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KULTUR VERSUS ZIVILIZATION: A CRÍTICA DA INTELLIGENTSIA ALEMÃ

AO PROCESSO CIVILIZADOR

Renarde Freire Nobre UFMG

[email protected] O Processo civilizador: brevíssima caracterização

Norbert Elias caracteriza a história do Ocidente dos últimos quatro séculos pela

teoria geral do “processo civilizador”, através do qual se delinearam as tendências e os sentidos principais de estruturação das sociedades modernas, notadamente as européias. Todavia, embora ele procure apresentar uma perspectiva panorâmica e abrangente e de longa duração, faz parte da sua proposta entender que “o processo” não se desenvolveu no mesmo ritmo e com as mesmas efetivações em todos os países. Isso não impede que, em termos fundamentais, verifique-se a combinação de linhas de desenvolvimento que virão a prevalecer em todas as nações européias modernas, ao mesmo tempo em que elas serão exportadas mundo afora. Ao fim e ao cabo, tem-se a teorização de um vasto e longo processo histórico demarcado por forças convergentes, estando dotado de sentidos bem definidos, mas formado por tendências e lutas variadas.

Não vou estender-me características do processo civilizador, uma vez que o intento do texto é abordar o ritmo particular e as especificidades da situação alemã em contraste com a França e a Inglaterra, nações onde o processo teve a sua rítmica mais firme e as tendências mais definidas. Em termos sintéticos, enumero alguns dos principais sentidos que vieram a ser firmar no curso de uma longa cadeia de ações e interações, que percorre mais de quatro séculos até a contemporaneidade, e que não é de modo algum linear ou desprovida de tensões e relativos recuos. Tão pouco, os sentidos destacados a seguir cobrem todos os elementos do processo civilizador, mas certamente eles são fundamentais e se encontram em relação de reforço mútuo. São eles: a estabilização e pacificação das relações sociais, que se tornam mais extensas no tempo e no espaço, para o que foi decisiva a formação de monopólicos de forças, especialmente no campo da política, como Estado-Nação, mas também concentração econômica e intelectual e jurídica; uma constante e crescente “economia das pulsões”, inicialmente como regras de civilité e, posteriormente, como uma exigência dos padrões “externos” de integração aos mais diferentes campos sociais; forte individualização, o chamado processo de interiorização, o que implica o aumento da autoconsciência, a exacerbação da dimensão do autocontrole, a maior reflexividade no processamento da vida social e a adoção de uma perspectiva de vida mais existencial e pragmática; a declinação dos diferenciais de poder nas relações interpessoais; e a valorização das liberdades, da privacidade e dos direitos sociais. Esses sentidos encontram-se reunidos nas duas grandes tendências que definem, em última instância, o processo civilizador na visão de Elias: o desenvolvimento da “sociogênese” – a configuração das estruturas “exteriores” de poder e de redes de integração mais extensas – e a “psicogênese” – a configuração das estruturas “interiores” de personalidade e de

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autocontrole. Dentre outras, há a seguinte passagem na obra de Elias que esclarece para a inexorável convergência de elementos das duas instâncias estruturais:

“O processo ‘civilizador’ visto a partir dos aspectos dos padrões de conduta e de controle de pulsões aparece como um processo de integração em andamento, um aumento na diferenciação de funções sociais e na interdependência e como a formação de unidades ainda maiores de integração, de cuja evolução e fortuna o indivíduo depende, saiba disso ou não”.1

Apesar da imagem sugestivamente positiva dos sentidos destacados acima - a paz, a individualidade, a menos verticalidade das relações interpessoais, a liberdade, os direitos sociais -, Elias insiste, em passagens dos seus textos, que não se trata de juízo de valor, mas sim juízo de fatos na construção da sua teoria do processo civilizador. Um forte argumento a seu favor é que ele também aponta para os aspectos negativos que acompanham todos os sentidos: a concentração de forças e a possível eclosão de novas modalidades de violência; a formação do superego; a emergência de interesses e modos de vida destituídos de sentidos mais elevados; certa massificação, via padronização de resposta às situações comuns; e o sentimento de insignificância do indivíduo diante das forças sociais “exteriores” e “objetivadas”, alimentando ainda mais o drama existencial que brota do processo de interiorização. Neste último sentido, Elias diz, por exemplo, que

“Agora é a ‘sociedade’ que se opõe, como ‘mundo externo’, ao ‘eu interior’ [antes, era a natureza que se opunha à comunidade humana], incapaz, ao que parece [sic], de tocar o ‘núcleo interno autêntico’. Numa ligeira variação sobre esse tema, a sociedade é vista como um carcereiro que proíbe o indivíduo de pisar fora da sua cela”.2

Embora o autor compreenda, sociologicamente, que essa sensação é apenas uma vivência interior, e não a realidade em si – isso porque os indivíduos encontram-se muito mais interligados do que imaginam, e o que se denomina de coerções sociais sempre são coerções de “indivíduos” sobre “indivíduos” –, é real e válido o “drama existencial” vivenciado nas condições civilizatórias do moderno Ocidente. O drama, de recorte psíquico, reporta a uma efetiva mudança na balança histórica de significação social, de uma maior referência ao “nós” para a inflação do “eu”. De todo modo, a marca decisiva do processo é o desenvolvimento de novos padrões de dependência mútua e novas modalidades de controle. Nisso, pode-se falar em ganhos de liberdades e de privacidade, mas não em autonomia do indivíduo. O caso alemão

Deixemos de lado essa curtíssima introdução aos elementos mais característicos do processo civilizador, para nos concentrarmos na mais ilustre das excepcionalidades na história da Europa moderna: a Alemanha. Elias irá localizar na história alemã a grande marca diferencial em relação às tendências mais gerais do processo e que se mostram presentes, sobretudo, nas trajetórias da França e da Inglaterra. Não que tenha havido uma clara resistência ao processo, uma vez que esse é o resultado posterior, não previsível, de uma longa cadeia de ações e interações. O que se verificará de singular na Alemanha é, por um lado, um ritmo mais lento de afirmação das estruturas mais expressivas da sociogênese moderna – o Estado Nacional e a sociedade industrial –, e, por outro lado, a produção de valores e sentidos últimos de vida que contrastavam diretamente com o imaginário 1 Elias, N. O processo civilizador v2, p.83. 2 Elias, N. A sociedade dos indivíduos, p.107.

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civilizatório. Oposição, pois, não ao processo, mas aos quadros de valores e padrões de comportamentos. É este plano “cultural” ou “de sentido de vida” que nos interessa mais diretamente, cuja configuração está articulada, em boa medida, com o chamado “atraso” alemão e seus elementos políticos e econômicos.

Se tomarmos a história da França como referência, como o faz Elias, o processo civilizador apresenta duas fases: aquela em que a civilidade era uma marca de distinção da sociedade cortesã, composta principalmente pelos códigos de “boas maneiras”, e aquela em que a idéia de civilidade ganha contornos mais universais e burgueses, quando o Estado republicano e a economia capitalista encontram-se bem estabelecidos. Comparativamente, na Alemanha verificou-se, num primeiro momento, situado entre a segunda metade do século XVIII e primeira metade do século XIX, um movimento intelectual e literário de contraposição ao modelo cortesão de vida, o qual era copiado da França, e, num segundo momento, em especial a partir da unificação sob o comando de Bismarck e com base num espírito burguês mais nacionalista e contaminado por um ethos guerreiro – em forte contraste com o sentido de pacificação mais característico do processo civilizador -, verificou-se um movimento de contraposição tanto ao humanismo universalista quanto ao modelo democrático e republicano de vida burguês.

Tratemos do primeiro movimento. A camada evidenciada por Elias é a chamada intelligentsia alemã. A principal explicação para as posições valorativas e os comportamentos dessa camada, cujos portadores estão espalhados entre os séculos XVIII e XIX, estava em a sua autonomia em face da política e sua conseqüente distância em relação aos estratos dirigentes.

“No topo, por quase toda a Alemanha, situavam-se indivíduos ou grupos que falavam francês e decidiam a política. No outro lado, havia uma intelligentsia de fala alemã que de modo geral nenhuma influência exercia sobre os fatos políticos. De suas fileiras saíram basicamente os homens por conta dos quais a Alemanha foi chamada de terra dos poetas e pensadores. E deles, conceitos como Bildung e Kultur receberam seu cunho e substância especificamente alemães”.3

Bildung é a palavra que expressa a noção de um cultivo do espírito por meio de uma sólida formação universalista, pela valorização de tudo o que elevava o espírito em virtude e sabedoria, como as artes, a filosofia e as ciências. Essencialmente um movimento literário e filosófico, “cujos expoentes incluíam Klopstock, Herder, Lessing, (...) o jovem Goethe, o jovem Schiller e tantos outros”,4 podendo-se acrescentar Kant e, não sem maiores reservas, Lutero e Nietzsche.5 Todos eles buscavam uma qualificação espiritual, compreendida como abertura para a sensibilidade, o amor à natureza, a entrega às emoções sem os freios da razão, o lançar-se ao conhecimento das idéias e imagens mais profundas e

3 Elias, N. O processo civilizador v1, p.33-34. 4 Idem, p.41. 5 Embora Elias incluísse Nietzsche no segundo grupo – o da burguesia que valorizava a força e o poder –, ele sabia da baixa estima do filósofo pela Alemanha ao mesmo tempo em que entendia ter o filósofo operado uma “romantização do poder (...) em que o poder ganho pela força apresentava-se sob formas embelezadas, como um valor altamente apreciado”, não exatamente conforme o humanismo da intelligentsia, mas certamente em “grande estilo” (Os alemães, p.167). Há várias passagens na obra de Nietzsche em que se verifica a sua oposição radical à noção de Zivilization, não tanto contra a Corte Imperial, mas, sobretudo, em sua conformação burguesa mais decisiva, ou seja, contra a priorização da política e da economia, tempo também do individualismo prático e da impessoalidade nas relações. Vê-se a crítica, por exemplo, na seguinte passagem: “Nenhuma situação política e econômica merece que justamente os mais talentosos de espírito se ocupem dela: um tal emprego do espírito é, no fundo, pior do que um estado de indigência” (Aurora, §179, p.129).

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fundamentais. O ideal maior era o de que a personalidade formada contemplasse uma singularidade, uma universalidade e uma totalidade de caráter.6

A intelligentsia conforma uma camada social que Norbert Elias define como de “classe média” – portanto, burguesa, citadina - que não pertence diretamente à Corte – não são amigos do Kaiser -, mas que depende da Corte para sobreviver, executando, sobretudo, funções administrativas e educacionais. Neste período, as figuras que notabilizam a intelligentsia são as do clérigo e do professor, “que desempenharam um papel decisivo na formação e difusão de uma nova língua alemã culta”.7 A valorização do alemão como língua culta e fecunda, apropriada para as tarefas do pensamento, colocava a intelligentsia burguesa em oposição à classe cortesã superior, a qual tinha como principal marca de distinção a valorização do francês, língua usada no círculo fechado da “boa sociedade”. Este é um ponto central da nervura que alimentava estratégias de distinção da intelligentsia frente à Corte. Mas o sentido é mais profundo do que apenas a valorização do alemão. A grande crítica se dirige contra a conduta e as maneiras de comportamento dos membros da camada cortesã, avaliadas como “superficiais”, “de fachada” e “insinceras”. “Em 1784, Kant distinguiu muito claramente civilização de cultura, identificando a primeira com boas maneiras e amenidades sociais, e a segunda, com arte, saber e moralidade”.8 Elias resume sua perspectiva interpretativa dessa luta com as seguintes palavras:

“Como experiência subjacente à formulação de pares de opostos tais como ‘profundeza’ e ‘superficialidade’, ‘honestidade’ e ‘falsidade’, ‘polidez de fachada’ e ‘autêntica virtude”, e dos quais, dentre outras coisas, brota a antítese Zivilization e Kultur, descobrimos, em uma fase particular o desenvolvimento alemão, a tensão entre a intelligentsia de classe média e a aristocracia cortesão”.9

Esta passagem traz embutida bons esclarecimentos sobre a perspectiva interpretativa eliasiana em pauta. Primeiro, a expressão “dentre outras coisas” mostra que são vários os fatores que definem em conjunto o sentido maior da antítese, compreensão que vale para todas as sínteses significativas operadas por Elias, inclusive a síntese maior, ou seja, o processo civilizador. Segundo, o sentido maior é a existência de uma “antítese”, a qual corresponde a um movimento de afirmação de uma camada social que, não se identificando com os padrões do setor dominante da sociedade da época, produz idéias e empreende ações culturais com as quais procura estabelecer suas “marcas de distinção”. Trata-se de uma perspectiva primeira de autovalorização, mas que levará à transformação gradativa da burguesia alemã de classe de “segunda categoria” para “depositária da consciência nacional”, elevando-se a antítese de “primária” para “nacional”.10 A valorização do alemão culto exerceu uma influência não diretamente intencionada para a configuração posterior de um exacerbado nacionalismo. Terceiro, as oposições de valor referidas na citação são reveladoras de que a intenção primeira da luta não era política, no sentido da conquista de uma posição de poder – muito embora viesse a ter o efeito político de desenvolvimento de um ethos nacional, efeito que, como se viu, teria sido impensável sem a valorização preliminar do idioma. A luta não era política, mas sim cultural, visava uma qualificação espiritual, o desenvolvimento de uma genuína espiritualidade, portanto, de caráter mais solitário, por assim dizer. Não se lutava para alterar ou para eliminar a Corte, mas para dela se distanciar em “grande estilo”.

6 Ringer, F. O declínio dos mandarins alemães, p.95. 7 Elias, N. O processo civilizador v1, p.41. 8 Ringer, F. Op. Cit., p.97. 9 Idem, p.46. 10 Idem, p.47.

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O caráter fundamental da luta da intelligentsia alemã indica que a aristocracia do espírito era vista como superior à elite política e econômica, a cultura era superior à política e à economia, a universidade e a troca intelectual de ideais eram superiores aos salões imperiais e às disputas por honra e prestígio, o universal era superior ao provinciano, a interioridade era superior à exterioridade, as atitudes eram superiores aos gestos, a moralidade e a integridade eram superiores à honra e as representações de decoro e decência, a virtude era superior à honra, enfim, a Kultur superior à Zivilization. .Por conta dessa luta é que, na época áurea de Napoleão, a “cultura” era alemã e a “civilização” era francesa, sendo que, em contraste com a burguesia alemã cultivadora da Bildung, “o mais alto objetivo do burguês (francês) enquanto indivíduo era obter para si e sua família um título aristocrático, com os privilégios que o acompanhavam”.11

A partir e para além da intelligentsia, pode-se dizer que o sentido último das bandeiras e valores das camadas burguesas alemãs, entre o século dezoito e primeiras décadas do século XX, foi o da aristocratização. As camadas burguesas empreenderam lutas por ascensão, não uma ascensão simplesmente social e muito menos de cunho prioritariamente material, mas sim uma ascensão cultural, de cunho simbólico: os setores burgueses, independentemente das suas expressivas diferenças, buscaram principalmente a autovaloração, quer numa perspectiva de dignificar o indivíduo, o grupo ou a Nação. Como sugere Nietzsche, uma “alma nobre” “é intolerante” e “tem reverência por si mesma”,12 com o que, invariavelmente, ela procura se distinguir dos segmentos considerados medíocres, ignorantes ou alienados em seu modo de vida. Todo aristocratismo é sempre a estratégia de uma distinção e uma elitização. Assim agiu a nobreza cortesã francesa quando desenvolveu atitudes e maneiras “civilizadas” de se comportar para se distinguir dos bárbaros, assim agiu a intelligentsia alemã para se distinguir da Corte, assim agiu a burguesia nacionalista para se distinguir dos fracos e dos “impuros”.

Quando Elias faz referência ao sentido aristocrático da luta burguesa, isso se aplica, em acepções distintas, aos dois movimentos das camadas médias por ele destacados: o que foi conduzido pela intelligentsia, e cujo vigor durou até meados do século XIX, e o que corresponde à satisfaktionfähige Gesellschaft, “uma expressão de que é impossível dar uma tradução direta, mas que significa uma sociedade gravitando em torno de um código de honra em que duelar, e exigir, e dar ‘satisfação’ ocupavam um lugar de arrogante destaque”.13 A ascensão dessa camada se dá a partir da unificação, em 1871. Adota-se um novo código de vida, o qual se rivaliza com o espírito da Intelligentsia, uma vez que “as realizações culturais e todas as coisas que tinham sido caras á burguesia alemã na segunda metade do século XVIII, incluindo a humanidade e a moralidade generalizada, tinham uma classificação inferior, quando não eram positivamente desprezadas”.14 Uma burguesia ligada às universidades, ao exército nacional e à administração política, que se orienta pelo establishment imperial (o Kaiserreich unificado), exatamente o que os cultivadores de um humanismo literário e filosófico repudiavam. A luta, agora, visa o poder e a afirmação de um habitus nacional calcado na força e na honra. O código burguês, então,

“(...) estava impregnado mais do que nunca de elementos oriundos do código monárquico-aristocrático, o qual (...) era orientado por um ethos guerreiro, para a manutenção da desigualdade entre as pessoas, para julgar que os mais fortes são os melhores e, assim, para a implacável dureza da vida”.15

11 Elias, N. O processo civilizador v2, p.152. 12 Nietzsche, F. Além do bem e do mal, §262 e 288, p.177 e 192. 13 Dunning, E. e Mennell, S. “Prefácio” in Elias, N. Os alemães, p.8. 14 Elias, N. Os alemães, p.112. 15 Idem, p.66.

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Assim, tem-se posto dois movimentos distintos de aristocratização de setores médios: um primeiro, prevalecente na segunda metade do século XVIII, sob hegemonia de escritores, professores, clérigos e literatos em geral, que se dirigia para uma oposição à Corte, repudiando-se o seu código de honras, suas convenções, suas amenidades, suas rivalidades e seus espetáculos, tudo isso avaliado como de muito mau gosto. A verdadeira nobreza era, pois, uma questão de gosto, de estilo, de virtuosismo do espírito; ser superior era mostrar-se virtuoso. Disso, a paixão quase unânime em meio à intelligentsia pela cultura clássica dos Gregos. Exigia-se solidão e sensibilidade aguçada. As lutas maiores diziam respeito ao plano dos valores e eram travadas nos rincões da alma. Uma burguesia mais renascentista e humanista. O outro movimento burguês, mais expressivo entre os prussianos no final do século XIX, sob hegemonia de militares e estudantes, inspirava-se precisamente na cultura da honra guerreira, muita mais próxima, pois, do espírito da “boa sociedade”16 da Corte. A grande aristocracia estava na defesa da honra ao ponto do duelo e da guerra; ser superior era mostrar-se corajoso. O que fascinava na Antiguidade era o Ágon muito mais do que a Sophya, o Coliseu muito mais do que a Paidéia. Ao invés de solidão, a participação intensa e comprometida nas confrarias nacionalistas ou nas agremiações duelistas. As lutas giravam em torno da honra e eram travadas por homens e nações armados. Uma burguesia mais nacionalista e imperial.

A despeito da antítese, porém, pode-se dizer que, em comum, a Universidade foi, na Alemanha, um terreno privilegiado de expressão da “classe média” nas duas acepções sociais classificadas por Elias: a Intelligentsia e a satisfaktionsfähige Gesellschaft. A Universidade foi o meio no qual se expressaram, em períodos diversos, códigos culturais muito distintos e, no essencial, antitéticos. A transformação se deu no sentido de uma inversão de valores, através do que a visão da Universidade como ambiente para cultivo das Humanidades, para formação erudita e para elevação da História Cultural em sentido universal tornou-se subordinada a idéia da Universidade como expressão de elitismos político e como espaço para uma vida social baseada no cultivo da honra e dos jogos de satisfação. Mais do que a resignação intelectual dos “mandarins modernos” diante da supremacia dos critérios civilizatórios burgueses anti-aristocráticos, ao reconhecerem a impossibilidade do cultivo do homem universalista e fáustico em condições civilizadas, como se vê em Max Weber, o que mais desfigurou a insígnia humanista do antigo e mais autêntico mandarim alemão foi a adesão política ao culto do anti-semitismo e do nacionalismo agressivo. A Universidade era o espaço dos mandarins, mas que deixaram de cultuar os heróis do espírito e estilizar valores para cultuarem os heróis nacionais e ritualizarem valores. A valorização da Nação e a pertinência a comunidades ritualistas vão-se sobrepor à importância maior outrora conferida à formação e ao caráter.

Obviamente esses contrastes construídos entre camadas burguesas, inspirado diretamente nas análises de Elias, são baseados em características típicas que definem diferentes estruturas de comportamento com vínculos sócio-históricos igualmente distintos. Isso significa que não se deve desconsiderar a existência de misturas. Há uma interessante citação de Friedrich Meinecke, bastante esclarecedora da combinação entre a tradição da Bildung e o novo cenário de Nação alemã unificada, que vale à pena reproduzir, apesar do seu aspecto tendencioso:

“O mundo alemão do intelecto e do espírito aproximou-se do Estado com uma simpatia genuína e espontânea. Foram ativados os mananciais que fertilizaram toda a vida alemã, muito além do objetivo imediato de libertação. O que fora conseguido antes disso, quando o espírito alemão buscava e desejava somente a si mesmo, pôde elevar-se mais ainda até alcançar a esfera do eterno; mas, quando o espírito desceu ao

16 Idem, p.56.

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Estado, assegurou não apenas a sua própria existência e a existência ameaçada do Estado, mas também todo um conjunto de valores internos, uma fonte de energia e felicidade para as gerações futuras”.17

Relativizando-se o jogo dos contrastes estabelecidos acima, deve-se levar em conta a existência efetiva de burgueses portadores a um só tempo de elementos da Kultur – especialmente a valorização da erudição e a busca da distinção cultural – e elementos do nacionalismo aguerrido. Há uma cena sugestiva no filme A queda: os últimos dias de Hitler, em que o Führer mostra aos seus subordinados uma maquete da futura Berlin sob a égide do Nacional Socialismo, na qual ele destaca as referências arquitetônicas à Antiguidade Clássica. Assim, embora Intelligentsia e satisfaktionfähige Gesellschaft sejam camadas antitéticas em sentido último, revelando a oposição maior entre uma cultura do estilo e da arte contra uma cultura da força e do poder, elementos intelectuais do aristocratismo do espírito se mantiveram presentes entre muitos burgueses que aderiram ao projeto do Reich alemão, projeto este expresso nas primeiras frases do Hino Nacional: Deutschland, Deutschland über alles / Über alles in der Welt. Compreende-se bem essa combinação entre espírito e Nação quando se lembra que um contexto chave de desenvolvimento das duas camadas burguesas retratadas por Elias foi a Universidade, e não os gabinetes políticos, as entidades civis ou a vida pública.

Por muito tempo, na Alemanha Kultur seguiu significando “cultivo” e “formação interior”, mas “Depois, gradativamente, passou a ser usada nos círculos alemães cultos, em seu sentido mais geral de síntese de todas as realizações do homem civilizado da sociedade”.18 Enquanto isso, na esteira do desenvolvimento econômico e tecnológico, Zivilization deixou de significar a antiga “polidez superficial” das “boas maneiras” para refletir a afirmação prática, racional e técnica do homem no mundo. Não obstante a ascensão econômica da burguesa alemã desde o final do século XIX, quando o país em poucas décadas deixou se ser predominantemente agrícola para se tornar uma das maiores potências mundiais, somente após a experiência Nazista é que se pode falar claramente do domínio de um modo de vida tipicamente burguês e anti-aristocrático, quando passa a vigorar um projeto republicano e – num sentido weberiano – verdadeiramente mundano. O ambiente universitário se profissionaliza e o seu elitismo perde a carga aristocrática de outrora. Sob o comando do espírito nacionalista aguerrido, mesclado com um aristocratismo cultural, a burguesia nacional repudiava o domínio dos interesses meramente mundanos. Somente com a derrota do projeto do Reich foi que a ascensão econômica de uma moderna burguesia capitalista veio a se traduzir em domínio político e em padrão de civilidade, retirando a Alemanha definitivamente do “atraso” em relação ao processo civilizador. Neste contexto, bem mais próximo de nós, tem-se o domínio de um individualismo exacerbado e pragmático, em que a auto-estima perde os sentidos de virtude ou de honra para ganhar um sentido de sucesso, aqui pensado em termo mais lato. O espírito burguês deixa de se relacionar à cultura, ao universal ou à Nação-líder, para se relacionar aos problemas da ação e da representação num mundo fortemente demarcado por referências impessoais. A marca social não é mais da distinção valorativa, mas a da existência prática; a preocupação maior não é com o “estilo” ou com a “honra”, mas com o “desempenho”. A Alemanha, excepcionalidade moderna, origem dos mais influentes pensadores e das duas grandes guerras mundiais, deixou para trás as exponenciais do universalismo e do nacionalismo para se integrar, como parte, a um todo globalizado. 17 In Ringer, F. Op. Cit., p.121. 18 Idem, p.96.

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Referências ELIAS, Norbert. O processo civilizador v1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. _____________. O processo civilizador v2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2ed, 1993. _____________. Os alemães – a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. _____________. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. São Paulo: Cia das Letras, 2004. ___________________. Além do bem e do mal. São Paulo: Cia das Letras, 1996. RINGER, Fritz K. O declínio dos mandarins alemães. São Paulo: Edusp, 2000.