Lacan - O Triunfo da Religiao.pdf

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- PRECEDIDO DE DISCURSO AOS CATÓLICOS

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  • -o'JRIUNFOn~FLIGIAO PRECEDIDO DE DISCURSO AOS CATLICOS

  • Paradoxos ele La('an O que uma anlise ensina no se adqui -re por nenhuma outra via, nem pelo ensmo, nem por nenhum outro exerci -cio esp1ritual. Nesse caso, a que se presta? Quer dizer que prec1so calar esse saber? Por mais particular que seja para cada um, no haveria meio de ensin-lo, de ao menos transmitir seus princpios e algumas de suas conseqncias? Lacan colocou-se a pergunta, respondendo -a em mais de um estilo. Em seu Seminno, ele ar -gumenta vontade. Em seus Escntos, quer demonstrar, e atormenta a letra a seu bel prazer. Mas h tambm suas conferncias, suas entrevistas, seus improv1sos. Ai, tudo vai mais rpido. Trata-se de surpreender as opmies para melhor seduz1 -las. o que cha -mamos de seus Paradoxos.

    Quem fala? Um mest re de sabedoria, mas de uma sabedoria sem resigna -o, uma anti-sabedoria, sarcst1ca, sardn1ca. Cada um livre para fazer disso o que quiser.

    Esta sne, in1c 1almente dedicada a inditos, publicar em segu1da tre -chos escolhidos de sua obra .

    O Triunfo da Religio precedido de

    Discurso aos Catlicos

  • Paradoxos ele La('an O que uma anlise ensina no se adqui -re por nenhuma outra via, nem pelo ensmo, nem por nenhum outro exerci -cio esp1ritual. Nesse caso, a que se presta? Quer dizer que prec1so calar esse saber? Por mais particular que seja para cada um, no haveria meio de ensin-lo, de ao menos transmitir seus princpios e algumas de suas conseqncias? Lacan colocou-se a pergunta, respondendo -a em mais de um estilo. Em seu Seminno, ele ar -gumenta vontade. Em seus Escntos, quer demonstrar, e atormenta a letra a seu bel prazer. Mas h tambm suas conferncias, suas entrevistas, seus improv1sos. Ai, tudo vai mais rpido. Trata-se de surpreender as opmies para melhor seduz1 -las. o que cha -mamos de seus Paradoxos.

    Quem fala? Um mest re de sabedoria, mas de uma sabedoria sem resigna -o, uma anti-sabedoria, sarcst1ca, sardn1ca. Cada um livre para fazer disso o que quiser.

    Esta sne, in1c 1almente dedicada a inditos, publicar em segu1da tre -chos escolhidos de sua obra .

    O Triunfo da Religio precedido de

    Discurso aos Catlicos

  • CAMPO FREUDIANO NO BRASIL

    Coleo dirigida por J:tcques-Alain e Judith Miller Assessoria brasileira: Angelina Ha.rari

    Jacques Lacan

    O Triunfo da Religio precedido de

    Discurso aos Catlicos

    TradllfiJ: AndrTelles

    Reviso tcnico: RamMand.l

    Jorge ZAHAR Editor Rio de J aneito

  • CAMPO FREUDIANO NO BRASIL

    Coleo dirigida por J:tcques-Alain e Judith Miller Assessoria brasileira: Angelina Ha.rari

    Jacques Lacan

    O Triunfo da Religio precedido de

    Discurso aos Catlicos

    TradllfiJ: AndrTelles

    Reviso tcnico: RamMand.l

    Jorge ZAHAR Editor Rio de J aneito

  • Trulo original: Lt Triomphe de la Rtligion

    (Prdl d~ Discours aux Catholiques)

    Traduo autorizada da primeira edilo &mcesa publicada em 2005 por dions du SeuiJ,

    de Paris, F rana

    Copyright 2005, ditions du Seuil

    Copyright da edio brnsileira 2005: Jorge Zahar Editor Ltda. rua Mxico 31 sobrdoj~

    20031-144 Rio de Janeiro, RJ rei.: (21) 2240-{1226 I fax: (21) 2262-5123

    e-mail: [email protected] si te: www.zahar.com.br

    Todos os direitos reservados. A tq~roduo no-autorizada desta publicao, no todo

    ou em parte, constitui violao de direitos autorais. (Lei 9.610198)

    Capa: Dupla Design

    ClP-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Lacan,Jacques, 1901-1981 L129t O triunfo da religio, precedido de, DiSCW'SlO aos catlicos/

    05-2074

    Jacques Lacan; traduo, Andr Telles; reviso tcnica, Ram Mandl. - Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005

    (Campo freudiano no Brasil; Srie Paradoxos)

    Traduo de: Le Triomphe de la. rdigion {prctd de, Disoours aux auholiques)

    Inclui bibliografia ISBN 85-7110-869-2

    1. Cristianismo e psicanlise. J. Trulo. 11. Discurso aos c~tlicos. lll . Srie.

    CDD 261.515 C DU 261.6:159.964.2

    Sumrio

    Nota 7

    Discurso aos catlicos 9 Anncio 11

    1 Freud, no que se refere moral, d o peso correto 13

    11. A psicanlise constituinte da tica exigida pelo nosso tempo? 37

    O triunfo da religio 55 Governar, educar, analisar 57 A angstia dos cientistas 61

    O triuruo da religio 64 Circunscrever o sintoma 68

    O Verbo faz gozar 72 Habituar-se ao real 75

    No fllosofar 79

    Indicaes bibliogrficas 87

  • Trulo original: Lt Triomphe de la Rtligion

    (Prdl d~ Discours aux Catholiques)

    Traduo autorizada da primeira edilo &mcesa publicada em 2005 por dions du SeuiJ,

    de Paris, F rana

    Copyright 2005, ditions du Seuil

    Copyright da edio brnsileira 2005: Jorge Zahar Editor Ltda. rua Mxico 31 sobrdoj~

    20031-144 Rio de Janeiro, RJ rei.: (21) 2240-{1226 I fax: (21) 2262-5123

    e-mail: [email protected] si te: www.zahar.com.br

    Todos os direitos reservados. A tq~roduo no-autorizada desta publicao, no todo

    ou em parte, constitui violao de direitos autorais. (Lei 9.610198)

    Capa: Dupla Design

    ClP-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Lacan,Jacques, 1901-1981 L129t O triunfo da religio, precedido de, DiSCW'SlO aos catlicos/

    05-2074

    Jacques Lacan; traduo, Andr Telles; reviso tcnica, Ram Mandl. - Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005

    (Campo freudiano no Brasil; Srie Paradoxos)

    Traduo de: Le Triomphe de la. rdigion {prctd de, Disoours aux auholiques)

    Inclui bibliografia ISBN 85-7110-869-2

    1. Cristianismo e psicanlise. J. Trulo. 11. Discurso aos c~tlicos. lll . Srie.

    CDD 261.515 C DU 261.6:159.964.2

    Sumrio

    Nota 7

    Discurso aos catlicos 9 Anncio 11

    1 Freud, no que se refere moral, d o peso correto 13

    11. A psicanlise constituinte da tica exigida pelo nosso tempo? 37

    O triunfo da religio 55 Governar, educar, analisar 57 A angstia dos cientistas 61

    O triuruo da religio 64 Circunscrever o sintoma 68

    O Verbo faz gozar 72 Habituar-se ao real 75

    No fllosofar 79

    Indicaes bibliogrficas 87

  • Nota

    As duas pefOS aqui reunidas, cujo ttulo escolhi e cujo texto estabeleci, provm da obra oral de Lacar1.

    O 'Discurso aos catlicos" compreende os duas confe-rncias pronzmciadas em 9 e 1 O de mar;o de 1960 em Bruxelas, a convite da Faculdade Universitria Saint-Louis, e anunciadas como "aulas pblicos". Lacan se reft-re a elos nos captulos XIII e XV do Seminrio A tica da psicanlise.

    "O triunfo da rel'gio" provm de uma "entrevista coletiva" realizada em Roma em 29 de outubro de 1974, no Centro Cultural Francs, por ocasio de um congres-so. Lacan foi interrogado por jornalistas italianos.

    Ao final do volume, o leitor encontrar algumas indica;es bibliogrficas.

    jacques-Aiain Miller

    7

  • Discurso aos Catlicos

  • Anncio

    A perspectiva aberta por Freud sobre a determina-o, pelo inconsciente, do homem em sua conduta afetou quase todo o campo de nossa cultura. Res-tringir-se- ela na prtica analtica aos ideais de uma normatizao, curiosos em seguir em sua difu-so vulgar? Sabemos que o dr. Jacques Lacan pro-pe comunidade dos psicanalistas a experincia de um ensino bastante exigente quanto aos princ-pios de sua ao. No seminrio em que formou uma elite de clnicos e que ele conduz h sete anos no servio do professor Jean Delay, trouxe baila este ano as incidncias morais do freudismo, julgando dever ultrapassar o abrigo de um falso objeti.vismo para apresentar objetivamente a ao a que dedicou sua vida.

    Com efeito, ele sustenta que tal apresentao de interesse pblico, ainda mais que essa ao jul-gada no privado. Assim, hoje ele corre o risco de introduzir um auditrio no formado em uma visa-da que vai direto ao seu corao. Embora o dr. Jac-ques Lacan no ache que se deva resexvar apenas aos religiosos o aparato de dogmas que motiva o

    II

  • Anncio

    A perspectiva aberta por Freud sobre a determina-o, pelo inconsciente, do homem em sua conduta afetou quase todo o campo de nossa cultura. Res-tringir-se- ela na prtica analtica aos ideais de uma normatizao, curiosos em seguir em sua difu-so vulgar? Sabemos que o dr. Jacques Lacan pro-pe comunidade dos psicanalistas a experincia de um ensino bastante exigente quanto aos princ-pios de sua ao. No seminrio em que formou uma elite de clnicos e que ele conduz h sete anos no servio do professor Jean Delay, trouxe baila este ano as incidncias morais do freudismo, julgando dever ultrapassar o abrigo de um falso objeti.vismo para apresentar objetivamente a ao a que dedicou sua vida.

    Com efeito, ele sustenta que tal apresentao de interesse pblico, ainda mais que essa ao jul-gada no privado. Assim, hoje ele corre o risco de introduzir um auditrio no formado em uma visa-da que vai direto ao seu corao. Embora o dr. Jac-ques Lacan no ache que se deva resexvar apenas aos religiosos o aparato de dogmas que motiva o

    II

  • Jacques l..acan

    preceito cristo de nossa moral, comportando pri-mazia do amor e senso do prximo, veremos, talvez no sem surpresa, que Freud articula aqui a questo em sua verdadeira estatura, e bem alm dos precon-ceitos a ele imputados por uma fenomenologia s vezes presunosa em suas crticas. Da os subttulos que o dr.Jacques Lacan nos entregou para suas duas conferncias, sob a ressalva de sua liberdade de adaptao imediata:

    I. Freud, no que se refere mora4 d o peso correto. n.A psicanlise l constituinte da tica exigida pelo

    nosso tempo? O fdsofo, sob esse aspecto, talvez venha a

    retificar a posio tradicional do hedonismo; o homem do sentimento, a limitar seu estudo da feli-cidade; o homem do dever, a retroceder sobre as iluses do altrusmo; o prprio libertino, a reconhe-cer a voz do Pai nos mandamentos que sua Morte deixa intactos; o espiritual, a ressituar a Coisa em tomo da qual gira a nostalgia do desejo.

    IZ

    Freud, no que se refere moral, d o peso correto

    Senhoras e senhores,

    Qyando o cnego Van Camp veio me pedir, com as formas de cortesia refinada que lhe so prprias, para que falasse na Universidade Saint-Louis sobre alguma coisa relacionada ao meu ensino, no en-contrei, meu Deus, nada mais simples a dizer seno que falaria do prprio assunto que havia escolliido para o ano que comeava - estvamos ento em outubro - a saber, sobre a tica da psicanlise.

    Repito aqui essas circunstncias, essas condies de escolha, para evitar, em suma, certos mal-entendi-dos. Qyando se vem ouvir um psicanalista, espera-se, com efeito, ouvir mais uma defesa dessa coisa discu-tida que a psicanlise, ou ainda alguns vislumbres sobre suas virtudes, que so evidentemente, a princ-pio, como todos sabem, de ordem teraputica. Isto precisamente o que no farei esta noite.

    IJ

  • Jacques l..acan

    preceito cristo de nossa moral, comportando pri-mazia do amor e senso do prximo, veremos, talvez no sem surpresa, que Freud articula aqui a questo em sua verdadeira estatura, e bem alm dos precon-ceitos a ele imputados por uma fenomenologia s vezes presunosa em suas crticas. Da os subttulos que o dr.Jacques Lacan nos entregou para suas duas conferncias, sob a ressalva de sua liberdade de adaptao imediata:

    I. Freud, no que se refere mora4 d o peso correto. n.A psicanlise l constituinte da tica exigida pelo

    nosso tempo? O fdsofo, sob esse aspecto, talvez venha a

    retificar a posio tradicional do hedonismo; o homem do sentimento, a limitar seu estudo da feli-cidade; o homem do dever, a retroceder sobre as iluses do altrusmo; o prprio libertino, a reconhe-cer a voz do Pai nos mandamentos que sua Morte deixa intactos; o espiritual, a ressituar a Coisa em tomo da qual gira a nostalgia do desejo.

    IZ

    Freud, no que se refere moral, d o peso correto

    Senhoras e senhores,

    Qyando o cnego Van Camp veio me pedir, com as formas de cortesia refinada que lhe so prprias, para que falasse na Universidade Saint-Louis sobre alguma coisa relacionada ao meu ensino, no en-contrei, meu Deus, nada mais simples a dizer seno que falaria do prprio assunto que havia escolliido para o ano que comeava - estvamos ento em outubro - a saber, sobre a tica da psicanlise.

    Repito aqui essas circunstncias, essas condies de escolha, para evitar, em suma, certos mal-entendi-dos. Qyando se vem ouvir um psicanalista, espera-se, com efeito, ouvir mais uma defesa dessa coisa discu-tida que a psicanlise, ou ainda alguns vislumbres sobre suas virtudes, que so evidentemente, a princ-pio, como todos sabem, de ordem teraputica. Isto precisamente o que no farei esta noite.

    IJ

  • Jacques Lacan

    Encontro-me ento na dillcil posio de ter de situ-los aproximadamente no meio [mdium] do que escolhi tratar este ano para um auditrio obri-gatoriamente mais formado nessa pesquisa do que vocs o podem ser - seja qual for a atrao, a aten-o que vejo marcadas em todas as fisionomias que me escutam - j que aqueles que me seguem o fazem, h, digamos, sete ou oito anos.

    Meu ensino deste ano, portanto, est focalizado precisamente sobre o tema, em geral evitado, das incidncias ticas da psicanlise, da moral que esta pode sugerir, pressupor, conter e, talvez, de um passo adiante, grande audcia, que ela nos permitiria efe-ruar referente ao domnio moral.

    1

    A bem da verdade, este que lhes fala entrou na psicanlise tarde demais por ter tentado anterior-mente - juro, como indivduo formado, educado -orientar-se dentro do domnio da questo tica, falo teoricamente, se no for talvez tambm, meu Deus, por algumas dessas experincias que cha-mamos de juventude.

    Mas, enfim, ele j est na psicanlise h bastan-te tempo para poder dizer que logo ter passado metade de sua vida a escutar vidas, que se contam,

    Discurso aos catlicos

    se confessam. Ele escuta. Eu escuto. Dessas vidas, portanto, que j h quatro septenrios escuto con-fessarem-se minha frente, nada sou para pesar o mrito. E um dos fins do silncio que constitui a regra da minha escuta justamente calar o amor. Logo, no trairei seus segredos triviais e sem igual. Mas h algo que gostaria de testemunhar.

    Nesse lugar que ocupo e onde almejo que mi-nha vida acabe de se consumar, isto que permane-cer pulsante depois de mim, creio, como um res-duo no lugar que terei ocupado. Aquilo de que se trata uma interrogao, inocente se posso dizer, ou mesmo um escndalo, que se formula mais ou me-

    nos ass1m. Esses homens, esses vizinhos, bons e cmodos,

    que se lanaram nessa histria a que a tradio atri-buiu diversos nomes, entre os quais o de existncia o mais recente na filosofia, essa histria de exis-tncia, sobre a qual diremos que o que tem de clau-dicante efetivamente o que h de mais comprova-do, esses homens, todos e cada um deles suportes de certo saber ou suportados por ele - como se d que esses homens, uns e outros, abandonem-se at fica-rem s voltas com a captura dessas miragens pelas quais sua vida, desperdiando a oportunidade, deixa fluir a essncia deles, por meio das quais sua pai-xo desempenhada, por meio das quais seu ser, no melhor dos casos, no atinge seno esse pouco de

  • Jacques Lacan

    Encontro-me ento na dillcil posio de ter de situ-los aproximadamente no meio [mdium] do que escolhi tratar este ano para um auditrio obri-gatoriamente mais formado nessa pesquisa do que vocs o podem ser - seja qual for a atrao, a aten-o que vejo marcadas em todas as fisionomias que me escutam - j que aqueles que me seguem o fazem, h, digamos, sete ou oito anos.

    Meu ensino deste ano, portanto, est focalizado precisamente sobre o tema, em geral evitado, das incidncias ticas da psicanlise, da moral que esta pode sugerir, pressupor, conter e, talvez, de um passo adiante, grande audcia, que ela nos permitiria efe-ruar referente ao domnio moral.

    1

    A bem da verdade, este que lhes fala entrou na psicanlise tarde demais por ter tentado anterior-mente - juro, como indivduo formado, educado -orientar-se dentro do domnio da questo tica, falo teoricamente, se no for talvez tambm, meu Deus, por algumas dessas experincias que cha-mamos de juventude.

    Mas, enfim, ele j est na psicanlise h bastan-te tempo para poder dizer que logo ter passado metade de sua vida a escutar vidas, que se contam,

    Discurso aos catlicos

    se confessam. Ele escuta. Eu escuto. Dessas vidas, portanto, que j h quatro septenrios escuto con-fessarem-se minha frente, nada sou para pesar o mrito. E um dos fins do silncio que constitui a regra da minha escuta justamente calar o amor. Logo, no trairei seus segredos triviais e sem igual. Mas h algo que gostaria de testemunhar.

    Nesse lugar que ocupo e onde almejo que mi-nha vida acabe de se consumar, isto que permane-cer pulsante depois de mim, creio, como um res-duo no lugar que terei ocupado. Aquilo de que se trata uma interrogao, inocente se posso dizer, ou mesmo um escndalo, que se formula mais ou me-

    nos ass1m. Esses homens, esses vizinhos, bons e cmodos,

    que se lanaram nessa histria a que a tradio atri-buiu diversos nomes, entre os quais o de existncia o mais recente na filosofia, essa histria de exis-tncia, sobre a qual diremos que o que tem de clau-dicante efetivamente o que h de mais comprova-do, esses homens, todos e cada um deles suportes de certo saber ou suportados por ele - como se d que esses homens, uns e outros, abandonem-se at fica-rem s voltas com a captura dessas miragens pelas quais sua vida, desperdiando a oportunidade, deixa fluir a essncia deles, por meio das quais sua pai-xo desempenhada, por meio das quais seu ser, no melhor dos casos, no atinge seno esse pouco de

  • Jacques l.acan

    realidade que s se afirma por ter sempre apenas decepcionado?

    Eis o que me propicia minha experincia. Eis a questo que lego sobre o tema da tica, e na qual reno aquilo que, para mim, psicanalista, faz dessa histria minha paixo.

    Sim, sei que segundo a frmula de Hegel tudo o que real racional. Mas sou daqueles que pen-sam que a recproca no deve ser depreciada - que tudo o que racional real. H apenas um pequeno incmodo, que vejo a maioria daqueles que so capturados entre um e outro, o racional e o real, igno-rar essa combinao tranqilizadora. Chegaria eu a dizer que isso culpa dos que raciocinam? Uma das mais preocupantes aplicaes dessa fiunosa recipro-ca que aquilo que os professores ensinam real e, como tal, tem efeitos como qualquer real, efeitos interminveis, indeterminveis, ainda que esse ensi-no seja falso. Eis sobre o que me interrogo.

    Ao acompanhar o impulso de um dos meus pacientes em direo a um pouco de real, com ele derrapo no que chamaria de credo de tolices, do qual no sabemos se a psicologia contempornea o modelo ou a caricatura. Ou seja, o eu, considera-do ao mesmo tempo como funo de sntese e inte-grao - a conscincia, considerada como realizao da vida - a evoluo, considerada como via pela qual advm o universo da conscincia - a aplicao cate-

    r6

    Discurso aos catlicos

    grica desse postulado ao desenvolvimento psico-lgico do indivduo - a noo de conduta, aplicada de forma unitria para decompor em estupidez todo dramatismo da vida humana. Tudo caminha para camuflar o seguinte: que nada na vida concreta de um nico indivduo permite fundamentar a idia de que tal finalidade a conduza, que a guiaria, pelas vias de uma conscincia progressiva de si que sus-tentaria um desenvolvimento natural, tanto ao acor-do consigo quanto ao sufrgio do mundo de que depende sua felicidade.

    No que eu reconhea qualquer eficcia na mixrdia que vem se concretizando, de sucesses coletivas de experimentaes afinal corretivas, sob a liderana da psicologia moderna. H nisso formas amenizadas de sugesto, se podemos dizer, que no so sem efeito e que podem encontrar interessantes aplicaes no campo do conformismo, at mesmo da explorao sociaL Infelizmente, vejo esse registro sem influncia sobre uma impotncia que s faz crescer medida que temos mais oportunidade de operar os ditos efeitos. Impotncia cada vez maior do homem de se reunir ao seu prprio desejo, impo-tncia que chega a fazer com que ele perca a defla-grao carnal. Ainda que esta permanea dispon-vel, esse homem no sabe mais achar objeto para seu desejo, no encontrando seno infelicidade em sua busca, a qual ele vive numa angstia que restrin-

  • Jacques l.acan

    realidade que s se afirma por ter sempre apenas decepcionado?

    Eis o que me propicia minha experincia. Eis a questo que lego sobre o tema da tica, e na qual reno aquilo que, para mim, psicanalista, faz dessa histria minha paixo.

    Sim, sei que segundo a frmula de Hegel tudo o que real racional. Mas sou daqueles que pen-sam que a recproca no deve ser depreciada - que tudo o que racional real. H apenas um pequeno incmodo, que vejo a maioria daqueles que so capturados entre um e outro, o racional e o real, igno-rar essa combinao tranqilizadora. Chegaria eu a dizer que isso culpa dos que raciocinam? Uma das mais preocupantes aplicaes dessa fiunosa recipro-ca que aquilo que os professores ensinam real e, como tal, tem efeitos como qualquer real, efeitos interminveis, indeterminveis, ainda que esse ensi-no seja falso. Eis sobre o que me interrogo.

    Ao acompanhar o impulso de um dos meus pacientes em direo a um pouco de real, com ele derrapo no que chamaria de credo de tolices, do qual no sabemos se a psicologia contempornea o modelo ou a caricatura. Ou seja, o eu, considera-do ao mesmo tempo como funo de sntese e inte-grao - a conscincia, considerada como realizao da vida - a evoluo, considerada como via pela qual advm o universo da conscincia - a aplicao cate-

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    Discurso aos catlicos

    grica desse postulado ao desenvolvimento psico-lgico do indivduo - a noo de conduta, aplicada de forma unitria para decompor em estupidez todo dramatismo da vida humana. Tudo caminha para camuflar o seguinte: que nada na vida concreta de um nico indivduo permite fundamentar a idia de que tal finalidade a conduza, que a guiaria, pelas vias de uma conscincia progressiva de si que sus-tentaria um desenvolvimento natural, tanto ao acor-do consigo quanto ao sufrgio do mundo de que depende sua felicidade.

    No que eu reconhea qualquer eficcia na mixrdia que vem se concretizando, de sucesses coletivas de experimentaes afinal corretivas, sob a liderana da psicologia moderna. H nisso formas amenizadas de sugesto, se podemos dizer, que no so sem efeito e que podem encontrar interessantes aplicaes no campo do conformismo, at mesmo da explorao sociaL Infelizmente, vejo esse registro sem influncia sobre uma impotncia que s faz crescer medida que temos mais oportunidade de operar os ditos efeitos. Impotncia cada vez maior do homem de se reunir ao seu prprio desejo, impo-tncia que chega a fazer com que ele perca a defla-grao carnal. Ainda que esta permanea dispon-vel, esse homem no sabe mais achar objeto para seu desejo, no encontrando seno infelicidade em sua busca, a qual ele vive numa angstia que restrin-

  • Jacques Lacan

    ge cada vez mais o que poderamos chamar de sua chance inventiva.

    O que se passa aqui nas trevas foi subitamente iluminado por F reud no nvel da neurose. A essa irrupo da descoberta no subsolo correspondeu o advento de uma verdade. Esta refere-se ao desejo.

    2

    O desejo no coisa simples. No nem elementar, nem animal, nem especialmente inferior. a resul-tante, a composio, o complexo de toda uma arti-culao cujo carter decisivo tentei demonstrar no antepenltimo termo do meu ensino - do que digo l, onde absolutamente no me calo -, e talvez seja preciso que lhes diga em algum momento por que o fao.

    O carter decisivo do desejo no consiste ape-nas em ser pleno de sentido, no consiste em ser um arqutipo. Para lhes fornecer uma sondagem rpida, direi que o desejo no representa uma extenso da psicologia dita compreensiva, nem um retomo a um naturalismo micro-macrocsmico, concepo j-nica do conhecimento, tampouco reproduo fi-gurativa de expenncias concretas primrias, como articula em nossos dias uma psicanlise dita genti-ca, que chega a essa noo simplista que confunde a

    r8

    Discurso aos catlicos

    progresso de onde se engendra o sintoma com a regresso do caminho teraputico, para desembocar numa espcie de relao-bere que se embrullia a si prpria em tomo de um esteretipo de frustrao na relao de apoio que liga a criana me.

    Tudo isso apenas semblante e fonte de erro. O desejo tal como aparece em Freud, como um objeto novo para a reflexo tica, deve ser ressituado no sentido deste ltimo.

    O prprio do inconsciente freudiano de ser traduzvel - mesmo ali onde no pode ser traduzi-do, isto , num certo ponto radical do sintoma, designadamente do sintoma histrico, que da na-tureza do indecifrado, portanto do decifrvel, ou seja, ali onde o sintoma s representado no in-consciente caso se entregue funo daquilo que se traduz.

    O que se traduz o que chamamos tecnica-mente de significante. um elemento que apresen-ta duas dimenses, estar ligado sincronicamente a uma bateria de outros elementos que podem subs-titu-lo, e, por outro lado, estar disponvel para um uso diacrnico, isto , para a constituio de uma cadeia significante.

    Com efeito, h no inconsciente coisas signifi-cantes que se repetem, correndo constantemente revelia do sujeito. Isso algo semelhante ao que eu via ainda h pouco ao me dirigir a esta sala, isto ,

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  • Jacques Lacan

    ge cada vez mais o que poderamos chamar de sua chance inventiva.

    O que se passa aqui nas trevas foi subitamente iluminado por F reud no nvel da neurose. A essa irrupo da descoberta no subsolo correspondeu o advento de uma verdade. Esta refere-se ao desejo.

    2

    O desejo no coisa simples. No nem elementar, nem animal, nem especialmente inferior. a resul-tante, a composio, o complexo de toda uma arti-culao cujo carter decisivo tentei demonstrar no antepenltimo termo do meu ensino - do que digo l, onde absolutamente no me calo -, e talvez seja preciso que lhes diga em algum momento por que o fao.

    O carter decisivo do desejo no consiste ape-nas em ser pleno de sentido, no consiste em ser um arqutipo. Para lhes fornecer uma sondagem rpida, direi que o desejo no representa uma extenso da psicologia dita compreensiva, nem um retomo a um naturalismo micro-macrocsmico, concepo j-nica do conhecimento, tampouco reproduo fi-gurativa de expenncias concretas primrias, como articula em nossos dias uma psicanlise dita genti-ca, que chega a essa noo simplista que confunde a

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    Discurso aos catlicos

    progresso de onde se engendra o sintoma com a regresso do caminho teraputico, para desembocar numa espcie de relao-bere que se embrullia a si prpria em tomo de um esteretipo de frustrao na relao de apoio que liga a criana me.

    Tudo isso apenas semblante e fonte de erro. O desejo tal como aparece em Freud, como um objeto novo para a reflexo tica, deve ser ressituado no sentido deste ltimo.

    O prprio do inconsciente freudiano de ser traduzvel - mesmo ali onde no pode ser traduzi-do, isto , num certo ponto radical do sintoma, designadamente do sintoma histrico, que da na-tureza do indecifrado, portanto do decifrvel, ou seja, ali onde o sintoma s representado no in-consciente caso se entregue funo daquilo que se traduz.

    O que se traduz o que chamamos tecnica-mente de significante. um elemento que apresen-ta duas dimenses, estar ligado sincronicamente a uma bateria de outros elementos que podem subs-titu-lo, e, por outro lado, estar disponvel para um uso diacrnico, isto , para a constituio de uma cadeia significante.

    Com efeito, h no inconsciente coisas signifi-cantes que se repetem, correndo constantemente revelia do sujeito. Isso algo semelhante ao que eu via ainda h pouco ao me dirigir a esta sala, isto ,

    19

  • Jacques lacan

    anncios luminosos deslizando na fachada dos nos-sos prdios. O que os toma interessantes para o cl-nico que, em circunstncias propcias, eles se vem inseridos no que essencialmente da mesma natu-reza. nosso discurso consciente no sentido mais amplo, ou seja, tudo o que h de retrico em nossa conduta, quer dizer, muito mais que acreditamos. Deixo aqui o lado dialtico.

    Ento vocs vo me perguntar: o que isso, elementos significantes? Responderei que o exem-plo mais puro do significante a letra. uma letra tipogrfica.

    Uma letra no quer dizer nada, vocs me diro. No obrigatoriamente. Pensem nas letras chinesas. Para cada uma delas encontraro no dicionrio um leque de sentidos que nada tem a invejar daquele que corresponde a nossas palavras. O que isso quer dizer? O que pretendo ao lhes dar essa resposta? No o que se cr, uma vez que isso quer dizer que a definio dessas letras chinesas, assim como a de nossas palavras, s tem alcance a partir de uma cole-o de usos.

    Falando estritamente, um sentido s nasce de um jogo de letras ou de palavras na medida em que se prope como modificao de seu uso j consagra-do. Isso implica em primeiro lugar que toda signifi-cao adquirida por esse jogo participa das significa-es s quais ele j estava ligado, por mais estranhas

    lO

    Discurso aos catlicos

    que sejam entre si as realidades presentes nessa rei-terao. Dimenso que chamo de metonmia, que faz a poesia de todo realismo. Por outro lado, isso implica que toda significao nova s engendrada pela substituio de um significante por outro, di-menso da metfora pela qual a realidade se carrega de poesia. Eis o que se passa no rvel do inconscien-te e que faz com que ele seja da natureza de um dis-curso, se que podemos qualificar de discurso certo uso das estruturas da lngua.

    A poesia j se efetuaria nesse nvel? Tudo nos leva a isso. Mas limitemo-nos ao que vemos. So efeitos de retrica. A clnica confirma isso e os mos-tra insinuando-se no discurso concreto e em tudo o que se discerne de nossa conduta como marcado pelo selo do significante. Eis o que reconduzir os mais perspicazes de vocs s prprias origens da psicanlise, cincia dos sonhos, do lapso, at mes-mo do chiste. Eis o que, para os outros, os que sa-bem mais, os adverte quanto ao sentido em que se faz um esforo de retomada de nossa informao.

    Pois bem, ento temos apenas qu.e ler nosso de-sejo nesses hierglifos? No. Reportem-se ao texto freudiano sobre os temas que acabo de evocar, so-nho, lapso, at mesmo chiste, nunca vero nele o desejo articulando-se a descoberto. O desejo in-consciente o que quer aquele, aquilo, que sustenta o discurso inconsciente. Eis por que este a fala. Isso

    11

  • Jacques lacan

    anncios luminosos deslizando na fachada dos nos-sos prdios. O que os toma interessantes para o cl-nico que, em circunstncias propcias, eles se vem inseridos no que essencialmente da mesma natu-reza. nosso discurso consciente no sentido mais amplo, ou seja, tudo o que h de retrico em nossa conduta, quer dizer, muito mais que acreditamos. Deixo aqui o lado dialtico.

    Ento vocs vo me perguntar: o que isso, elementos significantes? Responderei que o exem-plo mais puro do significante a letra. uma letra tipogrfica.

    Uma letra no quer dizer nada, vocs me diro. No obrigatoriamente. Pensem nas letras chinesas. Para cada uma delas encontraro no dicionrio um leque de sentidos que nada tem a invejar daquele que corresponde a nossas palavras. O que isso quer dizer? O que pretendo ao lhes dar essa resposta? No o que se cr, uma vez que isso quer dizer que a definio dessas letras chinesas, assim como a de nossas palavras, s tem alcance a partir de uma cole-o de usos.

    Falando estritamente, um sentido s nasce de um jogo de letras ou de palavras na medida em que se prope como modificao de seu uso j consagra-do. Isso implica em primeiro lugar que toda signifi-cao adquirida por esse jogo participa das significa-es s quais ele j estava ligado, por mais estranhas

    lO

    Discurso aos catlicos

    que sejam entre si as realidades presentes nessa rei-terao. Dimenso que chamo de metonmia, que faz a poesia de todo realismo. Por outro lado, isso implica que toda significao nova s engendrada pela substituio de um significante por outro, di-menso da metfora pela qual a realidade se carrega de poesia. Eis o que se passa no rvel do inconscien-te e que faz com que ele seja da natureza de um dis-curso, se que podemos qualificar de discurso certo uso das estruturas da lngua.

    A poesia j se efetuaria nesse nvel? Tudo nos leva a isso. Mas limitemo-nos ao que vemos. So efeitos de retrica. A clnica confirma isso e os mos-tra insinuando-se no discurso concreto e em tudo o que se discerne de nossa conduta como marcado pelo selo do significante. Eis o que reconduzir os mais perspicazes de vocs s prprias origens da psicanlise, cincia dos sonhos, do lapso, at mes-mo do chiste. Eis o que, para os outros, os que sa-bem mais, os adverte quanto ao sentido em que se faz um esforo de retomada de nossa informao.

    Pois bem, ento temos apenas qu.e ler nosso de-sejo nesses hierglifos? No. Reportem-se ao texto freudiano sobre os temas que acabo de evocar, so-nho, lapso, at mesmo chiste, nunca vero nele o desejo articulando-se a descoberto. O desejo in-consciente o que quer aquele, aquilo, que sustenta o discurso inconsciente. Eis por que este a fala. Isso

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  • jacques La.can

    significa que no forado, por mais inconsciente que seja, a dizer a verdade. E mais, o prprio fato de falar torna-lhe possvel a mentira.

    O desejo responde inteno verdadeira desse discurso. Mas o que pode ser a inteno de um dis-curso em que o sujeito, na medida em que fala, excludo da conscincia? Eis o que vai colocar al-guns problemas inditos moral da inteno reta, que nossos modernos exegetas ainda no esto apa-rentemente preparados para abordar.

    pelo menos () caso daquele tomista que, em data j antiga, nada encontrara de melhor que medir pelo principio da experincia pavloviana a doutrina de Freud a fim de introduzi-la na distinta conside-rao dos catlicos. Coisa curiosa, isso lhe valeu re-ceber, e at hoje, os testemunhos de uma satis&o igual por parte daqueles que ele glosava, isto , os professores da Faculdade de Letras que coroavam suas teses daqueles que podemos dizer que ele traa, a saber, seus colegas psicanalistas. Tenho bastante estima pelas capacidades presentes dos meus ouvin-tes, literrios e psicanalticos, para pensar que essa satis&o no seja a de um silncio cmplice sobre as dificuldades que a psicanlise pe verdadeira-mente em jogo na moral. O estopim da reflexo seria, parece, observar que na medida em que um discurso mais privado de inteno que ele pode se confundir com uma verdade, com a verdade, com a

    Z2

    Discurso aos catlicos

    presena mesma da verdade no real, sob uma forma impenetrvel.

    Ser preciso concluir da que wna verdade para ningum at que seja decifrada? Esse desejo com que a conscincia nada mais tem a fazer seno sab-lo incognoscvel assim como a "coisa em si", mas que a despeito disso reconhecido por ser a estrutura desse "para si" por excelncia que uma cadeia de discurso- o que vamos pensar dde? Freud no lhes parece mais altura que nossa tradio filosfica de se comportar corretamente em relao a esse extremo do mti.mo, que ao mesmo tempo internidade excluda?

    Ela excluda, exceto talvez nesta terra da Bl-gica, por muito tempo abalada pelo sopro das seitas msticas, at mesmo das heresias, onde esse ntimo era objeto de pressupostos, no tanto de opes po-lticas como de heresias religiosas, cujo segredo acar-retava nas vidas os efeitos prprios de uma conver-so, antes que a perseguio mostrasse que era a nica coisa a que ainda se podia agarrar, mais do que prpria vida.

    Introduzo aqui uma observao que no julgo deslocado fazer na Universidade a quem falo.

    Sem dvida um progresso, refletido na tole-rncia, a coexistncia de dois ensinos que se sepa-ram, um por ser e o outro por no ser confessional. Minha m vontade em contestar isso ainda maior

    ZJ

  • jacques La.can

    significa que no forado, por mais inconsciente que seja, a dizer a verdade. E mais, o prprio fato de falar torna-lhe possvel a mentira.

    O desejo responde inteno verdadeira desse discurso. Mas o que pode ser a inteno de um dis-curso em que o sujeito, na medida em que fala, excludo da conscincia? Eis o que vai colocar al-guns problemas inditos moral da inteno reta, que nossos modernos exegetas ainda no esto apa-rentemente preparados para abordar.

    pelo menos () caso daquele tomista que, em data j antiga, nada encontrara de melhor que medir pelo principio da experincia pavloviana a doutrina de Freud a fim de introduzi-la na distinta conside-rao dos catlicos. Coisa curiosa, isso lhe valeu re-ceber, e at hoje, os testemunhos de uma satis&o igual por parte daqueles que ele glosava, isto , os professores da Faculdade de Letras que coroavam suas teses daqueles que podemos dizer que ele traa, a saber, seus colegas psicanalistas. Tenho bastante estima pelas capacidades presentes dos meus ouvin-tes, literrios e psicanalticos, para pensar que essa satis&o no seja a de um silncio cmplice sobre as dificuldades que a psicanlise pe verdadeira-mente em jogo na moral. O estopim da reflexo seria, parece, observar que na medida em que um discurso mais privado de inteno que ele pode se confundir com uma verdade, com a verdade, com a

    Z2

    Discurso aos catlicos

    presena mesma da verdade no real, sob uma forma impenetrvel.

    Ser preciso concluir da que wna verdade para ningum at que seja decifrada? Esse desejo com que a conscincia nada mais tem a fazer seno sab-lo incognoscvel assim como a "coisa em si", mas que a despeito disso reconhecido por ser a estrutura desse "para si" por excelncia que uma cadeia de discurso- o que vamos pensar dde? Freud no lhes parece mais altura que nossa tradio filosfica de se comportar corretamente em relao a esse extremo do mti.mo, que ao mesmo tempo internidade excluda?

    Ela excluda, exceto talvez nesta terra da Bl-gica, por muito tempo abalada pelo sopro das seitas msticas, at mesmo das heresias, onde esse ntimo era objeto de pressupostos, no tanto de opes po-lticas como de heresias religiosas, cujo segredo acar-retava nas vidas os efeitos prprios de uma conver-so, antes que a perseguio mostrasse que era a nica coisa a que ainda se podia agarrar, mais do que prpria vida.

    Introduzo aqui uma observao que no julgo deslocado fazer na Universidade a quem falo.

    Sem dvida um progresso, refletido na tole-rncia, a coexistncia de dois ensinos que se sepa-ram, um por ser e o outro por no ser confessional. Minha m vontade em contestar isso ainda maior

    ZJ

  • Jacques L.acan

    na medida em que ns mesmos. na Frana, optamos bem recentemente por caminho similar. Acho, po-rm, que tal separao desemboca numa espcie de rrmetismo dos poderes que nela se representam, da resultando o que chamaria de uma curiosa neu-tralidade, acerca da qual parece-me menos impor-tante saber em beneficio de que poder ela joga do que ter certeza de que, em todo caso, no joga em detrimento de todos aqueles pelos quais esses pode-res se afirmam.

    Difundiu-se assim uma espcie de diviso es-tranha no campo da verdade. Qyanto a mim, diria - e o mnimo que se pode dizer que no professo nenhum vnculo confessional- que uma epstola de so Paulo parece-me to importante de ser comen-tada como moral quanto urna de Sneca. Mas no estou certo de que ambas no percam o essencial de sua mensagem por no serem comentadas no mes-mo lugar.

    Em outros termos, conotar um domnio por ser o da crena, na medida em que seja assim, no me parece suficiente para o excluir do exame daqueles que se apegam ao saber. Por sinal, para aqueles que crem, de fato de um saber que se trata.

    So Paulo se detm para nos dizer. "Qye dire-mos ento? ~e a Lei pecado? De modo algum. M as eu no conheci o pecado seno pela Lei. Por-que no teria idia da cobia se a Lei no me tives-

    Discurso aos catlicos

    se dito 'No cobiars'. Foi o pecado, portanto, que aproveitando-se da ocasio que lhe foi dada pelo preceito excitou em mim todo tipo de cobi-as. Pois, sem a Lei, o pecado no vive. Sem a Lei. eu vivia. M as quando o preceito adveio, o pecado recobrou vida. ao passo que eu encontrei a morte. Assim, o preceito que devia me dar a vida condu-ziu-me morte, pois o pecado, encontrando uma brecha no preceito, seduziu-me e por ele me deu a morte."

    Parece-me impossvel a algum, crente ou in-cru, no se ver intimado a responder ao que wn texto desses comporta de mensagem articulada so-bre um mecanismo que , alis. perfeitamente vivo, sensvel, tangvel para um psicanalista. A bem da verdade, enquanto num de meus seminrios eu ra-mificava diretamente minhas observaes sobre esse texto, meus alunos s perceberam que no era mais eu quem falava no tempo da audio musical, esse meio-tempo que transfere a msica para outro mo-do sensveL De toda forma, o choque que receberam da cano dessa msica me prova que, de onde for que viessem, aquilo nunca lhes tinha feito ouvir at ento o sentido desse texto no nvel aonde eu o leva-va a partir da sua prtica.

    H uma certa desenvoltura na forma como a cincia se desvencilha de um campo de cuja carga no se v por que ela se aliviaria to facilmente. Do

  • Jacques L.acan

    na medida em que ns mesmos. na Frana, optamos bem recentemente por caminho similar. Acho, po-rm, que tal separao desemboca numa espcie de rrmetismo dos poderes que nela se representam, da resultando o que chamaria de uma curiosa neu-tralidade, acerca da qual parece-me menos impor-tante saber em beneficio de que poder ela joga do que ter certeza de que, em todo caso, no joga em detrimento de todos aqueles pelos quais esses pode-res se afirmam.

    Difundiu-se assim uma espcie de diviso es-tranha no campo da verdade. Qyanto a mim, diria - e o mnimo que se pode dizer que no professo nenhum vnculo confessional- que uma epstola de so Paulo parece-me to importante de ser comen-tada como moral quanto urna de Sneca. Mas no estou certo de que ambas no percam o essencial de sua mensagem por no serem comentadas no mes-mo lugar.

    Em outros termos, conotar um domnio por ser o da crena, na medida em que seja assim, no me parece suficiente para o excluir do exame daqueles que se apegam ao saber. Por sinal, para aqueles que crem, de fato de um saber que se trata.

    So Paulo se detm para nos dizer. "Qye dire-mos ento? ~e a Lei pecado? De modo algum. M as eu no conheci o pecado seno pela Lei. Por-que no teria idia da cobia se a Lei no me tives-

    Discurso aos catlicos

    se dito 'No cobiars'. Foi o pecado, portanto, que aproveitando-se da ocasio que lhe foi dada pelo preceito excitou em mim todo tipo de cobi-as. Pois, sem a Lei, o pecado no vive. Sem a Lei. eu vivia. M as quando o preceito adveio, o pecado recobrou vida. ao passo que eu encontrei a morte. Assim, o preceito que devia me dar a vida condu-ziu-me morte, pois o pecado, encontrando uma brecha no preceito, seduziu-me e por ele me deu a morte."

    Parece-me impossvel a algum, crente ou in-cru, no se ver intimado a responder ao que wn texto desses comporta de mensagem articulada so-bre um mecanismo que , alis. perfeitamente vivo, sensvel, tangvel para um psicanalista. A bem da verdade, enquanto num de meus seminrios eu ra-mificava diretamente minhas observaes sobre esse texto, meus alunos s perceberam que no era mais eu quem falava no tempo da audio musical, esse meio-tempo que transfere a msica para outro mo-do sensveL De toda forma, o choque que receberam da cano dessa msica me prova que, de onde for que viessem, aquilo nunca lhes tinha feito ouvir at ento o sentido desse texto no nvel aonde eu o leva-va a partir da sua prtica.

    H uma certa desenvoltura na forma como a cincia se desvencilha de um campo de cuja carga no se v por que ela se aliviaria to facilmente. Do

  • jacques Lacan

    mesmo modo, um pouco freqentemente demais para o meu gosto, h algum tempo, ocorre f atri-buir cincia a tard de resolver os problemas quan-do as questes se traduzem num sofrimento algo dificil de manejar.

    Decerto no estou aqui para me queixar de que os eclesisticos esto mandando suas ovelhas para a psicanlise. Fazem, no caso, muito bem. O que me choca um pouco que o faam, parece-me, com a nfase de que se trata de doentes, que podero sem dvida encontrar algum bem mesmo numa fonte, digamos, m.

    Se firo algwnas boas vontades, espero assim mesmo ser perdoado no dia do Juzo, em virtude de ter ao mesmo tempo incitado essa bondade a voltar a si prpria, ou seja, aos princpios de um certo no-querer.

    3

    Todos sabem que Freud era um grande materialis-ta. Como ento no foi capaz de resolver o proble-ma, apesar de tudo to fcil, da instncia moral por meio do recurso clssico do utilitarismo?

    Esse recurso , em suma, o hbito na conduta, recomendvel para o bem-estar do grupo. Isso sim-ples e, alm disso, verdadeiro. A atrao da utilida-

    z6

    Discurso aos catlicos

    de irresistvel, a ponto de vermos pessoas se dana-rem pelo prazer de conceder suas comodidades queles nos quais elas enfiaram na cabea que no poderiam viver sem seu socorro.

    Este provavelmente um dos fenmenos mais curiosos da sociabilidade humana. Mas o essencial est no fato de que o objeto til conduza incrivel-mente idia de compartilh-lo com o maior n-mero de pessoas, porque na verdade foi a necessida-de da maioria como tal que gerou tal idia.

    Apenas uma coisa cria dificuldade, que, quais-quer que sejam o beneficio da utilidade e a exten-so de seu reino, isso no tem estritamente nada a ver com a moral, que consiste primordialmente -como Freud percebeu, articulou e nunca variou, ao contrrio de diversos moralistas clssicos, at mes-mo tradicionais, at mesmo socialistas - na frus-trao de um gozo, colocado como lei aparente-mente vida.

    Tudo indica que Freud pretendesse encontrar a origem dessa lei primordial, segundo um mtodo goethiano, a partir dos vestgios ainda sensveis de acontecimentos crticos. Mas no se iludam, a onto-gnese que reproduz a ftlognese no passa aqui de uma palavra-chave utilizada para fins de convico omnibus. o onto que est aqui em trompe l'oeil, pois ele no o ente do indivduo, mas a relao do sujeito com o ser, se essa relao for de discurso. O

  • jacques Lacan

    mesmo modo, um pouco freqentemente demais para o meu gosto, h algum tempo, ocorre f atri-buir cincia a tard de resolver os problemas quan-do as questes se traduzem num sofrimento algo dificil de manejar.

    Decerto no estou aqui para me queixar de que os eclesisticos esto mandando suas ovelhas para a psicanlise. Fazem, no caso, muito bem. O que me choca um pouco que o faam, parece-me, com a nfase de que se trata de doentes, que podero sem dvida encontrar algum bem mesmo numa fonte, digamos, m.

    Se firo algwnas boas vontades, espero assim mesmo ser perdoado no dia do Juzo, em virtude de ter ao mesmo tempo incitado essa bondade a voltar a si prpria, ou seja, aos princpios de um certo no-querer.

    3

    Todos sabem que Freud era um grande materialis-ta. Como ento no foi capaz de resolver o proble-ma, apesar de tudo to fcil, da instncia moral por meio do recurso clssico do utilitarismo?

    Esse recurso , em suma, o hbito na conduta, recomendvel para o bem-estar do grupo. Isso sim-ples e, alm disso, verdadeiro. A atrao da utilida-

    z6

    Discurso aos catlicos

    de irresistvel, a ponto de vermos pessoas se dana-rem pelo prazer de conceder suas comodidades queles nos quais elas enfiaram na cabea que no poderiam viver sem seu socorro.

    Este provavelmente um dos fenmenos mais curiosos da sociabilidade humana. Mas o essencial est no fato de que o objeto til conduza incrivel-mente idia de compartilh-lo com o maior n-mero de pessoas, porque na verdade foi a necessida-de da maioria como tal que gerou tal idia.

    Apenas uma coisa cria dificuldade, que, quais-quer que sejam o beneficio da utilidade e a exten-so de seu reino, isso no tem estritamente nada a ver com a moral, que consiste primordialmente -como Freud percebeu, articulou e nunca variou, ao contrrio de diversos moralistas clssicos, at mes-mo tradicionais, at mesmo socialistas - na frus-trao de um gozo, colocado como lei aparente-mente vida.

    Tudo indica que Freud pretendesse encontrar a origem dessa lei primordial, segundo um mtodo goethiano, a partir dos vestgios ainda sensveis de acontecimentos crticos. Mas no se iludam, a onto-gnese que reproduz a ftlognese no passa aqui de uma palavra-chave utilizada para fins de convico omnibus. o onto que est aqui em trompe l'oeil, pois ele no o ente do indivduo, mas a relao do sujeito com o ser, se essa relao for de discurso. O

  • Jacques Lacan

    passado do discurso concreto da linhagem humana encontra-se a, uma vez que no curso de sua hist-ria aconteceram-lhe coisas que modificaram essa re-lao do sujeito com o ser. Assim, salvo uma alter-nativa hereditariedade dos caracteres adquiridos que em certas passagens Freud parece admitir, a tradio de uma condio que, de certa forma, fim-da o sujeito no discurso.

    No podemos aqui deixar de acentuar essa con-dio, cujo carter macio espanta nenhum comen-tador ter ressaltado - tanto a meditao de Freud em tomo da funo, do papel e da figura do Nome-do-Pai como toda sua referncia tica giram em tomo da tradio propriamente judaico-crist, e nela so inteiramente articulveis.

    Leiam esse pequeno livro com o qual conclui-se a meditao de Freud alguns meses antes de sua morte, mas que o consumia, j o preocupando h longos anos: Moiss e o monotesmo. E sse livro ape-nas o termo e o acabamento daquilo que comea com a criao do complexo de dipo, prosseguindo nesse livro to mal compreendido e to mal critica-do que se chama Totem e tabu. Vero ali a figura que desponta do Pai, concentrando em si o amor e o dio, figura magnificada, figura magnfica, marcada por um estilo de crueldade ativa e sofrida.

    Poderamos epilogar muito tempo acerca do que introduziu Freud a essa imagem, das razes pessoais

    Discurso aos catlkos

    que o induziram, isto , seu grupo familiar, sua expe-rincia de i.nfncia, seu pai, o velho Jacob Freud, patriarca prolfico e carente oriundo de uma peque-na famlia da raa indestrutvel. O importante no fazer a psicologia de Freud.

    Haveria aqui muita coisa a ser dita. Qyanto a mim, julgo essa psicologia mais feminina que qual-quer outra coisa. Vejo seu vestgio na extraordinria exigncia monogmica que ir submet-lo quela dependncia que wn de seus discpulos, autor de sua biografia, chamar de uxoriana. Vejo Freud, em vida corrente, muito pouco pai. Acho que s viveu o dra-ma edipiano no plano da horda analtica. Ele era, como diz Dante em algum lugar, a Me Inteligncia.

    Qyanto ao que ns mesmos chamamos, e acer-ca do que lhes falarei amanh noite, a Coisa freu-diana, ela em primeirssimo lugar a Coisa de Freud, isto , o que est nos antpodas do desejo-inteno. O importante situar como ele descobriu essa Coisa, e de onde parte quando segue sua pista em seus pacientes.

    A reflexo de Totem e tabu gira em torno da funo do objeto fbico, e ela que o pe no cami-nho da funo do Pai. Com efeito, esta constitui um ponto crtico entre a preservao do desejo, sua oni-potncia - e no, como se a escreve no sem incon-veniente em tal tradio analtica, a onipotncia do pensamento -, e o princpio correlato de um inter-

  • Jacques Lacan

    passado do discurso concreto da linhagem humana encontra-se a, uma vez que no curso de sua hist-ria aconteceram-lhe coisas que modificaram essa re-lao do sujeito com o ser. Assim, salvo uma alter-nativa hereditariedade dos caracteres adquiridos que em certas passagens Freud parece admitir, a tradio de uma condio que, de certa forma, fim-da o sujeito no discurso.

    No podemos aqui deixar de acentuar essa con-dio, cujo carter macio espanta nenhum comen-tador ter ressaltado - tanto a meditao de Freud em tomo da funo, do papel e da figura do Nome-do-Pai como toda sua referncia tica giram em tomo da tradio propriamente judaico-crist, e nela so inteiramente articulveis.

    Leiam esse pequeno livro com o qual conclui-se a meditao de Freud alguns meses antes de sua morte, mas que o consumia, j o preocupando h longos anos: Moiss e o monotesmo. E sse livro ape-nas o termo e o acabamento daquilo que comea com a criao do complexo de dipo, prosseguindo nesse livro to mal compreendido e to mal critica-do que se chama Totem e tabu. Vero ali a figura que desponta do Pai, concentrando em si o amor e o dio, figura magnificada, figura magnfica, marcada por um estilo de crueldade ativa e sofrida.

    Poderamos epilogar muito tempo acerca do que introduziu Freud a essa imagem, das razes pessoais

    Discurso aos catlkos

    que o induziram, isto , seu grupo familiar, sua expe-rincia de i.nfncia, seu pai, o velho Jacob Freud, patriarca prolfico e carente oriundo de uma peque-na famlia da raa indestrutvel. O importante no fazer a psicologia de Freud.

    Haveria aqui muita coisa a ser dita. Qyanto a mim, julgo essa psicologia mais feminina que qual-quer outra coisa. Vejo seu vestgio na extraordinria exigncia monogmica que ir submet-lo quela dependncia que wn de seus discpulos, autor de sua biografia, chamar de uxoriana. Vejo Freud, em vida corrente, muito pouco pai. Acho que s viveu o dra-ma edipiano no plano da horda analtica. Ele era, como diz Dante em algum lugar, a Me Inteligncia.

    Qyanto ao que ns mesmos chamamos, e acer-ca do que lhes falarei amanh noite, a Coisa freu-diana, ela em primeirssimo lugar a Coisa de Freud, isto , o que est nos antpodas do desejo-inteno. O importante situar como ele descobriu essa Coisa, e de onde parte quando segue sua pista em seus pacientes.

    A reflexo de Totem e tabu gira em torno da funo do objeto fbico, e ela que o pe no cami-nho da funo do Pai. Com efeito, esta constitui um ponto crtico entre a preservao do desejo, sua oni-potncia - e no, como se a escreve no sem incon-veniente em tal tradio analtica, a onipotncia do pensamento -, e o princpio correlato de um inter-

  • jacques Lacan

    dito, o que leva ao descarte desse desejo. Os dois princpios se cruzam e descruzam conjuntamente, embora seus efeitos sejam distintos- a onipotncia do desejo engendrando o temor da defesa que se segue no sujeito, a interdio expulsando do sujeito o enunciado do desejo para transferi-lo a wn Outro, a esse inconsciente que nada sabe daquilo que su-porta sua prpria enunciao.

    O que Totem e tabu nos ensina que o pai s probe o desejo com eficcia porque est morto, e, eu acrescentaria, porque nem ele prprio sabe disso -ou seja, que est morto. Tal o mito que Freud prope ao homem moderno, considerando que o homem moderno aquele para quem Deus est morto - isto , que julga sab-lo.

    Por que Freud envereda por esse paradoxo? Para explicar que o desejo, com isso, ser apenas mais ameaador, e, logo, a interdio mais necess-ria e mais dura. Deus est morto, nada mais per-mitido. O declnio do complexo de dipo o luto do Pai, mas ele se conclui por uma seqela dura-doura: a identificao que se chama supereu. O Pai no amado toma-se a identificao que cumulamos de crticas sobre ns mesmos. Eis o que Freud in-troduz, compilando com as mil redes de seu teste-munho um mito muito antigo, aquele que, de algo ferido, perdido, castrado nwn rei de mistrio, faz depender a terra completamente deteriorada.

    30

    Discurso aos catlicos

    Convm seguir no detalhe o que representa essa ponderao da funo do Pai, e introduzir aqui as dis-tines mais precisas, sobretudo entre o que chamei de instncia simblica - o Pai que promu1ga, sede da lei articulada em que se situa o resduo de desvio, de dficit, em tomo do que se especifica a estrutura da neurose - e, por outro lado, alguma coisa que a anli-se contempornea despreza constantemente, ao passo que em toda parte sensvel e viva para Freud, ou seja, a incidncia do Pai real, a qual, mesmo boa, mesmo benfica, pode, em funo dessa estrutura, determinar efeitos devastadores, at mesmo malficos.

    H nisso tudo um detalhe da articulao clni-ca em que no posso me engajar, nem nele envolv-los, ainda que no fosse por razes da hora. Basta saberem que, se h alguma coisa que Freud promo-ve ao primeiro plano da experincia moral, efeti-vamente o drama que se desenrola em certo lugar que precisamos de fato reconhecer - seja qual for a denegao motivada de Freud referente a toda incli-nao pessoal para o sentimento religioso, para a religiosidade - por ser, apesar de tudo, aquele onde se articula como tal uma experincia acerca da qual decerto a mais recente das preocupaes de Freud qualific-la como religiosa, j que ele tende a uni-versaliz-la, articulando-a porm nos termos mes-mos em que a experincia religiosa propriamente judaico-crist a desenvolveu e articulou.

  • jacques Lacan

    dito, o que leva ao descarte desse desejo. Os dois princpios se cruzam e descruzam conjuntamente, embora seus efeitos sejam distintos- a onipotncia do desejo engendrando o temor da defesa que se segue no sujeito, a interdio expulsando do sujeito o enunciado do desejo para transferi-lo a wn Outro, a esse inconsciente que nada sabe daquilo que su-porta sua prpria enunciao.

    O que Totem e tabu nos ensina que o pai s probe o desejo com eficcia porque est morto, e, eu acrescentaria, porque nem ele prprio sabe disso -ou seja, que est morto. Tal o mito que Freud prope ao homem moderno, considerando que o homem moderno aquele para quem Deus est morto - isto , que julga sab-lo.

    Por que Freud envereda por esse paradoxo? Para explicar que o desejo, com isso, ser apenas mais ameaador, e, logo, a interdio mais necess-ria e mais dura. Deus est morto, nada mais per-mitido. O declnio do complexo de dipo o luto do Pai, mas ele se conclui por uma seqela dura-doura: a identificao que se chama supereu. O Pai no amado toma-se a identificao que cumulamos de crticas sobre ns mesmos. Eis o que Freud in-troduz, compilando com as mil redes de seu teste-munho um mito muito antigo, aquele que, de algo ferido, perdido, castrado nwn rei de mistrio, faz depender a terra completamente deteriorada.

    30

    Discurso aos catlicos

    Convm seguir no detalhe o que representa essa ponderao da funo do Pai, e introduzir aqui as dis-tines mais precisas, sobretudo entre o que chamei de instncia simblica - o Pai que promu1ga, sede da lei articulada em que se situa o resduo de desvio, de dficit, em tomo do que se especifica a estrutura da neurose - e, por outro lado, alguma coisa que a anli-se contempornea despreza constantemente, ao passo que em toda parte sensvel e viva para Freud, ou seja, a incidncia do Pai real, a qual, mesmo boa, mesmo benfica, pode, em funo dessa estrutura, determinar efeitos devastadores, at mesmo malficos.

    H nisso tudo um detalhe da articulao clni-ca em que no posso me engajar, nem nele envolv-los, ainda que no fosse por razes da hora. Basta saberem que, se h alguma coisa que Freud promo-ve ao primeiro plano da experincia moral, efeti-vamente o drama que se desenrola em certo lugar que precisamos de fato reconhecer - seja qual for a denegao motivada de Freud referente a toda incli-nao pessoal para o sentimento religioso, para a religiosidade - por ser, apesar de tudo, aquele onde se articula como tal uma experincia acerca da qual decerto a mais recente das preocupaes de Freud qualific-la como religiosa, j que ele tende a uni-versaliz-la, articulando-a porm nos termos mes-mos em que a experincia religiosa propriamente judaico-crist a desenvolveu e articulou.

  • Jacques Lacan

    Em que sentido o monotesmo interessa a Freud? Ele sabe, to bem quanto qualquer um de seus dis-cpulos, que os deuses so inumerveis e instveis como figuras do desejo, que so suas metforas vivas. Mas esse no o caso do Deus nico. Se ele vai buscar seu prottipo num modelo histrico, o modelo visvel do Sol da primeira revoluo religio-sa egpcia, a de Aquenaton, para juntar-se ao mo-delo espiritual de sua prpria tradio: o Deus dos Dez Mandamentos.

    Ao fazer de Moiss um egpcio para repudiar o que eu chamaria de raiz racial do fenmeno, a psi-cologia da Coisa, ele parece adotar o primeiro. O segundo faz com que articule como tal em sua ex-posio a primazia do invisvel, na medida em que esta caracteriza a promoo do lao paterno, funda-do sobre a f e a lei, que prevalece sobre o lao matemo, que, por sua vez, fundado numa camali-dade manifesta. So estes os termos de Freud.

    O valor sublimatrio da funo do Pai assina-lado em termos prprios, ao mesmo tempo em que aflora a forma propriamente verbal, at mesmo potica, de sua conseqncia, j que tradio dos profetas que ele atribui a carga de fazer pro-gressivamente aflorar na histria de Israel, ao longo das eras, o retomo de um monotesmo recalcado por uma tradio sacerdotal mais formalista. Esse retomo, em suma, prepara em imagem, e segundo

    Discurso aos catlicos

    as Escrituras, a possibilidade da repetio do aten-tado contra o Pai primordial no drama da redeno, em que esse atentado se toma patente - ainda Freud quem escreve.

    Se aponto esses traos essenciais da doutrina freudiana porque, diante do que isso representa de coragem, ateno, enfrentamento da verdadeira ques-to, parece-me de pequena monta recriminar Freud por no acreditar que Deus exista, ou mesmo por acreditar que Deus no exista. O drama de que se trata articulado a um valor humano universal Freud indubitavelmente aqui vai alm, por sua amplitude, do mbito de toda tica, pelo menos daquelas que pretendem no proceder pelas vias da Imitao de Jesus Cristo.

    Diria eu que a via de Freud procede altura do homem? No o diria to prontamente. Pode ser que amanh vocs vejam onde pretendo situar Freud em relao tradio humanista.

    No ponto em que estamos, vejo o homem so-bredeterminado por um Jogos que est por toda a parte em que tambm se encontra sua ananki, sua necessidade. Esse fogos no wna superestrutura. Mais que isso, antes urna subestrutura, j que sus-tenta a inteno, articula nela a falta do ser, e condi-ciona sua vida de paixo e sacrificio.

    No, a reflexo de Freud no humanista. Na-da permite aplicar-lhe esse termo. Ela , contudo,

    33

  • Jacques Lacan

    Em que sentido o monotesmo interessa a Freud? Ele sabe, to bem quanto qualquer um de seus dis-cpulos, que os deuses so inumerveis e instveis como figuras do desejo, que so suas metforas vivas. Mas esse no o caso do Deus nico. Se ele vai buscar seu prottipo num modelo histrico, o modelo visvel do Sol da primeira revoluo religio-sa egpcia, a de Aquenaton, para juntar-se ao mo-delo espiritual de sua prpria tradio: o Deus dos Dez Mandamentos.

    Ao fazer de Moiss um egpcio para repudiar o que eu chamaria de raiz racial do fenmeno, a psi-cologia da Coisa, ele parece adotar o primeiro. O segundo faz com que articule como tal em sua ex-posio a primazia do invisvel, na medida em que esta caracteriza a promoo do lao paterno, funda-do sobre a f e a lei, que prevalece sobre o lao matemo, que, por sua vez, fundado numa camali-dade manifesta. So estes os termos de Freud.

    O valor sublimatrio da funo do Pai assina-lado em termos prprios, ao mesmo tempo em que aflora a forma propriamente verbal, at mesmo potica, de sua conseqncia, j que tradio dos profetas que ele atribui a carga de fazer pro-gressivamente aflorar na histria de Israel, ao longo das eras, o retomo de um monotesmo recalcado por uma tradio sacerdotal mais formalista. Esse retomo, em suma, prepara em imagem, e segundo

    Discurso aos catlicos

    as Escrituras, a possibilidade da repetio do aten-tado contra o Pai primordial no drama da redeno, em que esse atentado se toma patente - ainda Freud quem escreve.

    Se aponto esses traos essenciais da doutrina freudiana porque, diante do que isso representa de coragem, ateno, enfrentamento da verdadeira ques-to, parece-me de pequena monta recriminar Freud por no acreditar que Deus exista, ou mesmo por acreditar que Deus no exista. O drama de que se trata articulado a um valor humano universal Freud indubitavelmente aqui vai alm, por sua amplitude, do mbito de toda tica, pelo menos daquelas que pretendem no proceder pelas vias da Imitao de Jesus Cristo.

    Diria eu que a via de Freud procede altura do homem? No o diria to prontamente. Pode ser que amanh vocs vejam onde pretendo situar Freud em relao tradio humanista.

    No ponto em que estamos, vejo o homem so-bredeterminado por um Jogos que est por toda a parte em que tambm se encontra sua ananki, sua necessidade. Esse fogos no wna superestrutura. Mais que isso, antes urna subestrutura, j que sus-tenta a inteno, articula nela a falta do ser, e condi-ciona sua vida de paixo e sacrificio.

    No, a reflexo de Freud no humanista. Na-da permite aplicar-lhe esse termo. Ela , contudo,

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  • Jacques Lacan

    da tolerncia e da moderno. Digamos que seja humanitria, apesar dos maus relentos dessa palavra em nossa poca. Porm, coisa curiosa, no pro-gressista, no deposita f alguma em um movimen-to de liberdade imanente, nem na conscincia, nem na massa. Estranhamente, por meio disso que ele vai alm do meio burgus da tica contrn o qual no poderia, alis, se insurgir, assim como tampouco contra tudo o que acontece em nossa poca, in-cluindo-se a tica que reina no Leste, que, como qualquer outra, uma tica da ordem moral e do servio do Estado.

    O pensamento de Freud dai se demarca. A pr-pria dor parece-lhe intiL Para ele, o mal-estar da civilizao resume-se nisto: tanto sofrimento parn um resultado cujas estruturas terminais so antes agravantes. O s melhores so aqueles que exigem sempre mais de si mesmos. Debcemos massa, assim como elite, alguns momentos de repouso.

    No meio de tantas dialticas implacveis, no seria isso uma palinda irrisria? Espero amanh lhes mostrar que no.

    A moral, como a tradio antiga nos ensina, tem trs nveis, o do soberano bem, o da honestidade e o da utilidade.

    No nvel do soberano bem, a posio de Freud que o prazer no o soberano bem. Tampouco

    34

    Discurso aos catlicos

    o que a moral recusa. Ele indica que o bem no existe, e que o soberano bem no poderia ser re-

    presentado. No desgnio de Freud fazer da psicanlise

    algo como o esboo da honestidade de nossa poca. Ele est bem longe de Jung e de sua religiosidade, a qual espanta vermos preferida nos meios catlicos, at mesmo protestantes, como se a gnose pag, ou mesmo uma feitiaria rustica, pudesse renovar as vias de acesso ao Eterno.

    No esqueamos que Freud foi quem introdu-ziu a noo de que a culpa tinha suas razes no nvel do inconsciente, articulada sobre um crime funda-mental pelo qual ningum individualmente pode responder, nem deve faz-lo. A razo, porm, sente-se em casa no mais profundo do homem, na medida em que o desejo escala de linguagem articulada, ainda que no seja articulvel.

    Vocs provavelmente vo me interromper ago-ra. Razo, o que significa isso, h lgica ali onde no h negao? Decerto Freud o disse e mostrou: no h negao no inconsciente, mas isso tambm ver-dade para uma anlise rigorosa segundo a qual do inconsciente que a negao provm, como em fran-cs a articulao desse "ne" discordancial valoriza to graciosamente e do qual nenhuma necessidade do enunciado absolutamente necessita. "Je crains qu'il ne vienne" no quer simplesmente dizer temo

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  • Jacques Lacan

    da tolerncia e da moderno. Digamos que seja humanitria, apesar dos maus relentos dessa palavra em nossa poca. Porm, coisa curiosa, no pro-gressista, no deposita f alguma em um movimen-to de liberdade imanente, nem na conscincia, nem na massa. Estranhamente, por meio disso que ele vai alm do meio burgus da tica contrn o qual no poderia, alis, se insurgir, assim como tampouco contra tudo o que acontece em nossa poca, in-cluindo-se a tica que reina no Leste, que, como qualquer outra, uma tica da ordem moral e do servio do Estado.

    O pensamento de Freud dai se demarca. A pr-pria dor parece-lhe intiL Para ele, o mal-estar da civilizao resume-se nisto: tanto sofrimento parn um resultado cujas estruturas terminais so antes agravantes. O s melhores so aqueles que exigem sempre mais de si mesmos. Debcemos massa, assim como elite, alguns momentos de repouso.

    No meio de tantas dialticas implacveis, no seria isso uma palinda irrisria? Espero amanh lhes mostrar que no.

    A moral, como a tradio antiga nos ensina, tem trs nveis, o do soberano bem, o da honestidade e o da utilidade.

    No nvel do soberano bem, a posio de Freud que o prazer no o soberano bem. Tampouco

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    Discurso aos catlicos

    o que a moral recusa. Ele indica que o bem no existe, e que o soberano bem no poderia ser re-

    presentado. No desgnio de Freud fazer da psicanlise

    algo como o esboo da honestidade de nossa poca. Ele est bem longe de Jung e de sua religiosidade, a qual espanta vermos preferida nos meios catlicos, at mesmo protestantes, como se a gnose pag, ou mesmo uma feitiaria rustica, pudesse renovar as vias de acesso ao Eterno.

    No esqueamos que Freud foi quem introdu-ziu a noo de que a culpa tinha suas razes no nvel do inconsciente, articulada sobre um crime funda-mental pelo qual ningum individualmente pode responder, nem deve faz-lo. A razo, porm, sente-se em casa no mais profundo do homem, na medida em que o desejo escala de linguagem articulada, ainda que no seja articulvel.

    Vocs provavelmente vo me interromper ago-ra. Razo, o que significa isso, h lgica ali onde no h negao? Decerto Freud o disse e mostrou: no h negao no inconsciente, mas isso tambm ver-dade para uma anlise rigorosa segundo a qual do inconsciente que a negao provm, como em fran-cs a articulao desse "ne" discordancial valoriza to graciosamente e do qual nenhuma necessidade do enunciado absolutamente necessita. "Je crains qu'il ne vienne" no quer simplesmente dizer temo

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  • jacques Lacan

    que ele no venha, como implica a que ponto dese-jo isso. Freud est seguramente falando no corao desse ncleo de verdade em que o desejo e sua regra se do as mos, nesse "isso" em que sua natureza participa menos do ente do homem que dessa falta-a-ser cuja marca ele carrega.

    Esse conluio do homem com uma natureza que, nsteriosamente, ope-se a si mesma, e onde ele gostaria de encontrar repouso para seu sofri-mento, encontrando o tempo medido da razo, isso que espero mostrar-lhes, o que Freud indica-sem pedantismo, sem esprito de reforma, e como aberto a uma loucura que supera de longe o que Erasmo sondou de suas razes.

    11

    A psicanlise constituinte da tica exigida pelo nosso tempo?

    Monscnhor, senhoras, senhores,

    Deixei-lhes ontem com uma srie de pontos de vis-ta decisivos sobre Freud, sobre sua posio na tica, sobre a honestidade de sua visada.

    Acho que Freud est bem mais prximo do man-damento evanglico "Amars teu prximo" do que consente. Pois no consente nele, repudia-o como excessivo enquanto imperativo, se no como escarne-cido enquanto preceito por seus frutos visveis numa sociedade que preserva o nome de crist. Mas de fato que ele se interroga sobre esse ponto.

    Fala sobre isso na espantosa obra intitulada Mal-estar na civilizao. Tudo reside no sentido do "como a ti mesmd' que conclui a frmula. A pai.xo desconfiada de quem desmascara detm Freud dian-te desse "como". do peso do amor que se trata. Freud sabe com efeito que o amor prprio bem

    37

  • jacques Lacan

    que ele no venha, como implica a que ponto dese-jo isso. Freud est seguramente falando no corao desse ncleo de verdade em que o desejo e sua regra se do as mos, nesse "isso" em que sua natureza participa menos do ente do homem que dessa falta-a-ser cuja marca ele carrega.

    Esse conluio do homem com uma natureza que, nsteriosamente, ope-se a si mesma, e onde ele gostaria de encontrar repouso para seu sofri-mento, encontrando o tempo medido da razo, isso que espero mostrar-lhes, o que Freud indica-sem pedantismo, sem esprito de reforma, e como aberto a uma loucura que supera de longe o que Erasmo sondou de suas razes.

    11

    A psicanlise constituinte da tica exigida pelo nosso tempo?

    Monscnhor, senhoras, senhores,

    Deixei-lhes ontem com uma srie de pontos de vis-ta decisivos sobre Freud, sobre sua posio na tica, sobre a honestidade de sua visada.

    Acho que Freud est bem mais prximo do man-damento evanglico "Amars teu prximo" do que consente. Pois no consente nele, repudia-o como excessivo enquanto imperativo, se no como escarne-cido enquanto preceito por seus frutos visveis numa sociedade que preserva o nome de crist. Mas de fato que ele se interroga sobre esse ponto.

    Fala sobre isso na espantosa obra intitulada Mal-estar na civilizao. Tudo reside no sentido do "como a ti mesmd' que conclui a frmula. A pai.xo desconfiada de quem desmascara detm Freud dian-te desse "como". do peso do amor que se trata. Freud sabe com efeito que o amor prprio bem

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  • jacques Lacan

    grande, sabe-o superiormente, tendo reconhecido que a fora do delrio est em ter sua fonte nele. "Sie lieben ihren wiihnen wie sich selbsl', eles amam o delrio como a si mesmos, escreve ele. Essa fora a que ele designou como narcisismo. Ela comporta uma dialtica secreta em que os psicanalistas no se saem bem. Ei-la. para conceb-la que introduzi na teoria a distino propriamente metdica do sim-blico, do imaginrio e do real.

    Sem dvida amo a mim mesmo, e com todo o furor viscoso em que a bolha vital ferve sobre si mesma e se infla em uma palpitao ao mesmo tempo voraz e precria, no sem fomentar em seu seio o ponto vivo de onde sua unidade voltar abro-tar, disseminada de sua prpria exploso. Em outras palavras, sou ligado a meu corpo pela energia pr-pria que Freud situou no princpio da energia ps-quica, o Eros que faz os corpos vivos se conjugarem para se reproduzir, que ele chama de. libido.

    Mas o que amo, na medida em que existe um eu a que me vinculo por uma concupiscncia mental, no esse corpo cujo batimento e pulsao escapam mais evidentemente ao meu controle, mas uma ima-gem que me engana ao me mostrar meu corpo em sua Gestalt, sua forma. Ele belo, grande, forte, o mais ainda por ser feio, pequeno e miservel. S me amo na medida em que me desconheo essen-cialmente, amo apenas um outro, um outro com um

    Discurso aos catlicos

    pequeno a inicial, da o costume de meus alunos de o chamar de "o pequeno outro".

    Nada de surpreendente no fato de ser nada mais que eu mesmo que amo em meu semelhante. No apenas na devoo neurtica, se indico o que a experincia nos ensina, mas igualmente na forma extensiva e utilizada do altrusmo, seja ele educativo ou familiar, filantrpico, totalitrio ou liberal, qual freqentemente almejaramos ver corresponder algo como a vibrao da garupa magnfica do animal desafortunado, o homem s faz passar seu amor-prprio. Provavebnente esse amor j foi h muito tempo detectado em suas extravagncias, mesmo gloriosas, pela investigao moralista de suas pre-tensas virtudes. Mas a investigao analtica do eu permite identific-lo com a forma do odre [outre], com o excesso [ outrance] da sombra cuja vtima ser o caador, com a vaidade de uma forma visual. Eis a face tica do que articulei, para ser compreendido, sob a expresso "estdio do espelho".

    O eu feito, Freud nos ensina, das identifica-es superpostas maneira de casca, espcie de armrio cujas peas trazem a marca do tudo-pron-to, embora a combinao no raro seja bizarra. Nas identificaes com suas formas imaginrias, o ho-mem julga reconhecer o princpio de sua unidade sob a aparncia de um domro de si mesmo da qual ele o tolo necessrio, seja ou no ela ilusria, pois

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  • jacques Lacan

    grande, sabe-o superiormente, tendo reconhecido que a fora do delrio est em ter sua fonte nele. "Sie lieben ihren wiihnen wie sich selbsl', eles amam o delrio como a si mesmos, escreve ele. Essa fora a que ele designou como narcisismo. Ela comporta uma dialtica secreta em que os psicanalistas no se saem bem. Ei-la. para conceb-la que introduzi na teoria a distino propriamente metdica do sim-blico, do imaginrio e do real.

    Sem dvida amo a mim mesmo, e com todo o furor viscoso em que a bolha vital ferve sobre si mesma e se infla em uma palpitao ao mesmo tempo voraz e precria, no sem fomentar em seu seio o ponto vivo de onde sua unidade voltar abro-tar, disseminada de sua prpria exploso. Em outras palavras, sou ligado a meu corpo pela energia pr-pria que Freud situou no princpio da energia ps-quica, o Eros que faz os corpos vivos se conjugarem para se reproduzir, que ele chama de. libido.

    Mas o que amo, na medida em que existe um eu a que me vinculo por uma concupiscncia mental, no esse corpo cujo batimento e pulsao escapam mais evidentemente ao meu controle, mas uma ima-gem que me engana ao me mostrar meu corpo em sua Gestalt, sua forma. Ele belo, grande, forte, o mais ainda por ser feio, pequeno e miservel. S me amo na medida em que me desconheo essen-cialmente, amo apenas um outro, um outro com um

    Discurso aos catlicos

    pequeno a inicial, da o costume de meus alunos de o chamar de "o pequeno outro".

    Nada de surpreendente no fato de ser nada mais que eu mesmo que amo em meu semelhante. No apenas na devoo neurtica, se indico o que a experincia nos ensina, mas igualmente na forma extensiva e utilizada do altrusmo, seja ele educativo ou familiar, filantrpico, totalitrio ou liberal, qual freqentemente almejaramos ver corresponder algo como a vibrao da garupa magnfica do animal desafortunado, o homem s faz passar seu amor-prprio. Provavebnente esse amor j foi h muito tempo detectado em suas extravagncias, mesmo gloriosas, pela investigao moralista de suas pre-tensas virtudes. Mas a investigao analtica do eu permite identific-lo com a forma do odre [outre], com o excesso [ outrance] da sombra cuja vtima ser o caador, com a vaidade de uma forma visual. Eis a face tica do que articulei, para ser compreendido, sob a expresso "estdio do espelho".

    O eu feito, Freud nos ensina, das identifica-es superpostas maneira de casca, espcie de armrio cujas peas trazem a marca do tudo-pron-to, embora a combinao no raro seja bizarra. Nas identificaes com suas formas imaginrias, o ho-mem julga reconhecer o princpio de sua unidade sob a aparncia de um domro de si mesmo da qual ele o tolo necessrio, seja ou no ela ilusria, pois

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  • jacques lacan

    essa imagem de si mesmo no o contm em nada. Embora seja imvel~ apenas seu esgar~ sua flexibili-dad~ sua desarticulao~ seu desmembramento, sua disperso aos quatro ventos esboam indicar qual seu lugar no mundo. Ser-lhe- necessrio ainda muito tempo para que abandone a idia de que o mundo foi fabrialdo sua imagem e para que reco-nhea que o que ele encontrava, dessa imagem, sob a forma dos significantes que sua indstria come-ara a espalhar pelo mundo~ era, desse mundo, a essncia.

    aqui que aparece a importncia decisiva do discurso da cincia dita fsica, e o que coloca a ques-to de uma tica medida de um tempo especifica-do como nosso tempo.

    O que o discurso da cincia desmascara que nada mais resta de uma esttica transcendental me-diante a qual se estabeleceria um acordo, ainda que perdido, entre nossas intuies e o mundo. A reali-dade fsica verifica -se doravante impenetrvel a qual-quer analogia com qualquer tipo do homem univer-sal. Ela plena, totalmente inumana. O problema que se abre para ns no mais o do co-nascimen-to, de uma co-naturalidade em que entrevemos a amizade das aparncias. Sabemos o que cabe terra e ao cu, ambos so vazios de Deus, e a questo saber o que fazemos aparecer nas disjunes que constituem nossas tcnicas.

    Discurso aos catlicos

    Nossas tcnicas, digo, e talvez vocs me repli-quem quanto a isso- "Tcnicas humanas, e a ser-vio do homem". Tudo bem~ mas elas assumiram uma medida de eficc~ considerando que seu prin-cipio uma cincia que, se que posso dizer~ s se desencadeou ao renunciar a todo antropomorfis-mo, mesmo o da boa Gestalt das esferas cuja perfei-o era o garante de que fossem eternas, e igual-mente, ao da fora cujo impetus foi sentido no cerne da ao humana.

    Nossa cincia uma cincia. de pequenos sig-nos e equaes. Ela participa do inconcebvel preci-samente na medida em que d razo a Newton con-tra Descartes. Essa cincia no tem forma atmica por acaso, pois foi a produo do atomismo do sig-nificante que a estruturou. Esse atomismo sobre o qual quiseram reconstruir nossa psicologia, contra o qual nos insurgimos quando se trata de com-preendermos a ns mesmos, s o reconheceramos se estivssemos por ele, esse atomismo~ habitado. Da Freud ter podido partir das hipteses do ato-mismo psicolgico, possamos ou no dizer que o tenha assumido. Ele no trata os elementos da asso-ciao como idias que exigem a gnese de sua de-purao a partir da experincia, mas como signifi-

    cantes~ cuja constituio implica em primeiro lugar sua relao com o que se esconde de radical na estrutura como tal, ou seja, o principio de permuta-

  • jacques lacan

    essa imagem de si mesmo no o contm em nada. Embora seja imvel~ apenas seu esgar~ sua flexibili-dad~ sua desarticulao~ seu desmembramento, sua disperso aos quatro ventos esboam indicar qual seu lugar no mundo. Ser-lhe- necessrio ainda muito tempo para que abandone a idia de que o mundo foi fabrialdo sua imagem e para que reco-nhea que o que ele encontrava, dessa imagem, sob a forma dos significantes que sua indstria come-ara a espalhar pelo mundo~ era, desse mundo, a essncia.

    aqui que aparece a importncia decisiva do discurso da cincia dita fsica, e o que coloca a ques-to de uma tica medida de um tempo especifica-do como nosso tempo.

    O que o discurso da cincia desmascara que nada mais resta de uma esttica transcendental me-diante a qual se estabeleceria um acordo, ainda que perdido, entre nossas intuies e o mundo. A reali-dade fsica verifica -se doravante impenetrvel a qual-quer analogia com qualquer tipo do homem univer-sal. Ela plena, totalmente inumana. O problema que se abre para ns no mais o do co-nascimen-to, de uma co-naturalidade em que entrevemos a amizade das aparncias. Sabemos o que cabe terra e ao cu, ambos so vazios de Deus, e a questo saber o que fazemos aparecer nas disjunes que constituem nossas tcnicas.

    Discurso aos catlicos

    Nossas tcnicas, digo, e talvez vocs me repli-quem quanto a isso- "Tcnicas humanas, e a ser-vio do homem". Tudo bem~ mas elas assumiram uma medida de eficc~ considerando que seu prin-cipio uma cincia que, se que posso dizer~ s se desencadeou ao renunciar a todo antropomorfis-mo, mesmo o da boa Gestalt das esferas cuja perfei-o era o garante de que fossem eternas, e igual-mente, ao da fora cujo impetus foi sentido no cerne da ao humana.

    Nossa cincia uma cincia. de pequenos sig-nos e equaes. Ela participa do inconcebvel preci-samente na medida em que d razo a Newton con-tra Descartes. Essa cincia no tem forma atmica por acaso, pois foi a produo do atomismo do sig-nificante que a estruturou. Esse atomismo sobre o qual quiseram reconstruir nossa psicologia, contra o qual nos insurgimos quando se trata de com-preendermos a ns mesmos, s o reconheceramos se estivssemos por ele, esse atomismo~ habitado. Da Freud ter podido partir das hipteses do ato-mismo psicolgico, possamos ou no dizer que o tenha assumido. Ele no trata os elementos da asso-ciao como idias que exigem a gnese de sua de-purao a partir da experincia, mas como signifi-

    cantes~ cuja constituio implica em primeiro lugar sua relao com o que se esconde de radical na estrutura como tal, ou seja, o principio de permuta-

  • Jacques Lacan

    o, a saber, que uma coisa possa ser colocada no lugar de outra e apenas com isso represent-la.

    Trata-se de um sentido da palavra "representa-o" que nada tem a ver com o das pinturas, dos Abschumungen, em que o real supostamente faria conosco um tipo de strip-tease qualquer. Assim, Freud a articula propriamente, usando, para dizer o que recalcado, no o termo Vorstellung, ainda que a nfase recaia sobre o representativo no material do inconsciente, mas Vorstellungsrepresentanz.

    No vou me estender quanto a isso. No me entrego aqui a nenhuma construo ftlosfica, tento me reconhecer no material mais imediato da minha experincia. Se recorro ao texto de Freud para tes-temunhar essa experincia, porque h nele uma conjuno rara - diga o que diga uma crtica to venenosa quanto no compreensiva, como acontece queles que s tm na boca a palavra "compreenso" - , uma rara combinao, eu dizia, excepcional na histria do pensamento, entre o dizer de Freud e a Coisa que ele descobre para ns. O que isso com-porta de lucidez nele evidente, porm, no final das contas, de acordo com o que ele descobre para ns, eu chegaria a ponto de dizer que a nfase de cons-cincia colocada sobre este ou aquele aspecto de seu pensamento aqui secundria.

    As representaes aqui nada mais tm de apo-lneo. Elas tm uma destinao elementar. Nosso

    Discurso aos catlicos

    aparelho neurolgico opera na medida em que alu-cinamos o que pode responder, em ns, a nossas necessidades. Isso talvez seja um perfeccionismo em relao ao que podemos presumir do modo reativo da ostra escondida na rocha, mas perigoso na me-dida em que nos deixa merc de urna simples amostragem gustativa, se posso dizer, ou palpatria, da sensao. Em ltima instncia resta-nos apenas nos beliscar para saber se no estamos sonhando. Pelo menos este o esquema que podemos fornecer do que se articula no duplo princpio que comanda, segundo Freud, o acontecimento psquico, princpio de prazer e princpio de realidade, considerando que nisso se articula a fisiologia da relao dita natural do homem com o mundo.

    No nos deteremos no paradoxo que constitui tal concepo do ponto de vista de uma teoria da adaptao da conduta, na medida em que esta d a lei da tentativa de reconstruo de certa concepo da etologia. O que preciso ver o que introdu-zido, nesse esquema do aparelho, por seu funciona-mento efetivo, uma vez que Freud ali descobre o elo dos efeitos propriamente inconscientes.

    Ningum percebeu autenticamente a inverso comportada, no prprio nvel do duplo princpio, pelo efeito do inconsciente. Inverso, ou antes recu-sa dos elementos aos quais esses princpios so ordi-nariamente associados.

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  • Jacques Lacan

    o, a saber, que uma coisa possa ser colocada no lugar de outra e apenas com isso represent-la.

    Trata-se de um sentido da palavra "representa-o" que nada tem a ver com o das pinturas, dos Abschumungen, em que o real supostamente faria conosco um tipo de strip-tease qualquer. Assim, Freud a articula propriamente, usando, para dizer o que recalcado, no o termo Vorstellung, ainda que a nfase recaia sobre o representativo no material do inconsciente, mas Vorstellungsrepresentanz.

    No vou me estender quanto a isso. No me entrego aqui a nenhuma construo ftlosfica, tento me reconhecer no material mais imediato da minha experincia. Se recorro ao texto de Freud para tes-temunhar essa experincia, porque h nele uma conjuno rara - diga o que diga uma crtica to venenosa quanto no compreensiva, como acontece queles que s tm na boca a palavra "compreenso" - , uma rara combinao, eu dizia, excepcional na histria do pensamento, entre o dizer de Freud e a Coisa que ele descobre para ns. O que isso com-porta de lucidez nele evidente, porm, no final das contas, de acordo com o que ele descobre para ns, eu chegaria a ponto de dizer que a nfase de cons-cincia colocada sobre este ou aquele aspecto de seu pensamento aqui secundria.

    As representaes aqui nada mais tm de apo-lneo. Elas tm uma destinao elementar. Nosso

    Discurso aos catlicos

    aparelho neurolgico opera na medida em que alu-cinamos o que pode responder, em ns, a nossas necessidades. Isso talvez seja um perfeccionismo em relao ao que podemos presumir do modo reativo da ostra escondida na rocha, mas perigoso na me-dida em que nos deixa merc de urna simples amostragem gustativa, se posso dizer, ou palpatria, da sensao. Em ltima instncia resta-nos apenas nos beliscar para saber se no estamos sonhando. Pelo menos este o esquema que podemos fornecer do que se articula no duplo princpio que comanda, segundo Freud, o acontecimento psquico, princpio de prazer e princpio de realidade, considerando que nisso se articula a fisiologia da relao dita natural do homem com o mundo.

    No nos deteremos no paradoxo que constitui tal concepo do ponto de vista de uma teoria da adaptao da conduta, na medida em que esta d a lei da tentativa de reconstruo de certa concepo da etologia. O que preciso ver o que introdu-zido, nesse esquema do aparelho, por seu funciona-mento efetivo, uma vez que Freud ali descobre o elo dos efeitos