Kula agosto/setembro 2015

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O Kula Edição #15 Agosto de 2015 Desenvolvimentismos Brasileiros: (neo)colonialismo, povos indígenas e comunidades tradicionais

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O Kula Edição #15 Agosto de 2015

Desenvolvimentismos Brasileiros: (neo)colonialismo, povos indígenas

e comunidades tradicionais

As conchas desta ediçãoeditorial 4capa: Desenvolvimentismos Brasileiros: (neo)colo-nialismo, povos indígenas e comunidades tradicionais

mineração ou autodeterminação: ameaças desenvolvimentistas a territórios quilombolas 5

invisibilidade, consulta prévia e autodetermina-ção: quais os direitos dos indígenas frente ao de-senvolvimentismo na américa latina? 7

“a luta está em todas as frentes, nas aldeias e na cidade”: uma entrevista com márcia mura 9

conversas de campo 11

poesia 12

fotografia 13

política e sociedade 14

Por que “O KULA”? Os rituais do kula descritos por Malinowski na obra Os Argonautas do Pacífico Ocidental fazem parte, como diz o próprio autor, de uma ins-tituição social complexa que abarca diferentes sociedades das ilhas Tro-briand. Como um de seus objetivos, o kula permite que diferentes grupos sociais troquem produtos entre si, gerando uma imensa rede de comércio. Os principais objetos no kula, porém, não são os de subsistência, mas sim os vaygu’a (longos colares feitos de conchas vermelhas) e os mwali (bra-celetes feitos de conchas brancas). Estes objetos, que nunca param em uma só mão, conferem grande prestígio a quem o detém por determinado tempo. É interessante notar que quanto mais o objeto tenha sido trocado e tenha viajado pelas ilhas, mais prestígio e reconhecimento ele confere ao seu dono temporário. Fica claro, portanto, que as sociedades trobriandesas dão grande valor à troca e ao que vem de fora, trazendo novas perspectivas e ferra-mentas de interpretação do mundo. O jornal O KULA procura incentivar exatamente esta prática de troca de opiniões e perspectivas entre os alunos de Ciências Sociais. Esperamos, dessa forma, que o intercâmbio de idéias e reflexões faça parte da rotina de nosso curso.

poesia 15

especial xi secs 2015 16

prestação de contas do ceupes 20

As imagens dessa edição foram retiradas da inter-net. Caso você seja o autor de alguma delas, entre em contato com o CeUPES para a publicação dos créditos de autoria na próxima edição.

Conselho editorial desta edição: Marília Bue-

no, Adriana Miranda Martins, Marília Pinheiro,

Rodrigo Brusco, Ana Marcia Rodrigues, Roberta

Hesse.

Edição e diagramação: Ana Marcia Rodrigues,

Marília Bueno, Lucas Lippi Silva.

Agradecemos à Maria Clara Guiral Bassi por

sua ajuda.

Tiragem desta edição: 500 exemplares

O KULA é uma publicação do Centro Universitário de Pesquisas e Estudos Sociais (CeUPES) Ísis Dias de Oliveira, o centro acadê-mico do curso de Ciências Sociais da USP, cons-truída em reuniões abertas pela entidade. Todas as contribuições publicadas em O KULA, tanto no que diz respeito à forma quan-to ao conteúdo, são de responsabilidade exclusiva dos autores que as assinam e não refletem neces-sariamente a opinião da atual gestão do centro acadêmico nem do conjunto dos estudantes do curso. Críticas e sugestões serão sempre muito bem-vindas e devem ser encaminhadas por meio dos contatos relacionados abaixo. O CeUPES Ísis Dias de Oliveira disponibiliza a versão digi-tal de O KULA em seu site.Centro Universitário de Pesquisas e Estudos Sociais Ísis Dias de OliveiraGestão Motirõ - 2014/2015Site: http://ceupes.fflch.usp.brEmail: [email protected]: https://www.facebook.com/ceupes.sociaisusp?fref=ts

Por que Ísis Dias de Oliveira?Ísis Dias de Oliveira nasceu em São Paulo, no dia 29 de agosto de 1941. Filha de Edmundo

Dias de Oliveira e Felícia Mardini de Oliveira, foi criada na capital paulistana. Segundo sua mãe, ela “lia com entusiasmo tudo o que se relacionava com Psicologia, Filosofia e História Geral”. Em 1965, ingressou no curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, “de-cidida a conhecer melhor as relações do homem com a sociedade”, segundo Dona Felícia. Passou a morar no CRUSP e a trabalhar no Cursinho do Grêmio da Faculdade. Em 1967, casou-se com José Luiz Del Royo, com quem militava na ALN (Ação Libertadora Nacional), organização guerrilheira que lutava contra a ditadura militar. Nesse mesmo ano, decidiu tran-car a faculdade. Em 1970, já separada, mudou-se para o Rio de Janeiro. Em 30 de janeiro de 1972, foi presa. Alguns dias depois, seu pai recebeu o telefonema de uma de suas companhei-ras da USP e da ALN, dizendo: “Ísis foi presa no Rio de Janeiro pelo I Exército. Vocês devem tomar providências para localizá-la, porque ela corre perigo de vida”. A partir desse dia, os pais de Ísis iniciaram uma longa busca por sua filha, que não terminou até os dias de hoje. Seus pais impertraram cinco habeas corpus para libertá-la, e todos foram negados. A partir do terceiro, passaram a dizer que ela “encontrava-se foragida”. A busca continuou em todas as unidades do Exército, Marinha e Aeronáutica do Rio e de São Paulo, e nos arquivos de diversos cemitérios, sem sucesso. Sua família nunca mais a encontrou.

Em novembro de 2012, o CeUPES foi renomeado CeUPES Ísis Dias de Oliveira durante cerimônia aberta de comemoração dos 55 anos da entidade e de homenagem à estudante que agora dá nome ao nosso centro acadêmico. A renomeação é uma forma de guardarmos a me-mória de todas as vítimas da ditadura militar brasileira.

editorial

“Desavanços” e Resistências:Nesta 15° edição do nosso jornal O Kula, trazemos como tema de capa o

mote: Desenvolvimentismos brasileiros: (neo)colonialismo, povos indígenas e co-munidades tradicionais, buscando desta forma abordar a atual situação em que se encontram as populações indígenas e as comunidades tradicionais que resistem nos mais diversos cantos do nosso país às investidas do capital em suas terras, impondo-lhes desta forma uma ameaça constante a suas formas de subsistência e manutenção de suas manifestações culturais. Desta forma, o texto “Mineração ou autodetermi-nação: ameaças desenvolvimentistas a territórios quilombolas” nos apresenta os im-pactos que atividades de mineração ocasionam no cotidiano de territórios quilombo-las, que carecem de amparo do Estado brasileiro para fazer valer seu direito a terra.

Em seguida, temos a contribuição da estudante Marília Pinheiro que aborda em seu texto uma reflexão a respeito do “direito dos povos indígenas à consulta prévia, livre e informada sobre toda atividade exterior que afete seus direitos, bens e a área que considerem necessária para a reprodução de seus grupos (...)”; e contamos também com a entrevista realizada pela aluna Adriana Miranda Martins à Márcia Mura, indígena e doutoranda em História Social da USP e pesquisadora do Núcleo de história oral/NEHO/USP, a entrevistada conta um pouco da sua experiência enquanto estudante da Universidade de São Paulo, e nos dá um pan-orama da atual situação dos povos indígenas no Brasil e a luta para a demarcação de suas terras. Por fim, sobre o tema de capa, o texto “Conversas de campo”, a autora Roberta Hesse nos mostra um pouco de seus diálogos e experiências de campo na Terra Indígena de São Gerônimo, localizada no estado do Paraná.

Na seção “Política e Sociedade”, a estudante do quarto ano Juliana Wahl nos conta um pouco das suas vivências durante o seu intercambio no Uruguai, nos apre-sentando desta forma diversos aspectos vividos no país que lhe saltaram aos olhos. Na seção poesia Ciro Leite e João Bueno Ferreira também apresentam suas contribuições.

Por fim, um compilado especial do foi a XI Semana de Ciências So-ciais que mobilizou o corpo discente do curso sob o tema de “Apren-der, questionar, transformar: Os caminhos da Educação”, apresentan-do um panorama da educação no Brasil sob os mais diversos ângulos.

O Kula é o jornal dos estudantes de Ciências Sociais, e necessita da con-tribuição dos mais diversos pontos de vista para existir. Contamos com vocês!

Boa Leitura!

Gestão Motirõ 2014/20154

Desenvolvimentismos Brasileiros: (neo)colonialismo, povos indígenas e comunidades tradicionais

Mineração ou autodeterminação: ameaças desenvolvimentistas a territórios quilombolas

Por Rodrigo Rossi Mora Brusco

Este texto tem a finalidade de ser um pequeno informativo acerca de dois casos de im-pactos de atividades relacionadas à mineração em territórios quilombolas. Ao final, apresento algu-mas referências para pessoas que desejarem saber mais tanto dos dois casos apresentados, quanto de projetos de mineração em terras de popula-ções indígenas, quilombolas e outras.

Em 23 de setembro de 2014, 35 comuni-dades quilombolas do Maranhão ocuparam um trecho da Estrada de Ferro Carajás (EFC) em Itapecuru-Mirim, ferrovia responsável por es-coar a produção de minérios – principalmente ferro – da Serra dos Carajás (PA) até o porto de São Luís (MA) (cf. Repórter Brasil, 2014). Além de pedirem ao governo federal a garantia dos di-reitos fundiários quilombolas previstos na legisla-ção brasileira, os manifestantes tinham uma pauta clara: questionar a duplicação da mencionada fer-rovia, uma das maiores do Brasil, com 892 km de extensão, operada pela terceira maior mineradora do planeta, a Vale S.A. (a antiga e hoje privatizada Vale do Rio Doce).

A situação vivenciada pelos quilombolas em Itapecuru-Mirim não é exceção: por todo o Brasil, diversas comunidades remanescentes de quilombos têm suas vidas ameaçadas pela ativi-dade mineradora. Isto, porque os títulos que as-seguram a propriedade coletiva de terra a asso-ciações quilombolas (que, diga-se de passagem, são ainda pouquíssimos perto do número de ter-ritórios quilombolas em regularização fundiária no Brasil) tratam – assim como o fazem os títu-los de propriedade privada – apenas do solo do terreno, sendo o subsolo propriedade da União. Assim, nada impede que a União conceda lavra em território quilombola a alguma empresa, con-tanto que, além dos procedimentos regulares, a empresa respeite a Convenção 169 da Orga-nização Internacional do Trabalho (OIT), a as-sociação quilombola receba parte dos produtos da lavra e seja indenizada por possíveis danos e prejuízos resultantes da exploração, condiciona-ntes que, na maioria dos casos, não são executa-dos. Dessa forma, quilombolas estão ameaçados pela mineração graças ao estatuto jurídico do subsolo de suas terras (e, como veremos no final do texto, também do solo), ao não cumprimento das condicionantes socioambientais e à não real-ização da consulta livre, prévia e informada, ga-rantida pela Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário.

Comecemos com o caso da EFC, já intro-duzido. No município de Itapecuru-Mirim, no estado do Maranhão, dezenas de famílias de duas comunidades quilombolas – Santa Rosa dos Pre-

tos e Monge Belo – estão protestando contra a duplicação da EFC, que traria impactos socioam-bientais aos quilombolas. Em 2011, o Ministério Público Federal (MPF) do Maranhão, a Funda-ção Cultural Palmares (FCP) e o Instituto Nacio-nal de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) apontaram que a Vale S.A. estava realizando a du-plicação da EFC sem qualquer ação mitigatória ou consulta prévia às comunidades quilombolas afetadas. Por esse motivo, a obra chegou a ser suspensa no mesmo ano, mas logo foi retomada após uma série de acordos firmados entre a Vale S.A. e as comunidades de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo.

Entrementes, estes acordos não estão sendo cumpridos pela empresa, o que resultou na ocupação da ferrovia pelos quilombolas em 2014. Uma das exigências das comunidades era, justamente, que o “procedimento de Consulta Prévia estabelecido sobre o PBA/VALE/EFC CARAJÁS seja transparente e que garanta o pro-tagonismo por parte das comunidades envolvi-das, inclusive com a realização de oficinas sobre a finalidade e o alcance deste procedimento e que as decisões tomadas por cada território seja so-berana” (Repórter Brasil, 2014b). Desde então, a situação mantém-se a mesma.

Ao contrário do caso dos quilombolas de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo, em que o impacto da mineração tem relação com a via-bilização de escoamento de minérios, no Pará, comunidades quilombolas de Oriximiná tentam evitar que a extração mineral de bauxita seja real-izada em seus próprios territórios, localizados na floresta amazônica. Dados do Departamento Na-cional de Pesquisa Minerária (DNPM) indicavam, em 2011, o assombroso número de 94 processos minerários incidentes nos territórios quilombo-las de Oriximiná. Em junho de 2012, a Minera-ção Rio do Norte (MRN), da qual a Vale S.A. é acionista, começou os estudos geológicos refer-entes à exploração de bauxita dentro dos limites das terras quilombolas, sem consulta ou informa-ção prévia aos habitantes quilombolas. Isto fez com que o MPF recomendasse a suspensão dos estudos e o ICMBio cancelasse a autorização da MRN até que o protocolo de consulta fosse final-izado (Comissão Pró-Índio de São Paulo, 2014).

Entretanto, ao invés de representar os in-teresses dos quilombolas, a FCP passou a agen-dar reuniões em que os pressionava a aceitar os estudos da MRN, como podemos ver na “Nota de solidariedade aos quilombolas de Oriximiná ameaçados pela mineração”, assinada por 168 or-ganizações não-governamentais:

Tais reuniões têm sido agendadas no atro-

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Desenvolvimentismos Brasileiros: (neo)colonialismo, povos indígenas e comunidades tradicionais

pelo desrespeitando as diversas instâncias de de-cisão dos quilombolas e sua forma tradicional de deliberar, favorecendo a divisão entre as comuni-dades. As reuniões têm contado com a ostensiva participação da MRN e mesmo de políticos locais na defesa da empresa. Até hoje [29/08/2014], os quilombolas não contam com as informações básicas sobre os estudos geológicos e os estudos de impacto ambiental planejados para ocorrerem ainda esse ano.

Este quadro fez com que, em 17 de setem-bro de 2014, dez lideranças quilombolas, pres-sionadas e ludibriadas pela MRN, comunicassem ao MPF, supostamente em nome de suas comu-nidades, que não achavam necessária a realização do processo de consulta na fase de estudos. Isto fez com que a MRN requeresse ao MPF a reto-mada dos estudos. Mesmo assim, dado o fato de que os dez quilombolas não poderiam falar por todos os outros, os estudos continuam suspensos até a escrita deste texto. Dessa forma, ao con-trário da situação no Maranhão, em Oriximiná os quilombolas têm conseguido impedir a efetiva-ção da mineração em seus territórios.

Contudo, isto não significa que a mineração estará para sempre ausente dos territórios quilom-bolas de Oriximiná – e aqui alcanço a conclusão deste texto. É somente uma questão de tempo para que a MRN realize o protocolo de consulta livre, prévia e informada e retome os estudos ge-ológicos na região. Isto, pois a Convenção 169 da OIT não pressupõe o veto a projetos que os consultados eventualmente não desejem ser re-alizados em seus territórios (cf. PERROT, 2008, para análise de outros mecanismos internacionais de garantia de direitos de populações tradiciona-is). Dessa maneira, percebemos certa inevitabili-dade da mineração em territórios de comunidades quilombolas (e também naqueles de populações indígenas, que guardam certas analogias em re-lação aos protocolos de consulta, apesar de pro-jetos de mineração em Terras Indígenas precisa-rem da aprovação do Congresso Nacional para serem realizados, como garante a Constituição). Se não houver uma transformação na concepção jurídica dos territórios de comunidades tradicio-nais que resulte numa verdadeira possibilidade de autonomia ou autodeterminação em relação a estes, o desenvolvimentismo neocolonialista que deseja tomar de índios e quilombolas seus ter-ritórios – num “eterno retorno do encontro”, nas palavras de Ailton Krenak – continuará a impor atividades mineradoras que trazem consequên-cias nefastas às vidas daqueles que desejam per-manecer diferentes em seus territórios tradicio-nais. Pois, se vimos com o caso dos quilombolas de Oriximiná que ao subsolo cabe interferência da União, vemos da mesma maneira, com o caso do Maranhão, que também o solo de territórios quilombolas não está isento de ser dinamitado a contragosto.

Referências e sugestões de leitura:Carta Maior (2013). “Projetos de minera-

ção da Vale pressionam territórios quilombolas no Maranhão e Pará”. Acesso em 29/04/2014, às 11h24. Disponível em: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Meio-Ambiente/Projetos-de-mineracao-da-Vale-pressionam-territorios-quilombolas-no-Maranhao-e-Para-/3/28442

Comissão Pró-Índio de São Paulo (2014). Quilombolas de Oriximiná. Acesso em 29/04/2014, às 11h15. Disponível em: www.quilombo.org

Em defesa dos territórios frente à min-eração. https://www.facebook.com/pages/Em-Defesa-dos-Territ%C3%B3rios-Frente-a-Minera%C3%A7%C3%A3o/700575683302323?fref=ts

Nota de solidariedade aos quilombolas de Oriximiná ameaçados pela mineração (2014). Acesso em 28/04/2014, às 14h15. Disponível em: http://media.wix.com/ugd/354210_fb37d-0c1a0e442c0b712ac96bef36efb.pdf

PERROT, Dominique (2008). “Quem im-pede o desenvolvimento circular? (Desenvolvim-ento e povos autóctones: paradoxos e alternati-vas)”. In: Cadernos de Campo, n. 17.

Repórter Brasil (2014). “Quilombolas do Maranhão bloqueiam ferrovia da Vale”. Aces-so em 29/04/2015, às 11h09. Disponível em: http://reporterbrasil.org.br/2014/09/quilom-bolas-do-maranhao-bloqueiam-ferrovia-da-vale/

Repórter Brasil (2014). “Pauta de reivin-dicações das comunidades quilombolas mara-nhenses”, Acesso em 29/04/2014, às 11h14. Disponível em: http://reporterbrasil.org.br/2014/09/pauta-de-reivindicacoes-das-comu-nidades-quilombolas-maranhenses/

Rodrigo Rossi Mora Brusco é estudante do quinto ano.

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Invisibilidade, consulta prévia e autodeterminação: quais os direitos dos indígenas frente ao desenvolvimentismo na

América Latina? Por Marília Pinheiro

A reflexão sobre o direito dos povos in-dígenas à consulta prévia, livre e informada so-bre toda atividade exterior que afete seus direi-tos, bens e a área que considerem necessária para reprodução de seus grupos, permite-nos tocar (brevemente, para os fins dessa matéria) em di-versos pontos relevantes da situação dos povos indígenas na atualidade.

Como o direito à consulta é de âmbito in-ternacional, estipulado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 1989, e tendo sido ratificado pela maior parte dos países da América Latina, ele nos permite realizar uma análise comparativa da situação dos indígenas (e campesinos, em alguns países como Peru e Bolívia) nos diversos Estados – tanto das ameaças em comum que eles sofrem, como também dos instrumentos de resistência e dos modos como ele são manejados juridicamente. Através desse eixo pode-se fazer um panorama simplificado e geral da situação dos indígenas na América Latina. Ainda, abre caminho para outras análises, como sobre a invisibilidade ainda maior das comunidades quilombolas e outros povos tradicionais no que tange ao respeito de seus direito, e sobre o que seria o direito de negar o fluxo do desenvolvimento (quais as possibilidade reais de se dizer “não”?).

O artigo central da Convenção 169 é o sexto, o qual determina:

“1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:

a) consultar os povos interessados, me-diante procedimentos apropriados e, particular-mente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los direta-mente; (...)”

Assim, a consulta além de ser prévia, livre e informada (três pontos centrais e faltantes em muitos dos processos), é preciso, segundo a Con-venção, ser realizada de boa fé (claramente o as-pecto mais ausente) por parte do Estado e em-presas, e de acordo com as instituições de cada povo.

Este último é desrespeitado pelo próprio caráter universalizante da burocracia, leis e pro-tocolos dos não-índios. Sobre isso, vale uma dis-tinção: um Estado ter comparecido à Convenção e assinado o documento, não significa que ele a tenha ratificado e incorporado à legislação de seu

país, e se o fez, também não significa que tenha criado alguma regulamentação para ela. Ou seja, são três processos distintos. O Brasil, por exem-plo, ratificou-a em 2002 apenas, e de acordo com nossa legislação, pela Convenção ser de âmbito internacional, ela é supraconstitucional. Porém, aqui não se tem, apesar de tentativas preliminares, uma lei ou decreto que regulamente com mais de-talhe um protocolo para realização da Consulta Prévia – como fizeram Colômbia, a Bolívia, Peru e Chile por exemplo.

Voltando um pouco ao caráter universali-zante dos protocolos dos não-índios, a questão de criar uma lei específica que regulamente esse direito não é, necessariamente, benéfica à am-plitude e efetivação dele. Primeiro porque eles muitas vezes estabelecem prazos e arranjos in-compatíveis com as formas de vida e organização indígenas – as quais muitas vezes decidem por consenso, o que é muito mais aprofundado e de-morado – isso sem falar que estes muitas vezes não são auxiliados e esclarecidos com boa-fé, de forma que decidir nos termos legais dos não-ín-dios é um enorme desafio. A regulamentação da consulta prévia não é um processo democrático nem participativo, isso ficou claro ano passado com a revolta dos Mapuche, no Chile, durante as reuniões para a regulamentação no Chile. O Estado regulamentar pode significar, em muitos aspectos, reduzir. Isso fez com que o Wajãpi e os Munduruku tenham elaborado os seus próprios protocolos, explicando detalhadamente como eles devem ser consultados.

O caso de um decreto recente promulgado na Bolívia (Decreto 2298), que modifica a regula-mentação para a Consulta aos indígenas no caso de exploração petroleira, é um ótimo exemplo de como a regulamentação pode ser um retrocesso: além de estipular prazos absurdamente peque-nos para a decisão dos indígenas, afirma que o consentimento destes não é necessário para re-alização da atividade. Essa onda de retrocesso nos direitos indígenas, de alguns anos para cá, parece ser generalizada. No Brasil, a PEC 215, a morosidade absoluta na demarcação das terras, e as decisões conservadoras do judiciário; no Peru, o que eles chamam de um “paquetazo” - uma série de leis e decretos - conservador que vem sendo aprovado; na Colômbia, um plano de de-senvolvimento (para até o 2019) que tem como subtítulo “Colômbia: Um País Mineiro”, e cujo

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encontro para falar de desenvolvimento mineiro estabeleceu a consulta aos indígenas como prin-cipal entrave para o desenvolvimento. Isso para dar alguns exemplos.

O que estou dizendo, então, é que existe um movimento transnacional de minar os direitos indígenas, para abrir espaço (literalmente), para o avanço da monocultura e das madeireiras, para a construção de hidrelétricas, para a exploração de petróleo e minérios – ou seja, o mesmo tipo de atividade realizadas desde o início do genocídio dos povos indígenas, há quinhentos anos atrás, pelas então colônias no hemisfério sul.

São as mesmas atividades econômicas também da época em que brancos europeus trouxeram os negros como escravos, e os de-scendentes daqueles que conseguiram fugir para as matas, se hoje conseguem reivindicar seu di-reito à consulta para seus quilombos, é porque a Convenção 169 se chama “para povos indígenas e tribais”. Mesmo assim, seu reconhecimento nos níveis políticos e legais é ainda menor que a dos indígenas – e não apenas no Brasil. A Colômbia, país cujo alguns indicadores indicam ter metade da população autodefinida como negra, em seu Plano Nacional de Desarollo não consultaria as comunidades afrocolombianos, caso estas não houvessem protestado.

São também as mesmas atividades típi-cas de um país de terceiro mundo na divisão internacional do trabalho, que, durante séculos, destruíram florestas e recursos naturais. De forma que hoje precisam ser protegidas em Unidades de Conservação, como aquela da Jureia (litoral Sul de São Paulo), a qual causou a expulsão de mais de 400 famílias caiçaras que há séculos lá viviam (mantendo a Mata Atlântica preservada) - e as co-munidades tradicionais não têm direito à consulta prévia. Apesar disso e resistindo, os beiradeiros de Montanha e Mangabal, os quais, junto com os índios Munduruku, serão diretamente afeta-dos pela construção do Complexo Hidrelétrico no Tapajós, escreveram um lindo protocolo de consulta.

Ainda, não teria espaço aqui para falar dos inúmeros casos de inaplicações do direito à consulta prévia, livre e informada – os quais, in-felizmente, são a regra, pelo menos nos termos da Convenção 169. Mas apesar disso e dos prob-lemas apresentados aqui, nesse contexto de uma continuidade da infração e da violência aos direi-tos e às vidas de indígenas, quilombolas, popula-ção e povos tradicionais, esse direito serve como um importante instrumento para se defender, exigir e dar visibilidade. É um instrumento que permite a suspensão temporária de certos em-preendimentos ou uma negociação de pontos específicos (áreas, limites, contratações), embora

não lhes dê uma possibilidade de segurança real e definitiva.

Por quê? Porque enquanto não tiverem seus territórios demarcados, bem como a sobera-nia sobre eles e os recursos básicos necessários para viver (água, alimento etc.), não é possível fa-lar em escolha, em autodeterminação. E este se-ria, para Marie-Dominique Perrot, o direito mais precioso para os indígenas, o qual não cabe a nós (não-índios) definir quais as suas modalidades de aplicação.

O importante aqui é ressaltar que aquelas atividades econômicas das quais falávamos ac-ima vêm ao longo dos séculos encobertas por um discurso que mascara tanto o sujeito que as instituem e delas se beneficiam, quanto os ne-cessários e violentos conflitos inconciliáveis que delas são frutos – Perrot chama esse discurso de “retórica do desenvolvimento”. O artigo sétimo da Convenção 169 é bem claro nesse aspecto:

“1. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, cren-ças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão par-ticipar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente.” (destaques meus)

É importante ressaltar aqui, para finalizar essa reflexão, que não existe possibilidade para indígenas, quilombolas e populações tradicionais de não participar do “processo de desenvolvim-ento” (o qual tomo aqui, por detrás desse termo evasivo, como avanço da economia capitalista), nem muito menos podem eles escolher de que formas e quando querem participar desse(s) projeto(s). Só podem “escolher suas prioridades no processo de desenvolvimento”, “participar dos programas de desenvolvimento nacional”, e serem “consultados”. Apesar de acreditar que, nas atuais circunstâncias, são direitos melhores do que a total invisibilidade, carece manter em vista que por trás disso, encontra-se o velho pres-suposto do homem branco ocidental: de que essa forma de ser humano e estar no mundo não ape-nas é a única possível, como também, para que sobreviva, precisa submeter todas as outras.

Marília Pinheiro é estudante do quarto ano.

Desenvolvimentismos Brasileiros: (neo)colonialismo, povos indígenas e comunidades tradicionais

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“A luta está em todas as frentes, nas aldeias e na cidade”: uma entrevista com Márcia Mura

Por Adriana Miranda Martins

Márcia Mura faz parte do Instituto Madeira Vivo, organização socioambiental sem fins lucrativos que atua junto aos povos e comu-nidades das margens do rio Madeira em aliança com os rios da Pan Amazônia. É doutoranda em História Social/USP e pesquisadora do Núcleo de história oral/NEHO/USP.

Nesta entrevista, Márcia fala brevemente sobre a importância da presença de índios em es-paços universitários e da situação das populações indígenas em um contexto de ofensivas aos seus direitos constitucionais, além de também nos ofe-recer um panorama de seu trabalho acadêmico.

Qual é a importância de que indíge-nas ocupem as universidades Brasil afora? De onde surgiu seu interesse por cursar uma pós-graduação em São Paulo?

A maior parte dos povos indígenas tem pautado a importância de ocupar espaços na aca-demia para construir conceitos a partir de suas perspectivas, dialogando com o que é possível do saber acadêmico para o fortalecimento político nesses espaços de discussão e, principalmente, para pautar a garantia de direitos referentes às lu-tas pela demarcação das terras, saúde, educação, gestão territorial e profissionalização, especificas e diferenciadas.

Meu interesse em fazer doutorado em História Social na USP foi na perspectiva de levar ao espaço acadêmico os saberes tradicionais para dialogar no mesmo patamar com os saberes da ciência ocidental, procurando outras formas de abordagens, diferentes das que colocam esses sa-beres tradicionais como mero objeto de pesquisa. E também tratá-los como saberes que dão conta de construir novas conceituações sem a neces-sidade de enquadrá-los em categorias de análises que não dizem respeito a realidades diferenciadas. De modo mais específico, proponho na minha pesquisa, que se encontra em desenvolvimento, perceber se os modos de ser indígena se man-têm em espaços de seringais e trazer presente a memória de ocupação indígena no rio Madeira

por meio da tradição oral repassada por mulheres e homens, guardiãs e guardiões de tradições dos espaços de seringais, aldeias e espaço urbano.

Como você descreveria, de maneira mais geral, a situação dos povos indígenas no Brasil atualmente?

Em todo o Brasil, os povos indígenas estão na luta para garantir seus direitos. O en-frentamento com as frentes do agronegócio (ne-gotóxico, pois junto com o agronegócio vêm os agrotóxicos que envenenam a vida) e os projetos desenvolvimentistas (como o dito PAC – Projeto de Aceleração do Crescimento), que vêm junto com as hidrelétricas e estão passando pelas Ter-ras Indígenas (TI) e comunidades tradicionais na Amazônia, trazem morte, criminalizam as lutas indígenas e também promovem o etnocídio – criminalização e morte cultural – e o genocídio – morte física. Estamos em um movimento de autonomia. A luta está em todas as frentes, nas aldeias e na cidade. A nível nacional, duas das principais pautas são a demarcação das Terras Indígenas e a pressão para a não aprovação da PEC 215. Este projeto de emenda constitucional quer transferir do governo federal para o Con-gresso a atribuição de oficializar terras indígenas, unidades de conservação e territórios quilom-bolas. Isso coloca em risco a garantia dos direi-tos já garantidos pela Constituição Federal. A nível local, cada povo indígena está no enfrenta-mento com problemáticas específicas, como no caso dos Tupinambá de Olivença, que resistem à criminalização de sua afirmação de identidade e reivindicação da demarcação de suas terras; tam-bém no caso dos Guarani Kaiowa nas lutas para ter o direito de se manter, de retomar, de demar-car as suas Tekoa em Mato Grosso do Sul e em São Paulo, bem como em outros estados em que se encontram ocupando tradicionalmente; dos Ka’apor da Terra Alyo Turiaçu no Maranhão no enfrentamento com os madeireiros; dos Mundu-ruku no Pará resistindo contra o complexo hi-drelétrico no rio Tapajó e Teles Pires; dos povos do Xingu contra Belo Monte; dos Mura, que em várias localidades da Amazônia estão no movi-

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mento de retomada territorial; dos Tenharin no sul do Amazonas, que enfrentam ações diretas de etnocentrismos; dos Karitiana a 90 km da ci-dade de Porto Velho, que estão resistindo na re-tomada de territórios tradicionais; dos Cassupá na cidade de Porto Velho, que se mantêm firmes na luta pela garantia de seus direitos constante-mente negligenciados: saúde, educação específica e diferenciada e ampliação de sua área para garan-tir melhores condições de vida; dos Karipuna no município de Jaci Paraná, distrito de Porto Velho, que sofreram genocídios praticados no período da construção da ferrovia Madeira Mamoré e de frentes seringalistas, e que ainda hoje não conse-guiram se reconstituir demograficamente, e mes-mo reduzidos continuam procurando estratégias para se manter existindo e ter seus direitos garan-tidos. Assim, todos os outros povos indígenas de Rondônia e de outros estados estão firmes nos enfrentamentos das suas questões locais e ligados às lutas a nível nacional.

Atualmente, os povos indígenas man-têm a luta pela demarcação das terras indí-genas e também em defesa dos territórios já demarcados. Através da pressão resultada da Semana de Mobilização Nacional Indígena, a presidenta Dilma Rousseff homologou três terras indígenas, sendo que uma delas é a TI Setemã, do povo Mura. Qual é a situação at-ual das populações Mura no Brasil?

A TI Setemã, do Povo Mura nos mu-nicípios de Borba e Novo Aripuanã/AM, assim como a TI Arara, habitada por povos Arara e Ju-runa, no município de Senador José Porfilho, no Pará e a TI Mapari, habitada pelo povo Kaixana, nos municípios de Fonte Boa, Japurá e Tocan-tins, no Amazonas, são reivindicações antigas e já estavam à espera dessas homologações há muito tempo. Além dessas Terras Indígenas, existem outras que permanecem à espera da demarcação e que nem sequer entraram nos grupos de trab-alho para iniciar os laudos e dar andamento nas tramitações. Enquanto isso, sofrem invasão de grileiros, abertura ilegal de estradas vicinais por dentro das Terras Indígenas, dentre outros prob-lemas, por não estarem demarcadas – como no caso da Terra Indígena reivindicada pelos Mura do rio Itaparanã, no sul do Amazonas.

A articulação dos Povos Indígenas do Bra-sil – APIB teve o seguinte posicionamento frente a essa tímida resposta às reivindicações do movi-mento indígena:

Plausível seria se, além das áreas agora homologa-das, o governo federal assegurasse a demarcação e ho-mologação de terras indígenas localizadas nessas outras regiões, inclusive na Amazônia, onde estão hoje instaladas situações de conflito, violência e criminalização de lideran-ças indígenas, a mando dos donos ou representantes das madeireiras, dos grandes empreendimentos, do latifúndio e do agronegócio e, por vezes, de agentes do Poder Público.

Para ver mais sobre esse posicionamento basta acessar https://mobilizacaonacionalindi-gena.wordpress.com/2015/04/23/timida-res-posta-do-governo-federal-nao-agrada-povos-e-organizacoes-indigenas/

Desenvolvimentismos Brasileiros: (neo)colonialismo, povos indígenas e comunidades tradicionais

Adriana Miranda Martinsé estudante do terceiro ano.

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Conversas de Campo

Desenvolvimentismos Brasileiros: (neo)colonialismo, povos indígenas e comunidades tradicionais

São Jerônimo Ansiedade e insegurança são sen-

timentos constantes em um breve trabalho de campo. Insegurança por que estabelecer relações com livros é uma coisa, estabelecer relações com pessoas é outra, por que não existem um modus operandi que se possa aprender, por que afinal não vivemos sob a mesma resta apenas o esforço para tentar ser delicado. Gostaria assim de es-crever, brevemente sobre algumas conversas que tive com pessoas mais velhas da Terra Indígena São Jerônimo.

Seu Carlos Cabreira

“ Guarani é Guarani, seja com cocar, com cara pintada, com terno, com celular, de carro.

Ele tem o costume, ele guarda costume dele.”

(CABREIRA,Carlos. 3 de Abril de 2015. São Jerônimo da Serra)

Seu Carlos Cabreira, professor, Guarani Kaiowá, do Mato Grosso do Sul. Foi brutal-mente tirado de sua família e do mato quando tinha 7 anos por missionários. Passou muito mal de saúde no início, foi parar 4 vezes no hospital, pois até então nunca havia comido sal. Foi obriga-do a aprender portugues e era castigo se falasse em Guarani. Muitos perderam a língua por conta disso, muitos ainda foram adotados por famílias do Brasil inteiro como se nunca tivessem tido uma família e um lugar de origem. Virou profes-sor de formação de professores no magistério In-dígena do Paraná, professor da escola da aldeia e pesquisador de lingüística da UEM (Universidade Estadual de Maringá). Explica que os brancos que vem dar aula nas aldeias precisam aprender a língua, tem que entender os costumes de cada um suas diferenças e particularidades, precisam ter conhecimento e acatar suas tradições.Ele se orgulha em falar os 5 dialetos Guarani e enfati-za que Professor Guarani precisa saber falar os 5 dialetos Guarani e precisa saber falar, escrever e precisa de capacitação para ensinar os vários Guaranis. “Tem que ter licenciatura indígena”.

Por Roberta Hesse

Seu Carlos se preocupou em me expli-car diferenças conceituais da cosmologia Gua-rani. Costume (Teko), tradição(Tekoymaguave) e reza(Tekomarangatu). Costume (Teko),é relativo ao cotidiano, a vida do dia-dia, tradição(Tekoymaguave) é relativo às coisas anti-gas que vem até hoje, rege a vida, é a própria base ontológica. Seu Carlos diz que as pessoas mistur-am isso tudo, mas existe uma separação prévia. Este metaforiza um triângulo que sustenta o que a vida Guarani precisa ser.

O ymaguave remete a Terra Sem Males,

porém como Seu Carlos explica, o Guarani agora está só no costume. O ymaguave não ensina a roubar, a mentir, a ser falso. Essas tradições anti-gas tem que estar presentes. O que o ser humano (não-índio) faz hoje penetra na vida do Guarani, é uma doença incurável. Incurável por que os Gua-ranis não estão mais no ymaguave, e por isso é como se fosse uma doença da alma. Antigamente se rezava e curava, mas isto já não é mais pos-sível. Esta doença surge com uns 40 anos e é ela que está deixando o Guarani na situação atual. O Guarani não era político e por isso perdeu muita terra. Um exemplo que Seu Carlos me dá para explicar razões para o surgimento desta doen-ças é que no tekoymaguave existiam restrições às mulheres menstruadas, que não podiam entrar na roça, deveriam estar com o rosto pintado para serem respeitadas. Seu Carlos conta que antigamente o Gua-rani vivia 100% de tranquilidade e que as divisões

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entre Guaranis só vieram com a civilização. Conta que passou a ver coisas erradas que antes ele não via, e que a partir do momento em que o Guarani entende o que é ruim, ele passa a se preocupar, algo que não existia antes. A separação veio quando eles conheceram o que era bom e o que era ruim, que foi quando eles foram tirados do mato. Tiveram de mudar a rotina, se adaptar e como viver no mundo. Diz que tem que saber falar português para falar com o prefeito, vereadores, fazer palestras, mexer com não-índio, embora ele não queira, ele precisa acatar. Ressalta porém que essa adaptação no mundo do não-índio não é justificativa para abandonar o ymaguave, e que mesmo atualmente é preciso viver de acordo com o ymaguave, isto pesa muito. Dona Isabel Dona Isabel, Guarani, nascida e criado em São Jerônimo. Seus pais vieram de Santa Catarina fugindo da “caça aos índios”. Um padre jesuíta avisou seu pai que iriam mata-los e deu 3 conto para que fugissem. Vieram a pé, em uma jornada difícil que durou 6 meses. Seu pai morreu cedo, foi praticamente criada pela mãe. Teve uma vida dura, com muito trabalho, desde criança trabalhava na roça, foi boia-fria. Criou seus filhos com muito esforço, não dinheiro quase que nem para comer. Sua casa inteira já pegou fogo, mas todos sobreviveram. Hoje mora com tranquilidade em sua casa enquanto vê os netos crescerem brincando em seu quintal. Cacique Seu João da Silva O Cacique Kaingang Seu João da Silva, pesquisador da UEM, explicou que a temporalidade de histórias indígenas é outra. Não adianta nós, pesquisadores, irmos até a aldeia e pedir para que um indígena nos conte suas histórias, assim não funciona, precisa sair de modo espontâneo. Caso a temporalidade indígena não seja respeitada, histórias erradas podem ser contadas e acabar preju-dicando a imagem do indígena. Ele enfatizou que a antropofagia não era prática deles, que antiga-mente na época da mata, eles tinham muito mais o que comer. Eles diziam e contavam histórias de que eram antropófagos como um mecanismo de defesa para afastar os não-índios, deixa-los com medo.

Desenvolvimentismos Brasileiros: (neo)colonialismo, povos indígenas e comunidades tradicionais

Roberta Hesse é estudante do quarto ano

e integrante da gestão Motirõ.

Poesiaesperançasesperanças não servem de nada;certamente; você pensa e diz para sicorrer entre prédios, gravatas & carrostalvez seja a solução: diluir em dor físicaeste inominável desconforto em viver “que meus pés sangrem” “a dor não é redenção”, Ela diz, “venha, camarada, todos seus males serão sanados, é logo ali a entrada”

Por Ciro Leite, estudante do terceiro ano.

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Fotografia

Vila IndianaPor Rodrigo Sartori Lima,

estudante do primeiro ano.

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política e sociedade

Somos todos América Latina? Uma crítica ao eurocentrismo que reproduzimos

Por Juliana WahlA primeira coisa que os uruguaios me perguntam é: porque Uruguai? Claro que essa pergunta não passou des-

percebida pelos meus amigos no Brasil, minha família e curiosos no geral ao perguntarem porque escolhi fazer inter-câmbio aqui. É uma pergunta muito difícil de responder, mas a primeira coisa que penso quando penso em Uruguai é na tranquilidade, na segurança, na confiança de estar meio que perto de casa.

Num segundo momento penso nas medidas avançadas que os últimos governos têm desenvolvido aqui, como a legalização da maconha e do aborto, só pra citar as mais polêmicas. Foi nesse ponto que algo me surpreendeu em relação aos meus colegas de faculdade em que, apesar de todos da FFLCH se mostrarem encantados com Uruguai, e olharem para aqui como um país modelo, pouquíssimos alunos escolhem esse e outros países da América Latina para fazer intercâmbio.

Nesse semestre dos 81 estudantes de intercâmbio somente 2 tentaram universidades da américa latina, e 1 estu-dante áfrica; no semestre passado houve um edital de intercâmbio, que de 5 bolsas para toda a USP, para estudar em universidades do Grupo AUGM (Alguns países da américa latina), somente 1 pessoa se candidatou, as outras 4 bolsas sobraram. Uma pessoa de toda a USP.

Não estou dizendo que querer ir para Europa é algo que nenhum estudante de esquerda pode querer, porque me encantaria ir também: o que quero dizer com isso é que não fugimos dessa lógica eurocentrista que a gente tanto julga.

É mais um sinal que o discurso somos todos américa latina, é discurso. Nós como brasileiros e estudantes univer-sitários de esquerda, não nos preocupamos em sair da bolha, e sim, isso é uma auto-crítica. Não é a toa que, pelo me-nos na minha grade de Ciências Sociais, nos dois primeiros anos, dá pra contar nos dedos quantos autores brasileiros tive, e em 3 anos de graduação não me lembro sequer de ler autores de outros países da América do Sul.

Me parece que para você ser um estudante que queira saber sobre autores da América Latina você tem que cur-sar alguma matéria como “Pensamento Político Latinoamericano” ou seja, ir atrás de uma matéria específica, e não ler autores naturalmente hispanos sobre qualquer assunto. Nós brasileiros fazemos SIM parte da América Latina, só precisamos parar de nos colocar de fora.

Na melhor universidade do Brasil, no grande centro intelectual de São Paulo, a FFLCH, apesar de muito de es-querda, não sai do discurso, e nós alunos refletimos isso. Achamos normal adaptar-nos aos autores franceses e sequer saber o que se passa em relação aos problemas sociais de nossos vizinhos.

É nesse panorama que começo a falar do Uruguai propriamente, porque muito do que eu achava não passa de um sonho surreal de alguém de esquerda. E descobri que não, o Uruguai não é um país perfeito, porque olhar com os olhos do Brasil podem fazer parecer medidas excelentes, mas os problemas práticos são outros.

com o que me surpreendi no uruguai (de forma muito superficial):- o ensino superior gratuito e de excelência é para todos os uruguaios, embora a maioria dos alunos abandonem

a secundária (o que seria equivalente no Brasil ao Ensino Fundamental II e ao Ensino Médio)- existe uma grande falta de professores em antropologia no Uruguai, como todos podem ingressar grande parte

das pessoas sequer termina o ensino superior, ficam “pendentes”- há muitas pessoas que ingressam na faculdade, abandonam ou não a usam para nada- o machismo, a violência doméstica e o assédio estão presentes, e eu não diria que menos que em São Paulo- apesar de o aborto seguro ser garantido pelo Estado, o aborto realizado clandestinamente não foi despenal-

izado, ou seja, mulheres são processadas se o realizam de forma ilegal; além do que existem vários problemas práticos, assim como nós temos em relação ao SUS no Brasil, e o preconceito sobre o aborto existe;

- a questão racial quase não se fala. Aproximadamente 8% da população uruguaia é afro-descendente mas as pes-soas tratam como se não houvessem, existe um pensamento que o Uruguai é um país branco e sem racismo quando posições mais simples de trabalho claramente são ocupadas negros;

Todos os problemas que julguei acima, tanto do Uruguai quanto da FFLCH são opiniões e visões minhas, real-mente não usei dados e referências bibliográficas para escrever esse texto, é um pouco do que vivo, do que escuto nas aulas da faculdade sobre os problemas do Uruguai, como os uruguaios me contam os problemas do país e o que eu vejo no dia-a-dia. Estou aqui há poucos meses e no meu quarto ano de graduação, então críticas e visões diferentes das minhas são muito bem-vindas! Não sou ninguém pra dizer “verdades”.

O Uruguai me encanta a cada dia, mas não com sua suposta perfeição, mas sim com seus mesmos problemas (em menor grau) que nós no Brasil, e o resto da América Latina.

Juliana Wahl é estudante do quarto ano e integrante da gestão Motirõ

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Poesia

O QUANTO FORUm abraço dura o que devedurar o emaranhado de corpos e pensamentosque ocorre quando dois corações ficam perto mas ainda assim fica nebuloso todo o caminho que fez ir e voltara vontade de enrolar braços pernas e pergunto pra você se já devoir soltando mas antes de perguntar penso muito em só soltarpara que pareça que foi tudo desejo meu para que pareça que foi tudo da minhamais cruel intenção que tudo foi sempre fruto de minha eterna certeza minha eterna vontade in-curável de fazer tudo do meu modoentão penso muito em só soltar e só soltar mesmo mais nada só isso apenas isso isso só isso frio isso distante penso que não compensa ficar no meio-termo na metade do caminho no fundo do começo no meio do nada.e eu penso tanto que de tanto pensar já me prolongo no próprio abraço e eu sinto seus braços ficando cada vez mais frouxos cada vez apertando menos ou pelo menos eu assim imagino.e sentir isso e mesmo imaginar isso já é tão terrível já me faz querer soltar tudo e me arrepender de sequer ter começado de sequer ter saído da cama devia ter ficado no meu quarto deitado no meu chão pensando em como seria incrível te abraçar e daí isso tudo já levou tanto tempo pra pensar que finalmente tenho que decidir algo e decido pela dúvida e subitamente pergunto:devo ficar mais um pouco?e você responde com um movimento estranho com os braços vão eles caminhando pelas minhas costas conhecendo minha nuca conhecendo meu quadril explorando minhas pernas meu ventre desvendando minha barriga expondo tudo tudo mesmo fico só comigo com meu corpo pelado mas não me sinto como se estivesse nu me sinto com uma casca quente que separa com o seu abraço tudo que tem de frio na vida e ficamos nós, pelo tempo que for necessário, pelo tempo que for, algo imensurável em números algo mensurável somente em cores: ficamos abraçados em um rosa-creme quente, em um laranja suculento, em um vermelho delicado.Ficamos abraçados por uma quantidade azul-bebêde tempo.e quando seus braços não mais me envolveremvou ter-te comigo ou melhorvou ser contigodurante ainda infinitos dias de verãoem que – sem nuvens – você ainda me abraçará.

Por João Bueno Ferreira, estudante do primeiro ano.

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especial XI SeCS 2015

XI Semana de Ciências Sociais da USPAPRENDER, QUESTIONAR, TRANSFORMAR:

OS CAMINHOS DA EDUCAÇÃOAconteceu entre os dias 25 e 29 de maio, a XI Semana de Ciências Sociais da

USP. Organizada através de plenárias abertas pelos estudantes do curso. O tema: “Aprender, Questionar, Transformar: Os caminhos da Educação”, pro-

posto e debatido pelo corpo estudantil, buscou trazer a luz do diálogo a atual situação da educação no Brasil, com a abordagem de questões como as das cotas raciais e o histórico de lutas do Movimento Negro, a indigenização da universidade e a resistência de índios e índias dentro da mesma, e assim como a educação dos corpos, sob o prisma da discussão de gênero, e outros temas mais.

Confira algumas imagens do evento:

Mesa I Cotas já! Ocupar, resistir e enegrecer: para além da reparação histórica

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Mesa II Planos nacionais de educação: tempos neoliberais?

Oficina Resistência indígena em perspectiva histórica. O caso Avá-Guarani no oeste do Paraná

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Mesa IIIAssédio e limites: discurso sobre violência institucional

Esta mesa contou com a intervenção de Professores Estaduais em Greve.

Mesa X Educação Questionadora: perspectivas populares e comunitárias

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Oficina realizada pelo Grupo de Extensão da Sociais.

Diga-se de passagem, que a XI SeCS além de ter sido um sucesso, constitui-se em uma semana bastante representativa, uma vez que dos 31 palestrantes,

somente 8 eram homens. E destes mesmos 31: 6 indígenas (3 homens e 3 mulheres), 11 negros (10 mulheres e 1 homem)!!!!

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Prestação de contas do CeUPESdezembro de 2014 a junho de 2015

INÍCIO DO PERIODO: 10/12/14 - R$ 3697,00SAÍDASDATAS VALOR (R$) DESCRIÇÃO21/12/15 2.175,80 Festa It’s Over 201403/02/15 1.155,00 Recepção de Ingressantes03/02/15 875,00 Camisetas 03/02/15 103,93 Papelaria03/02/15 923,00 Adesivos e Canecas 06/02/15 217,00 Material de Limpeza22/02/15 60,91 Coffee Break

ENTRADADATAS VALOR (R$) DESCRIÇÃO21/12/14 5.691,00 Festa It’s Over27/02/15 6.507,20 Venda de lacres, botões e pirulitos31/03/15 4.511,68 Ontologia do Rock 31/03/15 2.029,38 Venda de lacres, botões e pirulitos

FINAL DO PERÍODO: 31.03.2015 – R$ 6.541,00

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Em abril foi aberta a conta bancária do CeUPES no Banco do Brasil e todo dinheiro foi depositado nesta conta. A partir de Abril de 2015, portanto a

prestação de contas segue em extrato bancário.

Prestação de contas do CeUPES

abril

SAÍDA

24/04/2015 2.437,50 Compra de material para festa Baila Sociales

DATAS VALOR (R$) DESCRIÇÃO

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maio

SAÍDASDATAS VALOR (R$) DESCRIÇÃO

22/05/2015 1.125,00 Compra de material para festa SeCS du Solei22/05/2015 2.437,50 Compra de material para festa SeCS du Solei22/05/2015 200,00 Compra de material para festa SeCS du Solei

junho

SAÍDASDATAS VALOR (R$) DESCRIÇÃO

29/05/2015 48,00 Venda de livros consignados durante a SeCS24/05/2015 120,00 Luthier / conserto do violão de aço26/06/2015 1000,00 Dividendos do contador

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Participe você também da construção do KULA!

Apareça nas reuniões e envie sua contri-buição para alguma seção do nosso jornal:

Capa, Política e Sociedade, Movimento Estu-dantil e Universidade, Fotografia, Desenhos,

Charge e Quadrinhos, Poesia, Crônicas e Contos, Cultura

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Dúvidas, críticas e sugestões, entrem em contato conosco pelo nosso email:

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