KIWXÍ A SEPULTURA FLORIDA - … · Junto à sepultura a floresta cresceu e floriu, com flores...

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1 KIWXÍ: A SEPULTURA FLORIDA... A memória profética do Irmão Vicente Cañas SJ Aloir Pacini SJ 1 Fernando López SJ 2 Fazer memória da transformação profética do Ir. Vicente Cañas SJ em Kiwxí 3 , irmão dos índios até o martírio é um dos objetivos deste escrito. Por isso o caminho foi visitar o local onde os Enawene Nawe com os jesuítas e amigos missionários indigenistas o sepultaram. Uma pergunta aparece sempre de novo: Onde está a sepultura? E a informação no Porto Escondido, na aldeia Myky, onde o Irmão Vicente Cañas foi “batizado” Kiwxí é que a pedra com o nome “Kiwxí” sobre a sepultura tinha sumido e que a foz do rio Papagaio fica longe. O Caixão de Pedra é a referência no rio Juruena; onde suas límpidas águas se estreitam ressoando, cantando e desvelando o segredo. Chegando, sua presença forte já se sente e se respira na fragrância fresca do ar, mistura de aromas de sol, de rio e de floresta. Na margem esquerda, uma pequena praia de areia branca indica o local. Uma trilha vai até o pequeno barraco, de cinco metros por quatro, e a menos de cem metros da beira do rio. Teto de brasilite e duas paredes de madeira. As tabuas das outras paredes serviram de assoalho das canoas dos que ali encostavam e também alimentaram o fogo dos que ali se aqueciam nos dias de inverno, quando a madeira da floresta estava molhada. A pedra com a inscrição “Kiwxí” não estava junto à sepultura. Quebrada, servia de base na fogueira usada para assar o peixe. Junto à sepultura a floresta cresceu e floriu, com flores amarelas de sol e de vida. E o povo Enawene-Nawe reviveu e sua semente se multiplicou: já são mais de mil, em dezesseis casas circulares. A “Casa das Flautas” está no centro. Até hoje continuam rindo, cantando e dançando em volta das fogueiras e tocando as flautas nas noites de luar... Por inteiro Kiwxí se doou e, no povo, na floresta e na memória de todos, ressuscitou! Nos próximos dois anos de 2016 e 2017, celebraremos o 40º e 30º aniversários dos nossos dois companheiros profetas e mártires do amor e da justiça junto aos povos indígenas: o Pe. João Bosco Penido Burnier SJ, em Ribeirão Bonito, Mato Grosso, Brasil, 12 de outubro de 1976 e o Ir. Vicente Cañas SJ, em Rio Juruena, Mato Grosso, Brasil, 6 ou 7 de abril de 1987. Este texto, centrado na vida do Irmão Vicente, quer ser uma homenagem a estes companheiros que entregaram a vida ao serviço dos povos indígenas. Mas também quer ser memória subversiva que incomoda, um convite desafiante aos que querem seguir suas pegadas na luta pelo bem viver e conviver, na busca do bem comum e no cuidado da casa comum, na qual tudo e todos estamos conectados (Papa Francisco, Encíclica Laudato Si). 1 [email protected] 2 [email protected] 3 Kiwxí é o nome que deram ao Ir. Vicente Cañas SJ os índios Myky quando morou com eles na aldeia (1975-1978), junto com o Pe. Thomaz de Aquino Lisbôa SJ.

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KIWXÍ: A SEPULTURA FLORIDA... A memória profética do Irmão Vicente Cañas SJ

Aloir Pacini SJ1

Fernando López SJ2

Fazer memória da transformação profética do Ir. Vicente Cañas SJ em Kiwxí3, irmão dos índios até o martírio é um dos objetivos deste escrito. Por isso o caminho foi visitar o local onde os Enawene Nawe com os jesuítas e amigos missionários indigenistas o sepultaram. Uma pergunta aparece sempre de novo: Onde está a sepultura? E a informação no Porto Escondido, na aldeia Myky, onde o Irmão Vicente Cañas foi “batizado” Kiwxí é que a pedra com o nome “Kiwxí” sobre a sepultura tinha sumido e que a foz do rio Papagaio fica longe. O Caixão de Pedra é a referência no rio Juruena; onde suas límpidas águas se estreitam ressoando, cantando e desvelando o segredo. Chegando, sua presença forte já se sente e se respira na fragrância fresca do ar, mistura de aromas de sol, de rio e de floresta. Na margem esquerda, uma pequena praia de areia branca indica o local. Uma trilha vai até o pequeno barraco, de cinco metros por quatro, e a menos de cem metros da beira do rio. Teto de brasilite e duas paredes de madeira. As tabuas das outras paredes serviram de assoalho das canoas dos que ali encostavam e também alimentaram o fogo dos que ali se aqueciam nos dias de inverno, quando a madeira da floresta estava molhada. A pedra com a inscrição “Kiwxí” não estava junto à sepultura. Quebrada, servia de base na fogueira usada para assar o peixe. Junto à sepultura a floresta cresceu e floriu, com flores amarelas de sol e de vida. E o povo Enawene-Nawe reviveu e sua semente se multiplicou: já são mais de mil, em dezesseis casas circulares. A “Casa das Flautas” está no centro. Até hoje continuam rindo, cantando e dançando em volta das fogueiras e tocando as flautas nas noites de luar... Por inteiro Kiwxí se doou e, no povo, na floresta e na memória de todos, ressuscitou!

Nos próximos dois anos de 2016 e 2017, celebraremos o 40º e 30º aniversários dos nossos dois companheiros profetas e mártires do amor e da justiça junto aos povos indígenas: o Pe. João Bosco Penido Burnier SJ, em Ribeirão Bonito, Mato Grosso, Brasil, 12 de outubro de 1976 e o Ir. Vicente Cañas SJ, em Rio Juruena, Mato Grosso, Brasil, 6 ou 7 de abril de 1987. Este texto, centrado na vida do Irmão Vicente, quer ser uma homenagem a estes companheiros que entregaram a vida ao serviço dos povos indígenas. Mas também quer ser memória subversiva que incomoda, um convite desafiante aos que querem seguir suas pegadas na luta pelo bem viver e conviver, na busca do bem comum e no cuidado da casa comum, na qual tudo e todos estamos conectados (Papa Francisco, Encíclica Laudato Si).

1 [email protected] 2 [email protected]

3 Kiwxí é o nome que deram ao Ir. Vicente Cañas SJ os índios Myky quando morou com eles na aldeia (1975-1978), junto com o Pe. Thomaz de Aquino Lisbôa SJ.

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1 Vocação missionária

No final de junho e início de julho de 2015, os companheiros do Conselho Indigenista Missionário4, Egon Heck, Rodolfo Ferraz, Fernando López e Rosa Maria Monteiro, da Operação Amazônia Nativa5, visitamos a região do Mato Grosso onde o Ir. Vicente Cañas SJ gastou sua vida e foi assassinado. Dez dias de viagem e mais de dois mil quilômetros de estradas e rios. Visitamos a aldeia dos Enawene Nawe, o barraco e a sepultura do Ir. Vicente Cañas SJ. Foi todo um privilegio “coraçonar”, sentir, ouvir e recolher depoimentos sobre Kiwxí.

Sobretudo, a viagem foi um tempo forte de gozo interior e questionamentos, reflexão e oração frente ao testemunho, martírio e profecia do Irmão Vicente e de todos aqueles companheiros e companheiras que se deixaram inspirar pelo Concílio Vaticano II, assumiram com tanta ousadia, criatividade e radicalidade seu compromisso profético até o martírio com os povos indígenas da Amazônia.

Nascido em Alborea, Espanha, pequeno município agrícola, em 22 de outubro de 1939, Vicente Cañas entrou no Noviciado São Pedro Claver da Companhia de Jesus com 21 anos, no dia 21 de abril de 1961.

No noviciado Vicente demonstrou dotes e condições extraordinárias para a cozinha. No juniorado, vai amadurecendo, discernindo e manifestando ao Provincial de Aragon, Pe. Mariano Madurga, sua vocação missionária:

Padre, peço-lhe perdão antecipadamente, pois deve ter muitos trabalhos. O que a gente tem por dentro, mais cedo ou mais tarde deve-se dizer. No dia cinco deste mês o esperava como algo especial para concretizar nosso assunto pendente; [...].

Dizia-me que pensasse no Brasil. Você tem a palavra para onde mais o deseje. Deixo a sua disposição a vontade de nosso bom Deus o que você decida e mande. Creia-me Padre, me da algo de pena ver tanta necessidade de missionários na África, e cada dia menos pela simples razão de que são expulsos.

Padre, permita-me perguntar: Sou eu um dos irmãos que pensa enviar no final do curso para o Brasil?

Reze este próximo ano por mim, no dia dez faço a renovação de meus Votos. No dia onze vou para Zaragoza, uns dois meses, para aprender a cozinhar.

Filialmente, Vicente Cañas S.J.6

Impressiona a coerência de vida do Irmão Vicente Cañas. Expressa com toda clareza suas moções ao Provincial: “O que a gente tem por dentro, mais cedo ou mais tarde deve-se dizer.” Esta transparência e conexão entre seu sentir, dizer e fazer o acompanharão ao longo de toda a sua vida e missão, melhor dizendo, até a morte e morte pelo martírio!

Também tem claro os critérios inacianos para o discernimento da missão (“maior necessidade e locais mais difíceis”): “tanta necessidade de missionários na África, e que cada dia

4 O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) foi fundado em 1972 como um órgão ecumênico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para o serviço de pastoral da Igreja junto aos povos indígenas. 5 A Operação Anchieta (OPAN) foi fundada em 1969 como uma iniciativa indigenista formada por jesuítas, leigos/as, para apoiar o trabalho da Missão Anchieta em Mato Grosso. No ano de 1990 passou a ser Operação Amazônia Nativa (OPAN). 6 LOPEZ TEROL, J. L. CARRION PARDO, J. Kiwxi, tras las huellas de Vicente Cañas: Vicente Cañas, martir de la fe y la justicia. Madrid, Edición del Autor, p. 52, 28/12/1964.

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são menos, pela simples razão de que são expulsos”. Também o Irmão Vicente manifestou em outra oportunidade que teve uma experiência espiritual num retiro: “viu uma tribo indígena na América” que precisava dele e que por isso também pediu para ser enviado ao Brasil. Sua disponibilidade para acolher a vontade de Deus é total! E o Pe. Madurga confirma sua destinação ao Brasil7.

Os primeiros que ficam sabendo são seus pais. Ainda que com dor pela nova ruptura, não lhes surpreende. Conhecem bem as inquietações missionárias e radicalidade de seu filho. Na festa de São Francisco Xavier (3/10/1965), padroeiro das Missões junto com Santa Teresinha, o Irmão Vicente recebe o crucifixo de missionário no Castelo de Xavier, em Navarra, Espanha. As mudanças do Concílio Vaticano II marcam esta época. Também coincide com a eleição do Pe. Pedro Arrupe SJ como novo Padre Geral da Companhia de Jesus (22/5/1965), com quem chegam profundas mudanças no modo de compreender a missão dos jesuítas no mundo. “O serviço da fé e a promoção da justiça” será a nova formulação do carisma e identidade dos jesuítas consagrada na Congregação Geral XXXII (1974).

O Irmão Vicente bebe, vibra e se compromete radicalmente com esta profunda e profética renovação na Igreja Católica. Ele chega com os Irmãos Lledó e Jordán ao Aeroporto de Rio de Janeiro em 19 de janeiro de 1966. Duas semanas depois escreve ao Pe. Madurga partilhando suas primeiras impressões e a de ônibus para Recife, onde o convívio com o povo lhe impacta profundamente:

Durante a viagem houve algo impressionante. Tive que virar-me para entender-me com o povo, o idioma não é tão fácil como parece (é muito mais complicado falado que lido). No ônibus se respirava uma simplicidade que fiquei assombrado. [...] Tive a grande sorte de comer e dormir no meio desta gente [...]. Dava pena ver durante o caminho tanta gente cheia de pobreza e miséria, porém esta gente é tão boa e cheia de bondade que eu ficava confuso e creio que, dado seu bom coração e simplicidade, nosso Senhor lhes terá um bom lugar no céu8.

2 Cozinheiro em Baturité

Em agosto de 1966, é destinado a Baturité, Ceará, para trabalhar na cozinha da casa de retiros. Em carta ao Pe. Madurga, observa o contexto social:

Por aqui se vive muito pobremente, eu diria mais, na miséria. Há muitas casas no meio desta selva, porém separadas. As casas são mais ou menos de palha e de barro. No interior delas não existem quartos separados para dormir. Todos dormem em redes. Os talheres que usam são as mãos e alguns têm o luxo de comer numa lata e, para copo, outra. Todas estas coisas são corriqueiras. A alimentação é feijão com mandioca e alguma que outra vez, arroz branco. Aqui se verifica o ditado: ‘de cada três pessoas, duas passam fome!’ Quanto às vestes das crianças, vão quase nuas e os maiores vão com camisa ou calças rasgadas9.

O Irmão Vicente também expressa a importância dele ter vindo jovem para estas missões tão exigentes do Brasil, o que lhe dá maleabilidade para se adaptar:

7 Cf. Ibidem p. 53 , 28/7/1965. 8 Ibidem p. 82, 05/02/1966.

9 Ibidem pp. 86-87, 4/8/1966.

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Aqui precisamos de cozinheiros. Sendo a gente jovem, que já tenha terminado o juniorado, me parece que é o ideal para fazer-se como um brasileiro e adaptar-se a tudo facilmente. É um acerto que a gente venha jovem, pois não custa absolutamente nada a mudança no sentido que for: o calor, a comida, etc.[...] Claro, também a gente tem uma força interior grande10.

3 Rumo à missão com os povos indígenas: o nascimento de Kiwxí.

Em meados de 1968, Ir. Vicente recebe sua nova destinação para a Prelazia Diamantino, em Mato Grosso, que levava avante o grande desafio histórico dos jesuítas no Brasil, pois ali retomam o trabalho missionário junto aos povos indígenas, a marca distintiva da Companhia de Jesus nas Américas antes da Supressão (1759 no Brasil e 1767 na América espanhola).

Ele vive esta nova missão como um passo a mais na sua total consagração a Deus e aos irmãos. Muito consciente do desafio da nova missão, partilha com o Provincial que estava em visita pelo Brasil:

Deus queira que minha nova destinação seja para mim frutuosa, para viver uma entrega mais e mais a Deus. Agora preciso de suas orações, pois dizem que nesta missão precisa-se ser muito espiritual e, com o auxílio de outros, espero subir um grau a mais11.

Este tempo inicial em Diamantino é um novo noviciado de preparação para a desafiadora missão com os índios:

Agora estou aqui no posto central da missão, passando meu noviciado para acostumar-me, para logo trabalhar com os índios selvagens, que ainda existem muitos por aqui. Creio que vou pertencer a um grupo de Padres e Irmãos que está se constituindo para percorrer as aldeias12.

O Irmão Vicente mostra sua sensibilidade com os pobres, mas chega a Diamantino com a visão colonizadora própria da época em relação aos índios, vistos como “selvagens” necessitados de “civilização” e cristianismo. Na mesma carta expressa muita admiração pelos missionários da região, assim como a compreensão própria do Serviço de Proteção ao Índio de que os índios são como crianças.

Estes missionários todos são gente simples e espontânea, com os quais o trato é muito familiar, pois somos todos da classe trabalhadora. Os que já estão muitos anos aqui contam tudo o que passaram e passam nas selvas: vida dura, muito calor e grande quantidade de mosquitos que transmitem o paludismo. As distâncias são enormes de uma aldeia a outra, pois há que se considerar que a região é pouco povoada. O povo daqui é muito parecido ao do nordeste, com uma sensibilidade muito fina. Mas o índio é muito diferente: tem muita calma e a mentalidade de uma criança de quatro ou cinco anos13.

Ele reconhece que este novo “noviciado” foi muito mais intenso do que imaginava, pois necessitava de uma profunda conversão à cosmovisão e espiritualidade indígena, o que aconteceu aos poucos. Na medida em que se deixava mobilizar pelas necessidades e perspectivas dos índios,

10 Ibidem p. 88. 11 Ibidem p. 90. 12 Ibidem p. 102, 24/3/1969. 13 Ibidem p. 103.

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o Espírito de Deus movia o seu coração para a entrega cada vez mais radical: “Se o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica sozinho. Mas, se morre, produz muito fruto” (Jo 12,2). Voltou a “nascer de novo” (Jo 3,1s) nestas terras de Missão: do “velho” Irmão Vicente brota o “novo” Kiwxí.

4 A prova de fogo

Em outubro de 1969, a pedido da Fundação Nacional do Índio (FUNAI)14, o Irmão Vicente foi com os padres jesuítas Antônio Iasi e Adalberto Holanda Pereira, salvar os 41 Tapayunas (Beiço de Pau) cerca de 7% da etnia que restavam do contato mal realizado pela FUNAI que levou uma equipe de reportagem com gripe. Os Tapayunas já sofriam, fazia décadas, a perseguição violenta das frentes de expansão no vale dos rios do Sangue e Arinos, próximo de Porto dos Gaúchos, norte do Mato Grosso. O Pe. Adalberto conta como o envenenamento converteu-se na forma preferida dos invasores para exterminá-los, colocando arsênico misturado com açúcar nos locais frequentados pelos índios.15 O Pe. Aloir Pacini SJ descreve que encontrou uma sobrevivente desta tragédia entre os Kisêdje (Suyá). Com gestos e choro, ela lembrava, falando na língua tradicional, como eles deixavam os parentes morrendo nas aldeias e iam fugindo da doença para outras aldeias... Não sabiam que levavam consigo o vírus da gripe e que estavam contaminando todo o povo.

Esta primeira missão direta com os índios foi a “prova de fogo”, um batismo que resultou na sobrevivência dos 41 Tapayunas contagiados pela gripe! O Irmão Vicente e toda a equipe se desvelaram no preparo de comida e no tratamento para que permanecessem vivos o “resto” desta etnia. Ficava evidente os perigos dos primeiros contatos com os povos indígenas que estavam acontecendo com as frentes de expansão por causa da Marcha para Oeste, com incentivos do Governo do Brasil.

O trabalho heroico deu resultado e juntos conseguiram que sobrevivessem os 41 Tapayunas!

Porém, o Estado continuou com sua política de distribuir as terras tradicionais das etnias indígenas. Por isso, os Tapayunas são arrancados de suas terras tradicionais e transferidos (deportados!) para o Parque Indígena do Xingu, onde se mesclaram com os Kisêdjê, parentes tradicionais. A “justificativa” para maquiar a cruel deportação foi que ali viveriam mais protegidos. O motivo verdadeiro e encoberto era liberar as terras para a colonização!

O Irmão Vicente e o Padre Thomaz acompanharam os Tapayunas na viagem e os deixaram no Xingú. Esta dolorosa experiência foi uma das causas que os levou a adotar posturas mais radicais a favor dos povos indígenas e da demarcação de suas terras tradicionais. Assim passaram a enfrentar as ações governamentais e da igreja que não respeitavam os direitos destas etnias.

5 O Projeto Utiariti e o contato com os Myky

No processo de formação missionária do Irmão Vicente foram mestres importantes os jesuítas João Dornstauder, Adalberto de Holanda Pereira, Thomaz de Aquino Lisbôa, Egydio Schwade e Antônio Iasi. Eles foram referências na mudança de orientação da evangelização e missão indígena no Brasil. Também estiveram nas origens da Operação Anchieta (OPAN) e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

14 FUNAI: Organismo oficial do Estado Brasileiro que acompanha e trabalha junto aos povos indígenas do país. 15 HOLANDA PEREIRA, Adalberto, Revista de Antropologia, Vol. 15 e 16 (1967/1968), pp. 216 a 227.

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Em geral, ainda que com admiráveis e proféticas exceções, até o Concílio Vaticano II a evangelização buscava “branquejar, civilizar e cristianizar” os índios! Essa é também a perspectiva desenvolvida pelo Estado Brasileiro a partir do Marechal Rondon no início do século XX, herança que assumiu o Serviço de Proteção ao Índio (SPI, 1910-1967, ano em que é criada a FUNAI). Durante o tempo da ditadura militar (1964-1985) foi concebido o Projeto Rondon (1967-1989) com o lema: “integrar para não entregar”. E o projeto militar propunha que no ano 2000 não houvesse mais índios no Brasil.

No contexto histórico e renovador do Concílio Vaticano II, os jesuítas perceberam que a orientação da missão em Utiariti (1930-1970) produzia mais problemas que soluções para os povos indígenas. Foi elaborado assim o Diretório Indígena (1969) e planejaram um trabalho com mais respeito à cultura, ao hábitat, à forma de vida e também à religiosidade dos povos indígenas. São os missionários quem devem adaptar-se e integrar-se às diferentes culturas, processo que ficou conhecido como “inculturação”. Esta palavra foi cunhada pelo Pe. Pedro Arrupe, Geral dos jesuítas, que visitou o internato de Utiariti em 1968. Neste contexto privilegiado de renovação e mudanças incorpora-se o Irmão Vicente à missão indígena.

Entre os anos 1970-1975, o Irmão Vicente se dedicou aos Paresis, na região da Chapada dos Paresi, noroeste de Mato Grosso. Formou equipe com os missionários leigos e leigas da Operação Anchieta (OPAN) para acompanhar os Paresi do Rio Verde, ameaçados pela BR 364. Ele escreve à sua família:

Eu agora estou com os Paresi. São 364, em 12 aldeias. Eu vivo no meio deles. Tenho uma casa como eles, de palha de palmeira e estou ajudando na agricultura para que não passem fome. Já prepararam os campos para plantar daqui a três semanas, quando começa a chover. Plantaram arroz, feijão, cana de açúcar e outras coisas. Nestes dias pegaram uma epidemia de gripe. Em consequência da fome ficaram todos bem magros e com muita fraqueza. Já fazem quinze dias e ainda não estão bem. Morreu um menino de sete anos e outros estão à beira da morte.

Passei três meses sozinho e agora pedi ajuda e está comigo uma Irmã que me ajuda para atender os enfermos e a arrancar os dentes como dentista prático16.

Naqueles anos, índios “isolados” deixavam sinais de que passaram nas cabeceiras do córrego Escondido, afluente da margem direita do rio Papagaio. Duas primeiras expedições foram levadas a cabo pelos Pe. Adalberto Holanda SJ e o Pe. Thomaz Lisbôa SJ nos anos 1969 e 1970. Na terceira expedição, o Padre Thomaz foi com o Irmão Vicente e alcançaram os primeiros contatos pacíficos com os Myky, em 13 de junho de 1971. Não houve nenhuma perda humana por contágio de doença neste contato.

O Irmão Vicente e o Padre Thomas assumem a nova perspectiva de missão com estes grupos recém-contatados: nunca mais reproduzir a lógica de missão na perspectiva de “amansar”, “civilizar” e “cristianizar” índios, apagando deles a memória histórica de suas próprias raízes, cultura, língua, cosmovisão, crenças, mundo simbólico religioso, etc. Estes povos, na sua “diferença”, são exemplos vivos e “sementes” do Reino de Deus para nossa sociedade ocidental.

A partir de 1975, o Padre Thomaz passa a morar na aldeia Myky e recebe o nome “Yaúka”. O Irmão Vicente acompanha esta iniciativa e recebe o nome “Kiwxí”. Aos poucos, os corações, espíritos e almas destes dois companheiros se vão “indianizando”, fazendo-se mais e mais “irmãos pelo sangue e compromisso”, “amigos no Senhor” e “amigos e irmãos dos índios”.

16 Terol et Pardo, op cit pp. 111-112, 24/7/1970.

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6 Os Enawenê Nawê: os índios que o Senhor mostrou

Animados com os resultados do contato com os Myky (1971), o Irmão Vicente e o Padre Thomaz começam a organizar novas expedições para encontrar outro povo “isolado”:

Tinha noticias [...], chegadas através de alguns ´seringueiros´ que indicavam que, nas imediações dos rios Camararé e Doze de Outubro, Juruena acima, viviam uns índios de caráter pacífico, já que não eram hostis com os trabalhadores, porém, tentavam impedir que os brancos se aproximassem de suas terras17.

Também os Paresis e os Rikbaktsa davam notícias deste povo do rio Iquê. Em 1973 fizeram sobrevôos na região. No dia 9/7/1974 o Padre Thomaz e o Irmão Vicente com os índios Nambikuara Roberto, Zezinho e Baiano e o índio Tupxi fizeram a primeira expedição por terra18. No dia 28/7/1974, a expedição encontrou os novos índios. O Irmão Vicente escreve para sua família em 21/10/1974: “Acabamos de amansar outra tribo de índios. Já lhes fizemos mais outra visita e se confirmou nossa amizade. São muito bons e acolhedores. Vivem de modo bem primitivo. Envio à mãe uma fotografia deles e eu”19.

Seguiram outras expedições e contatos com esta etnia. Graças à experiência e o cuidado de Thomaz e Vicente, no contato com os Enawenê Nawê houve poucas mortes dos índios, nada comparado com o que acontecera nos contatos com os Xavantes, Rikbaktsa, Suruís, Tapayunas e outros.

Desde o início, o Irmão Vicente interpretou que estes eram os índios que Deus lhe tinha mostrado quando ainda era estudante jesuíta. Decidiu então que seu compromisso futuro era com esta etnia, pois estavam ameaçados pelas frentes de expansão agropastoris, fazendeiros e madeireiros. Para o Padre Thomaz, “Vicente reunia todas as características que deviam acompanhar à pessoa que iniciara uma vida em comum com os Salumã20 e, ninguém melhor que ele, podia fazê-lo.”21.

17 Ibidem p. 122. 18 As informações dos primeiros contatos com os Enawenê Nawê foram tiradas do livro do Pe. Thomaz Aquino Lisbôa SJ, Enawenê-Nawê. Primeiros contatos. Ed. Loyola, 1985 (nova edição em 2010 pela Carline Caniato). 19 Terol et Pardo, op cit p. 132. 20 Salumã foi inicialmente o nome com que se denominou o povo Enawene Nawe. 21 Terol et Pardo, op cit p. 137.

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7 Vivendo entre os Enawene Nawe: a entrega da vida.

No mesmo ano do contato com os Enawene Nawe, o Provincial, Pe. Paulino, decide conceder ao Irmão Cañas os Últimos Votos, sua incorporação definitiva na Companhia de Jesus. Nos informes que se pedem, o Pe. João Bosco Penido Burnier SJ, também mártir e profeta da justiça junto aos povos indígenas22, dá seu parecer sobre o Irmão Vicente Cañas23:

É evidente seu compromisso: procura conviver com os índios, compartilhando sua vida, ‘encarnando-se’ na vida indígena, com uma dedicação total, sem restrições. Pelas informações que tenho (não vivo nesse mesmo lugar), creio que seu testemunho é muito aceito pelos índios. É igualmente bem aceito pelos leigos que trabalham no setor indígena. No entanto, não todos os nossos jesuítas entendem essa forma de apostolado; para alguns o modo de vida adotado pelo Irmão Vicente é fruto da extravagância. Não só externamente (cabelos e barba longos, colares vistosos sobre seu peito), senão também na programação. A meu modo de ver, esta apreciação negativa de alguns dos nossos é superficial e motivada porque não conhecem a realidade indígena. Portanto, não estão em condições de julgar objetivamente24.

O Irmão Vicente Cañas fez seus Últimos Votos na aldeia indígena Zozoiterô da Missão de Diamantino, no Mato Grosso, Brasil, no dia 15/8/1975.

Em fins de 1975, o Irmão Vicente Cañas dedica-se mais plenamente aos Enawene-Nawe. De junho de 1979 a junho de 1983, Kiwxí não arredou o pé da aldeia. Foi nesses anos que descobriu que aqueles índios não eram Salumã, mas se autodenominavam Enawene Nawe e que pertenciam à família linguística Aruak, como os Paresís.

Entre os anos de 1979 e 1981 chegaram algumas pessoas para ajudar a Kiwxí: Terezinha Weber, enfermeira leiga da OPAN; Wanda Barbosa, também da OPAN, ajudou nos tratamentos dentários; o Pe. Bartomeu Meliá, jesuíta, marcou presença intermitente fazendo levantamentos linguísticos e etnográficos. Foi ele quem denominou os Enawene Nawe de “Beneditinos da Selva”25, devido à intensidade dos rituais que marcavam toda a sua vida o ano inteiro.

Com o auxílio dos Rikbaktsa Gregório, exímio carpinteiro, e Isidoro Roremuitsa, ainda jovem, o Irmão Vicente construiu um pequeno barraco no rio Juruena, um pouco abaixo do “caixão de pedra” (nome da referência onde o rio se estreitava entre duas paredes de pedra), a uns 60 Km da aldeia. Ali o Irmão Vicente se escondia esporadicamente para seus “retiros”, para ouvir músicas clássicas, organizar seus pensamentos e se comunicar com o mundo externo através de um rádio amador. Neste entreposto fazia suas “quarentenas” para não levar doenças para a aldeia; também se despia de suas coisas ocidentais e vestia-se de Enawene Nawe.

Desde 1982 até o martírio em 1987, Kiwxí ficou morando intensamente entre os Enawene Nawe. Tinha uma dedicação no trabalho impressionante e procurava reduzir ao mínimo os “perigos” e efeitos do contato dos índios com a nossa sociedade. Como missionário foi o mais longe que pode no trabalho de inculturação orientado pela Igreja. Aos poucos foi tornando-se um deles: participava de seus rituais, pescarias, trabalhos de roça, coletas de mel, de frutas e de

22 O Pe. João Bosco Penido Burnier, jesuíta, foi cruelmente assassinado na própria comissária de Ribeirão Bonito (MT), no dia 10/10/1976, na presença de Dom Pedro Casaldáliga, bispo da Prelazia de São Feliz de Araguaia (MT). 23 “Informações para os últimos votos”, Diamantino, 15/11/1974. 24 Terol et Pardo, op cit p. 153. 25 Cf. Lisbôa 1985, op cit p. 50.

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tubérculos, fazia cestaria, artesanato e utensílios próprios dos homens. Dedicou-se ao aprendizado profundo da língua desta etnia, meio privilegiado para reproduzir e transmitir sua cultura. A cada dia familiarizava-se mais com seus usos e costumes.

Vicente Cañas escreveu um diário de grande valor antropológico com mais de 3.000 páginas. Relata suas experiências diárias e deixa patente sua comunhão profunda com os Enawene. Seu diário mostra os cuidados com as pequenas coisas. Anotava tudo, desde as finalidades de cada parte do habitat tradicional Enawene, até o que acontecia nas cabeceiras do rio Juruena, na mata e na aldeia deste povo que vivia de forma harmoniosa com a natureza. Aí é possível entrever que estava ameaçado de morte fazia tempo.

Kiwxí era simples no vestir e no comer. Na sua mochila levava a rede e sua roupa, bermudas e camisetas. Com o material de higiene pessoal estava o material de caça e pesca. Era um exímio pescador, algo que os Enawene Nawe valorizavam muito, pois não comiam carne vermelha de caça. O chinelo de dedo, a camiseta e a bermuda eram sua marca distintiva. Lia muito teologia e antropologia e gostava de conversar de forma crítica a respeito da prática missionária. Era realista na sua visão de mundo e prático na sua ação, aberto ao novo e atento aos sinais dos tempos. Com memória privilegiada, desenvolvia os assuntos com perspicácia nas reuniões com os jesuítas, a OPAN e o CIMI, e nos diálogos particulares. O que falava era assunto que já tinha ruminado por meses na aldeia, mata, rio e barraco do Juruena. Expunha suas ideias com desenvoltura e paixão. Como homem místico, sua motivação última era Deus e seu Projeto de Vida. Alimentava sua fé no silencio, na comunhão com a mata e o rio, mas, sobretudo, participando dos intensos e longos rituais dos Enawene Nawe distribuídos ao longo de todo o ano.

A luta pela terra foi a primeira bandeira que Kiwxí levantou junto com os Enawene Nawe. Eles tinham consciência dos limites de seu território tradicional e da necessidade de defendê-lo dos invasores. Para esta etnia a terra é sagrada, no sentido mais forte da palavra. Por causa desta defesa de sua terra houve algumas mortes trágicas.

O Irmão Vicente tinha consciência dos perigos. Entre os fazendeiros da região, Pedro Chiquetti, dono da fazenda Londrina (no limite com a área indígena) foi acusado de mandar matar ao Irmão Vicente, pois este tinha interesse em tomar parte das terras dos Enawene Nawe. Todos os indícios apontam como responsáveis do homicídio a Pedro Chiquetti (proprietário da fazenda “Londrina”), Ronaldo Antonio Osmar (ex-delegado da Policia Civil de Juina), Jose Vicente da Silva e Martinez Abadio da Silva (entre outros pistoleiros contratados para “realizar o serviço”).

Devido às ameaças a Kiwxí, este evitava ao máximo sair da terra indígena. Em carta enviada ao Pe. Thomaz Lisbôa em 20/09/1984, expressa:

Não vou nunca mais a Cuiabá, não vou sair da área deixando aos Enawene Nawe ameaçados. Nem Doroteia (voluntaria da OPAN) vai sair da aldeia. Vamos assumir as circunstâncias até o fim: Se temos que morrer, vamos morrer todos! Esta é uma razão a mais, Jaúka [nome Myky de Thomaz Lisbôa], para urgir a necessidade de resolver de forma definitiva o problema da área (a demarcação), pois a insegurança afeta agora muita gente26.

26 Terol et Pardo, op cit p. 170

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Uma semana antes do martírio, quando se dirigia para os Enawene Nawe com um barco e motor de popa novos, mantimentos e gasolina suficiente para meses, na travessia do rio Juruena, Kiwxí partilhou com o Pe. Balduino Loebens SJ27:

Nunca estive tão bem de recursos para seguir em frente no trabalho de forma tão qualificada! Não me sinto só. Vivo na presença de Deus. Contemplo as maravilhas de Deus na bela natureza desse rio Juruena. Louvo a Deus ao fisgar gostosos peixes! [...] Para que estragar o ritmo desse povo que vive feliz? Nossa presença deve ser segurança e ajuda para eles seguirem sua vida sem percalços.

O Irmão Vicente Cañas SJ foi martirizado com 48 anos de idade, em abril de 1987, presumivelmente no dia 6 ou 7, cálculo feito a partir do momento em que seu relógio de pulso parou às 9:30 horas da manhã do dia 8. Alguns sinais do violento assassinato: tudo o barraco remexido e as coisas jogadas pelo chão fruto da luta, óculos e dentes quebrados, chinelo rasgado, uma perfuração no alto do abdômen para atingir o coração, lesões no crânio... Seu corpo foi arrastado para fora do barraco para os animais o comerem e destruir as provas. Porém, seu corpo mumificado e preservado foi encontrado numa esquina do barraco, no dia 16/5/1987 (40 dias depois!). No dia 22, de manhã cedo, foi enterrado como os indígenas, na sua própria rede, numa fossa escavada a dois metros de distancia de onde tinha sido encontrado o corpo. Indígenas Enawene Nawe, Rikbaktsa e Myky, junto com os missionários Pe. Iasi SJ, Tião (Cimi), Rosa (Opan), entre outros, deram-lhe sepultura.

Somente 19 anos depois foi possível levar a Júri Popular os envolvidos que ainda estavam vivos. Muitas pessoas e entidades indigenistas28 somaram para que este martírio não ficasse impune. O Escritório de advocacia Luiz Eduardo Greenhalgh de São Paulo, através da advogada Michael Mary Nolan, não mediu esforços para que o processo chegasse a Júri Popular. Sebastião Moreira (Tião do CIMI) foi o articulador neste árduo trabalho de acompanhar o processo na justiça.

Foi fundamental conseguir que o processo passasse em 1996 do Fórum da Comarca de Juína (MT), para ser julgado na Justiça Federal em Cuiabá (MT). O Júri Popular iniciou no dia 24/10/2006, na 2ª Vara da Justiça Federal em Mato Grosso, contando com grande participação no plenário que estava aberto ao público. Lamentavelmente, apesar da dor e indignação do povo que clamava por justiça, o Júri Popular concluiu e não levou nenhum dos acusados à condenação por “falta de provas”.

Conforme o MPF, o Conselho de Sentença desconsiderou provas substanciais colhidas durante o processo, envolvendo testemunhos e o laudo cadavérico, além de misteriosas tentativas de sumiço das provas. O crânio de Cañas desapareceu da sede do Instituto Médico Legal (IML) de Belo Horizonte (MG) enquanto passava por análise pericial. Dias depois, foi encontrado por um transeunte numa praça da cidade. “Os jurados, realmente, deram as costas ao acervo probatório ignorando os depoimentos colhidos na fase instrutória em confronto unicamente com o

27 O Pe. Balduino Loebens SJ sofreu ameaças, foi espancado por suposto envolvimento com os sem-terra perto de Fontanillas (MT). Trabalhou com os Rikbaktsa durante 49 anos. Foi preso e acusado de armar os Rikbaktsa na luta pela Terra Indígena Japuíra. Morreu afogado nas águas do rio Juruena, onde desenvolvia sua missão de cuidado da saúde dos Rikbaktsa.

28 No dia 17/10/2006 reuniram-se representantes de várias entidades, em Cuiabá, para organizar as atividades referentes ao Júri Popular dos acusados pela morte do Ir. Vicente Cañas, jesuíta. Auxiliaram neste processo a Missão Anchieta; o CIMI-MT; a AMI SJ VIDA, a OPAN; o GTME; o CBFJ, a Missionsprokur; Dom Luciano Mendes; Paulo Suess, Dom Pedro Casaldáliga e outros.

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interrogatório do réu, que ao tempo todo negou sua participação no episódio, o que já era de se esperar”, afirmou o MPF nos autos de apelação.

8 A modo de conclusão: caminhando sob a inspiração de Ir. Vicente mártir

Hoje, os povos indígenas e as instituições e pessoas que junto com eles caminhamos e lutamos, exigimos das autoridades que façam justiça e não deixem impune este crime que é contra todos os povos indígenas e seus aliados!

Vicente Cañas é um mártir da justiça e profeta da vida dos povos indígenas. Um testemunho e símbolo de coerência no convívio com os índios e com os missionários e missionárias, com o sol e a lua, com o vento e a chuva, com os rios e as florestas. Com os anos Vicente vai se amassando, por dentro e por fora, curtindo a pele e o espírito. Se sempre foi um homem magro, alto e saudável, aos poucos sua pele e alma vão ficando mais morenas, mais índias!

Dom Pedro Casaldáliga fala com carinho que o Ir. Vicente Cañas é o “mártir das causas ameríndias”. E continua: “Desnudou-se de prejuízos e hábitos culturais, assimilou as mais avançadas propostas da Missão, e se fez índio Enawene Nawe.” (Terol et Pardo, contracapa).

A cada dia cresce e espalha-se em diferentes meios o reconhecimento de Kiwxí por seu compromisso profético junto aos povos indígenas até o martírio. Diziam no júri (2006) que não roubaram a vida do jesuíta mártir, pois ele tinha consciência de que a estava entregando. Não se deixou amedrontar, não arredou o pé da Missão. Seu coração foi transpassado pelo amor aos Enawene Nawe!

Sua memória tem fecundado muitas instituições e iniciativas em diferentes lugares: Centro de Espiritualidade Vicente Cañas SJ (Manaus, AM, Brasil); Causa Ameríndia “Kiwxí” (ONG indigenista de Venezuela fundada pelo Ir. Korta SJ); na musica e letra “Enawene Nawe” de Luiz Augusto Passos; um grupo da CVX em Sevilla, Espanha; etc.

Também seu sangue derramado, como sementes de vida, tem germinado em muitas pessoas missionárias que assumiram a causa dos povos indígenas. Um deles é Fernando López. Sua vocação indigenista foi semeada por Vicente Cañas SJ, assassinado dois meses depois de Fernando ter feito seus primeiros votos do noviciado em Paraguai (fevereiro/1987). Ele mesmo conta:

Quando a notícia chegou, fiquei muito impactado. Na minha oração frente à foto do cadáver mumificado de Kiwxí, só me vinha de modo insistente oferecer-me para a missão indígena. Com toda decisão e força expressei esta moção ao provincial da época e aos provinciais sucessivos. E o pedido foi acolhido e apoiado até hoje. A Kiwxí, mártir da fé e da justiça com os povos indígenas, devo minha vocação indigenista na Companhia de Jesus. Obrigado irmão! continua intercedendo pelos povos indígenas e cutucando a todos nós, missionários e missionárias das causas ameríndias.

O Irmão Vicente Cañas, Kiwxí, está vivo: na floresta florida que cresce na sua sepultura, a terra-mãe; nas águas dos rios e igarapés que correm livres e pelos que navegou e pescou; nos territórios que defendeu ajudando a demarcar e proteger; nos povos com quem lutou; na memória, inspiração e compromisso dos missionários e missionários que trás suas pegadas, ontem, hoje e sempre continuaremos andando; na vida e no canto, na dança e na musica das flautas de seus irmãos Enawene Nawe.

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Agradecidos estamos, Irmão Vicente Cañas SJ, por deixar-te semear nestas terras amazônicas e germinar no meio dos seus povos. Grato por tua sepultura que é sementeira florida, por doar-te todo, por teu martírio e transformação profética em Irmão Kiwxí, irmão dos índios e de todos nós!

Como citar este artigo (ABNT):

PACINI, Aloir; LOPEZ, Fernando. Kiwxí: a sepultura florida... A memória profética do Irmão Vicente Cañas, SJ. Itaici - Revista de Espiritualidade Inaciana, v. 21, n. 102, p. 21-36, dez. 2015. ISSN: 1517-7807.