão, possam nos invejar, nós efetivamente não podemos permitir uma verdadeira infância a nossos filhos. E isso tem suas conseqüências. Uma certa infantilidade inextinguível, inerradicá-vel, perpassa nosso povo: em contradição direta com o que temos de melhor — o infalível senso prático —, muitas vezes agimos de modo completamente insensato, e isso exatamente do modo como crianças agem de modo insensato, absurdo, dispersivo, gene­roso, leviano, e tudo em nome de uma pequena brincadeira. E mesmo que nossa alegria não possa ter toda a vibração da alegria infantil, certamente algo desta ainda aí sobrevive. Dessa infantili­dade de nosso povo é que desde sempre Josefina se aproveita.

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Mas nosso povo não é apenas criançola; ele também é, até certo ponto, prematuramente envelhecido: infância e velhice mostram-se em nós diferentes do que em outros povos. Não temos juventude, nós logo somos adultos, e adultos somos então por tempo demais: por isso um certo cansaço e desespero amplo pervade a essência, tão tenaz e cheia de esperança, de nosso povo. Com isso decerto também se relaciona a nossa falta de musicalidade: somos velhos demais para a música: sua vibração, seu enlevo não se ajustam a nosso pesadume, é com cansaço que a colocamos de lado; recolhemo-nos ao assobio; de quando em vez assobiar um pouco, isso é que é o correto para nós. Tal­vez não haja talentos musicais entre nós; mas se os houvesse, o caráter dos contemporâneos teria de reprimi-los e suprimi-los antes que se desenvolvessem. Josefina, ao contrário, pode can­tar ou assobiar à vontade — seja lá como ela queira chamar isso —, isso é adequado para nós, isso nós podemos suportar bem; se aí estiver contido algo de música, então estará reduzido à mais completa insignificância; preserva-se uma certa tradição musical, mas sem que isso nos cause o menor problema.

Mas para um povo com tal estado de ânimo, Josefina traz ainda mais. Em seus concertos, especialmente nos tempos difí­ceis, só os bem jovens têm ainda interesse na cantora enquanto tal, só eles olham com espanto como ela franze os lábios, expe-leo o ar por entre os graciosos dentes da frente, quase desfalece de emoção devido aos sons que ela mesma produz, aproveitando sua languidez para enfogueirar apresentações cada vez mais incompreensíveis, mas a multidão propriamente dita — isso é nitidamente perceptível — recolhe-se em si mesma. Aqui, nas escassas pausas entre as batalhas, o povo sonha, é como se os membros de um indivíduo se relaxassem, como se aquele que não tem paz nem descanso pudesse uma vez estender-se e esti­car-se na grande e tépida cama do povo. E nesses sonhos ressoa aqui e ali o assobio de Josefina: ela o chama de rutilante, nós o chamamos de chocante; mas, em todo caso, está aqui em seu lugar como em nenhum outro, como a música dificilmente encontra alguma vez um instante que espere por ela. Nele reside algo de nossa infância pobre e parca, algo da felicidade perdida e jamais reencontrável, mas nele também se encontra algo da

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vida ativa de hoje, de sua diminuta, incompreensível vivacidade e que, mesmo assim, existe e não pode ser extinta. E, na ver­dade, tudo isso não é dito num tom grandiloqüente, mas leve, sussurrado, confidencial, às vezes até um pouco rouco. Natural­mente é um assobio. Como não? Assobiar é a língua de nosso povo, só que uns assobiam a vida inteira e não sabem disso; aqui, porém, o assobio está livre das cadeias da vida cotidiana e também nos libera por um breve período. É claro que não iríamos perder tais apresentações.

Mas daí até Josefina poder afirmar que ela, nesses momen­tos, nos dá novas forças etc. e tc , há uma enorme distância. Isso, no entanto, para pessoas comuns, não para os aduladores de Josefina. "Como é que poderia ser diferente" — dizem eles com uma boa dose de descaramento — "como é que se poderia explicar de outro modo a enorme afluência de público, especial­mente se há perigo iminente, afluência que algumas vezes inclu­sive já impediu a defesa eficiente e rápida justamente contra esse perigo?" Ora, lamentavelmente este último registro é cor­reto, mas ele não pertence aos títulos honoríficos de Josefina, especialmente, caso se acrescente que, quando tais reuniões foram inesperadamente dissolvidas pelo inimigo e vários de nós acaba­ram perdendo a vida, Josefina, de tudo culpada, ela que com seu assobio talvez até tenha atraído o inimigo, estava sempre no mais seguro dos refúgios e, sob a proteção de seus adeptos, sempre foi a primeira a desaparecer, bem quietinha e na maior das correrias. Mas, no fundo, todos sabem disso e, mesmo assim, apressam-se em comparecer quando Josefina, noutra ocasião e a seu próprio critério, levanta-se para cantar num lugar qual­quer, num momento qualquer. Daí se poderia concluir que Jose­fina está quase acima da lei, que ela pode fazer o que quiser, mesmo quando puser em perigo a coletividade, sendo-lhe tudo perdoado. Se assim fosse, as pretensões de Josefina também seriam plenamente compreensíveis, sim, até certo ponto seria possível ver nessa liberdade que o povo lhe dá, essa extraordiná­ria dádiva a ninguém mais concedida, liberdade a rigor contrá­ria à lei, uma confissão de que o povo — como ela o afirma — não entende Josefina, admira impotente sua arte, não se sente digno dela, procura compensar a dor que causa a ela com

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uma atuação francamente desesperada e, assim como a arte dela está além de sua capacidade de percepção e compreensão, também coloca a pessoa dela e seus desejos fora de seu poder de mando e comando. Ora, isso não é nem um pouco verdadeiro, talvez alguns indivíduos do povo capitulem depressa demais diante de Josefina, mas, como o povo não capitula incondicio­nalmente diante de ninguém, também não o faz diante dela.

Há muito tempo, talvez já desde o início de sua carreira artística, Josefina luta, em função de seu canto, para ser libe­rada de qualquer trabalho: pretende, em suma, que se deveria aliviá-la da preocupação em torno do pão de cada dia e tudo o que esteja ligado à nossa luta pela existência e — provavelmente— isso fosse repassado para o povo como um todo. Um fã apres­sado — desses também havia — poderia deduzir, já a partir da peculiaridade dessa reivindicação, da estrutura mental capaz de imaginar tal reivindicação, sua legitimidade interna. Nosso povo tira, no entanto, outras conclusões e simplesmente rejeita tal rei­vindicação. Também não se empenha muito em refutar os fun­damentos do pedido. Josefina afirma, por exemplo, que o esforço no trabalho prejudica sua voz, que o esforço no trabalho é de fato pequeno se comparado com o realizado no canto, mas que, no entanto, ele lhe tiraria a possibilidade de espairecer o sufi­ciente depois do canto e renovar as energias para uma nova apre­sentação: com isso, ela acabaria se esgotando por completo e, nessas circunstâncias, jamais poderia alcançar sua performance máxima. O povo escuta isso e nem liga. Esse povo tão fácil de comover é, às vezes, impossível de ser comovido. A recusa é, por vezes, tão dura que até mesmo Josefina fica estupefata; apa­renta submeter-se, trabalha conforme deve, canta o melhor que pode, mas tudo só por algum tempo; depois, retoma a luta com novas forças — e para isso ela parece ter forças ilimitadas.

Ora, é claro que Josefina não deseja propriamente aquilo que ela literalmente reivindica. Ela é sensata, não teme o traba­lho (aliás, medo do trabalho ninguém tem entre nós): mesmo depois de atendida sua solicitação, ela certamente não viveria de modo diverso do que até agora, o trabalho nem sequer atra­palharia seu canto, e o canto também não ficaria mais bonito — o que ela almeja é, portanto, apenas o reconhecimento de

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sua arte, um reconhecimento público, claro e inequívoco, a atra­vessar os tempos, a se elevar acima de tudo o que até agora se conhece. Mas enquanto quase todo o resto lhe parece alcançá­vel, isto lhe é obstinadamente negado. Talvez o ataque dela devesse ter-se dirigido logo de início noutra direção, talvez agora ela mesma reconheça o erro, mas já não pode mais recuar, um recuo significaria tornar-se infiel a si mesma: agora ela já pre­cisa fincar pé nessa reivindicação ou cair com ela.

Se ela realmente tivesse inimigos como afirma, então eles poderiam, sem moverem eles mesmos um dedo, ficar olhando essa luta e se divertindo. Mas ela não tem inimigos, e mesmo que aqui e ali alguns tenham objeções contra ela, essa luta não diverte ninguém. Já porque nesta o povo se apresenta em sua fria postura de juiz, como fora daí dificilmente se consegue vê-lo entre nós. E mesmo que, nesse caso, alguém aprove tal pos­tura, imaginar simplesmente que o povo possa comportar-se alguma vez contra si mesmo de semelhante modo já elimina toda e qualquer alegria. Pois tanto na recusa quanto na reivin­dicação, não se trata da coisa em si mesma, mas do fato de que o povo possa fechar-se de um modo tão impenetrável contra um compatriota, e tanto mais impenetravelmente quanto mais, do resto, ele cuida desta compatriota de um modo paternal e, mais que paternal, até serviçal.

Caso aqui estivesse, em vez do povo, um indivíduo: seria possível acreditar que o tempo todo esse homem andou cedendo diante de Josefina, com o constante e ardente desejo de, por fim, acabar com sua própria condescendência; que ele cedeu demais, cedeu mais do que seria de esperar de um ser humano, com a firme crença de que a condescendência acabaria, apesar de tudo, encontrando seu exato limite; que ele, sim, andou cedendo mais do que seria necessário, só para acelerar o pro­cesso, só para deixar Josefina mal-acostumada e levá-la sempre a novos desejos, até que, por fim, ela formulasse essa última reivindicação; daí então ele teria, por certo, levado a cabo a recusa definitiva, sumária, há muito já preparada. Ora, é claro que não é bem assim, o povo não precisa dessas artimanhas; além disso, sua veneração por Josefina é autêntica e compro­vada, enquanto a reivindicação de Josefina é, no entanto, tão

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forte que qualquer inocente criancinha poderia ter previsto seu desfecho; pode ser que, apesar disso, tais suposições também desempenhem um papel na visão que Josefina tem da questão, acrescendo amargura à dor da rejeição.

Mas ainda que inclusive tenha feito tais suposições, ela não se deixa intimidar por causa disso ante a luta. Nos últimos tem­pos a luta tem inclusive se tornado mais aguda; se até há pouco ela a conduzia apenas por palavras, agora começa a se utilizar de outros meios, meios que, na opinião dela, são mais eficazes e, na nossa, são mais perigosos para ela mesma.

Alguns acreditam que Josefina tem se tornado tão incisiva por estar se sentindo envelhecer, por sua voz estar dando sinais de fraqueza e que, por isso, já lhe parece mais que chegada a hora de travar a última batalha por seu reconhecimento público. Não acredito nisso. Se fosse verdade, Josefina não seria Jose­fina. Para ela não há envelhecimento nem debilitação da voz. Se reivindica algo, não é levada a isso por causas externas, mas por uma lógica interna. Ela busca alcançar o laurel máximo não porque no momento ele se encontre num ponto um pouco mais baixo, mas porque é o mais elevado; se estivesse em seu poder decidir, ela o colocaria ainda mais alto.

Tal desprezo pelas dificuldades externas não a impede, con­tudo, de empregar recursos menos dignos. Para ela, seu direito paira acima de qualquer dúvida, pouco importando, portanto, como alcançá-lo; especialmente já que neste mundo, tal como ela o concebe, os meios dignos é que acabam tendo de fracassar. Talvez até por causa disso ela tenha deslocado a luta por seus direitos do âmbito do canto para um outro, que lhe é menos caro. Sua corte fez circular declarações, segundo as quais ela se sentia em condições plenas de cantar de um modo tal que seria um verdadeiro prazer para o povo, em todas as suas cama­das, até na mais recôndita oposição, um verdadeiro prazer não no sentido do povo, pois este assegura sentir desde sempre tal prazer com o canto de Josefina, mas um prazer no sentido daquilo que Josefina almeja. Ela acrescenta, contudo, que não poderia falsificar o elevado nem bajular o ordinário e que, por­tanto, tudo teria de ficar como está. Outra coisa é, porém, sua luta em torno da liberação do trabalho: na verdade também é

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uma luta em torno de seu canto, mas nisso ela não luta de modo imediato com a preciosa arma do canto; para tanto, todo recurso que ela empregue é bom demais.

Assim, por exemplo, espalhou-se o boato de que, caso não se atendam às suas solicitações, ela pretenderia encurtar os flo­reios. Não sei nada de floreios, nunca notei nada de floreios no canto dela. Mas Josefina quer encurtar os floreios; por enquanto não quer suprimi-los, mas apenas encurtá-los. Pre­sume-se que tenha concretizado sua ameaça; não me pareceu, no entanto, haver diferença em relação às suas apresentações anteriores. O povo todo escutou como sempre, sem se manifes­tar quanto aos floreios, mas também sem alterar o tratamento dado às reivindicações de Josefina. Aliás, Josefina tem, inega­velmente, tanto em sua figura quanto em seu pensamento, algo muito gracioso. Assim, por exemplo, depois daquela apresenta­ção, esclareceu que, numa próxima ocasião, voltaria a cantar novamente os floreios por inteiro, como se a sua decisão quanto aos floreios tivesse sido demasiado dura ou abrupta para o povo. Mas depois do concerto seguinte ela mudou de idéia mais uma vez: agora teriam terminado definitivamente os grandes flo­reios e eles não voltariam antes de uma decisão favorável a Jose­fina. Ora, o povo faz de conta que nem sequer escuta todas essas explicações, decisões e mudanças de decisão, como um adulto pensativo e meditabundo deixa de escutar a tagarelice de uma criança: fundamentalmente benévolo, mas inacessível.

Josefina, no entanto, não cede. Assim, por exemplo, afir­mou recentemente que durante o trabalho sofrera um ferimento no pé, que este lhe tornava penoso ficar de pé durante o canto; mas, já que só podia cantar parada ereta, teria agora inclusive de encurtar as canções. Embora manque e se faça apoiar por seu séquito, ninguém acredita num verdadeiro ferimento. Mesmo que se admita uma especial sensibilidade de seu pequeno corpo, somos um povo de trabalhadores, e inclusive Josefina faz parte dele; mas se fôssemos mancar por causa de qualquer arranhão-zinho na pele, então o povo todo não poderia parar de mancar. No entanto, por mais que ela se deixe carregar como uma alei­jada, por mais que se mostre nesse deplorável estado com maior freqüência do que antes, o povo a escuta grato e encantado

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como anteriormente, mas não faz muita bulha por causa da redução.

Já que não pode continuar mancando sempre, ela inventa outras coisas: alega cansaço, mal-estar, fraqueza. Ora, além do concerto, temos todo um teatro. Atrás de Josefina vemos seu séquito, a pedir e implorar que ela cante. Ela diz que gosta­ria, mas que não pode. É consolada, bajulada, quase carregada para o lugar adrede escolhido para ela cantar. Por fim ela cede, com enigmáticas lágrimas, mas assim que quer começar a can­tar, evidentemente com o último resquício de vontade, exausta, os braços estendidos não como de costume, mas pendendo sem vida ao longo do corpo, quando até se fica com a impressão de que eles talvez sejam um pouco curtos demais — assim que quer fazer a afinação já não lhe é mais, então, possível cantar, um involuntário meneio da cabeça demonstra isso, e ela desaba diante de nossos olhos. Depois, no entanto, consegue se recom­por e, creio, canta não muito diferente do que de costume; caso se tenha bom ouvido para as mais sutis nuances, talvez se ouça um pouco de uma excitação acima do habitual, mas isso acaba apenas beneficiando o canto. E, no fim, está inclusive menos cansada do que antes, com o andar firme — na medida em que assim se podem chamar seus passinhos apressados — ela se afasta, recusando qualquer ajuda do séquito e encarando com olhares gélidos a multidão que respeitosamente vai lhe abrindo caminho.

Assim tem sido ultimamente; mas a última novidade é que, na hora em que seu canto era esperado, ela havia desaparecido. Não só o séquito a procura, muitos se colocam a serviço da busca, inutilmente; Josefina desapareceu, não quer cantar, não quer nem mesmo ser solicitada; desta vez, ela nos abandonou totalmente.

Extraordinário quão falso ela calcula, a esperta, de um modo tão falso que quase se precisa acreditar que ela nem sequer calcula, mas apenas continua sendo arrastada por seu destino, destino que esse nosso mundo apenas consegue tornar ainda mais triste. Ela mesma se esquiva ao canto, ela mesma destrói o poder que conquistou sobre os corações. Mas como conseguiu ela conquistar esse poder já que conhece tão pouco

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os corações? Ela se esconde e não canta, mas o povo, quieto, sem decepção perceptível, sobranceiro, massa que em si mesma repousa, povo que, embora as aparências digam o contrário, formalmente só pode dar presentes, jamais recebê-los, inclusive não de Josefina, esse povo continua seguindo seu destino.

Mas o caminho de Josefina precisa continuar morro abaixo. Logo há de chegar o tempo em que seu último assobio há de soar e emudecer. Ela será um pequeno episódio na eterna histó­ria de nosso povo, e o povo há de superar essa perda. Fácil isso não será para nós; como serão possíveis as assembléias em total mudez? Será que seu assobio real era significativamente mais sonoro e mais vivo do que há de ser a sua recordação? Será que, afinal, enquanto ela vivia, ele era mais do que mera recor­dação? Será que o povo, em sua sabedoria, não andou, ao con­trário, colocando seu canto tão alto justamente por isso, justa­mente porque desse modo era impossível perdê-lo?

Talvez nós, portanto, nem sequer venhamos a sentir muita falta, mas Josefina, redimida da miséria terrestre — que, em sua opinião, é, porém, preparada para os eleitos —, há de se perder na incontável multidão dos heróis de nosso povo e, já que não cultivamos a história, será esquecida, como todos os seus irmãos, na escalada da redenção.

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A verdade sobre Sancho Pança

Sancho Pança (que, aliás, jamais andou se vangloriando disso) conseguiu, no decorrer dos anos, colecionando uma por­ção de romances de cavalaria e de bandoleiros, desviar, nas horas noturnas e soturnas, de tal modo de si o seu demônio (ao qual ele mais tarde deu o nome de Dom Quixote), que este pas­sou então a executar desenfreadamente os feitos mais malucos, mas que, por falta de um objeto predeterminado (que era para ser justamente Sancho Pança), não prejudicavam ninguém. San­cho Pança, um homem livre, seguia sereno (talvez por uma certa sensação de irresponsabilidade), ao seu Dom Quixote em suas andanças, mantendo assim uma grande e proveitosa conversa­ção até o fim de seus dias.

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O Autor

Franz Kafka (1883-1924) descendia de uma família judaica assimilada, tendo tido uma formação alemã-austríaca em Praga, numa época em que a atual Tchecoslováquia pertencia ao Império Austro-Húngaro. Seu pai tinha conseguido pelo comércio alcançar certa prosperidade, possibilitando ao filho estudar no colégio da elite local e depois formar-se em Direito na Universidade de Praga.

Durante séculos os judeus tinham vivido aí como uma minoria discriminada, mas o liberalismo burguês permitiu ascensões sociais e fomentou na família Kafka uma formação que os aproximava dos quadros dos senhores austríacos e da cultura alemã local.

Franz Kafka trabalhou numa companhia de seguros, preo­cupando-se em aumentar a assistência social e diminuir os acidentes de trabalho. Viveu a derrocada do Império Austro-Húngaro e a im­posição do tcheco como língua obrigatória. Vivenciou a reativação do anti-semitismo e o potencial do autoritarismo de direita. Uma penosa tuberculose acabou por levá-lo à morte.

A literatura foi o espaço em que procurou alguma salvação. Sua arte transcende a sua origem, já porque noutros países também têm ocorrido genocídios físicos ou espirituais, a imposição à força dos privilégios de minorias, a morte de qualquer esperança imediata, o paulatino sufoco existencial. Ela é terrível e triste, mas provoca o riso à beira do desespero.

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Cronologia dos textos

A sentença Um relato a uma academia Um cruzamento A ponte O silêncio das sereias Prometeu O abutre Pequena fábula Das comparações Na colônia penal Uma página antiga Ante(s) (d)a lei Sobre a questão das leis Onze filhos Uma pequena mulher Nas galerias Um artista da fome Josefina, a cantora, ou O povo dos ratos A verdade sobre Sancho Pança

redação 1 22-23/9/1912 abril 1917 abril 1917 dezembro 1916 23/10/1917 17/1/1918 novembro 1920 nov./dez. 1920 inverno 1922/23 outubro 1914 março 1917 dezembro 1914 outubro 1920 março 1917 out./nov.l923 jan./fev.l917 primavera 1922

março 1924 21/10/1917

edição 1913 1917 27/3/1931 1931 1931 1931 1936 1931 1931 1919 juL/ago.1917 7/9/1915 27/3/1931 1919 20/4/1924 1919 1922

24/4/1924 1931

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A parede e o sangue delahttp://aparedeeosanguedela.blogspot.com

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