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Universidade Presbiteriana Mackenzie
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AS ORGANIZAÇÕES RELIGIOSAS SOB A ÓTICA DO DIREITO
Klariene Andrielly Araujo (IC) e Washington Carlos de Almeida (Orientador)
Apoio: PIVIC Mackenzie
Resumo
As organizações religiosas estão baseadas, em primeiro lugar, na autonomia da vontade, e, por conseguinte, na liberdade de organização religiosa. Juntas, elas possibilitam a livre escolha dos indivíduos em seguir ou não uma determinada religião, bem como a livre manifestação de fé e crença por parte daqueles que a seguem, independente de qual seja. Assim, assegurada a liberdade individual de ter ou não uma religião, o ordenamento jurídico brasileiro também garante às entidades religiosas a possibilidade de se organizarem livremente, por meio da liberdade de criação, de auto-ordenação ou auto-regulamentação, de estruturação interna e de funcionamento sem qualquer interferência do poder público. No caso, tem-se que somente através dessas liberdades é que os grupos religiosos verdadeiramente podem exercer suas crenças e rituais sem qualquer impedimento. Desse modo, é possível constatar que a religião, analisada sob a perspectiva das instituições que dela decorrem, possui diversos aspectos que repercutem diretamente no mundo jurídico, os quais são bastante peculiares, se comparados as demais pessoas jurídicas de direito privado. Portanto, o presente trabalho visa apresentar alguns desses aspectos, que não são plenamente desenvolvidos pelos doutrinadores do Direito, analisando os elementos essenciais de uma organização juridicamente estruturada e demonstrando o quão importante são para que a liberdade religiosa seja efetivamente aplicada no Brasil.
Palavras-chave: Direito, religião, liberdades
Abstract
Religious organizations are based, firstly, on the autonomy of the will, and therefore on the freedom of religious organization. Together, they enable the free choice of individuals to follow a given religion or not, and the free expression of faith and belief by those who follow it, no matter what. Thus, guaranteed individual freedom to have or not a religion, the Brazilian legal system also gives religious organizations the ability to organize themselves freely, through the creative freedom, self-ordering or self-regulation, internal structure and operation without any interference from the government. In this case, it follows that only through these freedoms is that religious groups can truly exercise their beliefs and rituals without any hindrance. Thus, it is clear that religion, analyzed from the perspective of the institutions under it, has several aspects that directly affect the legal world, which are quite unique when compared to other legal entities under private law. Therefore, this paper presents some aspects that are not fully developed by scholars of law; analyzing the essential elements of a legally structured organization and demonstrating how important that religious freedom is effectively applied in Brazil.
Key-words: Law, religion, freedoms
VII Jornada de Iniciação Científica - 2011
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INTRODUÇÃO
As organizações religiosas se fundamentam na autonomia da vontade quanto à religião,
pois é ela que possibilita aos indivíduos se agruparem para a livre manifestação de fé e
crença, resguardando o direito de cultuar o que bem entenderem, e da mesma forma, a
possibilidade de se organizarem. Assim, ao permitir que as pessoas ajam conforme suas
próprias determinações, a liberdade garante a formação das instituições religiosas, bem
como lhes assegura alguns direitos.
Ao discorrer acerca da liberdade, o filósofo Norberto Bobbio apontou duas perspectivas em
que ela pode ser analisada: a positiva e a negativa (BOBBIO,1997 apud JUNIOR, 2007).
Considerada a relevância da liberdade para a religião, a positiva é a que envolve a
capacidade de autodeterminação, exemplificada na livre escolha da religião pelo indivíduo;
já a negativa, subdividida em ausência de impedimento e de constrangimento, é a que
permite constatar que sem essa liberdade os adeptos poderiam ser impedidos de realizar
seus ritos e cerimoniais, ou mesmo, obrigados a fazer algo contrário a sua crença.
Analisada com mais profundidade, a liberdade religiosa envolve outras três liberdades: de
crença, de culto e de organização religiosa. Abarca, portanto, todo o fenômeno religioso,
uma vez que envolve não só a escolha do indivíduo quanto a sua religião, mas também, a
livre manifestação de sua crença e a possibilidade de se agrupar com pessoas que
professem a mesma fé.
A presente pesquisa tem como objetivo investigar esse agrupamento de pessoas sob prisma
jurídico, razão pela qual a análise recairá, sobretudo, na terceira modalidade entre as que
foram mencionadas acima. Esta, por sua vez, é a que possibilita a livre criação,
regulamentação, estruturação e funcionamento dos grupos religiosos juridicamente
organizados. Assim, tem-se que o trabalho em questão, visa abordar esses quatro aspectos
das organizações religiosas, bem como identificar os elementos jurídicos essenciais que
possuem, traçando um paralelo com a importância deles para a plena aplicação da
liberdade religiosa.
REFERENCIAL TEÓRICO
Norberto Bobbio conceitua liberdade sob as perspectivas positiva e negativa,
compreendendo, de um lado a ausência de constrangimento e impedimento, e de outro, a
autonomia da vontade. (BOBBIO,1997 apud JUNIOR, 2007). De Plácido e Silva, afirma que a
liberdade exprime a faculdade de fazer ou não fazer, de acordo com a livre determinação
dos indivíduos, mas ressalta o respeito às regras e aos princípios instituídos. (SILVA, 1987
apud SORIANO, 2002).
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Em relação à liberdade religiosa, José Afonso da Silva (2008) a define como um direito
complexo que envolve a liberdade de crença, de culto e de organização religiosa. Aldir
Guedes Soriano (2002), por sua vez, para acrescentar o direito de não ter religião, inclui
nessas três espécies a liberdade de consciência.
Quanto à liberdade de organização religiosa, esta corresponde ao foco central dessa
pesquisa, uma vez que os aspectos jurídicos de tais organizações podem ser plenamente
desenvolvidos a partir dela. Nesse caso, Aloisio Cristovam dos Santos Junior (2007) a
analisa plenamente quando discorre acerca da livre criação, auto-ordenação ou auto-
regulamentação, estruturação e funcionamento das entidades religiosas.
MÉTODO
A investigação cientifica precisa de um conjunto de procedimentos intelectuais e técnicos
para obter os resultados pretendidos. Assim, método é o que corresponde à linha de
raciocínio adotada durante a pesquisa. No caso, tem-se que a abordagem utilizada foi,
basicamente, a qualitativa, abordando o objeto sem a efetiva preocupação em medir os
dados coletados. O método de abordagem foi o dedutivo, uma vez que a concepção teórica
desenvolvida partiu de conceitos gerais do direito, como a própria liberdade, para depois
analisá-los dentro das organizações religiosas. Em outras palavras, partindo do conceito
geral de liberdade, foi examinada especificamente a liberdade religiosa, e por conseguinte, a
liberdade de organização religiosa, alcançando a livre criação, regulamentação, estruturação
e funcionamento das entidades que dela decorre. Quanto aos métodos de procedimento
empregados, foram utilizados: 1) o histórico, porquanto alguns acontecimentos do passado
foram analisados, para verificar o momento em que o princípio da separação entre Estado e
Igreja foi instituído; 2) o comparativo, para distinguir as diferentes liberdades que garantem o
direito de religião; 3) o monográfico, visto que o tema é examinado profundamente,
principalmente no que tange aos aspectos jurídicos; 4) e o estatístico, ao mencionar o
número de católicos no país, constando a grande influência do catolicismo no Brasil.
Sobretudo, baseada na leitura, análise e interpretação de livros, informações veiculadas
pela imprensa, artigos científicos, legislação e jurisprudência, a modalidade da pesquisa foi
a bibliográfica, uma vez que avalia as diversas contribuições acerca do tema e contribui para
o desenvolvimento de novas perspectivas.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
As entidades religiosas estão alicerçadas no que se pode chamar de liberdade de
organização religiosa. Esta, por sua vez, é considerada uma espécie da liberdade religiosa
propriamente dita, que, consagrada na Constituição Federal entre os direitos fundamentais,
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garante autonomia da vontade quanto à religião, possibilitando aos indivíduos escolher qual
aderir, ou até mesmo optar por não seguir nenhuma.
Segundo De Plácido e Silva, o vocábulo liberdade indica a condição de livre ou estado de
livre, que permite às pessoas agirem segundo suas próprias determinações, respeitadas as
regras legais instituídas.
A liberdade, pois exprime a faculdade de se fazer ou não fazer o que se quer, de pensar como se entende, de ir e vir a qualquer atividade, tudo conforme a livre determinação da pessoa, quando não haja regra proibitiva para a prática do ato, ou não se institua princípio restritivo ao exercício da atividade. (SILVA, 1987 apud SORIANO, 2002).
Ao definir o conceito de liberdade, Norberto Bobbio o analisa sob duas perspectivas: a
positiva e a negativa. A liberdade negativa compreende a possibilidade de fazer, por meio
da ausência de impedimento, bem como a possibilidade de não fazer, através da ausência
de constrangimento. Por outro lado, a liberdade positiva é a que se identifica com a
autodeterminação ou autonomia da vontade do indivíduo de fazer.
(...) por liberdade negativa, na linguagem política, entende-se a situação na qual um sujeito tem a possibilidade de agir sem ser impedido, ou de agir sem ser obrigado, por outros sujeitos. (...) Por liberdade positiva, entende-se – na linguagem política – a situação na qual um sujeito tem a possibilidade de orientar seu próprio querer no sentido de uma finalidade, de tomar decisões, sem ser determinado pelo querer dos outros. (BOBBIO,1997 apud JUNIOR, 2007).
No que tange à liberdade religiosa, tais perspectivas tomam proporções interessantes, pois
não há como se falar em livre escolha da religião sem a capacidade de auto determinar-se,
tampouco em livre manifestação da crença, quando a pessoa é impedida de realizar os ritos
e cerimoniais religiosos, ou é obrigada a fazer algo contrário a sua fé.
De acordo com o constitucionalista José Afonso da Silva (2008), a liberdade supracitada
representa um direito complexo, envolvendo outras três liberdades: a de crença, de culto e
de organização religiosa. A primeira compreende o direito de escolher e mudar de religião, e
abrange a possibilidade de não aderir a religião alguma. Aldir Guedes Soriano (2002), ao
defini-la, a distingue da liberdade de consciência, justamente para abarcar o direito de não
se ter religião. Nesse sentido Pontes de Miranda fez o seguinte comentário à Constituição
de 1946:
A liberdade de consciência e a de crença são inconfundíveis. O descrente também tem liberdade de consciência e pode pedir que se tutele, juridicamente, tal direito. Bem assim, a liberdade de pensamento, que nem sempre é tangencial com a de consciência. (MIRANDA, 1946 apud SORIANO, 2002).
No caso da liberdade de culto, o modo em que este se apresenta pode ser individual ou
coletivo, uma vez que envolve, não só os atos de devoção praticados em público, mas
também, aqueles que o indivíduo pratica sozinho. Contudo, é importante ressaltar que o
culto coletivo não é sinônimo de público, assim como o individual não é de privado. Quando
alguém age conforme sua fé à vista de outras pessoas, o culto é individual, porém público.
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Da mesma forma, quando um grupo religioso realiza atos restritos às pessoas que dele
fazem parte, o culto é coletivo, mas privado. De qualquer modo, é essa liberdade que
permite aos adeptos de uma religião exteriorizar sua crença, por meio de ritos, cerimoniais e
quaisquer outras manifestações de cunho religioso.
Por fim, a liberdade de organização religiosa, como o próprio nome já diz, é a que possibilita
às entidades religiosas se organizarem. O bem jurídico tutelado, portanto, consiste no direito
delas estabelecerem o modo de constituição e funcionamento. Diante dessa autonomia, é
interessante destacar que a religião costuma sacralizar o modo que se organiza, razão pela
qual o seu cerceamento pode, também, restringir a liberdade de crença. A Igreja Católica
Romana, por exemplo, baseia-se na crença de que São Pedro foi o primeiro papa para
assegurar a autoridade do Sumo Pontífice, o que envolve fé religiosa e administração
hierárquica. Assim, caso o poder do papa sobre as igrejas católicas seja cerceado, o
ocorrido atinge não só a hierarquia estabelecida, mas da mesma maneira, a fé dos católicos
quanto a essa incumbência, que segundo a interpretação deles, foi determinada pelo próprio
Jesus na passagem de Mateus 16: 13-18 da Bíblia.
Jesus foi para a região que fica perto da cidade de Cesaréia de Filipe. Ali perguntou aos discípulos:
- Quem o povo diz que o Filho do Homem é?
Eles responderam:
- Alguns dizem que o senhor é João Batista; outros, que é Elias; e outros que é Jeremias ou algum outro profeta.
- E vocês? Quem dizem que eu sou? – perguntou Jesus.
Simão Pedro respondeu:
O senhor é o Messias, o Filho do Deus vido.
Jesus afirmou:
Simão, filho de João, você é feliz porque esta verdade não foirevelada a você por nenhum ser humano, mas veio diretamente do meu Pai, que esá no céu. Portanto, eu lhe digo: você é Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha igreja, e nem a morte poderá vencê-la. (BÍBLIA SAGRADA, 2000, grifo nosso).
Outro assunto relevante acerca da liberdade em questão está relacionada à separação entre
Estado e Igreja. O Brasil é considerado um Estado laico, porém permeado pela neutralidade
religiosa e marcado por sua benevolência à religião e às igrejas.
Em geral, as pessoas não têm uma real compreensão da laicidade em todos os seus
contornos. Não basta dizer que Estado laico é aquele que adota o princípio da separação e
não possui uma religião oficial. Aliás, a laicidade também não se confunde com anti-
religiosidade, pois o Estado não está imune às influências que a religião pode exercer na
sociedade. Portanto, é considerado laico aquele que não privilegia qualquer religião em
particular, bem como não se utiliza de critérios religiosos para determinar sua política.
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Pode-se dizer que a laicidade possui variações conforme as peculiaridades de cada
ordenamento jurídico. Segundo Aloisio Cristovam Santos Junior (2007), ressalvados os
direitos nacionais que adotam oficialmente uma ideologia ateísta ou anti-religiosa, isto é, que
são verdadeiros exemplos de totalitarismo político, e não de Estado laico, há dois modelos
básicos de laicidade estatal: o que limita a religião ao foro íntimo das pessoas, afastando-a
do espaço público; e o que a vê como elemento de integração social, inclusive, incentivando
as expressões de religiosidade em público. É o caso, por exemplo, do estabelecimento de
capelanias em corporações estatais.
Diante dessa questão, a secularização, entendida como processo em que a Igreja perdeu
sua influência na sociedade, é o que possibilita gradações desses dois modelos, visto que
ela não se apresenta da mesma forma nos diversos Estados, ou seja, cada um tem suas
particularidades e pode demorar um pouco mais para desenvolvê-la. Todavia, ainda assim
esse processo não deve ser considerado algo ruim, pois ele não implica, necessariamente,
no declínio do fenômeno religioso.
[...] como evento histórico tangível, a secularização significa apenas a separação entre Igreja e Estado, entre religião e política; e isto do ponto de vista religioso, implica em retorno à antiga atitude cristã de dar “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, e não uma perda de fé e transcendência ou um novo e enfático interesse nas coisas deste mundo. (ARENDT, 2001 apud JUNIOR, 2007).
No entanto, cumpre ressaltar, que o princípio da separação não pode ser atribuído tão
somente a esse processo de secularização. Em alguns países, os movimentos sociais e
políticos e até as religiões que não possuíam plenos direitos, contribuíram sobremaneira
para o estabelecimento do Estado laico, e, por conseguinte, do princípio em comento, o qual
afasta a intervenção estatal da religião e proibi a interferência desta na política, atendendo
os interesses de ambos os lados.
Com efeito, o Brasil tornou-se um país laico a partir do Decreto n.º 119-A, de 7 de janeiro de
1890, que proibiu a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em matéria
religiosa, consagrou a liberdade de cultos, extinguiu o padroado e estabeleceu outras
providências, a fim de instituir o princípio da separação. Redigido por Ruy Barbosa, o
decreto foi recepcionado pela Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de
24 de fevereiro de 1891, e desde então, o princípio restou consagrado no ordenamento
jurídico brasileiro. (BRASIL. Decreto n.º119-A, 1890).
Contudo, é importante destacar a influência católica na história brasileira, a ponto da
Constituição de 1824 instituir a Religião Católica Apostólica Romana como Religião do
Estado. E, apesar das últimas pesquisas apontarem uma significativa queda no número de
católicos no país, segundo a pesquisa Datafolha de março de 2010, mencionada na no texto
“Religiões no Brasil” da enciclopédia livre Wikipédia, o Brasil ainda é predominantemente
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católico, com 61% de seguidores. Verifica-se, portanto, que o modelo da aconfessionalidade
adotado no país é mais receptível às manifestações religiosas. Nesse sentido, basta
examinar o preâmbulo da atual Constituição para notar a benevolência à religião e às
igrejas. (WIKIPÉDIA, 2011).
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (BRASIL. Constituição, 1988, grifo nosso).
Muito se discutiu acerca da natureza jurídica de tal preâmbulo, porquanto alguns
doutrinadores o colocam acima das normas infraconstitucionais. Porém, ao julgar a Ação
Direta de Inconstitucionalidade n.º 2.076, proposta pelo Partido Social Liberal, justamente
para discutir a omissão da expressão “sob a proteção de Deus” no preâmbulo da
Constituição Estadual do Acre, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento de que o
texto preliminar das constituições não tem relevância jurídica, e sim, política, por refletir a
posição ideológica do legislador. Entendeu-se, desse modo, que o preâmbulo da
Constituição Federal não constitui norma central, e que a expressão omissa não possui
força normativa, razão pela qual não se trata de norma de reprodução obrigatória na
Constituição dos Estados-membros.
EMENTA: CONSTITUCIONAL. CONSTITUIÇÃO: PREÂMBULO. NORMAS CENTRAIS. Constituição do Acre.
I - Normas centrais da Constituição Federal: essas normas são de reprodução obrigatória na Constituição do Estado-membro, mesmo porque, reproduzidas, ou não, incidirão sobre a ordem local. Reclamações 370-MT e 383-SP (RTJ 147/404).
II. - Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa.
III. - Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.
(STF, ADI 2076/AC – ACRE, Ação Direta de Constitucionalidade, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, julgada em 15.08.2002, DJ 08.08.2003).
De qualquer modo, segundo Aloisio Cristovam dos Santos (2007), “a invocação da proteção
divina não é destituída de significado”, pois revela que a fé religiosa é respeitada e
valorizada no Brasil, demonstrando certa simpatia pela religião, sem contrariar o princípio da
separação, visto que a Constituição é de todos e não distingue teístas, deístas, agnósticos e
ateus. Nas palavras do Ministro Carlos Velloso, relator da ADI anteriormente mencionada:
Essa invocação, todavia, posta no preâmbulo da Constituição Federal, reflete, simplesmente, um sentimento deísta e religiosa, que não se encontra inscrito na Constituição, mesmo porque o Estado brasileiro é laico, consagrando a Constituição a liberdade de consciência e de crença (C.F., art. 5º), certo que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política (C.F., art. 5º, VIII). (VELLOSO, 2002).
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De igual modo, é o que Manuel Gonçalves Ferreira Filho constata ao fazer um panorama da
Constituição:
Esta Constituição segue em princípio o modelo da separação, mas a neutralidade que configura é uma “neutralidade” benevolente, simpática à religião e às igrejas. é o que decorre das normas adiante assinaladas:
1) A Constituição não é atéia. Invoca no Preâmbulo o nome de Deus (o que já fazia a Constituição de 1934), pedindo-lhe a proteção.
2) Aceita como absoluta a liberdade de crença (art. 5º, VI).
3) Consagra a separação entre Igreja e Estado (art. 19, I).
4) Admite, porém, a colaboração de interesse público” (art. 19, I, in fine).
5) Permite a “escusa de consciência”, aceitando que brasileiro se recuse, por motivos de crença, a cumprir obrigação a todos imposta (art. 5º, VIII), desde que aceite obrigação alternativa. (Caso não o faça, ocorrerá a perda dos direitos políticos – arts.5º, VIII, e 15, IV).
6) Assegura a liberdade de culto (art. 5º, VI) (subentendida a limitação em razão da ordem pública).
7) Garante a “proteção dos locais de culto e liturgia”, mas na forma da lei.
8) Favorece as igrejas, assegurando-lhes a imunidade quanto a impostos incidentes sobre seus “templos” (art. 150, VI, b). entretanto, como aplica o art. 150, §4º, esta imunidade abrange “o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as (suas) finalidades essenciais”. (FILHO, 2002).
A partir dessa análise, tem-se que a liberdade religiosa é amplamente acolhida pelo texto
constitucional, inclusive a liberdade de organização religiosa, melhor compreendida pela
leitura do artigo 5º, inciso VI, combinado com o artigo 19, inciso I, da Constituição Federal.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; (BRASIL. Constituição,1988, grifo nosso).
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; (BRASIL. Constituição,1988, grifo nosso).
Em conjunto, esses artigos asseguram, não apenas a liberdade relativa à expressão de fé
individual e coletiva, mas também, a que garante o funcionamento dos cultos religiosos ou
igrejas. Em outras palavras, fica claro que a Constituição abrange não só as liberdades de
crença e de culto, outrossim, abarca a liberdade de organização religiosa, diante da
possibilidade das entidades se organizarem livremente, sem a interferência do Estado.
É importante fazer algumas ponderações acerca de duas expressões dos textos
supracitados, porquanto podem causar interpretações equivocadas. São elas “cultos
religiosos” e “na forma da lei”.
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No artigo 5º, inciso VI, da Carta Magna, a primeira expressão refere-se às manifestações de
adoração dos fiéis, no entanto, no artigo 19, inciso I, ela adquire o sentido de organização
religiosa que não se identifica como igreja, visto que este termo de origem grega (Εκκλησία,
ekklesia) passou a ter relação direta com a religião cristã. Nesse caso, a expressão foi
utilizada para que todas as entidades religiosas estivessem compreendidas pelo preceito
constitucional. A título de curiosidade, Eclésia, na verdade, era a assembléia popular da
democracia ateniense, aberta a todos os cidadãos homens com mais de dezoito anos, e
somente adquirindo o sentido do que hoje é conhecido como “igreja” a partir do
Cristianismo.
Quanto à segunda expressão, ela não está relacionada com a vedação da interferência
estatal, e sim, com a possível colaboração de interesse público, ou seja, o Estado pode
colaborar com as instituições religiosas, mas para isso necessita de regulamentação legal,
de modo a impedir desvios e impor limites. Nesse sentido, Manuel Gonçalves Ferreira Filho
afirma:
a lei regulamentar deverá editar normas que impeçam desvios na aplicação de auxílios, bem como seus limites, a fim de impedir seja comprometida a separação. (FILHO, 1997 apud JUNIOR, 2007).
Compreendida a dimensão da liberdade, principalmente no que tange à religião e a sua
inserção no ordenamento jurídico brasileiro, é relevante estudar os contornos da liberdade
de organização religiosa em si, para dessa forma, analisar as organizações propriamente
ditas. Nesse caso, tem-se que o §1º do artigo 44 do Código Civil fornece quatro aspectos
que indicam o processo pela qual uma entidade religiosa passa: criação, organização,
estruturação interna e funcionamento.
Art. 44, § 1o São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento. (BRASIL. Código Civil, 2002).
Em relação à livre criação, entende-se que o poder público não pode impedir que um grupo
de pessoas crie uma organização com finalidade religiosa. Quanto à livre organização, tal
expressão, segundo Aloisio Cristovam dos Santos Junior (2007), denota a idéia de ordenar,
remetendo-se ao poder de auto-ordenação ou auto-regulamentação, isto é, da capacidade
que as entidades religiosas têm de estabelecer livremente o próprio ordenamento jurídico.A
estruturação interna, por sua vez, também se relaciona com as normas instituídas pelas
organizações religiosas, contudo esta relação envolve a aplicação e execução delas, e não
a instituição, a qual fica a cargo do poder de auto-ordenação ou auto-regulamentação. Por
último, em relação ao livre funcionamento, este corresponde às próprias atividades
realizadas, uma vez que a organização é criada, organizada e estruturada, justamente, para
desempenhá-las de acordo com a fé pregada.
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Ademais, é importante ressalvar que, embora a livre criação, organização, estruturação e
funcionamento das entidades sejam etapas no processo de formação das organizações
religiosas, esses aspectos são, sobretudo, liberdades que possibilitam o reconhecimento de
diversos direitos para as instituições de cunho religioso.
Tais liberdades, como é fácil notar, trazem consigo o reconhecimento de diversos direitos às organizações religiosas, entre os quais podemos citar o direito à fixação dos requisitos exigidos para a inclusão, permanência e desligamento de seus membros, o direito à livre estipulação da sua form ‘a de governo, o direito à livre ordenação de seus ministros e o direito à livre estipulação do modo como serão sustentadas financeiramente. (JUNIOR, 2007, grifo do autor).
Liberdade de criação
A liberdade em questão permite que as organizações religiosas se formem sem qualquer
interferência do Estado, inclusive no modo de criação, ou seja, elas podem ser criadas a
partir da reunião de pessoas que professam a mesma fé em razão do desmembramento de
um grupo, ou até mesmo, da fusão de organizações que já existiam. Porém, uma indagação
difícil de responder diz respeito ao momento que essas organizações adquirem existência
jurídica.
É plenamente possível afirmar que uma organização religiosa existe antes mesmo que
assim seja reconhecida, por meio do registro, visto que ela não necessita de qualquer
permissão para existir. Desse modo, o disposto no §1º do artigo 44 do Código Civil se aplica
às entidades já organizadas, visto que elas apenas buscam o reconhecimento de sua
existência e o registro dos atos constitutivos.
Entretanto, deve-se frisar que os grupos religiosos ainda não organizados também estão
protegidos pelo direito de criação, uma vez que a liberdade ora analisada envolve,
justamente, o direito de criar a organização religiosa. Todavia, se ainda não estão
organizados como tal, não podem obter o reconhecimento, tampouco o registro do artigo 45
do Código Civil.
Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo. (BRASIL. Código Civil, 2002).
À luz desse artigo, a partir do momento que são devidamente registradas, tais organizações
adquirem personalidade jurídica e deixam de ser apenas grupos religiosos, que sob uma
perspectiva constitucional, também possuem o direito de serem criados, organizados,
estruturados e funcionarem sem qualquer impedimento, para receber o status de pessoas
jurídicas, consoante o artigo 44 do mesmo diploma legal.
Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado:
I - as associações;
II - as sociedades;
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III - as fundações.
IV - as organizações religiosas;
V - os partidos políticos (BRASIL. Código Civil, 2002, grifo nosso).
É importante destacar que a existência jurídica das organizações não se confunde com a
personalidade jurídica. No caso, sem o devido registro no cartório, somente as atividades
religiosas podem ser praticadas livremente, pois, para os atos negociais, como instituição
independente de seus membros, essa personalidade se faz necessária. Em outras palavras,
para que os atos da vida civil não impliquem na responsabilidade solidária e ilimitada de
todos os integrantes, há a necessidade de que a organização seja registrada, mesmo
porque, é através da aquisição da personalidade jurídica que ela pode provar sua existência.
A demonstração documental da constituição da personalidade jurídica faz presumir a existência e o funcionamento da organização religiosa. A organização religiosa despersonalizada, porém, terá de provar a sua existência por outros meio, para o que dificilmente escapará de recorrer ao Judiciário. (JUNIOR, 2007).
Adquirida a personalidade jurídica, tais instituições passam a desfrutar da proteção
mencionada no artigo 52 do Código Civil de 2002. Esse dispositivo legal afirma que a
proteção dos direitos de personalidade aplica-se, no que couber, às pessoas jurídicas, razão
pela qual a reputação, o nome, a marca e os símbolos, como direitos de identidade, podem
gerar reparação civil de danos se forem ofendidos.
Assim, para se obter a personalidade jurídica é preciso elaborar o ato constitutivo, por meio
de uma ata de fundação, pacto ou qualquer outro documento que demonstre a “inequívoca
manifestação escrita de vontade coletiva com ânimo de criar pessoa jurídica”, o qual
também deve apresentar os requisitos do artigo 46 do Código Civil, pois são elementos
fundamentais do registro, que, basicamente, consiste na transposição das informações do
ato constitutivo para o livro do Registro Civil de Pessoas Jurídicas, consoante o artigo 114,
inciso I, da Lei n.º 6.015/73 – Lei dos Registros Públicos. (CENEVIVA, 1991 apud JUNIOR,
2007).
Art. 46. O registro declarará:
I - a denominação, os fins, a sede, o tempo de duração e o fundo social, quando houver;
II - o nome e a individualização dos fundadores ou instituidores, e dos diretores;
III - o modo por que se administra e representa, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente;
IV - se o ato constitutivo é reformável no tocante à administração, e de que modo;
V - se os membros respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais;
VI - as condições de extinção da pessoa jurídica e o destino do seu patrimônio, nesse caso. (BRASIL. Código Civil, 2002).
Art. 114. No Registro Civil de Pessoas Jurídicas serão inscritos:
I - os contratos, os atos constitutivos, o estatuto ou compromissos das sociedades civis, religiosas, pias, morais, científicas ou literárias, bem como o das fundações e das associações de utilidade pública; (BRASIL. Lei n.ª 6.015, 1973).
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Outrossim, também não é rara a confusão que se estabelece entre as entidades religiosas e
as associações civis. E, se considerada a redação original do artigo 44 do Código Civil, que
não incluía as organizações religiosas e os partidos políticos no rol das pessoas jurídicas de
direito privado, ambos recebiam o mesmo tratamento jurídico das associações sem fins
lucrativos. Entretanto, alguns dispositivos restaram incompatíveis com a natureza dessas
instituições, violando não só a liberdade religiosa assegurada na Constituição, mas afetando
a estrutura dos partidos políticos, o que justificou a menção deles em separado no
dispositivo legal,
Assim, com o advento da Lei n.º 10.852, de janeiro de 2003, tem-se que além do acréscimo
dessas duas instituições ao artigo 44, foi incluído o parágrafo único no artigo 2.031 do
mesmo diploma legal, as dispensando de se adequarem as disposições do Código. No caso,
entende-se que as organizações religiosas e os partidos políticos possuem a mesma
natureza jurídica das associações, mas como afirma Damião Alves de Azevedo, apenas
foram individualmente destacadas e dispensadas de se adequarem às regras das
associações em geral, devido ao reconhecimento público de suas respectivas formas de
organização. (AZEVEDO, 2006).
Art. 2.031. As associações, sociedades e fundações, constituídas na forma das leis anteriores, bem como os empresários, deverão se adaptar às disposições deste Código até 11 de janeiro de 2007.
Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica às organizações religiosas nem aos partidos políticos. (BRASIL. Código Civil, 2002).
Liberdade de auto-ordenação ou auto-regulamentação
Essa liberdade permite a livre criação de regras relativas à estrutura interna e ao
funcionamento das organizações religiosas. Corresponde, portanto, ao poder de estabelecer
o próprio ordenamento jurídico, bem como à possibilidade das instituições, ao invés de criá-
lo, acatarem o ordenamento de convenções, federações, presbitérios, entre outras
associações, que buscam reunir e unificar uma determinada doutrina religiosa. É o caso, por
exemplo, da Convenção Batista Brasileira (CBB), que representa em torno de 7.000 igrejas,
4.000 missões e 1.350.000 de fiéis. (PORTAL BATISTA, 2011).
Quando as entidades não são restritas ao contexto nacional, de modo que assumem
normas estrangeiras para o ordenamento jurídico interno, o poder público em nada pode
interferir nesse acolhimento, pois a liberdade da auto-ordenação possibilita a livre escolha
das normas, sem qualquer restrição quanto ao local em que foram elaboradas. Da mesma
forma, em razão dessa autonomia, quando uma organização religiosa a nível mundial se
desvincula da influência internacional e estabelece novas regras, prevalecem as que foram
produzidas pela própria organização.
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É importante destacar que o ordenamento jurídico de uma instituição religiosa não precisa,
necessariamente, ser escrito. Não há problema algum se ele estiver firmado no costume,
contudo, caso haja algum conflito, fica difícil provar a existência das normas que o integram,
e por isso, a forma escrita é prezada pelas instituições. As igrejas batistas, por exemplo,
além de adotar um estatuto, que devidamente registrado no Cartório, lhes conferem a
personalidade jurídica, normalmente, elas também possuem um regimento interno escrito e
aprovado por seus membros.
Aquele que adere uma determinada organização religiosa submete-se ao regulamento que
esta possui, tanto nos direitos quanto nos deveres, de modo que o Estado jamais deve
impor uma norma dentro das entidades, tampouco o não cumprimento de alguma regra. No
entanto, deve-se ressaltar que o princípio do livre acesso à Justiça não impede que qualquer
lesão ou ameaça ao direito sejam apreciadas pelo Poder Judiciário. Nesse caso, o litígio
deverá ser solucionado com base no ordenamento elaborado pela própria instituição.
Art. 5º, XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; (BRASIL. Constituição, 1988).
O ingresso de membros é outra questão relevante dentro da liberdade ora analisada, uma
vez que é permitido aos grupos religiosos estabelecer regras para que uma pessoa seja
admitida ou não na comunidade religiosa. Assim, no caso de não admissão, não configura
qualquer discriminação, se os requisitos exigidos não afrontarem os direitos fundamentais
assegurados na Constituição. Portanto, é plenamente possível determinar condições para
que alguém seja aceito como membro participante da organização, e o poder público não
pode obrigar a aceitação de qualquer pessoa se esta não cumprir as exigências de filiação.
Diferente das associações civis, tais requisitos não precisam estar em conformidade com as
regras do Código Civil, o que possibilita, inclusive, a inserção de crianças como integrantes.
A Igreja Católica, por exemplo, admite o batismo infantil, que é o ritual de aceitação de
membros quando os pais já são integrantes da comunidade religiosa e desejam que seus
filhos sejam educados com os valores e princípios da Igreja.
Nessa hipótese, não há que se falar em afronta à liberdade religiosa da criança, pois de
acordo com o artigo 5º da Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções, os pais têm o direito
de organizar a vida familiar conforme a religião que seguem ou as convicções que possuem.
Ademais, quando adulta, a pessoa terá a liberdade de escolher qual religião seguir, o que
lhe abre a possibilidade de optar por não fazer mais parte do grupo religioso em que foi
inserida.
Art. 5 - 1. Os pais, ou no caso os tutores legais de uma criança terão o direito de organizar sua vida familiar conforme sua religião ou suas convicções e devem levar em conta a educação moral em que acreditem e queiram educar suas crianças.
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(ONU. Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções, 1981).
Toda religião tem seu líder espiritual, contudo em alguns casos, este também recebe a
função administrativa da organização religiosa. É o caso dos padres e pastores, que além
de transmitir o recado de Deus para os fiéis, muitas vezes, estão incumbidos de administrar
a paróquia ou a igreja. Dessa forma, a liberdade em questão também envolve a autoridade
que é conferida aos líderes religiosos, bem como a maneira que o poder é distribuído
internamente.
Segundo Aloisio Cristovam dos Santos Junior (2007), em geral existem três formas de
governo dentro das entidades religiosas: episcopal, quando é exercido por um único
indivíduo; presbiterial, quando um grupo determinado de indivíduos exerce o governo; e
congregacional, quando é exercido pelos próprios integrantes reunidos em assembléias. Em
geral, são as organizações que escolhem como serão dirigidas e o poder público não pode
interferir nessa escolha.
Basicamente, os motivos que justificam a obediência dos membros ao modelo adotado
encontram fundamento nos tipos puros de dominação legítima estudados por Max Weber
(1997 apud JUNIOR, 2007), quais sejam: legal, tradicional e carismática.
Na primeira, o líder recebe essa incumbência em virtude do que dispõe o estatuto, uma vez
que este, quando corretamente elaborado, pode criar e modificar direitos. Na segunda, a
obediência dos liderados está relacionada com a dignidade do líder, ele é santificado pela
tradição e as pessoas obedecem por fidelidade a ele. Por último, na dominação carismática,
a devoção dos fiéis é afetiva, normalmente em razão dos poderes sobrenaturais ou
intelectuais, das faculdades mágicas, das revelações ou do heroísmo que ele possui. Um
bom exemplo desse tipo é Sun Myung Moon, líder da Associação do Espírito Santo para a
Unificação do Cristianismo Mundial, mais conhecida como Igreja de Unificação, fundada em
1954, na cidade de Seul, Coréia.
Independente de qual sistema de governo ou tipo de dominação é vedado ao poder público
intervir na escolha, pois a liberdade conferida às entidades religiosas envolve a capacidade
de autodeterminação. Ademais, não cabe ao Estado se envolver em assuntos religiosos,
muito menos, discutir a autoridade dos líderes ou sistema de governo, visto que recai em
aspectos da doutrina e fé das pessoas adeptas.
No caso do desligamento de membros, este também se orienta pela liberdade de auto-
regulamentação quando se trata de uma sanção disciplinar ao integrante. Assim, é
plenamente possível a criação de um código de disciplina das organizações religiosas,
inclusive, estabelecendo punições, entre as quais a desfiliação é a pena mais grave.
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Por envolver não só o cumprimento de obrigações pelos membros, mas também, o desvio
de comportamento do padrão ético-religioso, o poder disciplinar alcança todas as esferas da
vida pública e privada dos indivíduos, ou seja, não está adstrito ao que atinge o grupo
religioso, mas abrange a vida particular de seus membros. Nesse sentido, a punição em
questão baseia-se em critérios morais e religiosos, razão pela qual o poder público não deve
interferir, a menos que as regras de procedimento na aplicação da penalidade,
estabelecidas no ordenamento jurídico da organização, forem descumpridas, pois a decisão
que se manifestar quanto à legitimidade da sanção imposta deve ser fundamentada pelas
regras da própria entidade.
Outro ponto relevante e um tanto polêmico diz respeito ao financiamento das organizações
religiosas. É evidente que assim como qualquer outra instituição, a manutenção de suas
atividades requer um custeio, e como é defeso ao Estado subsidiar qualquer religião, resta
aos fiéis buscar uma maneira de arrecadar os recursos necessários, o que geralmente
ocorre por meio de doações dos próprios membros. Na Igreja Cristã tais doações recebem o
nome de dízimos e ofertas, sendo que o dízimo corresponde à décima parte dos
vencimentos, representando uma atitude de agradecimento, obediência e confiança em
Deus.
Obviamente que, em se tratando de dinheiro, existem muitos casos em que a quantia
arrecadada não é utilizada para sustentar a entidade, e sim, para enriquecer os líderes
religiosos, que explorando a fé das pessoas, fazem da religião um verdadeiro comércio.
Porém, não se deve generalizar tal situação, pois a arrecadação se faz necessária, por
exemplo, nos custos com iluminação, água, energia elétrica, limpeza dos templos, e
qualquer outra despesa ministerial. Outrossim, as organizações podem fixar contribuições
aos seus membros, as quais empregadas de acordo com suas finalidades essenciais, não
retiram o caráter religioso que possuem.
Liberdade de estruturação interna
Toda organização religiosa, por mais simples que seja, pressupõe um mínimo de
estruturação interna, através da maneira em que órgãos como diretoria, tesouraria,
assistência social, entre outros, são organizados. Assim, é essa liberdade que define as
atribuições de cada cargo criado, bem como a divisão e coordenação das atividades.
Algumas igrejas, por exemplo, são estruturadas por meio de ministérios com líderes para
cada um deles, outras, por sua vez, possuem departamentos sob a responsabilidade de
coordenadores, e há, também, aquelas que centralizam tudo em uma única pessoa. De
qualquer modo, é a estrutura que subdivide a instituição em unidades menores, as quais
possuem responsabilidades específicas. Nas palavras de Fernando L. Fernandes:
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Todas as organizações apresentam uma estrutura, com níveis de mando, execução,
responsabilidade e representatividade, o que caracteriza uma gradação hierárquica
dos diversos grupos componentes do sistema. Esses grupos hierárquicos podem ser
encarados como sistemas menores, parciais (ou subsistemas), os quais – da mesma
forma que o processo circulatório do corpo humano – constituem um sistema maior,
o complexo da organização. (FERNANDES, 2005 apud SANTOS, 2007).
Portanto, considerada a livre estruturação interna, consoante o artigo 44, §1º, do Código
Civil, o poder público não pode fazer qualquer exigência no que tange ao estabelecimento
de órgãos e as respectivas funções dentro das organizações religiosas, razão pela qual,
diferentemente das associações civis, não estão obrigadas a ter uma assembléia geral,
podendo livremente determinar a formação dos órgãos necessários à administração. Da
mesma forma, entende-se que é defeso ao poder público impor e distribuir atribuições, visto
que somente a instituição tem essa capacidade.
Liberdade de funcionamento
O 1º do artigo 44 do Código Civil menciona duas vezes o vocábulo “funcionamento”, contudo
é importante ressaltar que se referem a situações distintas. A primeira menção está
relacionada com a liberdade que permite aos grupos religiosos se reunirem, mesmo sem a
aquisição da personalidade jurídica. A segunda, no entanto, se refere ao próprio processo
de aquisição, visto que é termo utilizado para se referir ao funcionamento das organizações
religiosas como pessoa jurídica.
§ 1o São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento. (BRASIL, Código Civil, 2002, grifo nosso).
Notadamente, esta é liberdade que mais gera conflitos no âmbito judicial. No caso, já
existem decisões que determinaram a paralisação das atividades religiosas, em razão, por
exemplo, da ausência de alvará de funcionamento, da poluição sonora durante as reuniões
do grupo, bem como da perturbação ocasionada pelos carros que impedem o trânsito nas
proximidades do templo, isto é, de situações que violam as regras de segurança e proteção
à ordem pública.
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TEMPLO RELIGIOSO. ABSTENÇÃO DE ATO. POLUIÇÃO SONORA. DANO AMBIENTAL. Apelação Cível. Ação Civil Pública. Sentença que condenou a Comunidade Evangélica Projeto Vida a se abster de realizar qualquer culto religioso no estabelecimento situado na rua Newton Prado, n. 80, Vila Suíça, Município de Barra do Pirai. Os direitos protegidos constitucionalmente devem ser interpretados sistematicamente, assim, a sentença não viola o direito de liberdade de culto, apenas protege outros direitos constitucionais também merecedores de amparo, como a ordem pública, o ordenamento urbano e o meio ambiente saudável. Utilização do solo pela apelante configurado uso institucional principal, conforme art. 14, II da Lei Municipal n. 275/95, inadequado para a zona habitacional onde se situa. Reconhecimento de ofensa as normas ambientais em razão do alto nível sonoro produzido, em desconformidade com o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município (Lei n. 273/95). Provimento parcial do recurso apenas para que se condicione o dever de abster-se
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de realizar celebração religiosa à ausência de alvará de funcionamento. (TJRJ, 0000818-95.2001.8.19.0006 ou 2005.001.06574, Apelação, Des. José Carlos Varanda, Décima Câmara Cível, julgada em 13.09.2005).
DIREITO CIVIL. DIREITO DE VIZINHANÇA. USO NOCIVO DA PROPRIEDADE. PERTURBAÇÃO DO SOSSEGO E DA ORDEM. LOTEAMENTO. CASAS RESIDENCIAIS. REALIZAÇÃO DE CULTOS EVANGÉLICOS POR PARTE DOS RÉUS. GRANDE NÚMEROS DE FREQUENTADORES. POLUIÇÃO SONORA. EXCESSO DE BARULHO EM HORÁRIOS DE DESCANSO. GRANDE NÚMERO DE VEÍCULOS QUE COMPROMETEM A SEGURANÇA E A PASSAGEM DOS DEMAIS CONDÔMINOS. Pedido de tutela inibitória. Cabimento. Art. 554 do Código Civil. Compatibilização do direito dos condôminos com a liberdade de culto e direito de propriedade insculpidos na CF art. 5., VI. Provimento parcial do apelo. Possibilidade de realização do culto até às 10:00 horas, sob pena de pagamento de multa diária no valor de R$ 1.000,00 (hum mil reais). Impedimento da entrada de mais de dois veículos, sendo que os restantes devem ficar estacionados em local próprio, fora da área de trânsito do condomínio. (TJRJ, 0177539-82.1999.8.19.0001 ou 2001.001.09675, Apelação, Des. Leila Mariano, Segunda Câmara Cível, julgada em 30.08.2001).
No que tange ao alvará de funcionamento propriamente dito, é interessante destacar que
este interfere no livre funcionamento estabelecido pelo Código Civil, mas assim como
decidido na ação direta de inconstitucionalidade do Tribunal de Justiça do Distrito Federal,
que analisou a Lei Orgânica n.º 1.350/96, trata-se de um documento necessário e
socialmente útil. Segundo o desembargador relator Getúlio Pinheiro:
(...) Se com a concessão de alvará de funcionamento já há desastres com grande número de vítimas fatais, imagine sem tal exigência, especialmente porque é dever do estado preservar a segurança da população (...). (TJ/DF, Ação Direta de Inconstitucionalidade 2002 00 2 001479-9 ADI - 0001479-91.2002.807.0000 (Res.65 - CNJ), Conselho Especial, Rel. Getúlio Pinheiro, julgada em 29.04.2003, DJU 20.10.2003).
Entende-se, portanto, que se há abusos por parte das organizações religiosas, de modo a
atingir o bem público, elas se sujeitam à responsabilidade civil e criminal, e nessa hipótese,
o Estado pode intervir, uma vez que as entidades não têm permissão para violar o interesse
público. É nesse sentido que Aloisio Cristovam dos Santos Junior (2007) distingue a
organização em si, do espaço físico onde ela realiza suas atividades.
Assim, segundo ele, não há qualquer inconstitucionalidade nas determinações do poder
público quanto ao local utilizado pelas entidades religiosas. Contudo, devido às
especificidades dessas instituições, é preciso que as normas a esse respeito expressem
claramente quais os motivos que as legitimam e como serão aplicadas às organizações
religiosas, justamente, para que não configure a restrição da liberdade constitucionalmente
assegurada. Ademais, tem-se que a limitação determinada pela autoridade judicial somente
é válida, quando obedecer o princípio do devido processo legal, garantindo que a questão
seja analisada em todas as suas interfaces.
Por outro lado, como é vedado ao Estado impedir o exercício da liberdade religiosa, em
decorrência do princípio da separação, ele também não está autorizado a impor a prática de
qualquer ato relacionado às atividades essenciais das organizações religiosas. Um bom
exemplo nesse sentido ocorreu na Primeira Igreja Batista de Goiânia, que diante da decisão
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do pastor titular em não permitir a realização do casamento de uma jovem, pelo fato dela
estar grávida, o que feriria os princípios de fé da igreja, a entidade foi processada pela
família, e por determinação do juiz, o templo foi arrombado e a cerimônia realizada.
Analisando esse caso específico, ocorre que as entidades religiosas podem estabelecer
regras para as cerimônias realizadas em suas dependências. De acordo com §2º do artigo
226 da Constituição Federal de 1988, o casamento religioso pode ter efeito civil, mas não é
por isso que ele perde seu caráter religioso. Tal efeito demonstra que se trata de um ato
religioso, o qual recebe o efeito civil. Nessa perspectiva, verifica-se que a decisão do
magistrado de fato violou a liberdade de autodeterminação da igreja, e em conseqüência, a
sua liberdade de funcionamento.
Outra questão importante de ressaltar, é que a recusa do pastor tampouco se tratou de um
ato discriminatório. Pelo contrário, a determinação judicial que obrigou a realização do
casamento é que conferiu um tratamento desigual em relação aos outros membros da
instituição, uma vez que apenas essa jovem casou dentro da igreja sem cumprir todos os
requisitos exigidos. Ademais, é garantido aos nubentes o casamento civil, razão pela qual
não há motivos para impor às instituições religiosas a realização de qualquer ato nesse
sentido.
CONCLUSÃO
Diante de tudo o que foi explanado, tem-se que a religião não está adstrita a um plano
espiritual, pois, enquanto instituição organizada pelos indivíduos que dela fazem parte, o
fenômeno religioso repercute em diversos setores da sociedade, apresentando, inclusive,
aspectos jurídicos que são de suma importância para a plena aplicação da liberdade
religiosa.
Contudo, é importante destacar que essa repercussão é limitada pelo modelo de laicidade
adotado pelo Estado, o qual não permite que o poder público privilegie qualquer religião em
particular, bem como se utilize de critérios religiosos para determinar sua política. Caso
contrário, resta violado o princípio da separação.
A liberdade religiosa, entendida como parcela da autonomia da vontade que se relaciona à
religião, corresponde a um direito complexo, o qual dependendo da classificação escolhida,
envolve outras três liberdades, quais sejam: de crença, de culto e de organização religiosa.
Nesse sentido, somente com essas modalidades plenamente asseguradas é que de fato as
pessoas são livres para decidir se vão seguir ou não uma religião, e a partir dessa decisão,
manifestar livremente a fé e crença que tiverem sem qualquer impedimento.
Relativo à liberdade de organização religiosa, é ela que garante a livre criação,
regulamentação, estruturação e funcionamento dos grupos religiosos. Estes, por sua vez, se
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comparados as demais pessoas jurídicas de direito privado, apresentam diversas
peculiaridades, justamente porque sua existência decorre da própria Constituição. Entre
tantos exemplos, a aquisição da personalidade jurídica dessas entidades constitui um
direito, e não uma obrigação.
Ademais, é por meio das liberdades conferidas as instituições religiosas, que elas podem se
organizar e estabelecer um ordenamento jurídico próprio, sem qualquer interferência estatal.
Assim, são livres para admitir e excluir membros, distribuir o poder internamente, e
estruturar-se conforme suas necessidades, criando órgãos, departamentos ou ministérios.
Da mesma forma, é através de tais liberdades que não há qualquer obstáculo quanto ao
livre funcionamento, ressalvados os casos em que a ordem pública é atingida.
Portanto, tem-se que a aplicação da liberdade religiosa em si, não se atém apenas à livre
escolha por parte dos seguidores, pois dela decorrem outras liberdades e direitos que
garantem a livre manifestação de fé e crença, não só de modo individual, mas também, de
modo coletivo. Em outras palavras, analisadas sob a ótica do Direito, as organizações
religiosas também são tuteladas juridicamente e a elas é garantida autonomia suficiente
para que a fé e a religião não sofram qualquer restrição.
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