L. Graciela Natansohn UFBA: Faculdade de Comunicação · 2012-06-22 · vida cotidiana (Ang e...

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L. Graciela Natansohn * UFBA: Faculdade de Comunicação Corpo feminino, ciclos biológicos e representação Apresentação Se existe um lugar onde o sangue azul se distancia de qualquer relação com a realeza, esse local é a televisão, onde todo aparece como uma simples reprodução do mundo. Acontece que o sangue menstrual (como tantos outros fluídos que emanam do corpo humano) tem passado por um processo de "metaforização" televisiva, de substituição por aquele líquido azul translúcido que se pode observar na publicidade de absorventes internos e externos, onde se derrama o límpido líquido para provar a capacidade de absorção do produto que se pretende vender. Contudo, para fazer possível essa passagem do vermelho para o azul, é preciso um terceiro termo, um terceiro corpo de conceitos: as idéias de impureza e sujeira. Não é difícil observar que a maioria dos produtos de limpeza são azuis, porque o azul vem a representar, na cultura audiovisual contemporânea , as idéias de limpeza e higiene. Mary Douglas (1991) tem descrito claramente como as culturas empregam conceitos de contaminação, sujeira e impureza como analogias para expressar uma visão geral da ordem social. Assim, o sangue menstrual pode ser azul sem espantar ninguém, pode ser interpretada corretamente por sua audiência como um substituto simbólico do sangue, só se está culturalmente associado ao conjunto de metáforas que simbolizam o limpo e o sujo, o puro e o impuro, através dos recursos icônicos. O azul submete o sangue a uma operação de purificação que a torna visível, de acordo com as noções culturais que possibilitam ou restringem a televisibilidade contemporânea. Este artigo pretende mostrar como o sangue menstrual é percebido na cultura e representado nos meios de comunicação, através das idéias de impureza e sujeira, e como essa representação contribui na criação de identidades de gênero e na confli tiva relação das mulheres com seu próprio corpo. Escolheram-se duas publicidades televisivas de absorventes e tampões, transmitidas na televisão espanhola durante o ano 2001 por ser um dos poucos (se não o único) espaço não médicos da televisão espanhola * Jornalista, nascida em Argentina, mestre em comunicação pela UFBA.

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L. Graciela Natansohn* UFBA: Faculdade de Comunicação

Corpo feminino, ciclos biológicos e representação

Apresentação

Se existe um lugar onde o sangue azul se distancia de qualquer relação com a

realeza, esse local é a televisão, onde todo aparece como uma simples reprodução do

mundo. Acontece que o sangue menstrual (como tantos outros fluídos que emanam do

corpo humano) tem passado por um processo de "metaforização" televisiva, de

substituição por aquele líquido azul translúcido que se pode observar na publicidade de

absorventes internos e externos, onde se derrama o límpido líquido para provar a

capacidade de absorção do produto que se pretende vender. Contudo, para fazer

possível essa passagem do vermelho para o azul, é preciso um terceiro termo, um

terceiro corpo de conceitos: as idéias de impureza e sujeira. Não é difícil observar que a

maioria dos produtos de limpeza são azuis, porque o azul vem a representar, na cultura

audiovisual contemporânea , as idéias de limpeza e higiene.

Mary Douglas (1991) tem descrito claramente como as culturas empregam

conceitos de contaminação, sujeira e impureza como analogias para expressar uma visão

geral da ordem social. Assim, o sangue menstrual pode ser azul sem espantar ninguém,

pode ser interpretada corretamente por sua audiência como um substituto simbólico do

sangue, só se está culturalmente associado ao conjunto de metáforas que simbolizam o

limpo e o sujo, o puro e o impuro, através dos recursos icônicos. O azul submete o

sangue a uma operação de purificação que a torna visível, de acordo com as noções

culturais que possibilitam ou restringem a televisibilidade contemporânea.

Este artigo pretende mostrar como o sangue menstrual é percebido na cultura e

representado nos meios de comunicação, através das idéias de impureza e sujeira, e

como essa representação contribui na criação de identidades de gênero e na confli tiva

relação das mulheres com seu próprio corpo. Escolheram-se duas publicidades

televisivas de absorventes e tampões, transmitidas na televisão espanhola durante o ano

2001 por ser um dos poucos (se não o único) espaço não médicos da televisão espanhola

* Jornalista, nascida em Argentina, mestre em comunicação pela UFBA.

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onde se faz referência à menstruação direta ou indiretamente. Mesmo não acreditando

que as publicidades escolhidas esgotem todas as possibilidades de expressar o que

significa a menstruação na sociedade espanhola contemporânea , nelas podemos

encontrar algumas marcas de aqueles mitos ocidentais que têm acompanhado ao corpo

feminino durante toda sua história, e de alguns conflitos que não deixam de acossá -lo no

presente, não só na Espanha como em grande parte do ocidente 1. Também podemos

encontrar nelas, as marcas das grandes transformações que se têm produzido ao redor

dos costumes e regras sociais que dizem que é o possível e o impossível, o falável e o

inominável da (suposta) "condição feminina".

Para ler nesses textos algo a mais do que um atrativo convite ao consumo de

produtos para as mulheres é necessário sair do campo puramente textual ou intrínseco

da publicidade como gênero e buscar registros em outros campos discursivos, como a

medicina, a sexualidade, a antropologia. O feminismo (ou melhor, os feminismos) vão

dar o marco a partir do qual se registra e interpreta a construção da corporalidade

feminina como una diferença que se torna uma deficiência. Trata -se de um exercício

interpretativo que, apoiado nos aportes dos estudos culturais e do pós-estruturalismo,

tenta já não buscar uma leitura mais ou menos veraz das mulheres na televisão senão de

compreender o leque de sentidos que podem ser construídos ao redor de um conceito

muito mais heterogêneo do que parece, as mulheres, categoria sobre a qual faremos

algumas considerações posteriores.

Feminismo e representação: clarificando conceitos

A teorização feminista enquadrada nos Cultural Studies nos abre pistas para

entender o que está em jogo na relação entre meios de comunicação e mulheres. O que a

perspectiva culturalista coloca em questão é, por uma parte, a idéia de uma oposição

entre o discurso (como representação) e a realidade (como coisa em si), pois a própria

realidade, se postula, é discursiva, é criada por e através da linguagem. Em segundo

lugar, e como conseqüência do afirmado antes, desmorona-se a categoria "mulher"

como reflexo de uma realidade prévia, homogênea, natural e essencial, cujos

significados e atributos contrapõem-se à categoria "homem", flexibilizando, ampliando

1 Na Argentina e também no Brasil as peças publicitárias sobre absorventes utilizam o mesmo recurso do sangue azul, por isso acreditamos que algumas explicações e conclusões possam ser extrapoladas ao nosso contexto.

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e ainda desestabilizando-se assim os atributos do gênero, ampliando o leque do que

pode significar o masculino ou o feminino. Esta percepção da realidade como

construída pela linguagem é necessária para avançar criticamente sobre o que tem

caracterizado aos iniciais estudos feministas: a crítica aos estereótipos de gênero e sua

não correspondência com as mulheres "reais". Porque se as representações construídas

pelas palavras, imagens e outras formas da linguagem não expressam nenhuma

realidade prévia senão que são constitutivas da realidade, então o problema já não é que

as imagens da mulher sejam irreais, falsas ou distorcidas, senão como o funcionamento

dos discursos compreendem afirmações que têm o poder de criar realidades sociais,

criar "o feminino". Como diz Angela Mac Robbie (1997), "a existência material das

mulheres se assegura mediante umas estratégias discursivas diferentes, às vezes,

contrárias, que ao identificar, classificar ou falar da verdade da 'mulher', também faz

que esta nasça".

Recapitule mos: representar pode significar, etimologicamente, voltar a

apresentar, re-apresentar, ou seja, mostrar de novo alguma coisa que já está dada

anteriormente, dizer ou mostrar algo que existe ainda antes de essa apresentação

(escrita, visual ou através de qualquer meio). E se alguma vez existiu, ao menos no

imaginário social, a possibilidade de representar nesse sentido, de expor algo de uma

maneira pela qual houvesse correspondência entre a realidade e as palavras que a

designam, o desenvolvimento dos meios de comunicação contemporáneos e suas novas

linguagens têm posto em xeque esse vínculo. Porque está cada dia mais claro que os

meios constroem os acontecimentos, como diz Verón. E não só porque cada dia muitos

fatos sociais e políticos se planejam de acordo com o horário de transmissão na

televisão (como os comícios políticos e os partidos de futebol e, por que não, algumas

guerras). E isto não significa que aquilo que costumamos chamar de "a realidade" seja

uma mera criação mediática, como se nosso próprio eu fosse um fantasma inventado a

partir de algum outro criador todo-poderoso, externo a nós, um novo deus, tecnológico.

O que queremos afirmar é que a separação entre representação mediática e realidade, é

uma dicotomia que nada nos diz acerca do func ionamento dos meios, da cultura e da

comunicação social. E é por que, justamente, esse conceito do real é o que está posto em

questão. ¿Acaso as coisas existem fora da cultura, das palavras que lhe dão sentido?

Sentimos e pensamos sobre nós e sobre o mundo através dos sistemas de representação

da cultura, das linguagens e os sistemas mediáticos tais como a televisão, também são

sistemas de representação, com suas próprias regras de produção e de consumo, com as

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quais estamos lidando desde não mais de 50 anos, apesar de que parecem que nasceram

com o mundo.

Abordada deste modo, a representação da menstruação e das mulheres nos

interessa como cristalizações de sentidos sociais, articulações de diversas narrações

ideológicas que se dão ao interior da cultura. Por que "não existe experiência alguma

fora das categorias da representação ou o discurso" diz Hall (1998:48). E,

contrariamente à visão da filosofia positivista, é o discurso o que outorga uma pretensão

de natureza às coisas. Mas para entender isto foi preciso desconstruir as noções binarias

que olhavam para a linguagem como um sistema de correspondências entre "referentes"

(as coisas, o "real") e as palavras. Esta forma de entender a linguagem têm a vantagem

de introduzir uma idéia construtivista e processual do discurso mediático, onde este

deixa de ser pura invenção arbitraria, exterior aos sujeitos, pré-existente a qualquer

condição, lugar e tempo. E também deixa de ser seu oposto, pura "re-apresentação",

cópia ou tradução, mera janela à realidade. Por que se um dispositivo tão complexo

como a televisão tem a capacidade de criar linguagens, e através das linguagens,

maneiras de pensar e de fazer, isto não é possível senão a partir da cultura, do acúmulo

cultural das audiências com as quais interactua.

A teoria feminista culturalista tem questionado também as visões essencialistas e

reducionistas das diferenças que estão subjacentes em categorias tais como "homem" e

"mulher". Não pode se falar de "mulheres" como uma categoria única, essencial,

homogênea, normativa, contraposta a "homem", se assinalou. Contudo, aqui falaremos

de "mulheres", usando provisoriamente o que se tem denominado "um essencialismo

metodológico", assumimos que "o sujeito mulher não é uma essência monolítica

definida de uma vez por todas, senão o lugar onde confluem múltiplas, complexos e

potencialmente contraditórios conjuntos de experiências, definidos por variáveis que se

superpõem, como a classe, a raça, a idade, o estilo de vida, a opção sexual, etc."

(Braidotti, 1994:4 apud Kember, 1998, p.367). E não é só um problema de

conceitualização mais ou menos "realista" das mulheres. A desconstrução das categorias

e dos atributos de gênero teria como conseqüência umas sexualidades menos

normativas, mais flexíveis, e uma reformulação das hierarquias sociais. Como afirma

Butler (1991:146), "a perda de normas de gênero teria o efeito de fazer proliferar as

configurações de gênero, desestabilizando a identidade substantiva e privando as

referências naturalizantes da heterossexualidade compulsiva dos seus protagonistas

centrais: 'homem' e 'mulher'". A desestabilização das categorias de gênero facilitaria a

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re-interpretação e reconstrução das possibilidades do gênero, como as chama Butler,

isto é, de novas relações não hierarquizadas, onde a diferença não signifique

subordinação. Para Evans (1997), o momento histórico atual aparece promissório. As

novas tecnologias reprodutivas propiciam o desmantelamento de alguns dos princípios

sociais que sustentaram os vínculos familiares durante toda a história moderna. Por

outro lado e simultaneamente, com o surgimento das teorizações pós-modernas se

debilitam as oposições binárias típicas da metafísica ocidental. Este novo contexto

poderia sugerir a possibilidade de novas formas de relações que não se sustentem em

imperativos biológicos nem na oposição entre homens e mulheres.

A crítica aos estereótipos de gênero apresentados pelos meios, especialmente

revistas femininas e cinema, típica dos estudos feministas dos 60-70, foi válida na

medida em que permitiu questionar os papeis femininos. Mas foi necessário avançar na

noção e crítica do conceito de representação e no papel que os meios iam jogar na

articulação da vida contemporânea para entender as conseqüências sociais da nova

cultura mediática. Compreendeu-se que já não se tratava de analisar modelos de mulher

sem pôr em questão esse conceito de gênero, agora mais flexível e até mais difuso e

contraditório. Compreendeu-se que a relação entre os meios e as mulheres "de carne e

osso" é algo a mais que uma relação de falso espelho ou de consumo alienado, senão

uma complexa e precária prática, estruturada não somente por predisposições

psicológicas ou sociológicas dos membros individuais da audiência senão também

como um jogo de sentidos, de poder e de prazeres, na sempre dinâmica e contraditória

vida cotidiana (Ang e Hermes, 1991:308). Desta forma, começou-se a estudar o

consumo e a interpretação de telenovelas, romances e revistas femininas (os chamados

"gêneros cor de rosa") por parte de mulheres, através de métodos etnográficos,

assumindo que o sentido atribuído ao lido, visto ou ouvido oferecia um espaço virtual

de intervenção a suas leitoras, tanto através dos usos que esse consumo podia oferecer

(como ter um espaço próprio, às vezes único, de lazer, no meio da chatice das tarefas

domésticas ou desenvolver o senso de pertencer a algum grupo de mulheres,

consumidoras desses produtos, entre outras infinitas possibilidades) como pelas

possíveis interpretações que esse produto podia ter, a partir do reconhecimento de que o

significado de qualquer texto mediático é produto do encontro entre o/a leitor/a e o texto

no ato de leitura e não a simples decodificação de significados aderidos ao texto.

O impacto da teoria feminista neste sentido é fundamental: ao se fazer da

experiência pessoal, da subjetividade, do doméstico (âmbito por excelência do consumo

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de meios), categorias de análise históricas e políticas relevantes (por isso, a importância

dos métodos etnográficos), a recepção de meios passa a ser relacionada com as diversas

formas do poder. E ao se questionar a idéia do poder como entidade monolítica, externa

aos sujeitos e às palavras, começa-se a pensar na interação entre produtores e

consumidoras como algo a mais do que uma relação de dominação e manipulação.

Assim, o estudo de meios de cunho feminista pode tornar transparente a profunda

politização da esfera social, evidenciar as teias invisíveis por onde também circula e se

negocia o poder - no cotidiano.

Menstruação e representação.

Há constantes e ao mesmo tempo interessantes transformações nas maneiras de

perceber o ciclo hormonal das mulheres. O corpo das mulheres e suas especificidades

têm sido os temas principais em torno dos quais se têm construído as noções culturais

que sustentam as diferenças de gênero e a subordinação feminina, e isto se tem

cristalizado através de tabus, mitos e ritos. É indispensavel revisá-los para entender

tanto desprestígio.

O tabu da menstruação se tem manifestado de diversas formas. As condutas

interditadas, como a de não poder lavar-se a cabeça ou não tomar banhos, não tocar as

plantas e flores, não preparar certos alimentos, continuam em vigência até hoje. Na

religiosidade popular sobrevivem proibições, como as das curandeiras, que não praticam

sua medicina durante o período menstrual. De fato, em toda a esfera da biologia humana

não tem havido outra função corporal objeto de tanta paixão e discussão como a que

gera o fluxo menstrual. Outra forma do tabu aparece nas formas retóricas com as quais

menciona -se o sangrado. A "regra", o "período", estar "nesses dias", o "assunto", estar

"indisposta", estar "de boi", “estar de Chico”, “incomodada”, são as formas correntes da

língua portuguesa com as quais as mulheres comunicam seu ciclo menstrual.

A menstruação sempre tem sido considerada perigosa e as mulheres, veículos

desse perigo. Guy Bechtel tem desconstruído minuciosamente o imaginário cristão

sobre as mulheres através das narrativas bíblicas, resumindo e descrevendo em quatro

estereótipos tudo aquilo que pode ser atribuído à “ feminilidade”: a puta, a bruxa, a santa

e a tonta (Bechtel, 2001), tipos atualizados hoje através dos personagens típicos da

novela contemporânea: a traidora, a vítima, a justiceira e a tonta (Barbero, 1987). As

mulheres têm estado sempre perseguidas por estereótipos, na medicina, na psiquiatria,

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na literatura, como uma forma simplificada de capturar aquilo que aparece como

desconhecido, misterioso.

A luta sobre o poder simbólico da menstruação e do ciclo mensal da mulher é

um campo de verda deira guerra. As opiniões oscilam entre a glorificação do sangrado e

sua culpabilização ou, todavia, sua inutilidade para as mulheres que não pretendem ter

filhos tornando-se, então, uma "sangria inútil" (Coutinho, 1999). De fato, faz vários

anos em alguns países se estão levando a efeito campanhas a favor da suspensão da

menstruação, baseando-se em investigações médico-científicas que a assinalam como a

causa principal de uma série de sintomas que têm tomado o nome genérico de

"transtornos pré-menstruais". Não só a televisão senão revistas, meios impressos e

especializados têm sido eco das propostas de, entre outros, o médico e pesquisador

brasileiro em reprodução humana, Dr. Elsimar Coutinho, quem propõe que a

menstruação é responsável dos transtornos pré-menstruais e de enfermidades como a

endometriose. Coutinho e Sheldon J. Segal publicaram um polêmico livro, Is

menstruation Obsolete? (¿Es obsoleta a menstruação?, Oxford University Press, 1999)

traduzido ao português como Menstruação, a Sangria Inútil, transformando a pergunta

da edição norte-americana, numa afirmação contundente que lhe outorga maior impacto

publicitário no cenário nativo brasileiro, onde Coutinho se converteu num cruzado

contra tanto sangue derramado em vão, segundo ele afirma em quantos meios de difusão

aparece 2.

O caso da publicidade de absorventes

Segundo dados de Iríbar (2000), cada espanhola usa entre 11.000 e 15.000

absorventes ou tampões ao longo da sua vida. Na Espanha gastam-se nesse conceito ao

redor de 44.000 milhões de pesetas por ano3. “Não é só ao setor industrial que se

apresenta um mercado interessante. O Estado tira uma fatia enorme de estes gastos

através do imposto IVA, que cataloga estes produtos como artigos cosméticos e lhes

aplica o 16% de imposto, enquanto que os produtos sanitários se beneficiam com um

IVA reduzido do 4%. Pode apreciar-se que existe um apetitoso mercado de usuárias

2 No Brasil, através de espaços televisivos diários (Rede Band, TV Itapoa-Bahia), onde participa como consultor "especialista", Coutinho tem estado difundindo suas polêmicas teses que encontraram eco na imprensa massiva, na denominada "imprensa feminina" e através de declarações das suas pacientes mais famosas, estrelas de televisão. 3 Não se dispõe de dados do Brasil.

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destes produtos, razão pela qual, a publicidade aparece como um dos poderosos

instrumentos de estímulo ao consumo.

Durante o ano 2001, na Espanha, se desenvolveram duas campanhas publicitárias, nas

quais temos nos centrado: a de absorventes Evax, da empresa Arbora & Ausonia e a de

tampões Tampax, de Procter & Gamble.

A campanha da Evax consta de dois spots publicitários. Um de les, o que mais

nos tem chamado a atenção, se desenvolve no cenário de uma escola. Trata-se de um

anuncio que leva duas faixas pretas, replicando um formato de 16 por 9 mm, próprio do

gênero de ficção. Nele, uma adolescente de uns 12 anos, que está em sala de aula, é

chamada, da porta de vidro da sala, por uma mulher de uns 40 anos, vestida com um

tailleur completamente vermelho e com uma toca ou turbante vermelho na cabeça.

Durante os primeiros planos, vão caminhando juntas, pelo corredor da escola. Na

continuação se produz um salto do eixo visual, e a menina que estava à direita da

mulher, passa (fora do campo visual do público) à esquerda. Esse salto, que tem um

marcante efeito de surpreender e distanciar a quem está assistindo, chama mais a

atenção por que se produz num primeiro plano do rosto da mulher de vermelho (cujos

lábios carnudos estão pintados de carmim) no momento em que se dirige à garota:

-"Hola, tú no me conoces, soy tu menstruación"4.

Nesse momento, ápice da história, se introduz um elemento sonoro, dois toques de uma

buzina, como os que acompanham as peripécias dos atores cômicos.

A menina, sem se surpreender demais, lhe responde, dando início ao diálogo com a

mulher:

- "¿Mi qué? Ahh, la regla"

- "Ya veo que has oído hablar de mí"

- "Pues... nos vemos"5

A garota se dirige para seu escaninho, da onde pega um absorvente externo. A senhora

de lábios de carmim, algo surpreendida, lhe diz:

- "¿No vas a hacer un drama? ¿Unas lagrimitas por lo menos? ¡O una fiesta! ¡He traído

confetis!"6

4 - "Oi, você não me conhece, sou sua menstruação". 5 - "Minha que? Ahhh, a regra" - "Vejo que já tem ouvido falar de mim" - "Pois é... a gente se vê". 6 -"Não vai fazer um drama? Uma lagriminha, pelo menos? Ou então uma festa! Trouxe confetes!”.

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E ri muito, mais insinuando um riso falso, forçado, enquanto convida a garota a

entrar na brincadeira. No sucessivo, o spot se resolve sem diálogos. A menina se dirige

ao sanitário com o absorvente na mão. Abre a porta e entra. A câmara fica de fora, no

corredor. A senhora de vermelho persegue a jovem e entra também. Na continuação, a

jovem sai do sanitário e sai da cena. Atrás dela, segundos depois, sai a mulher de

vermelho, esta vez vestindo um típico traje de presidiário a raias, mas de raias

vermelhas, arrastando a pesada bola de ferro, típica do cinema cômico, detrás de ela.

No momento final do vídeo, quando se vê a mulher presa saindo do sanitário com as

mãos estendidas para a frente, como querendo alcançar o escaninho de onde havia

saído o absorvente, aparece uma mão em primeiro plano, assegurando um envelope de

compressas Evax, cobrindo o espaço central da tela. E uma voz feminina em off, que diz

a marca e o slogan da empresa:

-"Nuevo Evax Clean & Dry. Con Evax te sentirás libre".

Como se pode ver, aqui se rompe com a tradicional metáfora do azul=pureza, e

o vermelho passa a dominar a paisagem, porém também através de outras substituições,

como a roupa, os lábios, a toca. Apresenta -se agora, através da ironia e o sarcasmo, o

que antes era praticamente inominável. Tira-se a menstruação do âmbito da

enfermidade, para colocá -lo no campo da higiene, que lhe é próximo.

A publicidade de tampões Tampax é menos ambiciosa em termos

argumentativos; recorre ao clássico recurso de mostrar o produto, em animação

computada. Contudo, aqui também se constrói narrativamente o produto através de duas

metáforas, a da cor e a da flor. Num fundo azul no qual flutuam pétalas, aparece em

primeiro plano uma flor, similar a uma margarida que se fecha imediatamente,

convertendo-se num tampão. Uma voz feminina em off apresenta o produto:

"-Descubra el nuevo aplicador de Tampax, tan suave como una flor y con las puntas

redondeadas. Nuevo Tampax. Aún más suave, más cómodo" 7, com música de jazz de

fundo.

7 "Descubra o novo aplicador de Tampax, tão suave como uma flor e com as pontas redondeadas. Novo Tampax. Ainda mais suave, mais cômodo".

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Nesta última, a menstruaçã o não é mencionada, sequer se alude ao corpo ou à

função do produto. Parte-se de um contrato implícito com o público que conhece a

existência e função desses pequenos absorventes internos que apareceram, não sem

conflito, no mundo feminino dos anos 80. Contudo, se é verdade o que diz Traversa

(1997), que "para vender qualquer coisa colocam uma bunda" por que as referências

sexualizadas vendem, não há representação mais despojada de sexualidade que a de um

corpo feminino "nesses dias". O corpo sexual desaparece, todo é elíptico e indizível:

sangue, vagina, útero e ovário são substituídos por azuis e margaridas. Não obstante,

algumas coisas parecem estar mudando. As duas publicidades nos apresentam como

dois modelos diferentes de relacionar-se com o público: em uma, através de inegáveis

conotações pedagógicas e um humor cúmplice, dirigido às garotas que começam a

menstruar e que já "sabem de tudo". Na outra, recuperando os tópicos clássicos da

iconografia do sangue e de aquelas partes femininas que não se falam, por que os poetas

já o disseram, parecem flores.

Se o corpo pode ser abordado como um texto no qual ler a cultura, pois nele

estariam inscritos os valores, preocupações e reflexões de cada sociedade, então, o

corporal não pode ser pura natureza, mas deve ser compreendido como um corpo

politizado, um corpo que se vá construindo de acordo com os sentimentos, normas,

ideais e utopias de cada sociedade. Marcel Mauss mostrou como os movimentos mais

cotidianos, como caminhar, nadar, comer, são produto de uma aprendizagem e

disciplinamento culturais. Pode se afirmar que a menstruação responde a alguma lógica

que foge das leis da biologia?. Se menstruar é tão natural como o cair das folhas das

árvores em outono, não é natural seu sentido, sua significação, suas diversas explicações

e os efeitos que estes sentidos têm sobre o corpo individual e social.

De fato, todas as sociedades têm estabelecido seus direitos a derramar e a

consumir sangue, mesmo simbolicamente - o sangre de Cristo feito vinho de missa.

Perigoso e bem-feitor, puro e impuro, vida e morte, o sangre é essencialmente

contraditório, de uma ambigüidade tão insuportável como sua perigosa cor. Derramá -la

é crime mas também é um ato sagrado, do qual a literatura tem dado conta em

abundância: Fausto assinou com seu sangue um pacto de morte e Drácula, porém, a

bebia para sobreviver.

A aparição do primeiro sangue menstrual é a manifestação de uma

transformação hormonal que marca um dos tantos processos biológicos a partir dos

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quais as mulheres poderiam engendrar outra vida. O valor que se lhe da a esse processo

vai depender do complexo de valores culturais de determinada sociedade. Como explica

Sardenberg (1994:320) "os diferentes significados e condutas associadas a menstruar

obedecem a lógicas culturalmente específicas, configurando o que aqui denomino de

ordens prático-simbólicas da menstruação". Para alguns autores (Da Matta,1977), o

problema da subordinação da mulher tem a ver com seu corpo, com a idéia de que ele

atua como um elemento perturbador da ordem social a partir de fatos que escapam ao

controle social, como o ciclo menstrual, o parto ou a capacidade de engendrar. E essa

subestimação está assegurada no argumento publicitário da Evax.

No aviso da Evax o sangue menstrual é personificado: aparece uma adolescente

desde fora, como um outro eu, estranho (porém, mais ou menos conhecido: "¡ah!, la

regla"), com o qual é difícil se identificar, por que Como identificar -se com essa

senhora madura, bastante feia, meio escandalosa, que a convida a comemorar algo que,

por um lado, parece digno de festejos e por outro, um problema do qual tem que

desembaraçar-se? Narrativamente, o salto que a câmara provoca quando a menstruação

se apresenta - no duplo sentido de apresentar-se: aparecer, acontecer, e de identificar-se

("¡Hola, soy tu menstruación!") - obriga ao público a tomar distância, a estranhar-se. A

menarca (a primeira menstruação) "se apresenta", narrativa e conceitualmente, como um

susto, um sobressalto. Como reconciliar-se com essa menstruação que chega sem aviso,

interrompe as aulas e nos persegue com esse ar de brincadeira meio infantil, algo fora de

lugar para una pré-adolescente? ("No vas a festejar?...¡he traído confetis!"). Que nos

está propondo a publicidade acerca de como viver a menstruação? O recurso à

personificação e o formato de ficção pode ser lido como uma nova forma de falar das

questões "das mulheres" sem voltas, francamente e rindo de si mesmas. Depois de tudo,

as mulheres já não são as mesmas que as de uma geração atrás. Também faz alusão ao

fim da ingenuidade e ao que haverá que enfrentar a partir de primeira perda de sangue.

"Con Evax te sentirás libre", propõe. Liberar-se do corpo usando absorventes, liberar-se

do sangue, do sujo que passa a encadear quando uma, até que enfim, se faz "mulher".

Porém, paradoxalmente, o absorvente não pode liberar, só assegura, aprisiona aquilo

que flui indefectivelmente. A única identificação possível, proposta pelo texto, é a do

público com essa idéia geral de que a menstruação é um "problema". E, mesmo se

colocando que "Me gusta ser mujer", como o faz o fabricante de esses absorventes em

outra peça, parece preciso liberar-se de aquele corpo instável, cíclico, cheio de humores

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e secreções, incontrolavel e ameaçador. ¡Se desde o Gênesis ("Parirás com dor" ) se está

ameaçando às mulheres com seu próprio corpo!

A subordinação feita "carne": o habitus

Todavia, para entender a associação entre menstruação, cultura, e depreciação da

mulher, podemos recuperar algumas noções de Bourdieu. No seu trabalho, "La

dominación masculina" (2000), Pierre Bourdieu desenvolve o conceito de "habitus" na

situação de subordinação de gênero. A dominação masculina sobre as mulheres está

sustentada no que o autor chama de "violência simbólica", a qual, apesar do nome, não

exclui formas materiais de submissão, como a violência física, por exemplo. Este

princípio simbólico forma parte da experiência dóxica, do sentido comum, cuja

perpetuação parece estar assegurada a partir de seu consenso compartilhado entre quem

domina e quem é dominado. Contudo, Bourdieu não se refere a uma série de idéias

conscientes e proativas exercidas pelos homens em detrimento das mulheres, senão a

um processo lento de "socialização do biológico e de biologização do social" (p.14), de

transformação da história em natureza, organizado sob princípios androcêntricos e

expressado através de estilos de pensar, de falar e de se comportar que produzem efeitos

nos corpos e nas mentes. O que o autor propõe é um exercício de reflexão sobre as

categorias do ente ndimento e da percepção, com as quais o mundo (e os corpos) é

construído.

Neste sentido, a inferioridade da mulher parece estar inscrita na ordem natural das

coisas, porque sempre foi assim, é parte do sistema de percepções das pessoas, do

pensamento e da ação. Isto se exemplifica bem quando se afirma, baseado na

experiência cotidiana, que as mulheres não sabem manejar certas tecnologias (carros,

vídeos) ou não têm condições para a vida política. Isto provém de um acordo entre as

formas do conhecer, as expectativas interiores e o curso exterior do mundo, por que as

categorias do conhecimento coincidem com "o real", e funcionam como orientações

para a ação. Vale a pena citar textualmente:

"La concordancia entre las estructuras objetivas y las estructuras

cognitivas, entre la conformación del ser y las formas del conocer, entre el

curso del mundo y las expectativas que provoca, permite la relación con el

mundo que Husserl describía con el nombre de "actitud natural" o de

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"experiencia dóxica", pero olvidando las condiciones sociales de posibilidad"

(Bourdieu, 2000:21).

Esta divisão entre o ser e o conhecer que parece estar inscrita na natureza mesma

das coisas, está objetivada no mundo social através do habitus, como sistema de

categorias de percepção, de pensamento e de ação. Assim, quando os subordinados

aplicam as categorias do entendimento produzidas na relação de dominação

(androcêntrica) seus atos de conhecimento serão, necessariamente, atos de submissão

(contudo, Bourdieu aceita que existem margens pa ra a manobra, para a "luta cognitiva"

pelo sentido das coisas). Isso fica claramente exemplificado no caso da timidez, onde o

tímido é traído pelo seu próprio corpo, ainda contra sua vontade, quando tem “in -

corporado” sua subordinação. As representações da s diferenças de gênero como

diferenças naturais ou biológicas são também, um bom exemplo de como o corpo é

construído por categorias históricas: Emily Martin (1996) nos mostra uns gráficos da

idade média que descrevem a vagina como um pênis invertido, a partir da percepção do

corpo feminino como o revés (inverso?) do masculino, seu oposto, derivado do modelo

central (o homem).

A noção de habitus é muito útil para entender como as mulheres vivenciam seus

ciclos menstruais. Está vinculada ao que Bourdieu de nominou como "somatização das

relações de dominação", o que significa que o habitus fixa no corpo, corporifica, as

relações sociais, de uma maneira não racional nem intelectual, senão como uma

"predisposição", uma ação lenta, automática e sem agentes que, contudo, tem uns

efeitos bem evidentes.

Neste sentido, os mal-estares associados à menstruação poderiam ser

caracterizados como corporificações do que socialmente e historicamente está

depreciado, como a subordinação encarnada no corpo, levada como uma marca

corporal. Se é verdade que existe um conjunto de experiências corporais que dariam

coerência e unidade à categoria mulher (como parir, ter a menstruação e a menopausa,

além do estupro e a violência doméstica), do que não cabe dúvida é que o que têm em

comum essas experiências é que todas têm sido submetidas a uma patologização,

depreciação e posterior controle médico-masculino.

Conclusão

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Se a linguagem não só descreve o mundo senão também o cria, vão se inscrevendo

no corpo através de imagens e noções culturais, percepções, sensações, sentimentos,

maneiras de levar o corpo, de se relacionar ele. A desvalorização da menstruação, tal

como se a apresenta no imaginário de homens e mulheres, e nas representações

midiáticas, funcionaria a partir da "somatização das relações sociais de subordinação"

como um habitus. Seria parte de essas relações patriarcais corporificadas. E como a

dominação se naturaliza através de disposições corporais, modos de usar o corpo,

reforçado pelos meios, a moda, as crenças, as linguagens, funciona como uma evidencia

natural, é autorrealizador e autoexplicativo. Assim, a menstruação forma parte da

representação androcêntrica do processo de reprodução biológica e social, e se vê

investida por uma objetividade outorgada pela linguagem, a qual é utilizada pelas

mesmas mulheres. Se não se dispõe de outro instrumento de (auto) conhecimento a mais

do que o que é criado pelo dominador, a subordinação é quase inevitável. Isto também é

evidente no caso do profundo mal-estar das mulheres contemporâneas com seu corpo,

um corpo criado a partir do olhar do outro (masculino).

Em certo sentido, a publicidade televisiva parece estar assumindo algumas mudanças

nas idéias acerca das mulheres e da diferença genérica. Se bem o sangue menstrual sai

de um lugar que ainda não pode ser nomeado, a menstruação parece estar saindo do seu

lugar clandestino. "Soy tu menstruación", se apresenta a si mesma na tela. Já se a

nomeia sem elipse. A "regra", a palavra que ocultava, parece haver perdido todo seu

poder substitutivo. Nem as mulheres parecem ser as mesmas na publicidade. Jovens

seguras de si mesmas, modernas, sem ingenuidade, por que "sabem o que querem" estão

substituindo às românticas de folhetim. O humor e a cumplicidade com o público

feminino permitem às mulheres rir um pouco mais de elas mesmas. Por uma parte se

estão ampliando os limites do que pode mostrar-se e falar-se publicamente mas, por

outro, o novo discurso sexual feminino nos meios, que aparece como audacioso e

atrevido, precisa estabelecer os limites de essas novas mulheres, sempre heterossexuais

e reprodutivas. A publicidade de absorventes propõe um novo tipo de subjetividade

feminina, a custo de continuar sacrificando o próprio corpo, de reforçar a associação

entre mulheres e sofrimento. Anorexia simbólica, essas novas normatividades impõem

outros estilos corporais que, a custo de tanta obsessão por dietas, parece querer propor a

desaparição do corpo.

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