Karl Marx - geovest.files.wordpress.com · Karl Marx O país mais desenvolvido industrialmente...
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Karl Marx
O pas mais desenvolvido industrialmente mostra aos que o seguem na escala industrial a imagem do seu prprio futuro... Mesmo quando uma sociedade chega a descobrir a pista da lei natural que preside ao seu movimento..., ela no pode ultrapassar de um salto nem abolir por meio de decretos as fases do seu desenvolvimento natural; pode, contudo, reduzir o perodo de gestao e minorar os males da sua gravidez.
O capital Prefcio 1? edio alem
Para analisar o pensamento de Marx procurarei responder s mesmas questes formuladas a propsito de Montesquieu e de Comte: que interpretao Marx d de seu tempo? Qual a sua teoria do conjunto social? Qual a sua viso da histria? Que relao estabelece entre sociologia, filosofia da histria e poltica? Num certo sentido, esta exposio no mais difcil do que as duas precedentes. Se no existissem milhes de marxistas, ningum teria dvidas sobre quais teriam sido as idias diretrizes de Marx.
Marx no , como disse Axelos, o filsofo da tecnologia. Tambm no , como pensam muitos, o filsofo da alienao1. Antes de mais nada, o socilogo e o economista do regime capitalista. Marx tinha uma teoria sobre esse regime, sobre a influncia que exerce sobre os homens e sobre o devenir pelo qual passar. Socilogo e economista do que chamava de capitalismo, no tinha uma idia precisa do que seria o regime socialista, e no se cansava de repetir que o homem no podia conhecer o futuro antecipadamente. No tem muito interesse, portanto, indagar se Marx foi stalinista, trotskista, partidrio de Khruchtchev ou de Mao. Karl Marx teve a sorte, ou a infelicidade, de ter vivido h um sculo. No deu respostas s questes que formulamos hoje. Podemos procurar respond-las por ele, mas as respostas sero nossas, no dele. Um homem, sobretudo um socilogo marxista, porque, apesar de tudo, Marx tinha algumas relaes com o marxismo, inseparvel da sua poca. Perguntar o que teria pensado Marx significa querer saber o que um outro Marx teria pensado, no lugar do verdadeiro Karl Marx. A resposta, contudo, possvel, mas aleatria e de pouco interesse.
Mesmo se nos limitarmos a expor o que o Marx que viveu no sculo XIX Pensava sobre seu tempo, e sobre o futuro, e no o que ele pensaria de nosso tempo e de nosso futuro, essa anlise apresentar dificuldades particulares, por Muitas razes, algumas extrnsecas, outras intrnsecas.
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As dificuldades extrnsecas tm a ver com o destino pstumo de Marx. Hoje, quase um bilho de seres humanos so instrudos numa doutrina que, com ou sem razo, se denomina de marxismo. Uma determinada interpretao da doutrina de Marx se transformou na ideologia oficial do Estado russo, e em seguida dos Estados da Europa oriental e do Estado chins.
Essa doutrina oficial pretende oferecer uma interpretao autntica do pensamento de Marx. Basta portanto que o socilogo apresente uma certa interpretao desse pensamento para que, aos olhos dos que seguem a doutrina oficial, passe a ser visto como porta-voz da burguesia, a servio do capitalismo e do imperialismo. Em outras palavras, a boa-f que, sem muita dificuldade, me atribuda quando se trata de Montesquieu ou de Auguste Comte, alguns me negam antecipadamente, quando se trata de Karl Marx.
Outra dificuldade extrnseca provm das reaes doutrina oficial dos Estados soviticos. Essa doutrina apresenta as caractersticas de simplificao e exagero inseparveis das doutrinas oficiais, que so ensinadas sob forma de catecismo a espritos de qualidade heterognea.
Por outro lado, alguns filsofos sutis que vivem s margens do Sena, por exemplo, e que desejariam ser marxistas sem precisar retornar infncia, imaginaram uma srie de interpretaes do pensamento ltimo e profundo de Marx, cada uma mais inteligente do que a outra2.
De minha parte, no buscarei uma interpretao supremamente inteligente de Marx. No que no tenha um certo gosto por estas especulaes sutis; creio, porm, que as idias centrais de Marx so mais simples do que as que se podem encontrar na revista Arguments, por exemplo, ou nas obras dedicadas aos escritos de juventude de Marx, escritos de juventude a que Marx dava tanta importncia que os abandonou crtica dos ratos3. Por isso, farei referncia essencialmente aos textos que Marx publicou, e que sempre considerou como a principal manifestao do seu pensamento.
Contudo, mesmo se deixarmos de lado o marxismo da Unio Sovitica e dos marxistas mais sutis, encontraremos algumas dificuldades intrnsecas. Estas dificuldades se relacionam primeiramente com o fato de que Marx foi um autor fecundo, que escreveu muito, e que, como acontece s vezes com os socilo-, gos, escreveu tanto artigos de jornal como obras de flego. Tendo escrito muito, nem sempre disse a mesma coisa sobre os mesmos temas. Com um pouco de. engenho e de erudio sempre possvel encontrar, sobre a maioria dos problemas, frmulas marxistas que no parecem conciliveis ou que, pelo menos, se. prestam a diferentes interpretaes.
Alm disso, a obra de Marx comporta textos de teoria sociolgica, de teoria econmica, de histria; e, s vezes, a teoria explcita que se encontra nesses escritos cientficos parece estar em contradio com a teoria implcita dos seus, livros histricos. Por exemplo: Marx esboa uma certa teorift das classes so
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ciais; contudo, quando estuda historicamente a luta de classes na Frana, entre 1848 e 1850, ou o golpe de Estado de Lus Napoleo, ou a histria da Comuna, as classes que reconhece, e que coloca como personagens do drama, no so necessariamente as que havia indicado na sua teoria.
Alm da diversidade das obras de Marx, preciso levar em conta a diversidade dos perodos em que foram escritas. Distinguem-se em geral dois perodos principais. O primeiro, que chamado de perodo de juventude, compreende os trabalhos escritos entre 1841 e 1847-1848. Entre os escritos desse perodo, alguns foram publicados enquanto Marx ainda era vivo, ensaios e artigos breves, como a Introduo crtica da filosofia do direito de Hegel, ou o Ensaio sobre a questo judaica. Os outros s foram publicados depois de sua morte. A publicao de conjunto de 1931. Foi a partir dessa data que se desenvolveu toda uma literatura que reinterpretou o pensamento de Marx, luz dos escritos de juventude.
Entre esses escritos, encontramos um fragmento de uma crtica da filosofia do direito de Hegel, um texto intitulado Manuscrito econmico-filosfico, A ideologia alem.
As obras mais importantes desse perodo, que j eram conhecidas desde muito tempo, incluem A sagrada famlia e uma polmica contra Proudhon intitulada Misria da filosofia, rplica do livro de Proudhon: Filosofia da misria.
Esse perodo de juventude se encerra com Misria da filosofia e, sobretudo, com a pequena obra clssica intitulada Manifesto comunista, obra-prima da literatura sociolgica de propaganda, na qual encontramos expostas pela primeira vez, de maneira to lcida quanto brilhnte, as idias diretrizes de Marx. Contudo, A ideologia alem, de 1845, marca tambm uma ruptura com a fase anterior.
A partir de 1848, e at o fim dos seus dias, Marx aparentemente deixou de ser filsofo, tornando-se um socilogo e, sobretudo, um economista. A maioria dos que se dizem hoje mais ou menos marxistas tem a peculiaridade de ignorar a economia poltica do nosso tempo. uma fraqueza da qual Marx no compartilhava. Com efeito, possua admirvel formao econmica, conhecia o pensamento econmico do seu tempo como poucos. Era e queria ser um economista, no sentido rigoroso e cientfico do termo.
No segundo perodo da sua vida, as duas obras mais importantes so um texto de 1859 intitulado Contribuio crtica da economia poltica e, naturalmente, sua obra-prima, o centro do seu pensamento, O capital.
Insisto no fato de que Marx , antes de mais nada, o autor de O capital, porque essa banalidade , hoje, questionada por homens muitssimo inteligentes... No h sombra de dvida de que Marx, que tinha por objeto analisar o funcionamento do capitalismo e prever a sua evoluo, era, a seus prprios olhos e acima de qualquer outra coisa, o autor de O capital.
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Marx tem uma certa viso filosfica do devenir histrico. possvel, e at mesmo provvel, que tenha dado um sentido filosfico s contradies do capitalismo. Contudo, o essencial no esforo cientfico de Marx foi demonstrar cientificamente a evoluo, a seus olhos inevitvel, do regime capitalista.
Qualquer interpretao de Marx que no encontre um lugar para O capital, ou que seja capaz de resumir esta obra em algumas pginas, aberrante com relao ao que o prprio Marx pensou e pretendeu.
Naturalmente, pode-se sempre dizer que um grande pensador se equivocou a respeito de si mesmo, e que os textos essenciais so justamente os que ele no teve interesse em publicar. Mas preciso estar muito seguro da prpria genialidade para ter certeza de compreender um grande autor de modo to superior ao do prprio autor. Quando no se est to certo da prpria genialidade, melhor comear compreendendo o autor do modo como ele prprio se compreendeu, isto , no caso de Marx, colocando no centro do marxismo O capital, em lugar do Manuscrito econmico-filosfico, rascunho informe, medocre ou genial, de um jovem que especula sobre Hegel e sobre o capitalismo, numa poca em que seguramente conhecia melhor Hegel do que o capitalismo.
Por isso, levando em conta os dois momentos da carreira cientfica de Marx, tomarei como ponto de partida o pensamento da maturidade que irei procurar no Manifesto comunista, na Contribuio crtica da economia poltica e em O capital, reservando para etapa ulterior a procura do substrato filosfico do pensamento histrico e sociolgico de Marx .
Finalmente, fora da ortodoxia sovitica chamada marxismo, h muitas interpretaes filosficas e sociolgicas de Marx. H mais de um sculo, escolas diferentes tm a caracterstica comum de afirmar sua filiao a Marx e dar verses diferentes ao seu pensamento. No tentarei expor aqui o pensamento, ltimo e secreto, de Marx porque, confesso, no sei qual . Procurarei mostrar por que os temas do pensamento de Marx so simples e falsamente claros e se prestam, assim, a vrias interpretaes, entre as quais quase impossvel escolher com segurana.
Pode-se apresentar um Marx hegeliano, pode-se tambm apresentar um Marx kantiano. Pode-se afirmar, como Schumpeter, que a interpretao econmica da histria nada tem a ver com o materialismo filosfico4. Pode-se demonstrar tambm que a interpretao econmica da histria solidria com uma filosofia materialista. Pode-se considerar O capital, como o fez Schumpeter, como uma obra rigorosamente cientfica, de ordem econmica, sem nenhuma referncia filosofia. E podemos tambm, como o padre Bigo e outros comentaristas, mostrar que O capital elabora uma filosofia existencial do homem no campo da economia5.
Minha ambio ser mostrar por que, intrinsecamente, os textos de Marx so equvocos, o que significa que tm as qualidades necessrias para que sejam comentados indefinidamente, e transfigurados em ortodoxia
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Toda teoria que pretende tomar-se ideologia de movimento poltico, ou doutrina oficial de um Estado, deve prestar-se simplificao para os simples e sutileza para os sutis. No h dvida de que o pensamento de Marx apresenta, em grau supremo, essas virtudes. Cada um pode encontrar somente o que pretende6.
Marx era incontestavelmente um socilogo, mas um socilogo de tipo determinado, socilogo-economista, convicto de que no podemos compreender a sociedade moderna sem uma referncia ao funcionamento do sistema econmico, nem compreender a evoluo do sistema econmico se desprezamos a teoria do funcionamento. Enfim, como socilogo, ele no distinguia a compreenso do presente da previso do futuro e da determinao de agir. Comparativamente s sociologias ditas objetivas de hoje, era, portanto, um profeta e um homem de ao, alm de um cientista. Talvez, apesar de tudo, haja o mrito da franqueza em no negar os laos que encontramos sempre ligando a interpretao daquilo que e o julgamento do que deveria ser.
anlise socieconmica do capitalismo
O pensamento de Marx uma anlise e uma compreenso da sociedade capitalista no seu funcionamento atual, na sua estrutura presente e no seu devenir necessrio. Auguste Comte tinha desenvolvido uma teoria daquilo que ele chamava de sociedade industrial, isto , das principais caractersticas de todas as sociedades modernas. No pensamento de Comte havia uma oposio essencial entre as sociedades do passado, feudais, militares e teolgicas, e as sociedades modernas, industriais e cientficas. Incontestavelmente Marx tambm considera que as sociedades modernas so industriais e cientficas, em oposio s sociedades militares e teolgicas. Porm, em vez de pr no centro da sua interpretao a antinomia entre as sociedades do passado e a sociedade presente, Marx focaliza a contradio que lhe parece inerente sociedade moderna, que ele chama capitalismo.
Enquanto no positivismo os conflitos entre trabalhadores e empresrios so fenmenos marginais, imperfeies da sociedade industrial cuja correo relativamente fcil, para Marx esses conflitos entre os operrios e os empresrios ou, para empregar o vocabulrio marxista, entre o proletariado e os capitalistas so o fato mais importante das sociedades modernas, o que revela a natureza essencial dessas sociedades, ao mesmo tempo que permite prever o desenvolvimento histrico.
O pensamento de Marx uma interpretao do carter contraditrio ou antagnico da sociedade capitalista. De um certo modo, toda a obra de Marx um esforo destinado a demonstrar que esse carter contraditrio inseparvel
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da estrutura fundamental do regime capitalista e , tambm, o motor do movimento histrico.
Os trs textos clebres que me proponho a analisar, o Manifesto comunista, o prefcio da Contribuio crtica da economia poltica e O capital, so trs maneiras de explicar, de fundamentar e precisar esse carter antagnico do regime capitalista.
Se compreendermos bem que o centro do pensamento de Marx a afirmao do carter contraditrio do regime capitalista, entenderemos imediatamente por que impossvel separar o socilogo do homem de ao, j que demonstrar o carter antagnico do regime capitalista leva irresistivelmente a anunciar a autodestruio do capitalismo e, ao mesmo tempo, a incitar os homens a contribuir com alguma coisa para a realizao desse destino j traado.
O Manifesto comunista um texto que, se quisermos, podemos qualificar de no-cientfico. Trata-se de uma brochura de propaganda, mas nele Marx e Engels apresentaram, de forma sucinta, algumas das suas idias cientficas.
O tema central do Manifesto comunista a luta de classes.
A histria de toda sociedade at nossos dias a histria da luta de classes. Homem livre e escravo, patrcio e plebeu, baro e servo, mestre de oficio e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos se encontraram sempre em constante oposio, travaram uma luta sem trgua, ora disfarada, ora aberta, que terminava sempre por uma transformao revolucionria de toda a sociedade, ou ento pela runa das diversas classes em luta. (Manifesto comunista, in Oeuvres, 1.1, p. 161.)
Eis a, portanto, a primeira idia decisiva de Marx: a histria humana se caracteriza pela luta de grupos humanos que chamaremos classes sociais, cuja definio, que por enquanto permanece equvoca, implica uma dupla caracterstica; por um lado, a de comportar o antagonismo dos opressores e dos oprimidos e, por outro lado, de tender a uma polarizao em dois blocos, e somente em dois.
Todas as sociedades sendo divididas em classes inimigas, a sociedade atual, capitalista, no diferente das que a precederam. No entanto, ela apresenta certas caractersticas novas.
Para comear, a burguesia, classe dominante, incapaz de manter seu reinado sem revolucionar permanentemente os instrumentos da produo. A burguesia no pode existir, escreve Marx, sem transformar constantemente os instrumentos de produo, portanto as relaes de produo, portanto o conjunto das condies sociais. Ao contrrio, a primeira condio da existncia de todas as classes industriais anteriores era a de conservar inalterado o antigo modo de produo... No curso do seu domnio de classe, que ainda no tem um sculo, a burguesia criou foras produtivas mais macias e mais co lossais do que as que
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haviam sido criadas por todas as geraes do passado, em conjunto. (Ibid., pp. 164 e 167.)7 Por outro lado, as foras de produo que levaro ao regime socialista esto em processo de amadurecimento dentro da sociedade atual.
No Manifesto comunista so apresentadas duas formas da contradio caracterstica da sociedade capitalista, que, alis, encontramos tambm nas obras cientficas de Marx.
A primeira a contradio entre as foras e as relaes de produo. A burguesia cria incessantemente meios de produo mais poderosos. Mas as relaes de produo, isto , ao que parece, ao mesmo tempo as relaes de propriedade e a distribuio das rendas, no se transformam no mesmo ritmo. O regime capitalista capaz de produzir cada vez mais. Ora, a despeito desse aumento das riquezas, a misria continua sendo a sorte da maioria.
Aparece assim uma segunda forma de contradio, a que existe entre o aumento das riquezas e a misria crescente da maioria. Dessa contradio sair, um dia ou outro, uma crise revolucionria. O proletariado, que constitui e constituir cada vez mais a imensa maioria da populao, se constituir em classe, isto , numa unidade social que aspira tomada do poder e transformao das relaes sociais. Ora, a revoluo do proletariado ser diferente, por sua natureza, de todas as revolues do passado. Todas as revolues do passado eram feitas por minorias, em benefcio de minorias. A revoluo do proletariado ser feita pela imensa maioria, em benefcio de todos. A revoluo proletria marcar assim o fim das classes e do carter antagnico da sociedade capitalista.
Essa revoluo, que provocar a supresso simultnea do capitalismo e das classes, ser obra dos prprios capitalistas. Os capitalistas no podem deixar de transformar a organizao social. Empenhados numa concorrncia inexpivel, no podem deixar de aumentar os meios de produo, de ampliar ao mesmo tempo o nmero dos proletrios e sua misria.
O carter contraditrio do capitalismo se manifesta no fato de que o crescimento dos meios de produo, em vez de se traduzir pela elevao do nvel de vida dos trabalhadores, leva a um duplo processo de proletarizao e pauperizao.
Marx no nega a existncia de muitos grupos intermedirios entre os capitalistas e os proletrios, como artesos, pequenos burgueses, comerciantes, camponeses, proprietrios de terras. Mas faz duas afirmaes: que, medida que evolui o regime capitalista, haver uma tendncia para a cristalizao das relaes sociais em dois - e somente dois - grupos, os proletrios e os capitalistas; que duas - e somente duas - classes representam uma possibilidade de regime poltico, e uma idia de regime social. As classes intermedirias no tm iniciativa nem dinamismo histrico. S duas classes tm condies de imprimir sua marca na sociedade. Uma a classe capitalista e a outra a classe proletria. No dia do conflito decisivo, todos sero obrigados a se alinhar seja com os capitalistas seja com. os proletrios.
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Quando a classe proletria tiver tomado o poder, haver uma ruptura decisiva com o curso da histria precedente. Com efeito, o carter contraditrio de todas as sociedades conhecidas, at o presente, ter desaparecido. Marx escreve:
Quando, no curso do desenvolvimento, os antagonismos de classes tiverem desaparecido e toda a produo estiver concentrada nas mos dos indivduos associados, o poder pblico perder seu carter poltico. No sentido estrito do termo, o poder poltico o poder organizado de uma classe para a opresso de uma outra. Se, na luta contra a burguesia, o proletariado forado a se unir em uma classe; se, atravs de uma revoluo, ele se constitui em classe dominante e, como tal, abole pela violncia as antigas relaes de produo - ento, ao suprimir o sistema de produo, ele elimina ao mesmo tempo as condies de existncia do antagonismo de classe; ento, ao suprimir as classes em geral, ele elimina pelo mesmo ato sua prpria dominao enquanto classe. A antiga sociedade burguesa, com suas classes e seus conflitos de classe, ser substituda por uma associao em que o livre desenvolvimento de cada um ser a condio do livre desenvolvimento de todos. (Manifesto comunista, Oeuvres, 1.1, pp. 182-183.)
Esse texto bem caracterstico de um dos temas essenciais da teoria de Marx. A tendncia dos escritores do comeo do sculo XIX considerar a poltica ou o Estado como um fenmeno secundrio em relao aos fenmenos essenciais, econmicos ou sociais. Marx participa desse movimento geral; tambm ele considera que a poltica e o Estado so fenmenos secundrios, com relao ao que acontece na sociedade.
Por isso apresenta o poder poltico como a expresso dos conflitos sociais. O poder poltico o meio pelo qual a classe dominante, a classe exploradora, mantm seu domnio e sua explorao.
Nesta linha de raciocnio, a supresso das contradies de classe deve levar logicamente ao desaparecimento da poltica e do Estado, pois poltica e Estado so, na aparncia, o subproduto ou a expresso dos conflitos sociais.
Esses so os temas da viso histrica e tambm da propaganda poltica de Marx. Trata-se de uma expresso simplificada, mas a cincia de Marx tem por fm demonstrar rigorosamente essas proposies: o carter antagnico da sociedade capitalista, a autodestruio, inevitvel dessa sociedade contraditria, a exploso revolucionria que por fim ao carter antagnico da sociedade atual.
Portanto, o centro do pensamento de Marx a interpretao do regime capitalista enquanto contraditrio, isto , dominado pela luta de classes. Auguste Comte considerava que faltava consenso sociedade do seu tempo por causa da justaposio de instituies que vinham das sociedades teolgicas e feudais e instituies da sociedade industrial. Observando sua volta essa falta de consenso, procurava no passado os princpios de consenso das sociedades histricas. Marx observa, ou pensa observar, a luta de classes na sociedade capitalista,
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e encontra em diferentes sociedades histricas o equivalente luta de classes do presente.
Segundo Marx, a luta de classes tender a uma simplificao. Os diferentes grupos sociais se polarizaro em tomo da burguesia e do proletariado, e o desenvolvimento das foras produtivas que ser o motor do movimento histrico, levando, pela proletarizao e pela pauperizao, exploso revolucionria e ao surgimento, pela primeira vez na histria, de uma sociedade no-antagnica.
A partir desses temas gerais da interpretao histrica de Marx, temos duas tarefas a cumprir, dois fundamentos a buscar. Em primeiro lugar, qual , no pensamento de Marx, a teoria geral da sociedade que explica as contradies da sociedade atual e o carter antagnico de todas as sociedades conhecidas? Em segundo lugar, qual a estrutura, qual o funcionamento, qual a evoluo da sociedade capitalista que explica a luta de classes e o final revolucionrio do regime capitalista?
Em outras palavras, partindo dos temas marxistas que encontramos no Manifesto comunista, precisamos explicar: ^
- a teoria geral da sociedade, isto , aquilo a que se chama vulgarmente materialismo histrico;
- as idias econmicas essenciais de Marx, que encontramos em O capital.
O prprio Marx, num texto que talvez o mais clebre de todos os que escreveu, resumiu o conjunto da sua concepo sociolgica. No prefcio da Contribuio crtica da economia poltica publicada em Berlim, em 1859, ele assim se exprime:
Eis, em poucas palavras, o resultado geral a que cheguei e que, uma vez alcanado, serviu-me como fio condutor para meus estudos. Na produo social da sua existncia, os homens estabelecem relaes determinadas, necessrias, independentemente da sua vontade. Essas relaes de produo correspondem a um certo grau de evoluo das suas foras produtivas materiais. O conjunto de tais relaes forma a estrutura econmica da sociedade, o fundamento real sobre o qual se levanta um edifcio jurdico e poltico, e ao qual respondem formas determinadas da conscincia social. O modo de produo da vida material domina em geral o desenvolvimento da vida social, poltica e intelectual. No a conscincia dos homens que determina sua existncia, mas, ao contrrio, sua existncia social que determina a sua conscincia. Num certo grau de desenvolvimento, as foras produtivas materiais da sociedade colidem com as relaes de produo existentes, ou com as relaes de propriedade dentro das quais se vinham movimentando at aquele momento, e que no passam da sua expresso jurdica. Essas condies que ainda ontem eram formas de desenvolvimento das foras produtivas se transformam agora em srios obstculos. Comea ento uma era de revoluo social. A transformao dos fundamentos econmicos acompanhada de mudana mais ou menos
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rpida em todo esse enorme edifcio. Ao considerarmos tais mudanas, preciso distinguir duas ordens de coisas. H a transformao material das condies de produo econmica, que se deve constatar com o esprito rigoroso das cincias naturais. Mas h tambm as formas jurdicas, polticas, religiosas, artsticas, filosficas, em suma, as formas ideolgicas com as quais os homens tomam conscincia desse conflito e o levam at o fim. No se julga uma pessoa pela idia que tem de si prpria. No se julga uma poca de revoluo de acordo com a conscincia que ela tem de si mesma. Esta conscincia pode ser mais bem explicada pelas contrariedades da vida material, pelo conflito que ope as foras produtivas sociais e as relaes de produo. Nunca uma sociedade expira antes de que se desenvolvam todas as foras produtivas que ela pode comportar; nunca se estabelecem relaes de produo superiores sem que as condies materiais da sua existncia tenham nascido no prprio seio da antiga sociedade. A humanidade nunca se prope tarefas que no possa realizar. Considerando mais atentamente as coisas, veremos sempre que a tarefa surge l onde as condies materiais da sua realizao j se formaram, ou esto em vias de se criar. Reduzidos a suas grandes linhas, os modos de produo asitico, antigo, feudal e burgus moderno aparecem como pocas progressivas da formao econmica da sociedade. As relaes de produo burguesas so a ltima forma antagnica do processo social da produo. No se trata aqui de um antagonismo individual; ns o entendemos antes como o produto das condies sociais da existncia dos indivduos; mas as foras produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condies materiais prprias para resolver esse antagonismo. Com esse sistema social, encerra-se portanto a pr-histria da sociedade humana. (Contribuio critica da economia politica, Introduo, Oeuvres, 1.1, pp. 272-275.)
Encontramos nessa passagem todas as idias essenciais da interpretao econmica da histria, com a nica reserva de que nem a noo de classes nem o conceito de luta de classes aparecem a explicitamente. No entanto fcil reintroduzi-los nessa concepo geral.
1) Primeira idia e idia essencial: os homens entram em relaes determinadas, necessrias, que so independentes da sua vontade. Em outras palavras, convm seguir o movimento da histria analisando a estrutura das sociedades, as foras de produo e as relaes de produo, e no adotando como origem da interpretao o modo de pensar dos homens. H relaes sociais que se impem aos indivduos, no se levando em conta suas preferncias. A compreenso do processo histrico est condicionada compreenso de tais relaes sociais su- pra-individuais.
2) Em toda sociedade podemos distinguir a base econmica, ou infra-estru- tura, e a superestrutura. A primeira constituda essencialmente pelas foras e pelas relaes de produo; na superestrutura figuram as instituies jurdicas e polticas, bem como os modos de pensar, as ideologias, a filosofias.
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3) O motor do movimento histrico a contradio, em cada momento da histria, entre as foras e as relaes de produo. As foras de produo so, ao que parece, essencialmente a capacidade de uma certa sociedade de produzir; capacidade que funo dos conhecimentos cientficos, do aparelhamento tcnico, da prpria organizao do trabalho coletivo. As relaes de produo, que no aparecem definidas precisamente nesse texto, parecem caracterizadas essencialmente pelas relaes de propriedade. Existe, com efeito, a frmula: as relaes de produo existentes, ou aquilo que apenas sua expresso jurdica, as relaes de propriedade dentro das quais elas atuaram at aquele momento. Contudo, as relaes de produo no se confundem necessariamente com as relaes de propriedade, ou, quando menos, as relaes de produo podem incluir tambm a distribuio da renda nacional, mais ou menos estreitamente determinada pelas relaes de propriedade.
Em outras palavras, a dialtica da histria constituda pelo movimento das foras produtivas, que entram em contradio, em certas pocas revolucionrias, com as relaes de produo, isto , tanto as relaes de propriedade como a distribuio da renda entre os indivduos ou grupos da coletividade.
4) Nessa contradio entre foras e relaes de produo, fcil introduzir a luta de classes, embora o texto no faa aluso. Basta considerar que nos perodos revolucionrios, isto , nos perodos de contradio entre jorgas e relaes de produo, uma classe est associada s antigas relaes de produo, que constituem um obstculo ao desenvolvimento das foras produtivas, enquanto outra classe progressiva, renresenta novas relaes de produo que, em vez de serem um obstculo no caminho do desenvolvimento de foras produtivas, favorecero ao mximo o desenvolvimento dessas foras.
Passemos dessas frmulas abstratas interpretao do capitalismo. Na sociedade capitalista, a burguesia est associada propriedade privada dos meios de produo e, por isso mesmo, a uma certa distribuio da renda nacional. Em contrapartida, o .proletariado, que constitui o outro plo da sociedade, que representa uma outra organizao da coletividade, se toma, num certo momento da histria, o representante de uma nova organizao da sociedade, organizao que ser mais progressiva do que a organizao capitalista. Esta nova organizao marcar uma fase ulterior do processo histrico, um desenvolvimento mais avanado das foras produtivas.
5) Essa dialtica das foras e das relaes da produo sugere uma teoria das revolues. Com efeito, dentro dessa viso histrica, as revolues no so acidentais, mas sim a expresso de uma necessidade histrica. As revolues preenchem funes necessrias, e se produzem quando ocorrem determinadas condies.
As relaes de produo capitalistas se desenvolveram a princpio no seio da sociedade feudal. A Revoluo Francesa se realizou no momento em que as
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novas relaes de produo capitalistas atingiram certo grau de maturidade. Pelo menos nesse texto, Marx prev um processo anlogo para a passagem do capitalismo ao socialismo. As foras de produo devem desenvolver-se no seio da sociedade capitalista; as relaes de produo socialistas devem amadurecer dentro da sociedade atual, antes que se produza a revoluo que marcar o fim da pr-histria da humanidade. Em funo dessa teoria da revoluo, a II Internacional, a social-democracia, se inclinava para a atitude relativamente passiva. Era preciso o amadurecimento natural das foras e das relaes de produo do futuro antes que ocorresse a revoluo. Marx diz que a humanidade nunca coloca problemas que no pode resolver: a social-democracia tinha medo de realizar a revoluo cedo demais - por isso, alis, que ela nunca a realizou.
6) Nesta interpretao histrica, Marx no distingue s a infra e a superestrutura, mas tambm a realidade social e a conscincia: no a conscincia dos homens que determina a realidade, mas, ao contrrio, a realidade social que determina sua conscincia. Da a concepo de conjunto segundo a qual preciso explicar a maneira de pensar dos homens pelas relaes sociais s quais esto integrados.
Proposies como essa podem servir de fundamento para aquilo que hoje chamamos de sociologia do conhecimento.
7) Finalmente, o ltimo tema que est includo no texto: Marx esboa, em largos traos, as etapas da histria humana. Assim como Auguste Comte dis- tinguia os momentos do processo do devenir humano segundo o modo de pensar, Marx distingue as etapas da histria humana a partir dos regimes econmicos. Determina quatro regimes ou, para empregar sua terminologia, quatro modos de produo: o asitico, o antigo, o feudal e o burgus.
Esses quatro modos de produo podem ser divididos em dois grupos:Os modos de produo antigo, feudal e burgus se sucederam na histria do
Ocidente. Representam as trs etapas da histria ocidental, caracterizadas por determinado tipo de relaes entre os homens que trabalham. O modo de produo antigo caracterizado pela escravido; o modo de produo feudal pela servido; o modo de produo burgus pelo trabalho assalariado. Eles constituem trs modos distintos de explorao do homem pelo homem. O modo de produo burgus constitui a ltima formao social antagnica porque, ou na medida em que, o modo de produo socialista, isto , a associao dos produtores, no implica mais a explorao do homem pelo homem, a subordinao dos trabalhadores manuais a uma classe, detentora da propriedade dos meios de produo e do poder poltico.
Por outro lado, o modo de produo asitico no parece constituir uma etapa da histria do Ocidente. Na verdade, os intrpretes de Marx tm discutido incansavelmente a respeito da unidade, ou falta de unidade, do processo histrico. Com efeito, se o modo de produo asitico caracteriza uma civilizao distinta da do Ocidente, provvel que vrias linhas de evoluo histrica sejam possveis segundo os grupos humanos.
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Alm disso, o modo de produo asitico no parece definido pela subordinao de escravos, de servos ou assalariados a uma classe proprietria dos meios de produo, mas pela subordinao de todos os trabalhadores ao Estado. Se esta interpretao do modo de produo asitico correta, sua estrutura social no seria caracterizada pela luta de classes, no sentido ocidental do termo, mas pela explorao de toda a sociedade pelo Estado, ou pela classe burocrtica.
Percebe-se logo o uso que se pode dar noo de modo de produo asitico. Pode-se conceber que, no caso da socializao dos meios de produo, o capitalismo no conduza para o fim de toda a explorao, mas para a difuso do modo de produo asitico, atravs de toda a humanidade. Os socilogos que no so favorveis sociedade sovitica comentaram extensamente estas referncias rpidas ao modo de produo asitico. Chegaram mesmo a encontrar, nos escritos de Lenin, certas passagens em que ele manifestava o temor de que uma revoluo socialista levasse no ao fim da-explorao do homem pelo homem, mas instalao do modo de produo asitico, tirando da concluses de ordem poltica fceis de adivinhar8.
Essas so, a meu ver, as idias diretrizes de uma interpretao econmica da histria. No encontramos, at aqui, problemas filosficos complicados. Cabe perguntar at que ponto essa interpretao solidria, ou no, com uma metafsica materialista. Qual o sentido exato que se deve atribuir ao termo dialtica? No momento, suficiente limitarmo-nos s idias fundamentais, expostas por Marx, e que contm um certo equvoco, uma vez que a determinao dos limites precisos da infra-estrutura e da superestrutura pode levar (e tem levado) a discusses infindveis.
O capital
O capital tem sido objeto de dois tipos de interpretao. Segundo alguns, como Schumpeter, essencialmente uma obra de econorfiia cientfica, sem implicaes filosficas. Segundo outros, como o padre Bigo, por exemplo, uma espcie de anlise fenomenolgica ou existencial da economia, e algumas passagens que se prestam a uma interpretao filosfica, como o captulo sobre o fetichismo das mercadorias, forneceriam a chave do pensamento de Marx. Sem entrar nessa controvrsia, direi qual minha interpretao pessoal.
Creio que Marx se considerava um economista cientfico, maneira dos economistas ingleses em que se baseou. Com efeito, ele acreditava ser herdeiro e crtico da economia poltica inglesa. Estava convencido de ter captado o que havia de melhor naquela economia, corrigindo-lhe os erros e ultrapassando suas limitaes, atribuveis perspectiva capitalista ou burguesa. Ao analisar o valor, a troca, a explorao, a mais-valia, o lucro, Marx se coloca como econo
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mista puro. No lhe ocorreria justificar uma proposio cientfica inexata ou discutvel invocando uma inteno filosfica. Marx levava a srio a cincia.
Contudo, Marx no um economista clssico, por razes muito precisas, que ele prprio revela, e que nos permitem compreender onde se situa sua obra.
Marx critica os economistas clssicos por terem considerado que as leis da economia capitalista eram universalmente vlidas. Ora, para ele cada regime econmico tem suas prprias leis. As leis econmicas clssicas no passam, nas circunstncias em que so verdadeiras, de leis do regime capitalista. Marx passa assim da idia de uma teoria econmica universalmente vlida para a idia do carter especfico das leis de cada regime.
Por outro lado, um regime econmico no pode ser compreendido abstraindo-se sua estrutura social. Existem leis econmicas caractersticas de cada regime porque as leis econmicas constituem a expresso abstrata de relaes sociais que definem um determinado modo de produo. No regime capitalista, por exemplo, a estrutura social que explica o fenmeno capitalista essencial da explorao, e que determina a autodestruio inevitvel do regime capitalista.
O resultado que Marx assume como objetivo explicar o modo de funcionamento do regime capitalista, com base na sua estrutura social, e o desenvolvimento desse regime, com base no seu modo de funcionamento. Em outras palavras, O capital um empreendimento grandioso e - digamos num sentido estrito - um empreendimento genial, destinado a explicar simultaneamente o modo de funcionamento, a estrutura social e a histria do regime capitalista. Marx um economista que pretende ser tambm um socilogo. A compreenso do funcionamento do capitalismo deve permitir compreender por que os homens so explorados no regime da propriedade privada e por que esse regime est condenado, por suas prprias contradies, a evoluir no sentido de uma revoluo que o destruir.
A anlise do desenvolvimento e da histria do capitalismo proporciona tambm uma viso da histria da humanidade atravs dos modos de produo. O capital um livro de economia que , ao mesmo tempo, uma sociologia do capitalismo e uma histria filosfica da humanidade, embaraada nos seus prprios conflitos at o fim da pr-histria.
Uma tal tentativa evidentemente grandiosa, mas acrescento imediatamente que no creio que tenha dado certo. Alis, at hoje, nenhuma tentativa dessa ordem deu certo. A cincia econmica ou sociolgica de hoje dispe de anlises parciais vlidas do modo de funcionamento do capitalismo, dispe de anlises sociolgicas vlidas da condio dos homens ou das classes num regime capitalista, dispe de certas anlises histricas que explicam a transformao do regime capitalista, mas no existe uma teoria de conjunto que vincule, de modo necessrio, estrutura social, modo de funcionam ento , destino dos homens no regime, evoluo do regime. E se no existe uma teoria que consi
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ga abraar o conjunto talvez seja porque esse conjunto no exista e a histria talvez no seja to racional e necessria.
De qualquer forma, compreender O capital compreender como Marx quis analisar o funcionamento e o devenir do regime e descrever a condio dos homens no interior do regime.
O capital compreende trs livros. S o primeiro foi publicado pelo prprio Marx. Os livros II e III so pstumos. Foram extrados por Engels dos volumosos manuscritos de Marx, e no foram terminados. As interpretaes que encontramos nos livros II e III se prestam contestao, porque algumas passagens podem parecer contraditrias. No pretendo resumir aqui o conjunto de O capital, mas no me parece impossvel separar os temas essenciais que so, alis, aqueles que Marx considerava os mais importantes, e tambm os que tiveram maior influncia na histria.
O primeiro desses temas que a essncia do capitalismo , antes de tudo, a busca do lucro. Na medida em que se baseia na propriedade privada dos instrumentos de produo, o capitalismo est fundamentado tambm na busca do lucro pelos empresrios ou produtores.
Quando, na sua ltima obra, Stalin escreveu que a lei fundamental do capitalismo era a busca do lucro mximo, enquanto a lei fundamental do socialismo era a satisfao das necessidades e a elevao do nvel cultural delas, ele levou, evidentemente, o pensamento de Marx do nvel do ensino superior para o nvel do ensino primrio, mas no h dvida de que reiterou o tema inicial da anlise marxista, que vamos encontrar nas primeiras pginas de O capital, em que Marx ope dois tipos de troca9.
Existe um tipo de troca que vai da mercadoria mercadoria, passando ou no pelo dinheiro. Possumos um bem de que no fazemos uso, trocamo-lo por um bem de que temos necessidade, entregando o bem que possumos quele que o deseja. Quando isso se opera de modo direto, trata-se de uma simples troca. Mas essa troca pode ser feita de modo indireto, por intermdio do dinheiro, que o equivalente universal das mercadorias.
A troca que vai da mercadoria mercadoria , pode-se dizer, troca imediatamente inteligvel, imediatamente humana, mas tambm troca que no proporciona lucro ou excedente. Enquanto passamos da mercadoria para a mercadoria mantemo-nos numa relao de igualdade.
Contudo, h um segundo tipo de troca, que vai do dinheiro ao dinheiro, passando pela mercadoria, com a particularidade de que no fim do processo de troca possumos uma quantia em dinheiro superior quela da fase inicial. Este tipo de troca que vai do dinheiro ao dinheiro passando pela mercadoria caracterstico do capitalismo. No capitalismo, o empresrio ou produtor no passa de uma mercadoria q u e - i n t i l para ele para outra que lhe til, por intermdio Hn di
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nheiro; a essncia da troca capitalista consiste em passar do dinheiro ao dinheiro passando pela mercadoria, para ter, no fim do processo, mais dinheiro do que no ponto de partida.
Para Marx, este o tipo de troca capitalista por excelncia, e o mais misterioso. Como possvel adquirir pela troca o que no se possua ou, quando menos, ter mais do que o que se tinha no ponto de partida? O problema principal do capitalismo, segundo Marx, poderia ser assim formulado: qual a origem do lucro? Como possvel um regime em que o motor essencial da atividade a busca do lucro e em que, em suma, produtores e comerciantes podem lucrar?
Marx est convencido de que tem uma resposta plenamente satisfatria para essa questo. Com a teoria da mais-valia ele demonstra que tudo trocado pelo seu valor, e que, no entanto, existe uma fonte de lucro.
As etapas da sua demonstrao so: a teoria do valor do salrio e, por fim, a teoria da mais-valia.
Primeira proposio: o valor de qualquer mercadoria , de modo geral, proporcional quantidade de trabalho social mdio nela contida. o que chamamos de teoria do valor-trabalho.
Marx no pretende que a lei do valor seja rigorosamente respeitada em toda e qualquer troca. O preo de uma mercadoria oscila abaixo e acima do seu valor em funo do estado da oferta e da demanda. Marx no s conhece essas variaes como afirma claramente a sua existncia. Por outro lado reconhece que as mercadorias s tm valor na medida em que existe uma demanda por elas. Em outros termos, se houvesse trabalho cristalizado numa mercadoria, mas nenhum poder de compra fosse dirigido a ela, esta mercadoria no teria mais valor; isto , a proporcionalidade entre o valor e a quantidade de trabalho pressupe, por assim dizer, uma demanda normal da mercadoria considerada. Isso eqivale, em suma, a deixar de lado um dos fatores das variaes do preo da mercadoria. No entanto, se supomos uma demanda normal para a mercadoria considerada, existe, segundo Marx, uma certa proporcionalidade entre o valor dessa mercadoria - expresso no preo - e a quantidade de trabalho social mdio cristalizado nessa mercadoria.
Por que assim? O argumento essencial que Marx apresenta o de que a quantidade de trabalho o nico elemento quantificvel que se descobriu na mercadoria. Se consideramos o valor de uso estamos diante de um elemento rigorosamente qualitativo. No possvel comparar o uso de uma caneta com o de uma bicicleta. Trata-se de dois usos estritamente subjetivos e, sob esse aspecto, no podem ser comparveis um com o outro. Como procuramos saber em que consiste o valor de troca das mercadorias, precisamos encontrar um elemento que seja quantificvel, como o prprio valor de troca. E, diz Marx, o nico valor quantificvel a quantidade de trabalho que est inserido, integrado, cristalizado em cada uma delas.
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Naturalmente existem dificuldades, que Marx admite igualmente, a saber, as desigualdades do trabalho social. O trabalho do operrio no qualificado e do operrio especializado no tm o mesmo valor, ou a mesma capacidade criadora de valor, que o trabalho do contramestre, ou do engenheiro. Admitindo essas diferenas qualitativas de trabalho, Marx acrescenta que para resolver a dificuldade basta reduzir esses diferentes tipos de trabalho unidade que o trabalho social mdio.
Segunda proposio: o valor do trabalho pode ser medido, como o valor de qualquer mercadoria. O salrio pago pelo capitalista ao trabalhador assalariado, como contrapartida da fora de trabalho que este ltimo lhe vende, eqivale quantidade de trabalho social necessrio para produzir mercadorias indispensveis vida do trabalhador e de sua famlia. O trabalho humano pago pelo seu valor, de acordo com a lei geral do valor aplicvel a todas as mercadorias.
Marx apresenta essa proposio domo evidente por si mesma. Ora, normalmente, quando se toma uma afirmao como evidente, isto significa que ela se presta discusso.
Marx afirma: como o operrio chega ao mercado de trabalho para vender sua fora de trabalho, preciso que ela seja paga pelo seu valor. E Marx acrescenta que o valor s pode ser, nesse caso, o que ele em todos os casos, isto , o valor medido pela quantidade de trabalho. Porm, no se trata exatamente da quantidade de trabalho necessria para produzir um trabalhador, o que nos faria sair do campo das trocas sociais para ingressar no terreno das trocas biolgicas. E preciso admitir que a quantidade de trabalho que vai medir o valor da sua fora de trabalho o das mercadorias de que o operrio necessita, para sobreviver, ele e a famlia.
A dificuldade dessa proposio est em que a teoria do valor-trabalho se baseia no carter quantificvel do trabalho enquanto princpio do valor, e que, na segunda proposio, quando se trata das mercadorias necessrias para a subsistncia do operrio e de sua famlia, aparentemente deixa-se o terreno do quantificvel. Neste ltimo caso, trata-se com efeito do montante definido pelos costumes e pela psicologia coletiva, conforme o prprio Marx reconhece. Por isto Schumpeter afirmou que a segunda proposio da teoria da explorao no passa de um jogo de palavras.
Terceira proposio: o tempo de trabalho necessrio para o operrio produzir um valor igual ao que recebe sob forma de salrio inferior durao efetiva do seu trabalho. O operrio produz, por exemplo, em cinco horas um valor igual ao que est contido no seu salrio, mas na verdade trabalha dez horas. Portanto, trabalha metade do tempo para si mesmo e a outra metade para o dono da empresa. A mais-valia a quantidade de valor produzido pelo trabalhador alm do tempo de trabalho necessrio, isto , do tempo de trabalho necessrio para produzir um valor igual ao que recebe sob a forma jde salrio.
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A parte da jornada de trabalho necessria para produzir o valor cristalizado no salrio o chamado trabalho necessrio; o resto o sobretrabalho. O valor produzido durante o sobretrabalho chamado mais-valia. E a taxa de explorao definida pela relao entre a mais-valia e o capital varivel, isto , o capital que corresponde ao pagamento do salrio.
Se admitirmos as duas primeiras proposies, teremos de aceitar logicamente a terceira, desde que o tempo de trabalho necessrio para produzir o valor encarnado no salrio seja inferior durao total do trabalho.
Marx afirma, pura e simplesmente, a existncia dessa diferena entre a jornada de trabalho e o trabalho necessrio. Est convencido de que a jornada de trabalho do seu tempo, que era de 10 horas, s vezes de 12 horas, era muito superior durao do trabalho necessrio, isto , do trabalho necessrio para criar o valor encarnado no prprio salrio.
A partir desse ponto, Marx desenvolve uma casustica da luta pela durao do trabalho. Invoca um grande nmero de fenmenos do seu tempo, em particular o fato de que os empresrios pretendiam s ter lucro com a ltima ou as duas ltimas horas de trabalho. Sabe-se, alis, que h um sculo que os empresrios protestam cada vez que se reduz a jornada de trabalho. Em 1919, alegavam que com uma jornada de 8 horas no conseguiriam equilibrar-se. Os argumentos dos empresrios ilustravam a teoria de Marx, que implica que o lucro s seja obtido na parte final da jornada de trabalho.
Existem dois procedimentos fundamentais para aumentar a mais-valia s custas dos assalariados, isto , para elevar a taxa de explorao. Um consiste em prolongar a durao do trabalho; o outro, em reduzir o mais possvel o trabalho necessrio. Um dos meios de conseguir reduzir a durao do trabalho aumentar a produtividade, isto , produzir o valor igual ao do salrio num tempo mais curto. Isso explica o mecanismo da tendncia pela qual a economia capitalista procura aumentar constantemente a produtividade do trabalho. O aumento dessa produtividade do trabalho proporciona automaticamente uma reduo do trabalho necessrio e, em conseqncia, uma evoluo da taxa de mais-valia, se for mantido o nvel dos salrios nominais.
Compreendem-se assim a origem do lucro e o modo como um sistema econmico, em que tudo se troca de acordo com o seu valor, pode, ao mesmo tempo, produzir mais-valia, isto , lucro para os empresrios. H uma mercadoria que tem esta particularidade de ser paga pelo seu valor, e ao mesmo tempo produzir mais que seu valor, o trabalho humano.
Uma anlise desse tipo parecia a Marx puramente cientfica, j que explicava o lucro por um mecanismo inevitvel, ligado intrinsecamente ao regime capitalista. Contudo, esse mesmo mecanismo se prestava a denncias e a invec- tivas, uma vez que, se tudo se passar conforme a lei do capitalismo, o operrio estar sendo explorado, trabalhando uma parte do seu tempo para si e outra
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parte do seu tempo para o capitalista. Marx era um cientista, mas era tambm um profeta.
Estes so, num lembrete rpido, os elementos essenciais da teoria da explorao. Teoria que tem, para Marx, uma dupla importncia. Em primeiro lugar, ela parece resolver uma dificuldade intrnseca da economia capitalista, que pode ser formulada nos seguintes termos: uma vez que nas trocas h igualdade de valores, qual a origem do lucro? Em segundo lugar, ao resolver um enigma cientfico, Marx tem a sensao de dar um fundamento rigoroso e racional ao protesto contra um determinado tipo de organizao econmica. Finalmente, sua teoria da explorao d uma base sociolgica, para usar linguagem moderna, s leis econmicas do funcionamento da economia capitalista.
Marx acredita que as leis econmicas so histricas, e que cada regime tem suas prprias leis. A teoria da explorao um exemplo dessas leis histricas, pois o mecanismo da mais-valia e da explorao pressupe a distino de classes na sociedade. Uma classe, a dos empresrios ou proprietrios dos meios de produo, adquire a fora de trabalho dos operrios. A relao econmica entre capitalistas e proletrios funo de uma relao social de poder entre duas categorias sociais.
A teoria da mais-valia tem uma dupla funo, cientfica e moral. A conjuno desses dois elementos deu ao marxismo uma influncia incomparvel. Os espritos racionais encontraram nela uma satisfao, e os espritos idealistas ou revoltados, tambm. Esses dois tipos de satisfao se multiplicavam um pelo outro.
At aqui analisei apenas o primeiro livro de O capital, o nico publicado durante a vida de Marx. Conforme notei, dos dois livros seguintes, ele deixou os manuscritos que foram publicados por Engels.
O livro II estuda a circulao do capital. Deveria explicar o funcionamento do sistema econmico capitalista considerado como um todo. Em termos modernos, poderamos dizer que, a partir de uma anlise microeconmica da estrutura do capitalismo e do seu funcionamento, contida no livro I, Marx teria elaborado, no livro II, uma teoria macroeconmica comparvel ao Tableau co- nomique de Quesnay, e tambm uma teoria das crises, cujos elementos encontramos dispersos em vrios pontos. Na minha opinio, no h em Marx uma teoria geral das crises. verdade que ele tentou elaborar essa teoria, mas no a completou, e possvel, a partir das indicaes dispersas do livro II, reconstruir vrias teorias e atribu-las a Marx. A nica idia que no se presta a dvidas a de que, segundo Marx, o carter concorrencial anrquico do mecanismo capitalista e a necessidade da circulao do capital criam uma possibilidade permanente de hiato entre a produo e a repartio do poder de compra. O que eqivale a dizer que da natureza de uma economia anrquica comportar crises. Qual o esqueOW? ou o mecanismo, que faz com que essas crises ocorram? Iilas
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so regulares ou irregulares? Qual a conjuntura econmica da qual brota a crise? Sobre todos esses pontos encontramos em Marx indicaes, mas no uma teoria acabada10.
O livro III o esboo de uma teoria do desenvolvimento histrico do regime capitalista baseada na anlise da sua estrutura e do seu funcionamento.
O problema central do livro III o seguinte: se considerarmos o esquema do livro I, veremos que quanto mais trabalho houver numa determinada empresa ou num determinado setor da economia mais haver mais-valia nessa empresa ou nesse setor; ou ento, que a porcentagem do capital varivel em relao ao capital total mais elevada.
Para Marx, o capital constante a parte do capital das empresas que corresponde seja s mquinas, seja s matrias-primas investidas na produo. No es- quematismo do livro I, o capital constante se transfere para o valor dos produtos sem criar mais-valia. A mais-valia provm toda do capital varivel, correspondente ao pagamento dos salrios. A composio orgnica do capital a relao entre o capital varivel e o capital constante. A taxa de explorao a relao entre a mais-valia e o capital varivel.
Se considerarmos, pois, essa relao abstrata, caracterstica da anlise es- quemtica do livro I de O capital, chegaremos necessariamente concluso de que numa empresa ou num setor determinado da economia haver mais-valia proporcional ao capital varivel; a mais-valia diminuir na medida em que a composio orgnica do capital evoluir para a reduo da relao entre capital varivel e capital constante. Em termos concretos, deveria haver uma quantidade menor de mais-valia na medida em que houvesse uma maior mecanizao da empresa ou do setor.
Ora, salta aos olhos que no o que acontece, e Marx tem perfeita conscincia do fato de que as aparncias da economia parecem contradizer as relaes fundamentais que ele postula na sua anlise esquemtica. Enquanto o livro III de O capital no havia sido publicado, os marxistas e seus crticos se perguntavam: se a teoria da explorao vlida, por que razo as empresas e os setores da economia que aumentam o capital constante, em relao ao capital varivel, conseguem maiores lucros? Em outras palavras, o modo aparente do lucro parece contradizer o modo essencial da mais-valia.
A resposta de Marx a seguinte: a taxa de lucro calculada no com relao ao capital varivel, como a taxa de explorao, mas com relao ao conjunto do capital, isto , a soma do capital constante e do varivel.
Por que motivo a taxa de lucro proporcional no mais-valia, mas ao conjunto do capital constante e varivel? O capitalismo no poderia funcionar, evidentemente, se a taxa de lucro fosse proporcional ao capital varivel. Com efeito, atingiramos uma desigualdade extrema da taxa de lucro, j que em diferentes setores da economia a composio orgnica do capital, isto , a relao
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entre capital varivel e capital constante, muito diferente. Portanto, a taxa de lucro efetivamente proporcional ao conjunto do capital, e no ao capital varivel, pois de outra forma o regime capitalista no poderia funcionar.
Mas por que essa aparncia do modo do lucro diferente da realidade essencial do modo da mais-valia? H duas respostas a esta questo, a resposta oficial de Marx e a dos no-marxistas, ou dos antimarxistas.
Schumpeter, por exemplo, tem uma resposta muito simples: a teoria da mais-valia falsa. O fato de que a aparncia do lucro esteja em contradio direta com a essncia da mais-valia prova apenas que o esquematismo da mais- valia no corresponde realidade. Quando se verifica que a realidade contradiz uma teoria, pode-se evidentemente conciliar a teoria com a realidade fa^ndo intervir um certo nmero de hipteses suplementares. H, porm, outra soluo, mais lgica, que consiste em reconhecer que o esquematismo terico foi mal construdo.
A resposta de Marx a seguinte: o capitalismo no poderia funcionar se a taxa de lucro fosse proporcional mais-valia, e no ao conjunto do capital. H assim uma taxa de lucro mdia em cada economia. Essa taxa de lucro mdia formada pela concorrncia entre as empresas e os vrios setores da economia. A concorrncia fora o lucro no sentido de uma taxa mdia; no h proporcionalidade da taxa de lucro com relao mais-valia em cada empresa ou setor, mas o conjunto da mais-valia constitui no conjunto da economia um montante global que se distribui entre os vrios setores em proporo ao capital total, constante e varivel, investido em cada setor.
assim porque no pode ser de outro modo. Se houvesse um hiato muito grande entre as taxas de lucro dos vrios setores, o sistema no funcionaria. Se houvesse num determinado setor taxa de lucro de 30 a 40% e num outro uma taxa de 3 a 4%, no se encontraria capital para investir nos setores em que a taxa de lucro fosse baixa. O prprio exemplo fornece a argumentao marxista: no pode ser assim, portanto, deve-se constituir, pela concorrncia, uma taxa de lucro mdia que garanta ao final, que a massa global da mais-valia seja repartida entre os setores com base na importncia do capital investido em cada um deles.
Esta teoria conduz teoria do devenir, quilo que Marx chama de lei da tendncia para a baixa da taxa de lucro.
O ponto de partida de Marx foi uma constatao que todos os economistas do seu tempo faziam ou pensavam fazer, a saber, que existe uma tendncia secular para a baixa da taxa de lucro. Marx, sempre desejoso de explicar aos economistas ingleses at que ponto ele, graas ao seu mtodo, lhes era superior, pensou ter descoberto, no seu esquematismo, a explicao histrica da tendncia para a baixa da taxa de lucro11.
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O lucro mdio proporcional ao conjunto do capital, isto , ao total do capital constante e do capital varivel. A mais-valia, porm, deriva apenas do capital varivel, isto , do trabalho dos homens. Ora, a composio orgnica do capital se transforma com a evoluo capitalista e a mecanizao da produo, e a parte do capital varivel com relao ao capital total tende a diminuir. Marx conclui da que a taxa de lucro tende a baixar medida que a composio orgnica do capital se modifica, reduzindo a parte do capital varivel no capital total.
Essa lei da tendncia para a baixa da taxa de lucro proporcionava a Marx uma grande satisfao intelectual. Com efeito, acreditava ter demonstrado, de modo cientificamente satisfatrio, um fato constatado pelos observadores, mas no explicado, ou mal explicado. Alm disso, acreditava ter encontrado mais uma vez aquilo que seu mestre Hegel teria chamado de astcia da razo, isto , a autodestruio do capitalismo por mecanismo inexorvel, passando ao mesmo tempo pela ao dos homens e por cima de suas cabeas.
De fato, a modificao da composio orgnica do capital toma-se inevitvel pela concorrncia e tambm pelo desejo dos empresrios de diminuir o tempo de trabalho necessrio. A concorrncia das empresas capitalistas aumenta a produtividade; o aumento da produtividade se traduz normalmente pela mecanizao da produo, isto , pela reduo do capital varivel em relao ao capital constante. Em outras palavras, o mecanismo da concorrncia de uma economia baseada no lucro tende acumulao do capital, mecanizao da produo, reduo da parte do capital varivel no capital total. Esse mecanismo inexorvel , ao mesmo tempo, o que provoca a tendncia para a baixa da taxa de lucro, isto , o que toma cada vez mais difcil o funcionamento de uma economia cujo eixo fundamental a busca do lucro.
Encontramos uma vez mais o esquema fundamental do pensamento marxista. O de uma sociedade histrica que passa pela ao dos homens e, ao mesmo tempo, superior ao de cada um deles, o de um mecanismo histrico que tende a destruir o regime, pelo jogo das leis intrnsecas do seu funcionamento.
O centro e a originalidade do pensamento marxista esto, a meu ver, na conjuno de uma anlise do funcionamento e de uma anlise de um devenir inevitvel. Cada indivduo, agindo racionalmente em funo do seu interesse, contribui para destruir o interesse comum de todos, ou, pelo menos, de todos os que esto interessados em salvaguardar o regime.
Essa teoria uma espcie de inverso das proposies bsicas dos liberais. Para eles, cada indivduo trabalha pelo interesse da coletividade, ao trabalhar pelo interesse prprio. Para Marx, acontece o contrrio: trabalhando no interesse prprio, cada um contribui para o funcionamento necessrio e para a destruio final do regime. O mito sempre o do aprendiz de feiticeiro, como no Manifesto comunista.
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At aqui demonstramos que a taxa de lucro tende a baixar em funo da modificao da composio orgnica do capital. Contudo, a partir de que taxa de lucro o capitalismo deixa de funcionar? Marx no d, estritamente, nenhuma resposta porque, de fato, nenhuma teoria racional permite fixar a taxa de lucro indispensvel ao funcionamento do regime12. Em outras palavras, a lei da tendncia para a baixa da taxa de lucro sugere que o funcionamento do capitalismo deve tornar-se cada vez mais difcil, em funo da mecanizao ou da elevao da produtividade, mas no demonstra a necessidade da catstrofe final e menos ainda o momento em que ela ocorrer.
Quais so as proposies que demonstram a autodestruio do regime? Curiosamente, as nicas proposiespesse sentido so as mesmas que j podamos encontrar no Manifesto comunista, e nas obras escritas por Maix antes de desenvolver seus estudos aprofundados de economia poltica. So as afirmaes relacionadas com a proletarizao e a pauperizao. O processo de prole- tarizao significa que, medida que se desenvolve o regime capitalista, as camadas intermedirias, entre capitalistas e proletrios, sero desgastadas, corrodas, e um nmero crescente dos membros dessas camadas sero absorvidos pelo proletariado. A pauperizao o processo pelo qual os proletrios tendem a se tomar cada vez mais miserveis medida que se desenvolvem as foras da produo. Se admitirmos que, com o aumento da produo, ocorrer uma diminuio do poder aquisitivo das massas operrias, ser de fato provvel que essas massas tendam a se revoltar. Nessa hiptese, o mecanismo de autodestruio do capitalismo seria sociolgico, passando pelo comportamento dos grupos sociais. Uma outra hiptese a de que a renda distribuda s massas populares fosse insuficiente para absorver a produo crescente, havendo neste caso uma paralisia do regime pela impossibilidade de estabelecer uma igualdade entre as mercadorias produzidas e a respectiva demanda, no mercado consumidor.
Existem duas representaes possveis da dialtica capitalista da autodestruio: uma dialtica econmica, que uma nova verso da contradio entre as foras de produo, que crescem indefinidamente, e as relaes de produo que estabilizam as rendas distribudas s massas; ou ento um mecanismo sociolgico que passa pelo intermedirio da insatisfao crescente dos trabalhadores proletarizados e da revolta desses trabalhadores.
Porm, como demonstrar a pauperizao? Por que razo, no esquematismo de Marx, a renda distribuda aos trabalhadores deve diminuir, em termos absolutos ou relativos, em funo do aumento da fora produtiva?
Para falar a verdade, no fcil, no esquema de Marx, demonstrar a pauperizao. Com efeito, de acordo com a teoria, o salrio igual quantidade de mercadorias necessrias para a vida do trabalhador e sua famlia. Por outro lado, Marx acrescenta imediatamente que o que necessrio para a vida do trabalhador e sua f a m l ia Jio objeto de avaliao matematicamente exata, mas o re
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sultado de uma avaliao social, que pode mudar de uma sociedade para outra. Se admitirmos essa avaliao social do nvel de vida considerado como mnimo, devemos concluir, ao contrrio, que o nvel de vida do operrio tende a melhorar. De fato, provvel que cada sociedade considere como nvel de vida mnimo o que corresponda a suas possibilidades de produo. , alis, o que acontece na prtica: o nvel de vida considerado hoje como mnimo nos Estados Unidos ou na Frana muito superior ao que seria adotado h um sculo. claro que se trata de uma avaliao social aproximada desse mnimo, mas os clculos feitos pelos sindicatos sobre esse nvel de vida mnimo tm sempre uma relao com as possibilidades da economia. Se, portanto, o montante dos salrios funo de uma avaliao coletiva do mnimo, deveria, ao contrrio, haver aumento.
Por outro lado, segundo o prprio Marx, no impossvel elevar o nvel de vida dos operrios sem modificar a taxa de explorao. Basta para isso que a elevao da produtividade permita criar um valor igual ao salrio com uma durao menor do trabalho necessrio. A produtividade permite melhorar o nvel de vida real dos trabalhadores, no esquema marxista, sem diminuir a taxa de explorao.
Se admitirmos a elevao da produtividade e, em conseqncia, a reduo da durao do trabalho necessrio, s podemos afastar a hiptese da elevao do nvel de vida real admitindo um aumento da taxa de explorao. Ora, segundo Marx, a taxa de explorao mais ou menos constante, em diferentes perodos.
Em outras palavras, se seguirmos o mecanismo econmico tal como Marx o analisou, no veremos uma demonstrao da pauperizao, e nossa concluso, pelo contrrio, coincidir com aquilo que de fato ocorreu: uma elevao do nvel de vida real dos operrios.
De onde tirada, ento, nas obras de Marx, uma demonstrao da pauperizao?
A meu ver, a nica demonstrao passa pelo intermedirio de um mecanismo sociodemogrfico, o do exrcito industrial de reserva. O que impede a elevao dos salrios o excedente permanente de mo-de-obra no empregada, que pesa sobre o mercado de trabalho e modifica as relaes de troca entre capitalistas e assalariados, em detrimento dos operrios.
Na teoria de O capital a pauperizao no um mecanismo estritamente econmico, mas uma teoria econmico-sociolgica. O elemento sociolgico a idia - que ele compartilhava com Ricardo mas que, na verdade, no o satisfazia - de que, uma vez que os salrios tendem a se elevar, a taxa de natalidade aumenta, criando assim um excesso de mo-de-obra. O mecanismo propriamente econmico (este, sim, prprio de Marx) o do desemprego tecnolgico. A permanente mecanizao da produo tende a liberar uma parte dos operrios empregados. O exrcito de reserva a prpria expresso do mecanismo de
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realizao do progresso tcnico-econmico no capitalismo. ele que pesa sobre o nvel dos salrios, impedindo-o de subir. Na sua ausncia seria possvel integrar no esquema marxista o fato histrico da elevao do nvel de vida dos operrios sem renunciar aos elementos essenciais da teoria.
Nesse caso, a pergunta continuaria de p: por que a autodestruio do capitalismo necessria? Minha impresso que, ao terminar a leitura de O capital, descobrimos as razes pelas quais o funcionamento do sistema capitalista difcil, e se torna cada vez mais difcil, embora esta ltima proposio me parea historicamente falsa; mas no creio que O capital nos demonstre conclusivamente a autodestruio necessria do capitalismo, a no ser pela revolta das massas indignadas com a sorte que lhes imposta. Se essa sorte no suscitar uma indignao extrema, como por exemplo nos Estados Unidos, O capital no nos d-razes para acreditar que a condenao do regime capitalista seja inexorvel.
Contudo, os regimes conhecidos no passado eram, teoricamente, suscetveis de sobreviver, mas desapareceram. No tiremos concluses precipitadas pelo fato de que a morte do capitalismo no tenha sido demonstrada por Marx. Os regimes podem morrer sem que tenham sido condenados morte pelos tericos.
Os equvocos da filosofia marxista
O centro do pensamento marxista uma interpretao sociolgica e histrica do regime capitalista, condenado, em funo das suas contradies, a evoluir para a revoluo e para um regime no-antagnico.
bem verdade que Marx pensava que a teoria geral da sociedade que desenvolveu a partir do estudo do capitalismo pode e deve servir para a compreenso de outros tipos de sociedade. No h dvida contudo de que se preocupava antes de mais nada com a interpretao da estrutura e do futuro do capitalismo.
Por que razo essa sociologia histrica do capitalismo comporta tantas interpretaes diferentes? Por que a tal ponto equvoca? Mesmo deixando de lado as razes acidentais, histricas, pstumas, o destino dos movimentos e das sociedades que se dizem marxistas e as razes deste equvoco parecem ser, a meu ver, essencialmente trs.
A concepo marxista da sociedade capitalista, e das sociedades em geral, sociolgica, mas sua sociologia est vinculada a uma filosofia. Muitas dificuldades de interpretao nascem das relaes entre a filosofia e a sociologia, relaes que podem ser compreendidas de diferentes maneiras.
Por outro lado, a sociologia marxista propriamente dita comporta interpretaes diversas, de acordo com a definio mais ou menos dogmtica que se d a noes como foras de produo ou relaes de produo, e conforme se con-
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sidere que o conjunto da sociedade seja determinado ou condicionado pela in- fra-estrutura. Os conceitos de infra-estrutura e superestrutura no so claros, e se prestam a especulaes infindveis.
Enfim as relaes entre economia e sociologia levam a interpretaes diversas. Segundo Marx, a partir da cincia econmica que se pode compreender a sociedade global, mas as relaes entre os fenmenos econmicos e o conjunto social so equvocas.
Uma proposio me parece incontestvel, isto , uma proposio que todos os textos de Marx deixam clara. Marx passou da filosofia para a economia poltica, atravs da sociologia, e permaneceu filsofo at o fim da vida. Sempre considerou que a histria da humanidade, tal como se desenrola atravs de sucesso de regimes, e tal como ela desemboca numa sociedade no antagnica, tem uma significao filosfica. atravs da histria que o homem cria a si mesmo e a realizao da histria , simultaneamente, um fim da filosofia. Pela histria, a filosofia, definindo o homem, se realiza a si mesma. O regime no- antagnico ps-capitalista no apenas um tipo social entre outros: o termo da procura da humanidade por si mesma.
Contudo, se esta significao filosfica da histria incontestvel, restam ainda muitas questes difceis.
Classicamente, explicava-se o pensamento de Marx pela conjuno de trs influncias, que o prprio Engels havia enumerado: a filosofia alem, a economia inglesa e a cincia histrica francesa. Essa enumerao de influncias parece banal e por isso hoje desprezada pelos intrpretes mais sutis. Todavia, preciso comear pelas interpretaes no sutis, isto , pelo que o prprio Marx e o prprio Engels revelaram a respeito das origens do seu pensamento.
Segundo eles, situavam-se na seqncia da filosofia clssica alem, porque guardavam uma das idias fundamentais de Hegel, isto , de que a sucesso das sociedades e dos regimes representa simultaneamente as etapas da filosofia e as etapas da humanidade.
Por outro lado, Marx estudou a economia inglesa; utilizou conceitos dos economistas ingleses; assumiu algumas das teorias admitidas no seu tempo, por exemplo, a teoria do valor-trabalho, ou a lei da tendncia para a baixa da taxa de lucro, alis, aplicada de modo diferente por outros. Acreditava que, servindo-se dos conceitos e das teorias dos economistas ingleses, poderia encontrar uma frmula cientificamente rigorosa para a economia capitalista.
Finalmente, tomou emprestada aos historiadores e aos socialistas franceses a noo de luta de classes, que se encontrava comumente nas obras histricas do fim do sculo XVIII e do princpio do sculo XIX. Marx, porm, de acordo com o seu prprio testemunho, acrescentou um novo conceito. A diviso da sociedade em classes no um fenmeno ligado ao conjunto da histria e
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essncia da sociedade, mas corresponde a uma fase determinada. Numa fase ulterior, a diviso em classes poder desaparecer13.
Essas trs influncias foram exercidas sobre o pensamento de Marx, e trazem uma interpretao vlida, embora grosseira, da sntese feita por Marx e Engels. Mas essa anlise das influncias deixa em aberto a maioria das questes mais importantes e, em particular, a questo do relacionamento entre Hegel e Marx.
A maior dificuldade est ligada, em primeiro lugar e antes de qualquer outra coisa, ao fato de que a interpretao de Hegel , pelo menos, to contestada quanto a de Marx. De acordo com o sentido que se atribua ao pensamento de Hegel, as duas doutrinas podem ser aproximadas ou afastadas, vontade.
H um mtodo fcil para mostrar um Marx hegeliano que consiste em 'apresentar um Hegel marxista. Esse mtodo empregado com um talento que confina com a genialidade, ou com a mistificao, por A. Kojve. Na sua interpretao, Hegel a tal ponto marxizado que a fidelidade de Marx obra de Hegel no deixa nenhuma dvida14.
Por outro lado, para quem no aprecia Marx, como G. Gurvitch, basta apresentar Hegel de acordo com os manuais de histria da filosofia, como um filsofo idealista que concebe o devenir histrico como o processo de desenvolvimento do esprito, para que Marx se tome essencialmente anti-hegeliano15.
De qualquer forma, encontramos no pensamento marxista um certo nmero de temas incontestavelmente hegelianos, tanto nas obras de juventude como nas de maturidade.
Na ltima das onze teses sobre Feuerbach, Marx escreve: Os filsofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; trata-se, agora, de transform-lo. (tudes philosophiques, Paris, d. Sociales, 1951, p. 64.)
Para o autor de O capital, a filosofia clssica, que levou ao sistema de Hegel, chegou ao seu fim. No seria possvel avanar mais, porque Hegel refletiu sobre o todo histrico e o todo da humanidade. A filosofia completou sua tarefa, que consiste em levar conscincia explcita as experincias da humanidade. Essa tomada de conscincia das experincias da humanidade est formulada na Fenomenologia do esprito e na Enciclopdia16. O homem, porm, depois de tomar conscincia da sua vocao, no realizou essa vocao. A filosofia total enquanto tomada de conscincia, mas o mundo real no se ajusta ao sentido que a filosofia atribui existncia do homem. O problema filosfico-histrico original do pensamento marxista ser, portanto, o de saber em que condies o curso da histria pode realizar a vocao do homem tal como a concebeu a filosofia hegeliana.
A incontestvel herana filosfica de Marx a convico de que o devenir histrico tem uma significao filosfica. Um novo regime econmico e social no apenas MBia peripcia que ser oferecida posteriormente curioEijute
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desprendida dos historiadores profissionais, mas uma etapa do devenir da humanidade.
O que , ento, essa natureza humana, essa vocao do homem que a histria deve realizar para que a prpria filosofia se realize?
Encontraremos nas obras de juventude de Marx vrias respostas a esta questo; todas giram em tomo de alguns conceitos, como a universalidade, a totalidade - conceitos positivos - ou, ao contrrio, a alienao - um conceito negativo.
O indivduo, tal como aparece na Filosofia do direito de Hegel17, e nas sociedades do seu tempo, tem, com efeito, uma situao dupla e contraditria. De um lado, como cidado, o indivduo participa do Estado, isto , da universalidade. Mas, no empreo da democracia formal, ele s cidado uma vez a cada quatro ou cinco anos, e esgota sua cidadania ao votar. Fora dessa atividade nica, com a qual realiza sua universalidade, o indivduo pertence ao que conhecemos, segundo a terminologia de Hegel, como a brgerliche Gesellschaft, a sociedade civil, isto , ao conjunto das atividades profissionais. Ora, enquanto membro da sociedade civil, ele est encerrado nas suas particularidades e no se comunica com o conjunto da comunidade. um trabalhador s ordens de um empresrio, ou ento um empresrio separado da organizao coletiva. A sociedade civil impede os indivduos de realizar sua vocao de universalidade.
Para que essa contradio seja superada, preciso que os indivduos no seu trabalho possam participar da universalidade da mesma maneira como dela participam com sua atividade de cidados.
O que significam essas frmulas abstratas? A democracia formal, que se define pela eleio dos representantes do povo pelo sufrgio universal, e pelas liberdades abstratas do voto e do debate, no toca as condies de trabalho e de vida dos membros da coletividade. O trabalhador, que vende sua fora de trabalho no mercado em troca de um salrio, no como o cidado que, a cada quatro ou cinco anos, elege seus representantes e, direta ou indiretamente, seus governantes. Para que se realizasse a democracia real, seria necessrio que as liberdades limitadas ordem poltica nas sociedades atuais fossem transpostas para o campo da existncia concreta, econmica, dos homens.
Contudo, para que os indivduos no trabalho pudessem participar da universalidade, como os cidados com seu voto, para que se pudesse realizar a democracia real, seria necessrio suprimir a propriedade privada dos meios de produo, que pe alguns indivduos a servio de outros, provoca a explorao dos trabalhadores pelos empresrios e interdita a estes ltimos o trabalho direto para a coletividade, j que, no sistema capitalista, eles trabalham visando ao lucro.
Uma primeira anlise, que vamos encontrar na Crtica da filosofia do direito de Hegel, gira em torno da oposio entre o particular e o universal, a sociedade civil e o Estado, a escravido do trabalhador e a liberdade fictcia do
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eleitor e do cidado18. Esse texto constitui a origem de uma das oposies clssicas do pensamento marxista, entre democracia formal e democracia real; mostra tambm uma certa forma de aproximao entre a inspirao filosfica e a crtica sociolgica.
A inspirao filosfica se manifesta na rejeio de uma universalidade do indivduo limitada ordem poltica e se transpe facilmente para uma anlise sociolgica. Em linguagem comum, a idia de Marx a seguinte: o que significa o direito de votar a cada quatro ou cinco anos para os indivduos que no tm outro meio de subsistncia a no ser os salrios que recebem dos patres, em condies que estes estabelecem?
O segundo conceito em torno do qual gira o pensamento de juventude de Marx o do homem total, provavelmente ainda mais equvoco do que o do ho- mem universalizado.
O homem total o que no mutilado pela diviso do trabalho. Para Marx, e a maioria dos observadores, o homem da sociedade industrial moderna , com efeito, um homem especializado. Adquiriu uma formao especfica, para exercer uma profisso particular. Permanece encerrado a maior parte de sua vida nessa atividade setorial, deixando de utilizar muitas aptides e faculdades que poderiam se desenvolver.
Nessa linha, o homem total seria aquele que no fosse especializado. Alguns textos de Marx sugerem uma formao politcnica, em que todos os indivduos fossem preparados para o maior nmero possvel de profisses. Com tal formao, no estariam condenados a fazer a mesma coisa, de manh noite19.
Se o significado do homem total o homem no amputado de algumas das suas aptides pelas exigncias da diviso do trabalho, esta noo um protesto contra as condies impostas aos indivduos pela sociedade industrial, protesto ao mesmo tempo inteligvel e simptico. Efetivamente, a diviso do trabalho tem como resultado fazer com que a maioria dos indivduos no realizem tudo aquilo de que so capazes. Mas esse protesto um tanto romntico no me parece adequado ao esprito de um socialismo cientfico. difcil conceber (a no ser numa sociedade extraordinariamente rica, em que o problema da pobreza tivesse sido resolvido definitivamente) como uma sociedade, capitalista ou no-capita- lista, poderia formar todos os seus membros em todas as profisses; difcil imaginar como funcionaria uma sociedade industrial em que os indivduos no fossem especializados no seu trabalho.
Procurou-se assim, em outra direo, um outro tipo de interpretao, menos romntica. O homem total no seria o homem capaz de fazer tudo, mas aquele que realiza autenticamente sua humanidade, que exerce as atividades que definem o homem.
Nesse caso, a noo de trabalho se torna essencial. O homem concebido essencialmente como um ser que trabalha. Se trabalha em condies desuma-
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nas, desumanizado, porque deixa de cumprir a atividade que constitui sua humanidade, em condies adequadas. Encontramos efetivamente nas obras de juventude de Marx, em particular no Manuscrito econmico-filosfico, de 1844, uma crtica das condies capitalistas do trabalho20.
Voltamos a encontrar aqui o conceito de alienao, que est hoje no centro da maior parte das interpretaes de Marx. No capitalismo, o homem alienado. Para que o homem possa se realizar, preciso que supere essa alienao.
Marx usa trs termos diferentes que so traduzidos muitas vezes pela mesma palavra - alienao embora as palavras alems no tenham exatamente o mesmo sentido. So elas Entusserung, Verusserung e Entfremdung. O termo que corresponde aproximadamente palavra alienao o ltimo, que etimo- logicamente significa: tornar-se estranho a si mesmo. A idia que, em certas circunstncias, ou em certas sociedades, as condies impostas ao homem so tais que este se toma um estranho para si mesmo, isto , no se reconhece mais na sua atividade e nas suas obras.
O conceito de alienao deriva, evidentemente, da filosofia hegeliana, em que tem um papel primordial. Mas a alienao hegeliana concebida no plano filosfico ou metafsico. Na concepo de Hegel, o esprito {der Geist) se aliena nas suas obras; constri edifcios intelectuais e sociais e se projeta fora de si mesmo. A histria do esprito, a histria da humanidade, a histria das alienaes sucessivas, ao fim das quais o esprito voltar a ser o possuidor do conjunto das suas obras e do seu passado histrico, com a conscincia de possuir esse conjunto. No marxismo, inclusive nas obras marxistas de juventude, o processo de alienao, em vez de ser um processo filosfica ou metafisicamente inevitvel, toma-se a expresso de um processo sociolgico pelo qual os homens ou as sociedades edificam organizaes coletivas, nas quais se perdem21.
Interpretada sociologicamente, a alienao uma crtica ao mesmo tempo histrica, moral e sociolgica da ordem social da poca. No regime capitalista, os homens so alienados, eles mesmos se perderam na coletividade, e a raiz de todas as alienaes a alienao econmica.
H duas modalidades de alienao econmica que correspondem aproximadamente a duas crticas de Marx ao sistema capitalista. A primeira alienao imputvel propriedade privada dos meios de produo; a segunda, anarquia do mercado.
A alienao imputvel propriedade privada dos meios de produo se manifesta no fato de que o trabalho, atividade essencialmente humana, que define a humanidade do homem, perde suas caractersticas humanas, j que passa a ser, para os assalariados, nada mais do que um meio de existncia. Em vez de o trabalho ser a expresso do prprio homem, o trabalho se v degradado em instrumento, em meio de viver.
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Os empresrios tambm so alienados, pois a finalidade das mercadorias de que dispem no atender a necessidades realmente sentidas pelos outros, mas so levadas ao mercado para obter lucro. O empresrio se toma escravo de um mercado imprevisvel, sujeito aos azares da concorrncia. Explora os assalariados, mas nem por isso ele humanizado no seu trabalho, pelo contrrio, aliena-se em benefcio de um mecanismo annimo.
Qualquer que seja a interpretao exata que se d a essa alienao econmica, parece-me que a idia central bastante clara. A critica da realidade econmica do capitalismo no pensamento de Marx era, na sua origem, uma crtica filosfica e moral, antes de se tornar uma anlise rigorosamente sociolgica e econmica.
Assim, possvel expor o pensamento de Marx como o de um puro economista e socilogo, porque no fim da sua vida ele queria ser um cientista, economista e socilogo; contudo, Marx chegou crtica econmico-social tomando como ponto de partida temas filosficos. Esses temas filosficos, a universalizao do indivduo, o homem total, a alienao, animam e orientam a anlise sociolgica das suas obras da maturidade. Em que medida a anlise sociolgica da maturidade de Marx no passa do desenvolvimento das intuies filosficas da sua juventude? Ou ento, em que medida ela , ao contrrio, a substituio total dessas intuies filosficas? Coloca-se a um problema de interpretao que ainda no foi totalmente resolvido.
Certamente, durante toda a sua vida, Marx conservou esses temas filosficos num segundo plano. Para ele a anlise da economia capitalista era a anlise da alienao dos indivduos e das coletividades, que perdiam o controle da sua prpria existncia num sistema sujeito a leis autnomas. A crtica da economia capitalista era tambm a crtica filosfica e moral da situao imposta ao homem pelo capitalismo. Sobre este ponto, estou de acordo com a interpretao corrente, a despeito da opinio de Althusser.
Por outro lado, certamente a anlise do devenir do capitalismo era, para Marx, a anlise do devenir do homem e da natureza humana atravs da histria. Esperava da sociedade ps-capitalista a realizao da filosofia.
Qual seria, no entanto, esse homem total que a revoluo ps-capitalista deveria realizar? Sobre isso, pode-se discutir, porque no fundo havia em Marx uma oscilao entre dois temas, at certo ponto contraditrios. De acordo com o primeiro deles, o homem realiza sua humanidade no trabalho e a liberao do trabalho que marcar a humanizao da sociedade. Mas em vrios lugares aparece uma outra concepo segundo a qual o homem s verdadeiramente livre fora do trabalho. Nesta segunda concepo o homem s realiza sua humanidade na medida em que reduz suficientemente a durao da jornada de trabalho, a fim de
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Podem-se naturalmente combinar os dois temas, dizendo que a humanizao completa da sociedade pressuporia, antes de mais nada, que as condies impostas ao homem no seu trabalho fossem humanizadas, e que, simultaneamente, a durao do trabalho diminusse o bastante para que o lazer lhe permitisse a leitura de Plato, por exemplo.
Filosoficamente, resta contudo uma dificuldade: qual a atividade essencial que define o prprio homem e que deve se desenvolver para que a sociedade permita a realizao da filosofia? Se no se determina qual a atividade essencialmente humana, corre-se o risco de adotar a concepo do homem total na sua acepo mais vaga. E preciso que a sociedade permita a todos os homens realizar todas as suas aptides. Essa proposio representa uma boa definio do ideal da sociedade, mas no fcil traduzi-la num programa concreto e preciso. Por outro lado, difcil imputar exclusivamente propriedade privada dos meios de produo o fato de todos os homens no realizarem todas as suas aptides.
Em outras palavras, parece haver uma desproporo extrema entre a alienao humana atribuvel propriedade privada dos meios de produo e a realizao do homem total que deve resultar da revoluo. Como se pode conciliar a crtica da sociedade atual com a esperana de realizao do homem total pela simples substituio de um modo de propriedade por outro?
Aqui aparecem a grandeza e o equvoco da sociologia marxista. Pretende ser uma filosofia. Ela , essencialmente, uma sociologia.
Mas, alm - ou aqum - dessas idias, restam ainda muitos pontos ob