Kahmeuer_Mertens_a Interpretação Heideggeriana Da Ética a Nicomaco
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Da interpretao heideggeriana da tica a Nicmaco: Filosofia prtica como ontologia da vida cotidiana
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens
Professor da UNIOESTE
RESUMO: O tema do artigo a interpretao heideggeriana da tica a Nicmaco. O mesmo tem como questo as linhas mestras da leitura que o filsofo faz da referida obra de Aristteles. Ressaltaremos o fato de Heidegger no entender a tica aristotlica como um tratado sobre o reto agir, mas como um escrito que contm elementos para uma ontologia da vida prtico-cotidiana. Compreendida deste modo, conceitos da tica a Nicmaco so apropriados por Heidegger segundo uma estratgia de leitura que os faz peas chave em uma interpretao inovadora de Aristteles. A apresentao proposta aqui objetiva descrever detalhes da leitura heideggeriana, apontando como esta difere do modo como Aristteles tradicionalmente lido. Palavras chave: interpretao heideggeriana de Aristteles, tica a Nicmaco, phrnesis, techn, poiess. ABSTRACT: The subject of the article is the Heideggerian interpretation of the Nicomachean Ethics. It has as matter the indication of the guidelines that the philosopher has propose about this work of Aristotle. We stress the fact that Heidegger does not understand the Aristotelian Ethics as a treatise on the correct attitude but as writing that contains elements for an ontology of practical and everyday life. Thus understood, the concepts of the Nicomachean Ethics are appropriated by Heidegger according to a reading strategy that makes key parts in an innovative interpretation of Aristotle. The presentation proposed here aims to describe details of Heidegger's reading, pointing out how it differs from the way Aristotle is traditionally read. Keywords: Heidegger's interpretation of Aristotle, Nicomachean Ethics, phronesis, techne, poiesis.
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Introduo
O trabalho assume por tema a interpretao que Martin Heidegger faz da tica a
Nicmaco; questiona, assim, algumas das muitas peculiaridades da compreenso que o
filsofo tem do livro de Aristteles. Entre as aludidas peculiaridades, ressaltaremos o fato de
o alemo no entender esta tica aristotlica como um tratado sobre o reto agir, mas como um
escrito que contm elementos para uma ontologia da vida prtico-cotidiana. Compreendida
deste modo, conceitos da tica a Nicmaco so apropriados por Heidegger segundo uma
estratgia de leitura que os faz peas chave em uma interpretao inusitada de Aristteles,
interpretao essa que despertou, na mesma proporo, admirao e perplexidade entre os
helenistas na dcada de 1920. Diante disso, a apresentao pretende evidenciar que a leitura
heideggeriana de Aristteles destoa do modo como essa obra tradicionalmente lida; do
mesmo modo, pretende indicar que a visada fenomenolgica da qual Heidegger parte que
provoca este novo acento na leitura de Aristteles (e dos gregos em geral). Reconstruir
minimamente o contexto da interpretao heideggeriana de Aristteles (e os termos da anlise
heideggeriana de conceitos como os de phrnesis, tchne e poesis) nosso objetivo mais
primordial.
Do elemento aristotlico na filosofia heideggeriana e algumas consideraes
metodolgicas
Aristteles um autor sem o qual Heidegger no seria o pensador que foi. Essa
avaliao sugere a temeridade de atribuirmos filosofia aristotlica toda a responsabilidade
na formao filosfica de um pensador, o que sabemos envolver aspectos de amplitude e
complexidade, ainda mais quando tratamos de um autor com a envergadura de Martin
Heidegger. A ponderao ainda criaria espcie quando consideramos que o alemo no era
exatamente um aristotlico, ou seja, um exegeta de Aristteles. Reconhecemos que a frase
inicial, sem o devido preparo, poderia parecer simplista, mas no correramos o risco de
prop-la se no conhecssemos o papel que Aristteles possui na obra de juventude de
Heidegger e os trabalhos de respeitados comentadores para os quais a interpretao
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heideggeriana de Aristteles j constitui um nicho de investigao.1 Afirmar a dependncia,
aqui, parte da constatao de que uma questo aristotlica est no ncleo da obra de
Heidegger.
Em um ensaio autobiogrfico intitulado Meu caminho para a fenomenologia,2
Heidegger confessa que j em 1907 a filosofia de Aristteles teria lhe sido apresentada,
indiretamente, pela dissertao de Franz Brentano, Sobre o mltiplo significado do ente
segundo Aristteles (1862). Na epgrafe da obra de Brentano, encontra-se a sentena
aristotlica t on legestai pollachs que poderia ser traduzida como: o ser significa de
muitas maneiras (a saber, como: vida, existncia, persistncia, subsistncia, atualidade,
presena etc). Esta afirmativa trouxe para Heidegger a intuio capital de sua filosofia, essa
que poderia ser formulada assim: ora, se para Aristteles o ser pode ser dito de muitos
modos, por que a tradio metafsica insiste em trat-lo unitariamente? (BROGAN, 2005)
Essa pergunta anima algumas das principais prelees de Heidegger na dcada de 1920 e
provoca interpretaes inovadoras de Aristteles (estas admiradas pelo helenista Werner
Jaeger e pelo socilogo Max Weber, que tambm tinha interesse por temas da antiguidade)
(GADAMER, 1976). Podemos dizer que na gnese da prpria ontologia fundamental de Ser e
tempo (1927), precisamente na ideia de sentido do ser, o espectro de Aristteles se faz
presente.3
As leituras de Heidegger, no entanto, no so explicaes da filosofia de Aristteles
(como bem fariam comentaristas como Ross ou Aubenque). Heidegger entende Aristteles
como ponto de partida para as interpretaes fenomenolgicas que nos colocariam diante da
pergunta ontolgica fundamental e do nico ente capaz de compreender o sentido do ser dos
entes. Neste caso, Aristteles fala com sotaque fenomenolgico pela boca de Heidegger.
Para compreender como isso ocorreria, ser necessria uma breve notcia (pouco mais do que
um pargrafo) sobre a estratgia de interpretao usada por Heidegger para ler Aristteles.
1 possvel enumerar alfabeticamente os nomes de Berti, Brogan, Escudero, Sadler e Volpi (Cf. Referncias). 2 Cf. Referncias. 3 Para legitimar isso, no bastassem as inmeras referncias (veladas e explcitas) na obra, podemos conferir tambm Taminiaux (1995).
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Heidegger intrprete de Aristteles
Heidegger no est interessado nas leituras cannicas de Aristteles, no tem o objetivo
de explicitar o que se consolidou ao longo da histria na forma de doutrina aristotlica. O
que Heidegger quer de Aristteles saber como sua filosofia torna possvel pensar a questo
ontolgica fundamental de um modo que o sentido deste fundamental pudesse ser interpretado
sem o efeito adulterante da tradio. Para Heidegger, ao longo do tempo atua a tendncia
simplificao do pensamento de um pensador, isso faz com que cada filosofia seja sempre
legada de modo encurtado; essas redues transformam o pensamento em esquematismos
de escola que acabam por retroalimentar a prpria tradio.
Em lugar de comentrio especializado, a leitura apropriativa de Heidegger procede em
trs estgios: reconstri o tema enfocado em determinada filosofia, fixando sua situao
hermenutica atual (a maneira com a qual a tradio o pensou at ento); rev cada ponto
doutrinariamente estabelecido para, apoiando-se nas prprias fontes deste pensamento, rever
sua plausibilidade (destri ou desconstri aquela filosofia, tentando devolver sua flexibilidade
na medida em que a desobstrui dos sedimentos e cristalizaes tradicionais); reconduz a
filosofia examinada a um solo que, para o autor, lhe forneceria propriamente evidencia e
verdade (para Heidegger, tal solo seria o campo fenomenolgico aberto pela conscincia
intencional conforme pensada por Brentano e Husserl). No preciso dizer que a leitura que
Heidegger faz de Aristteles fenomenolgica ou, ainda, hermenutico-fenomenolgica.
Por diversas vezes, Aristteles esteve na pauta das interpretaes fenomenolgicas de
Heidegger. Conhecemos o Relatrio Natorp, subintitulado Interpretao fenomenolgica de
Aristteles (1922); a preleo Sofista (1924-1925), dedicada ao dilogo platnico, mas que
Heidegger explora muito mais o que seria a leitura aristotlica de Plato4 e Ser e tempo
(1927).5 Nestas trs obras (as quais tomaremos por base para a exposio de nosso
4 A estratgia de leitura que toma Aristteles como chave interpretativa para a filosofia platnica adotada por Heidegger na preleo sobre O Sofista e conta com uma explicao do prprio filsofo: Ns queremos pegar o caminho de volta, retornando de Aristteles para Plato. Esse caminho segue a antiga premissa hermenutica de que devemos andar na interpretao do claro ao obscuro. Queremos crer que Aristteles tenha entendido Plato. Mesmo quem s conhece os rudimentos de Aristteles ver a partir do nvel do trabalho que no nada ousado achar que Aristteles teria compreendido Plato. Assim como em geral se precisa dizer quanto questo da compreenso que os que vm depois sempre compreendem melhor os antecessores do que esses compreenderam a si mesmos. Precisamente a reside o elementar da pesquisa criativa, no fato de que ela no se compreende no decisivo. Se desejarmos adentrar pela filosofia platnica, isso ser feito ao seguirmos o fio condutor da filosofia aristotlica. (HEIDEGGER, 1992, p. 11) 5 Alm desses, no currculo de Heidegger, veiculado por Stein (2002), possvel constatar que desde 1915, sob o ttulo de exerccios fenomenolgicos a filosofia grega ocupa o programa de estudos do filsofo. Neste documento, constatamos a intensificao desses estudos (particularmente os de Aristteles) entre os anos de 1921-1925.
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argumento), Heidegger se serve largamente de Aristteles. O curioso que interessado em
ontologia, o alemo vai muito mais tica a Nicmaco, do que Metafsica, como seria
esperado.
Da filosofia prtica de Aristteles ontologia da vida ftica do ser-a.
O que justificaria o interesse de Heidegger pela filosofia prtica aristotlica? A resposta
se encontra atrelada ao projeto fenomenolgico de Ser e tempo (principal trabalho de
Heidegger para o qual as outras obras referidas so preparativos). Nesta obra, o filsofo
prope a retomada da questo ontolgica fundamental, perguntando pelo sentido do ser.
Heidegger entende que no se pode ir a esta questo sem considerar o nico ente capaz de
compreender o que significa ser, este ente, corresponde paradigmaticamente experincia
humana, ao homem que ser em circunstncia, um ser delimitado em um mundo especfico,
um ser-a (Dasein).
Nos saldos de sua analtica existencial, Heidegger aponta o fato deste ente no possuir
uma essncia ou quididade o trao mais caracterstico de seu ser. O ser-a o ente que ao
passo que existe, ou ainda, o ente que perfaz sua essncia, sempre e a cada vez, na dinmica
de sua existncia. No movimento de existir no mundo, o ser-a aquele que se ocupa com
entes que a ele j sempre se mostram como passveis de uso, utilidade esta sempre
determinada na conjuntura e significncia de um mundo fctico que constitui a ambos (ao ser-
a e aos entes). Assim, o ser que o ser-a , se essencializa ao passo em que se ocupa com
afazeres mundanos orientados por sentidos e significados que determinam sua existncia.
Poderamos afirmar, de maneira bastante categrica, que o ente que o ser-a se determina na
ocupao significativa que ele assume em seu mundo. Dizer que o ser-a se realiza naquilo
que significativamente o ocupa, consiste na indicao daquilo que Heidegger compreende
como o mais essencial no ser-a: o cuidado (Sorge) por ser quem se . (HEIDEGGER, 1993)
Ora, mas isso parece mais ter a ver com Pndaro (quando este nos convida a vir a ser
quem somos) do que com Aristteles. O que, afinal, isso teria a ver com Aristteles? Como os
conceitos de ocupao e cuidado teriam a ver com a interpretao heideggeriana de
Aristteles? Resposta: muito do contexto da existncia fctica do ser-a enquanto cuidado
transcrio de conceitos aristotlicos. isso que vemos quando, num primeiro momento,
Heidegger pensar a ocupao com os entes luz do conceito de phrnesis, no captulo VI de
sua tica a Nicmaco. Em Interpretao fenomenolgica de Aristteles (1922), a phrnesis
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aristotlica interpretada como uma viso apta a garantir a arregimentao dos entes de uso
(utenslios) de modo adequado s circunstncias da ocupao. Para Heidegger, pensar a
phrnesis como essa aptido ou percia, compreende uma viso de conjunto dos entes com os
quais me ocupo. Interpretar a phrnesis deste modo destoa significativamente do
entendimento tradicional do conceito (geralmente traduzido como prudncia, temperana),
referindo-se, deste modo, a um fazer-se em adequao ao conjunto de entes e circunstncias
do mundo, a uma viso pr-reflexiva que acompanha e orienta as muitas lidas do ser-no-
mundo. (ARISTOTLE, 1959)
Anos depois, em Ser e tempo (1927), a phrnesis aristotlica ganha estatuto ainda mais
originrio no pensamento de Heidegger. Muito alm do que apenas a proficincia que
acompanha e orienta as ocupaes cotidianas com os utenslios, o filsofo entender o
conceito como uma lida com os entes que definem o cuidado que somos. Novamente, mais do
que sabedoria prtica, temos a phrnesis como o cuidado por ser quem se , na medida em
que se exerce um ofcio no mundo. preciso ressaltar que o cuidado em questo no o
cuidado de si possvel de ser encontrado em Epicuro, o epimelesthai heraut (pensado por
Foucault como um conjunto de prticas de si) ainda constitui uma intuio superficial de
cuidado, sendo, portanto, ntico. Com Heidegger, a phrnesis aristotlica se ontologiza, isto
porque o cuidado indica a ao que determina o ser do ser-a na medida em que ele se assume
em modos de ser, ou, como diz o prprio Heidegger: o cuidado a essncia do ser-a.
(HEIDEGGER, 1993, p.57)
A phrnesis, entretanto, no a nica apropriao heideggeriana de Aristteles. Tendo
em vista aquela filosofia prtica, Heidegger ainda toma de emprstimo outras concepes
aristotlicas, entre elas: a poesis, a tchne e a prxis. Para que sua interpretao ganhe
inteireza, Heidegger obrigado a associar essas concepes com a de phrnesis; assim, ser
como poesis que Heidegger interpretar a ocupao cotidiana. Embora o verbo poien e o
substantivo poesis expressem tradicionalmente produo, Heidegger praticamente o assume
como sinnimo de tchne que, como sabemos, indicativo de uma atividade mais genrica.
Heidegger, portanto, entender na chave poesis-tchne qualquer atividade que incida sobre os
entes. Por outro lado, o filsofo reserva o termo prxis para designar as atividades que
determinam o prprio agente da ao, o que evidencia a dimenso prtica (prxis) que o
cuidado (phnesis) possui. (TAMINIAUX, 1995)
Um leitor de Aristteles diante dessas manobras heideggerianas deve indagar: quais os
propsitos dessas transverses de Heidegger? Aps esses agenciamentos, qual seria o ganho
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que Heidegger traz para sua filosofia e aos estudos da filosofia de Aristteles? Podemos dizer
que a leitura que Heidegger faz de Aristteles subverte, em muito, a maneira tradicional de
leitura do grego. Tradicionalmente, Aristteles lido como o autor para o qual a teoria
(theora) um modo hierarquicamente superior de atitude e, por isso mesmo, nos conduziria
sabedoria (sophia). Heidegger, por sua vez, ressalta na filosofia prtica de Aristteles certa
anterioridade ou primado da tchne sobre a theora. (SADLER, 1996)
Isso evidencia que, para Heidegger, mais importante em Aristteles o modo com que a
tchne a prxis nos coloca em contato com as mltiplas maneiras com que o ser dos entes se
manifestam, do que a via intelectiva, que tenta determinar teoricamente o ser dos entes
enquanto ousia. Por isso, ao ler a Metafsica e, principalmente, a tica a Nicmaco,
Heidegger tem em vista uma ontologia da vida ftica, potencialmente pensada a partir da
filosofia prtica do grego.
A origem da filosofia: uma hiptese heideggeriana no dilogo com a tica de Aristteles.
Sem ser exatamente uma questo na pauta de Aristteles, mas constituindo um tema
identificvel no interior da obra do primeiro Heidegger, possvel, mesmo, formular uma
hiptese para a origem do pensamento metafsico com base na interpretao heideggeriana da
obra do grego, tal como esboada acima. Considerando aquilo que chamamos de primado da
ocupao prtica sobre o comportamento terico, Heidegger em sua Interpretao
fenomenolgica de Aristteles afirma que (1976, p. 35):
no mbito dos objetos que se d o sentido originrio do ser o dos objetos produzidos, o dos utenslios empregados na lida cotidiana. No, portanto, o mbito ontolgico das coisas apreendidas em sua coisidade como um objeto de um conhecimento teortico, mas o mundo que comparece na lida produtiva, executiva e utilitria, que visa experincia ontolgica originria. Aquilo que na atividade da produo (poesis) foi trazido ao ser enquanto o que foi preparado para ser usado: o que (grifo nosso).
A passagem acima denota que, para Heidegger, a lida prtica com o utenslio que
confere significao aos entes; do mesmo modo, a ocupao prtica, seja ela um utilizar, um
executar ou um produzir o que define as determinaes ontolgicas dos mesmos entes
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(ESCUDERO, 2010). O trecho ainda enfatiza que na produo que se oferecem as
determinaes ontolgicas originrias dos entes de uso.6
Mais tarde, em sua preleo Sofista (1924-25), Heidegger reforar que a phrnesis
(ainda tratada como a viso circunspecta que orienta a tchne) no percorre qualquer
momento terico, mas, antes, indica aquilo que iniciado na produo (poesis).
(HEIDEGGER, 1992). Temos, com isso, elementos para ratificarmos a intuio de que a lida
utensiliar difere fundamentalmente da terica. No perodo supra delimitado (1924-25),
Heidegger, luz de Aristteles, chega a dizer que o ver da teoria pode ser identificado como
um modo de contemplao; assim, o filsofo considera que esse theorein seria uma
phrnesis (circunviso) inteiramente peculiar (...).7 (HEIDEGGER, 1992, p.86) Em que
consistiria esta peculiaridade? Precisamente em um modo de comportar-se com os entes que
desconsideraria sua dinmica ocupacional, um modo apenas possvel de se efetivar diante de
uma ruptura com a lida utensiliar ou, ainda, uma perda do paradigma que a tchne constitui.8
Da, tendo abandonado o cuidado da execuo, (HEIDEGGER, 1976, p.74) possvel que
se tenha uma espcie de inrcia contemplativa, tpica das teorias.
Apoiado na anlise da ocupao prtica cotidiana (esta assentada sobre os conceitos
gregos de tchne e poesis), Heidegger nos lembra que, uma vez estando encoberto o
fenmeno da ocupao, passa a ser tendncia interpretar a teoria como via privilegiada do
conhecimento. Evidencia-se aqui que o descuido de abandonar o paradigma da tchne produz
uma alterao de comportamento. Trata-se, agora, de um modo de comportar-se no qual a
inspeo dos aspectos do fenmeno tende a tomar daquela circunspeo que a phrnesis
constitua, de forma que, onde, no passado, o ente intramundano se mostrava como utenslio
referente ocupao prtica, agora, o mesmo passa a ser apreendido como objeto cuja
determinao substancial depende de um passo teortico. (BERTI, 1992) Para evidenciar esta
nova posio, parece bem significativa a indicao que Heidegger faz no Relatrio-Natorp,
segundo a qual o conceito grego de essncia (aquilo que chamamos de determinao
substancial, e que poderia ser denominado no contexto aristotlico como ousa) remonta
dimenso utilitria, uma vez que ela tem em Aristteles e, mesmo, tardiamente o significado
prtico originrio de bem de famlia, de substncia patrimonial, que no mundo circundante
est disponvel ao uso (...); assim, apenas na ao produtiva o objeto da prtica se mostra
6 Veja-se mais a este respeito em Aristteles (1924). 7 Essa posio ser revista em Ser e tempo, obra na qual o filsofo parece considerar a teoria como desprovida de circunviso, carncia que se registra nas palavras de Heidegger do seguinte modo: o comportamento terico uma mera visualizao no circunvisiva (HEIDEGGER, 1993, p. 69), no phrontica, neste caso. 8 Como possvel nomear com Heidegger (1992a) e comentar com Dreyfus (1989).
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em seus aspectos. (HEIDEGGER, 1976, p. 35) Para Heidegger, a assuno do ente no
sentido de mera presena (krematn) e a adoo de um critrio ontolgico para determin-lo
em aspectos essenciais de coisa (coisidade) dependeria dessa modificao do ver
circunvisivo (phrontico).
Concluso
O trajeto que nos trouxe at aqui se mostrou pouco sistemtico. Em nosso texto, os
elementos aristotlicos na filosofia de Heidegger foram apenas apontados ou, quando muito,
esboados. Estas caractersticas (antes mesmo de serem reputadas deficincias de nosso
trabalho) se justificam dado ao propsito do nosso texto ter sido apenas apresentar apenas
notas sobre a leitura heideggeriana de Aristteles, sem a pretenso, portanto, de tratar
profundamente cada um dos pontos aqui notificados.
Deste modo, os saldos deste caminho sinuoso, podem ser apresentados, aqui, na forma
de um elenco de concluses. digno de registro que Heidegger, enquanto leitor de Aristteles
e de Brentano, tem plena clareza quanto ao fato de a totalidade dos entes no ser
ontologicamente monossmica; para o filsofo ela possui mltiplos modos de seu ser,
diversas significaes e vrias formas de se expressar. com base nesta evidncia, que
Heidegger vai buscar em Aristteles e, ainda, em um Plato lido atravs das lentes que
Aristteles oferece, a tchne e a poesis como o solo no qual algo assim como o ente torna
de manifesto. (HEIDEGGER, 1992, p.33) Portanto, no coincidncia que conceitos
aristotlicos como a tchne (ocupao) e a phrnesis (circunviso), conceitos da filosofia
prtica aristotlica, sejam objeto de estudos dos programas de leitura de Heidegger nesta
fase. Isso porque, com as leituras de Aristteles (sobretudo a tica a Nicmaco), o que est
em questo para Heidegger a clarificao da existncia ftica. , assim, que ante a
ponderao da abrangncia e radicalidade que esses temas tm na obra do autor de Ser e
tempo que nos leva afirmar, uma vez mais, a avaliao segundo a qual Aristteles um autor
sem o qual Heidegger no seria o pensador que foi.
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