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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Centro Tecnológico – CTC Programa de Pós Graduação em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade - PGAU Dissertação de Mestrado LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEM i

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Centro Tecnológico – CTC

Programa de Pós Graduação em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade - PGAU

Dissertação de Mestrado

LAGOA DA CONCEIÇÃO:

A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEM

i

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Centro Tecnológico – CTC

Programa de Pós Graduação em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade - PGAU

Dissertação de Mestrado

LAGOA DA CONCEIÇÃO:

A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEM

MARCELO CABRAL VAZ

Orientadora: Profª. Dr.ª Margareth de Castro Afeche Pimenta

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Área de concentração: Urbanismo, Cultura e História da Cidade.

Florianópolis – SC

Junho de 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Centro Tecnológico – CTC

Programa de Pós Graduação em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade - PGAU

Dissertação de Mestrado

LAGOA DA CONCEIÇÃO:

A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEM Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, História e

Arquitetura da Cidade, PGAU-CIDADE da Universidade Federal de Santa Catarina,

como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Urbanismo, História e

Arquitetura da Cidade. Área de concentração em Urbanismo, História e Cultura da

Cidade, em cumprimento aos requisitos necessários à obtenção do grau acadêmico de

Mestre em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade. Florianópolis, 2008.

_______________________________ Prof. Dr. Almir Francisco Reis

Coordenador do Programa de Pós Graduação em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade.

APROVADA PELA COMISSÃO EXAMINADORA EM: ..... / ..... / 2008

_____________________________________ Profª. Drª. Margareth de Castro Afeche Pimenta (Orientadora)

_________________________________________________

Profª. Drª. Gerusa Maria Duarte

___________________________________________________

Prof. Dr. Lauro César Figueiredo

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SUMÁRIO Agradecimentos

Índice de figuras

Resumo

Introdução .........................................................................................................................1

Capítulo 1:

Paisagem e Cultura – o que diz a teoria

1.1. Análise conceitual – considerações sobre a paisagem ................................... 9

1.2. Cidade e Memória .......................................................................................................18

Capítulo 2:

Lagoa da Conceição – história e memória

2.1 Os primeiros habitantes ................................................................................................ 25

2.2 A freguesia da Lagoa da Conceição

2.2.1 A atividade pesqueira e a vida social ........................................................................ 32

2.2.2 A agricultura e a vida social ..................................................................................... 39

2.3 Memória Viva ................................................................................................................49

Capítulo 3 :

Do rural ao urbano .................................................................................................... 61

3.1. Transformação econômica – A carroça e a Pajero ......................................... 65

3.2. Transformação populacional ................................................................................... 71

3.3. Transformação fundiária – Da grande parcela ao pequeno lote .................. 76

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Considerações Finais “Árvore sem raízes” .......................................................................................................... 87

Referências bibliográficas ....................................................................................... 93

Anexo 1 – “Delirius gráfikus” ..................................................................................... 97

Anexo 2 - Íntegra das entrevistas .............................................................................. 102

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Agradecimentos

Em especial agradeço a Margareth de Castro Afeche Pimenta, minha orientadora,

pois sem a sua compreensão, o seu questionamento provocativo e sua crítica rigorosa

este trabalho não teria sido realizado.

Aos professores Gerusa Maria Duarte e Lauro César Figueiredo; que me

honraram aceitando participar de minha banca de avaliação de mestrado.

À Biange, ao Gustavo e ao Renan, pelo apoio logístico.

Ao PGAU – Curso de Pós Graduação em Urbanismo, História e Arquitetura da

Cidade. Agradeço em especial os professores Gilcéia Pesce do Amaral e Silva, Nelson

Popini Vaz e Roberto Gonçalves da Silva.

À CAPES, pela bolsa concedida para os seis últimos meses desta pesquisa.

À Universidade Federal de Santa Catarina que possibilitou esta realização;

especialmente ao pessoal da BU, RU e do HU que me ajudaram muito quando foi

necessário.

Aos amigos mais próximos que sempre foram o suporte ideal para qualquer

empreitada.

À colaboração e gentileza dos entrevistados.

A todos aqueles que, apesar de não citados, colaboraram direta ou indiretamente,

para a realização de mais uma importante etapa no decorrer de minha vida, meus

agradecimentos.

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Lista de figuras

Figura 1 (Capa) – Da paisagem colonial a paisagem atual. Seqüência de desenhos e aquarela

sobre o papel, do autor, 2006.............................................................................................i

Figura 2 – A metamorfose, desenho do autor sobre o processo de urbanização, grafite

sobre papel, 2006.............................................................................................................xii

Figura 3 – Inserção da área de estudo no território da Ilha de Santa Catarina.

Fotomontagem do autor a partir de imagens do Googlearth, 2008..............................pg. 2

Figura 4 – A área de pesquisa. Imagem do Google Earth trabalhada em Photoshop pelo

autor, 2008...................................................................................................................pg. 3

Figura 5 - A transformação da paisagem do atual Centrinho da Lagoa; com a Igreja

marcando a paisagem no morro. Desenhos do autor, grafite e pastel seco sobre papel,

2006..............................................................................................................................pg. 9

Figura 6 – Registro da paisagem na área central da Lagoa da Conceição executado do morro

onde se situa a atual rampa de vôo livre (que se estende à Oeste da laguna). Fotografias e

montagem do autor, 2005...........................................................................................pg. 16

Figura 7 – Registro do aglomerado urbano se espalhando nas margens da laguna. Um

panorama atual da área de estudo. Fotografias e montagem do autor, 2006.............pg. 17

Figura 8 – Uma visão noturna da área de estudo, panorama iluminado de sua estrutura

urbana. Fotografias e montagem do autor, 2006.......................................................pg. 17

Figura 9 – A grande transformação. Desenhos sobre a metamorfose da paisagem na

área de estudo, do autor, 2006...................................................................................pg. 18

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Figura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in

CORREA, 2004: 206)...............................................................................................pg. 32

Figura 11 – A pesca tradicional – detalhes da cultura pesqueira, o uso de Botes e Baleeiras, embarcações encontradas no litoral catarinense e na Lagoa da conceição. Fotografias do autor, 2006........................................................................................pg. 37

Figura 12- Vida rural - Um carro de boi, a taipa de barro e um engenho. Fotografias

acervo Carlos Damião (fotografia central do autor), 2007........................................pg. 44

Figura 13 – Memória Viva da Lagoa. Registro fotográfico de moradores da Lagoa da

Conceição, fotomontagem do autor, 2008.................................................................pg. 49

Figura 14 – O morro da Igreja. Desenho da transformação do entorno da Igreja de

Nossa Senhora da Conceição, de 1900 ao ano 2000, desenhos do autor,

2006...........................................................................................................................pg. 60

Figura 15 – Do rural ao urbano. Seqüência de desenhos com teor crítico sobre o

processo de urbanização contemporâneo, grafite e pastel seco sobre papel, do autor,

2008...........................................................................................................................pg. 61

Figura 16 – 68 anos de transformação. A comparação da paisagem da Lagoa em

fotografias de 1940 (Foto B Studio); e Fotografia do autor, 2005............................pg. 62

Figura 17 – 1 Cavalo Vs 1000 cavalos. Contraste entre os meios de locomoção de

períodos históricos distintos. Fotografia do autor, 2007...........................................pg. 65

Figura 18 – Fotografias da orla na área central da Lagoa da Conceição. Fotografia de

1970, acervo de Carlos Damião. Ao lado a mesma área (atual Rua Rita Lourenço de

Oliveira), fotografia do autor, 2007...........................................................................pg. 69

Figura 19 – A lógica de mercado. Seqüência e montagem fotográfica de placas da

Lagoa da Conceição, do autor, 2006-2007.

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Figura 20 - Diferentes velocidades. O contraste entre modos de vida e velocidades

distintas. Fotografia do autor, 2007...........................................................................pg. 71

Figura 21 – Da grande parcela de terra ao pequeno lote. A transformação da paisagem

dos campos comuns na área do Centrinho da Lagoa. Desenho do autor, Grafite e pastel

seco sobre papel, 2006...............................................................................................pg. 76

Figura 22 – Pintura de Joseph Bruggemann (1868) ilustrando a paisagem da antiga

Freguesia da Lagoa. Tratamento de imagem do autor, 2008.....................................pg. 77

Figura 23 – A expansão urbana da Freguesia em 1940. Desenho sobre cartografia do

IPUF, do autor, 2008.................................................................................................pg. 78

Figura 24 – O ‘desenho urbano’ da área de estudo contendo a forma das antigas parcelas

de terra. Fotografia do autor, 2007............................................................................pg. 80

Figura 25 – Planta cadastral mostrando o desenho das parcelas de terra coloniais na

configuração urbana atual. Montagem e tratamento de imagem do autor, 2008.......pg. 80

Figura 26 – Impacto de vizinhança - novas técnicas construtivas e novos vizinhos.

Fotografia do autor, 2006..........................................................................................pg. 82

Figura 27 – Do ornamento ao moderno. O contraste de linguagem e de técnicas

construtivas de dois períodos históricos distintos. Fotografia do autor, 2006..........pg. 82

Figura 28 - Desenho sobre as etapas de desenvolvimento da malha urbana local de 1940

a 2020. Elaborado a partir da cartografia do IPUF, do autor, 2008..........................pg. 83

Figura 29 – A configuração urbana. Planta cadastral da área de estudos montada a partir

do levantamento cartográfico disponibilizado pelo IPUF (2008).............................pg. 85

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Anexo 1 - ‘Delirius Graphikus’

Figura 30 – A metamorfose de uma ilha. Seqüência de desenhos imaginando a

transformação da paisagem da Ilha de Santa Catarina. Grafite e pastel seco sobre papel,

do autor, 2005 - 2007..................................................................................................pg. 97

Figura 31 – A metamorfose de um lote. Seqüência de desenhos baseados em uma

situação real, a transformação da paisagem no entorno da casa de Dona Laíde. Grafite

sobre papel, do autor, 2006.........................................................................................pg. 98

Figura 32 – A metamorfose de um entorno. Desenho abordando a transformação do

entorno da Igreja da Lagoa da Conceição. Uma visão crítica sobre a preservação de

edificações históricas no Brasil, do autor, 2007.........................................................pg. 98

Figura 33 - Os rumos do desenvolvimento. Uma seqüência de desenhos da av. das

Rendeiras na Lagoa da Conceição, com o Centrinho da Lagoa ao fundo. Elaborado

sobre fotografia do lugar em grafite sobre papel, do autor, 2007..............................pg. 99

Figura 34 – Os rumos do desenvolvimento 2. Seqüência de desenhos com teor crítico,

acerca da transformação da paisagem do Canto da Lagoa. Partiu-se de um desenho de

observação da situação real e atual da paisagem, elaborado à partir do morro que se

estende ao fundo da Igreja de Nossa Senhora da Conceição (quadro 3). Grafite e Crayon

sobre papel, do autor, 2007..................................................................................... pg. 100

Figura 35 – Os rumos do desenvolvimento 3. Uma seqüência de aquarelas sobre a

metamorfose da paisagem do Centrinho da Lagoa. Partiu-se de uma aquarela elaborada

por Jander de Amorim (quadro 3) que me foi presenteada, e que serviu de base para as

outras aquarelas de minha autoria. Aquarela sobre papel, 2006 - 2007..................pg. 101

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RESUMO Esta pesquisa realiza uma reflexão sobre a metamorfose da paisagem, ou seja, o processo de transformação pelo qual passou o atual distrito da Lagoa da Conceição, localizado em Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina. Procura salientar os aspectos estruturais das mudanças ocorridas no território focalizado, bem como as transformações físicas e sócio culturais que caracterizaram esta transformação. Para tanto realiza uma investigação sobre o conceito de paisagem, e sua inserção na memória e na história do lugar. Para a compreensão deste processo, optou-se por iniciar este estudo a partir da história e do desenvolvimento urbano da localidade. Uma série de entrevistas busca ilustrar os aspectos das transformações no local a partir dos anos 40. O cruzamento das informações colhidas com fotografias, mapas e levantamento cadastral, permitiu reconstruir e identificar etapas de seu desenvolvimento urbano. A pesquisa focaliza a ruptura com o modo de vida rural e inter-relaciona aspectos distintos que marcaram esta passagem da identidade rural à urbana na Lagoa: o econômico, o populacional e o fundiário. Em aspectos econômicos são focalizadas as mudanças no modo de vida dos habitantes; em aspectos populacionais a evolução quantitativa da população, assim como as mudanças no perfil do habitante; e em aspectos fundiários a questão de divisão e repartição das terras. A compreensão deste quadro de mudanças pode apontar alternativas para ajudar a compreender a lógica do crescimento da cidade.

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ABSTRACT This research draws on the metamorphosis of the landscape, that is, on the transformation of the present district of Lagoa da Conceição, located in Florianopolis, capital state of Santa Catarina. It attempts to enhance the structural aspects of the changes that took place at the identified territory, as well as the its physical, social and cultural changes. To do so, it carries out an investigation of the concept of landscape, as inscribed in the memory and history of this place. To enable this understanding, the option was to start this study by looking at the history of the urban development of the of the place. A series of interviews looks for disclosing the aspects of social and spatial change of Lagoa da Conceição from the 40s. The crossing of the collected information with photos, maps and ground plans allowed to reconstruct and to identify the stages of its urban development. This research focuses on the rupture with the rural life mode and inter relates distinct aspects that have marked the passage from rural to urban: the economic, the demographic and the land registry. The economic points to the changes in the way of life of the locals; the demographic shows the quantitative growth of the population as well as the changes in the inhabitants profile; the land registry focuses the issue of splitting and distribution of the land. To foresee the framework of these changes may raise alternatives and help to understand the logic of the city development.

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Fig. 2

xiii

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INTRODUÇÃO

“Sim, esta cidade que atravessa tantas vicissitudes e metamorfoses, desde seus

núcleos arcaicos que seguiram de perto a aldeia, essa forma social admirável, essa

obra por excelência da práxis e da civilização se desfaz e se refaz sob nossos olhos”.

(LEFEBVRE, 1991: 76)

Esta pesquisa realiza uma reflexão sobre a metamorfose da paisagem, ou seja, o

processo de transformação pelo qual passou o atual distrito da Lagoa da Conceição,

localizado em Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina. Ao usar este termo pretendo

salientar o aspecto estrutural das mudanças ocorridas no território investigado, bem como as

mudanças no modo de vida de seus habitantes.

Para tanto focalizo as transformações sociais e espaciais que lá ocorreram a partir da

década de 40, período em que a localidade ainda mantinha suas características tipicamente

rurais. No decorrer desta dissertação vou me referir à laguna quando o objeto de estudo for

seu corpo d´agua, e à Lagoa da Conceição (ou Lagoa) quando estiver em pauta seu contexto

sócio-histórico e cultural.

O objeto deste trabalho abrange especificamente o trecho do território à margem

ocidental da laguna, espaço este compreendido entre as localidades denominadas Canto da

Lagoa e a Costa da Lagoa, onde se estruturou a antiga Freguesia da Lagoa, fundada em 1748

com a vinda dos imigrantes açorianos.

Os açorianos se estabeleceram junto aos morros, e utilizavam às margens da laguna1

para deslocamentos e para o trabalho; o lugar era conhecido como o ‘mar de dentro’2, e foi

neste local que vivi parte de minha infância e adolescência, e onde moro atualmente. Pude,

1 Segundo AURÉLIO dicionário: Em geomorfologia, o termo laguna se refere a uma depressão formada por água salobra ou salgada, localizada na borda litorânea, comunicando-se com o mar através de canal, constituindo assim uma espécie de "quase-lago" de água salgada. 2 Segundo (RIAL, 1988) “Mar de dentro” é o nome dado à Lagoa da Conceição, distrito de Florianópolis, pelos moradores que nasceram ali. Chamam-na também de “maré de dentro” opondo-se assim ao “mar de fora”, o grande atlântico que os rodeia para além das montanhas da laguna.

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desde então, ouvir estórias, conhecer e observar a maneira de viver e de pensar de seus

moradores, e presenciar uma pequena parte de sua metamorfose mais recente; seja na extinção

dos traços da pequena vila rural ou no seu crescimento como um pólo turístico de

características urbanas.

Fig. 3 – A alongada Ilha de Santa Catarina na fachada atlântica possui elementos naturais costeiros, que encarceram no litoral leste insular desta ilha, a bacia hidrográfica da Lagoa da Conceição. A área de estudo (em destaque) abrange a margem ocidental desta bacia. O trabalho trata especificamente da área central do território, espaço este, compreendido entre as localidades denominadas Canto da Lagoa e a Costa da Lagoa, onde se estruturou a antiga Freguesia da Lagoa, Fotomontagem do autor, partindo de imagens do google earth, 2008.

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Fig. 4 – A área de estudo engloba o atual Centrinho da Lagoa da Conceição, desde as encostas dos morros que circundam este trecho do território, sua planície se extendendo até as margens da laguna. Em destaque (vermelho) a área onde se organizou o núcleo histórico da antiga Freguesia da Lagoa. Imagem de satélite obtida em Google Earth e trabalhada pelo autor, 2008.

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Durante o curso de mestrado, passei a buscar respostas para algumas preocupações

mais gerais que fazem parte do meu dia a dia, tais como questões relacionadas às recentes

transformações na paisagem da Lagoa, tanto em seus aspectos físicos, como em seus aspectos

sociais.

Estas preocupações surgiram da observação de problemas recentes que vem ocorrendo

no lugar: tanto de ordem ambiental, como desmatamentos ou poluição; espacial, através do

crescimento urbano desordenado; degenerativo, referente à destruição ou deterioração do

patrimônio histórico arquitetônico; ou sócio-cultural, como a transformação da sociedade

pesqueira e agricultora, e o desaparecimento gradual do pescador artesanal, da rendeira, dos

engenhos, dos alambiques, das tecelagens, dos arrastões. Em síntese, as tradições açorianas

que aos poucos estão desaparecendo da paisagem local.

Desta forma, por um lado procurei fazer um levantamento da história da localidade e

de subsídios teóricos que me ajudassem a analisá-la. Por outro lado, me dediquei à reflexão

sobre as transformações físicas e sócio-culturais que caracterizam e delimitam o momento

atual da sua vida comunitária. Tal trabalho foi acompanhado por documentação fotográfica e

criação gráfica. Assim, posso dizer que a metodologia utilizada se caracteriza como teórico -

prática, onde minhas reflexões foram se desenvolvendo a partir das interações com os

moradores locais, subsidiadas pela leitura teórica contínua, cujo resultado foi também um

processo contínuo de documentação gráfica e fotográfica. O acompanhamento gráfico, por sua

vez, incluiu a observação da paisagem e meu imaginário sobre as implicações do

desenvolvimento em progresso.

Os procedimentos descritos acima se relacionam com a etnografia, e se refletem na

linguagem e categorias conceituais desta abordagem metodológica. Em primeiro lugar, fogem

de uma reflexão abstrata sobre o ‘homem’, e se concentram na observação direta de

comportamentos sociais particulares a partir de uma relação humana e da familiaridade com

os entrevistados que se dispõem a partilhar suas memórias e sonhos. Revelam assim, uma

preocupação com o relacionamento entre processo (a investigação) e produto (os textos

escritos e visuais). Em segundo lugar, e em decorrência, a descrição etnográfica não consiste

somente em ver, mas em fazer ver. A necessidade de transformar os dados em texto

expressivo e evocativo (fotografia e desenhos) é um dos aspectos fundamentais da pesquisa

etnográfica e aqui evidenciam as qualidades emocionais e estéticas da experiência interativa

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do pesquisador com o lugar e seus moradores. Em terceiro lugar, o problema sendo

investigado etnograficamente só pode ser compreendido dentro da área delimitada em que

ocorre e de acordo com o contexto e o objetivo dos participantes. O pesquisador precisa estar

sintonizado com as qualidades particulares ao contexto social e cultural a fim de engajar-se

em seu processo de interpretação. A compreensão da paisagem e das entrevistas emerge de

maneira dinâmica e cumulativa através das etapas interconectadas do trabalho de campo,

coleta de dados, análise e escrita.

É neste sentido que a memória dos moradores se torna um aspecto fundamental nesta

investigação, como fonte de informações para entender o espaço e suas relações. Ela pode

revelar, de que forma os habitantes se apropriavam dos espaços, e os vivenciavam; desta

forma ‘pintam um quadro’ de sua paisagem.

O principal suporte desta abordagem é a formação de um vínculo de amizade e

confiança com os entrevistados. Este vínculo não traduz apenas uma simpatia espontânea que

vai se desenvolvendo durante a pesquisa, mas resulta de um amadurecimento de quem deseja

compreender a própria vida revelada do sujeito. Não basta a simpatia pelo objeto da pesquisa,

é preciso que nasça uma compreensão referente aos objetivos do objeto do estudo, neste caso,

a busca do entendimento sobre as mudanças ocorridas na paisagem da Lagoa.

Segundo THOMPSON, (1992:254), o pesquisador precisa ter habilidade para ser bem

sucedido ao entrevistar. Porém há muitos estilos diferentes de entrevista, que vão desde a que

se faz sob a forma de conversa amigável e informal até aquela com estilo mais formal e

controlado. O bom entrevistador acaba por desenvolver uma variedade da técnica que para ele

produz os melhores resultados, e que se harmoniza com sua personalidade. Há algumas

qualidades essenciais que o entrevistador bem sucedido deve possuir: interesse e respeito pelos

outros como pessoas e flexibilidade nas reações a eles; a capacidade de demonstrar

compreensão e simpatia pela opinião deles; e, acima de tudo, disposição para ficar calado e

escutar

Para ir realizar uma entrevista é importante a preparação de informações básicas, por

meio de leitura ou de outras maneiras. Assim, para a execução das entrevistas torna-se

necessário elaborar um ‘roteiro básico’ de perguntas, adaptadas para os diferentes tipos de

pessoas, mas sempre seguindo os mesmos parâmetros.

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As pessoas selecionadas para as entrevistas, neste caso, são pessoas do lugar, que

participaram da metamorfose da Lagoa da Conceição, e a vivenciaram nas décadas de

30/40/50. Para esta pesquisa realizei entrevistas com oito pessoas representativas da

comunidade, de extratos sociais distintos, inserção econômica e atividades de trabalho

diferenciadas. Todos os entrevistados nasceram ou cresceram ali, e estão acima dos setenta

anos.

A inclusão da memória na configuração da narrativa (histórica, teórica ou literária),

segundo Donald Polkinghorne (1995:16), aponta para a necessidade do pesquisador levar em

consideração não apenas o ambiente cultural no qual foi gerada a narrativa, mas também o

cruzamento desta com informações que outras pessoas significativas do mesmo período e

contexto tenham a oferecer. Este cruzamento, diz o autor, evita que os dados investigados

decorram apenas das características da personalidade de uma das fontes.

Assim, outro aspecto a ser considerado na organização das entrevistas é a continuidade

histórica dos moradores entrevistados. Isto é, considerá-los como seres históricos, que retêm

como parte de si próprios as suas experiências prévias. As experiências do passado se

manifestam no presente como hábitos que são parcialmente disponíveis através da memória.

Os hábitos incorporados se apresentam não apenas como habilidades motoras e movimentos

corporais, mas também como padrões de pensamento.

Ao considerar a pessoa como um ser biográfico atenção precisa ser dada aos eventos

sociais que os protagonistas e seus contemporâneos experimentaram. Ao tornar as decisões do

protagonista e suas ações compreensíveis, o pesquisador precisa apresentá-las como

consistentes com as experiências prévias do narrador. Embora as experiências passadas de uma

pessoa perseverem no presente, elas não determinam as ações futuras. O roteiro de muitas

narrativas, por exemplo, é sobre a luta de uma pessoa para mudar seu hábito e agir de forma

diferente, POLKINGHORNE (1995:17).

As oito entrevistas realizadas neste estudo, inseridas em sua íntegra nos anexos,

complementam as informações históricas coletadas na pesquisa bibliográfica, e se cruzam,

através de fragmentos específicos, nos três aspectos centrais da análise das transformações da

paisagem da Lagoa.

Apresento a seguir um rápido esboço dos capítulos desta pesquisa.

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Inicialmente, para compreender e confrontar os diferentes pontos de vista referentes a

um processo de desenvolvimento urbano, procuro realizar uma análise conceitual. O quadro

teórico elaborado para esta pesquisa busca assim focalizar conceitos importantes que estão

inter-relacionados, como paisagem e cultura. Para tanto foram investigados, no capítulo I,

autores de várias épocas e países que trabalharam com este tema.

Para melhor compreender as transformações na paisagem, o conhecimento da história

local tornou-se indispensável. Assim sendo, o capítulo II, intitulado “Aspectos históricos”

descreve a evolução social e urbana da Lagoa da Conceição e seu processo de ocupação.

Busco aqui caracterizar a população residente e seu modo de vida, para isso me valendo da

contribuição de obras clássicas locais, tais como as de Evaldo Pauli, Oswaldo Rodrigues

Cabral, Walter Francisco Piazza, Virgílio Várzea, Victor Antônio Peluso Jr, Silvio Coelho dos

Santos, Franklin Joaquim Cascaes, além de relatos de viajantes estrangeiros e outras fontes,

devidamente citadas ao longo da pesquisa.

Neste sentido destacaram-se trechos destas obras que descrevessem a realidade local

em seus diferentes períodos

Procurou-se enfatizar a estrutura sócio-espacial do lugar e seus aspectos culturais,

descrevendo a sua realidade simples, e ao mesmo tempo complexa - sua vida cotidiana.

Interessou-me conhecer também a divisão social do trabalho, suas formas de organização,

implicações e relações; seus espaços, e fundamentalmente, suas implicações e relações na

transformação da paisagem do lugar.

Como estas relações e produções sociais se manifestam no tempo e no espaço no

decorrer de um processo histórico, este conhecimento torna-se essencial para a compreensão

de aspectos da cultura do grupo e de sua identidade.

Buscou-se também, uma aproximação aos detalhes da ‘memória’ local, através da

‘história oral’; aqui pretendi socializar a pesquisa, dando voz às pessoas idosas que

presenciaram a metamorfose do lugar. Este capítulo não foi elaborado como uma amostragem,

mas sim com o intuito de registrar a voz e, através dela, a vida e o pensamento destes

indivíduos. Este registro, ao partir de memórias pessoais, acaba por revelar a memória coletiva

da comunidade que participou da construção da paisagem atual da Lagoa da Conceição.

O objetivo desta viagem através da memória de moradores idosos da comunidade foi

resgatar a história do cotidiano na Freguesia da Lagoa, com o objetivo de entender como seus

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Page 21: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

hábitos e costumes se espacializavam à época. Assim, mediante o recurso de entrevistas foi

possível ‘construir’ uma imagem da Lagoa a partir de 1930, e ainda coletar informações que

ajudassem a perceber suas transformações físicas e sócio-culturais nestas últimas décadas.

As entrevistas foram realizadas como pesquisa de campo e analisadas com o apoio

teórico dos autores investigados. Todos os nomes de pessoas foram utilizados informalmente,

isto é, segundo a forma pela qual são conhecidas na comunidade. Entre os assentamentos às

margens da laguna, originários da colonização açoriana na metade do século XVIII, o

‘Centrinho’ da Lagoa foi o lugar onde concentrei a pesquisa de campo. Entretanto, as

narrativas colhidas se referiram a fatos e eventos ocorridos nos demais assentamentos e

conduziram meu olhar para a Costa da Lagoa, o Canto da Lagoa, o Canto dos Araçás, o Retiro

da Lagoa e também a Barra da Lagoa.

Incluo em anexo as entrevistas realizadas em sua íntegra, com a intenção de permitir

futuras interpretações e percepções alternativas.

O terceiro capítulo está centrado nas transformações mais significativas da paisagem

da Lagoa da Conceição e suas causas. Para tanto, optei por um ‘recorte’ temporal embasado

no período em que se iniciou o processo de transformação urbana, que aqui é focalizado sob

três aspectos distintos e inter-relacionados: fundiário, econômico e demográfico.

Da grande parcela ao pequeno lote, enfatiza a transformação do território sob a ótica

fundiária, com o foco na mudança dos métodos de divisão de terras e nas novas formas de

parcelamento do solo. O objetivo foi entender a lógica dos desmembramentos e loteamentos

que vem se espalhando pelo território da bacia e desenhando a paisagem atual da Lagoa.

A carroça e a Pajero, descreve a presença concomitante de modos de vida e culturas

distintas. A transformação econômica, através de suas novas formas de trabalho em

substituição às antigas práticas de subsistência, e as novas estruturas de divisão do trabalho

gerou a destruição dos referenciais espaciais que existiam à época da Freguesia e vem

instituindo novos referenciais, engendrando novos hábitos, e uma nova forma de viver o lugar.

O objetivo foi focalizar os aspectos da economia que causaram estas transformações.

Transformação Populacional enfoca a evolução e o perfil da população local e a

convivência muitas vezes conflituosa entre imigrantes de épocas e culturas distintas. Para

tanto incluo registros de dados populacionais que mostram o crescimento populacional da

Lagoa. Por um lado, os dados do IBGE permitem identificar os períodos de crescimento

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Page 22: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

populacional e urbano na área de estudo, e de estabelecer uma comparação com o crescimento

de Florianópolis. Por outro lado, estudos a partir da década de 60 descrevem as causas dos

fluxos migratórios mais recentes, e permitem traçar o novo perfil da população atual.

Árvore sem Raízes é o meu entendimento atual sobre a problemática investigada.

Fig. 5 – A transformação da paisagem em parte da área que abrigou o núcleo da antiga Freguesia de Nossa Senhora da Conceição, o atual ‘Centrinho da Lagoa’, com a Igreja marcando a paisagem no morro. A situação atual está representada no terceiro desenho. O último desenho representa uma visão crítica sobre o crescimento urbano contemporâneo e um quadro não distante da realidade. Grafite e pastel seco sobre papel, do autor, 2006.

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I Paisagem e Cultura – o que diz a teoria

1.1 Considerações sobre a paisagem

Uma análise conceitual de paisagem aponta para formas distintas de concebê-la, de

acordo com a perspectiva através da qual é focalizada – como ciência natural ou como ciência

humana.

O que é a paisagem? O que é uma paisagem? Apesar de ser uma palavra simples, é um

termo polissêmico.

Para Denis Cosgrove (1998:98), o conceito de paisagem sempre esteve intimamente

ligado, na geografia humana, com a cultura, com a idéia de formas visíveis sobre a superfície

da terra e com sua composição. A paisagem é, de fato, uma ‘maneira de ver’, uma maneira de

compor e harmonizar o mundo externo em uma ‘cena’, em uma unidade visual.

Milton Santos amplia o conceito de paisagem e a define como resultante material de

todos os processos (naturais e sociais) que possam ocorrer em um determinado sítio;

configurando-se como resultante de um processo histórico. Santos ressalta a paisagem como a

expressão própria de uma sociedade, no decurso de sua história. Os componentes desta

paisagem refletem, em parte, a escolha representada pelo estilo das construções e os processos

de urbanismo, mas refletem, sobretudo, as necessidades e condições próprias a cada etapa da

evolução urbana. Os lugares possuem características próprias e nos levam a distinguir em uma

cidade vários conjuntos, cuja arrumação gera o que se conceitua como estrutura urbana,

correspondendo às diferentes formas de utilização e organização da paisagem (Santos, 1959:

98-108).

Em Pensando o Espaço do Homem Santos (1986), afirma que tanto a paisagem urbana

como a paisagem rural, a pequena ‘aldeia’ de pescadores ou o grande centro empresarial se

conformam como paisagens, formas mais ou menos duráveis. O seu traço comum é ser a

combinação de objetos naturais e de objetos fabricados, resultado da acumulação de muitas

gerações. A paisagem não tem nada de fixo, de imóvel. Cada vez que a sociedade passa por

um processo de mudança, a economia, as relações sociais e políticas também mudam, em

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ritmos e intensidade variados. A mesma coisa acontece em relação ao espaço e a paisagem

que se transforma para se adaptar às novas necessidades da sociedade (...) Considerada em um

ponto determinado no tempo, uma paisagem representa diferentes momentos no

desenvolvimento de uma sociedade; segundo Milton “A paisagem é resultado de uma

cumulação desigual de tempos (SANTOS, 1986: 37-38)”. Santos sugere que se entenda a

estrutura social para se entender a paisagem; os papéis desempenhados pelos atores sociais

explicam a estrutura da sociedade e ajudam a entender o conteúdo da paisagem. Segundo o

autor, “A cada fase histórica, o papel de cada estrutura social, assim como seu conteúdo,

variam. Os meios de difusão também mudam, isto é, a distância entre a emissão de uma

mensagem, o desencadeamento de um processo e sua recepção e concretização variam em

termos de tempo. É por isso que a sociedade não se distribui uniformemente no espaço: essa

distribuição não é obra do acaso. Ela é o resultado de uma seletividade histórica e geográfica,

que é sinônimo de necessidade. Esta necessidade decorre de determinações sociais fruto das

necessidades e das possibilidades da sociedade em um dado momento. (...) Digamos que a

sociedade produz a paisagem, mas que isso jamais ocorre sem mediação. É por isso que ao

lado das formas geográficas e da estrutura social, devemos também considerar as funções e

os processos que, através das funções, levam a energia social a transmudar-se” (SANTOS,

1986: 42).

Deste modo, entende-se que para compreender a paisagem é necessário desvendar seu

conteúdo, Santos lembra que “ Diante de uma paisagem, ou nossa vontade de apreendê-la se

exerce sobre conjuntos que nos falam à maneira de cartões postais, ou então nosso olhar volta-

se para objetos isolados. De um modo ou de outro, temos a tendência ‘de não apreender o

todo’; mesmo os conjuntos que se encontram em nosso campo de visão nada mais são que

frações de um todo (SANTOS, 1986: 23).”É neste sentido que as questões de história, tempo e

processo tornam-se fundamentais, para compreender as formas inscritas na paisagem.

A dificuldade para interpretar uma paisagem, entretanto, está associada às diferentes

formas de percepção, dependendo de quem a observa; pois as pessoas vêem ou percebem a

paisagem de maneira diferenciada. Mas a percepção de uma paisagem não leva diretamente ao

conhecimento sobre a mesma; torna-se necessário ultrapassar sua ‘aparência’ para chegar ao

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seu significado3. A noção de tempo é fundamental, pois a paisagem, pelas suas formas, é

composta de atualidades de hoje e do passado (...) Formas de idades diferentes com finalidades

e funções múltiplas são organizadas e dispostas de múltiplas maneiras. Cada movimento da

sociedade lhes atribui um novo papel (SANTOS, 1986: 41).

Sob a ótica de Santos (1986), as etapas do crescimento urbano e as formas inscritas

sobre o solo correspondem a cada um dos períodos de sua história. As funções atuais revelam

seja uma adaptação a um quadro herdado do passado, utilizado como ele é, ou adaptado

parcial ou totalmente; seja a criação de uma paisagem, superposta ou justaposta à paisagem já

existente.

Em Metamorfoses do Espaço Habitado, Santos (1991) acentua que a paisagem

apresenta um movimento que pode ser mais ou menos rápido. Em cada momento histórico os

modos de fazer são diferentes, o trabalho humano vai tornando-se cada vez mais complexo

exigindo mudanças correspondentes às inovações. Através das novas técnicas vemos a

substituição de uma forma de trabalho por outra, de uma configuração territorial por outra (...)

Percebe-se assim como o espaço altera-se continuamente para poder acompanhar as

transformações da sociedade. A forma é alterada, renovada, suprimida para dar lugar a uma

outra forma que atenda as necessidades novas da estrutura social. O autor enfatiza que a

paisagem é composta por elementos naturais e artificiais. Ele descreve a paisagem como um

conjunto heterogêneo de formas naturais e artificiais; é formada por frações de ambas, seja

quanto ao tamanho, volume, cor, utilidade, ou por qualquer outro critério. A paisagem é assim

“heterogênea”. A vida em sociedade supõe uma multiplicidade de funções e quanto maior o

número destas, maior a diversidade de formas e de atores. Quanto mais complexa a vida

social, tanto mais nos distanciamos de um mundo natural e nos endereçamos a um mundo

artificial (SANTOS, 1991: 64-69).

Neste sentido a definição de paisagem nos remete ao entendimento de certos aspectos

da cultura.

No que se refere ao relacionamento entre paisagem, cultura, e sociedade, a obra do

geógrafo francês Paul Claval (1999) A geografia cultural, aborda o processo antrópico ou de

humanização como o grande transformador das paisagens (...) A paisagem humanizada toma

3 Esta questão será aprofundada adiante, quando focalizarei o conceito Heiddeggeriano de genius locci (‘espírito do lugar’)

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formas variadas que refletem as escolhas e os meios de diferentes culturas” (CLAVAL, 1999:

289).

Segundo Claval, uma determinada paisagem carrega a marca da sua cultura e também

lhe serve de matriz - ela traz a marca da atividade produtiva de seus habitantes, das técnicas

materiais que eles dominam, das suas convicções religiosas, ideologias e gostos estéticos.

Desta forma ajuda a definir o gosto e os costumes de seus habitantes.

A paisagem constitui desta maneira um documento chave para compreender as

culturas. Os elementos que surgem nesta paisagem, sejam conjuntos arquitetônicos, ruas,

praças, áreas verdes, edifícios isolados, compõem o patrimônio cultural e ambiental de um

povo (CLAVAL, 1999: 14-15).

Assim sendo, para Claval (1999) a cultura está diretamente relacionada ao

funcionamento de uma sociedade. Segundo ele, uma sociedade só pode se manter quando

fornece para seus membros o alimento e os bens materiais, indispensáveis á existência, e

assegura a ordem, a paz civil e a segurança. A estes aspectos devem corresponder aspirações

espirituais, a transmissão de suas aquisições culturais e a permanência de suas instituições.

Desta forma, a maneira pelas quais as tarefas são preenchidas e a organização necessária para

consegui-las tem caráter cultural. O autor acrescenta que existe uma mecânica de status e de

papéis que institucionalizam determinada sociedade. Em todos os níveis, mesmo nos mais

simples, a sobrevivência do grupo demanda uma divisão de tarefas e de responsabilidades

entre os indivíduos segundo sua idade, seu sexo e sua capacidade. Quer se trate de

comunidades onde todos devem participar das tarefas essenciais de sobrevivência ou de

sociedades modernas onde o trabalho é atomizado ao extremo, o sistema só pode funcionar se

cada um desempenhar honestamente o papel, ou os múltiplos papéis, que lhe são imputados:

marido, pai de família, agricultor, pescador, rendeira, comerciante, político, etc. (CLAVAL,

1999:123).

Estes múltiplos papéis sociais se expressam de formas diversas em culturas distintas, e

estão na base do funcionamento da sociedade e as práticas cotidianas expressam detalhes

significativos a cada cultura. Os pescadores apreendem com um golpe de vista os rastros dos

cardumes de peixes, os agricultores percebem e localizam plantas úteis ou venenosas.

A cultura fornece aos homens os meios de se orientar, de recortar o espaço e

de explorar o meio. As relações que os grupos estabelecem com seu ambiente são

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mediadas pelas técnicas e pelas maneiras de se alimentar. Nos meios

humanizados, o ambiente torna-se um componente da cultura, que ajuda a

transmitir, mas que contribui a fixar (CLAVAL, 1999:187).

Como visto acima, os grupos humanos transformam os meios naturais onde se

instalam; seu patrimônio cultural acaba se constituindo como uma herança dos saberes e

valores acumulados pelas diferentes gerações. A tradição é mantida na medida em que os

valores que veicula são mais amplamente adotados pela população, e definem estruturas que

não podem ser modificadas sem alterar profundamente o equilíbrio íntimo de cada um, e sem

comprometer sua identidade. Neste sentido, a cultura tem suas raízes no passado e se

transforma através do contato com o outro, com as iniciativas e inovações que florescem em

cada período e lugar. O contato entre diferentes culturas pode gerar conflitos, mas constituem

uma fonte de enriquecimento mútuo.

A noção de paisagem, entendida como habitat da sociedade, me levou a Cristian

Norberg-Schulz, que vem desenvolvendo uma interpretação textual e pictórica das idéias de

Martin Heidegger (1889-1976), baseando-se, sobretudo, em seu ensaio “Construir, Habitar,

Pensar”. Neste ensaio, Heidegger procurou aprofundar a questão do habitar como uma forma

de espacialização do viver humano em um determinado lugar. O autor introduz o conceito de

genius loci, ou o espírito do lugar, para referir-se à essência dos lugares. Genius loci é um

conceito romano. Na Roma antiga, acreditava-se que todo ser independente possuía um

genius, um espírito guardião. Esse espírito dá vida às pessoas e aos lugares, acompanha-o do

nascimento à morte, e determina seu caráter ou essência. Os antigos reconheciam a suma

importância de entrar em acordo com o genius da localidade onde viviam (Christian Norberg-

Schulz, in, NESBITT, 2005: 444).

A palavra habitat é usada aqui para se referir às relações entre o homem e o lugar.

Quando o homem habita, está simultaneamente localizado no espaço e exposto a um

determinado caráter ambiental. Para conquistar uma base de apoio existencial, o homem deve

ser capaz de orientar-se, de saber como está em determinado lugar. Sob esta ótica, habitar

pressupõe antes de tudo, uma identificação com o ambiente.

A identidade, como expressão de uma determinada cultura, se define em função dos

sistemas de pensamento desenvolvidos, porque são eles que determinam o mundo acessível. O

conceito Heideggeriano de habitar sugere “estar em paz em um lugar protegido” (SCHULZ,

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in, NESBITT, 2005:456). O crítico norueguês tornou conhecida a idéia de uma conexão entre

a arquitetura e o habitar, preocupando-se com a “concretização do espaço existencial”

mediante a formação de lugares. O lugar é a extensão do acontecer solidário, entendendo-se

por solidariedade a obrigação de se viver junto. O lugar pode ser entendido como ‘locus’ do

coletivo. Os aspectos de uma arquitetura, nas palavras do autor, “explicam o ambiente e

exprimem o seu caráter.”(ibid, 2005:32). Sob esta ótica a identidade humana pressupõe a

identidade do lugar.

A vida coletiva, partilhada e estruturada como um todo integra elementos físicos,

sociais e elementos subjetivos, emocionais e estéticos. Entende-se que uma base material, e

imaterial orienta estas práticas a partir das representações sociais presentes nos diferentes

grupos sociais. Ou seja, a situação coletiva de pertencer a um determinado grupo se exprime

nos diferentes modos de uso e apropriação do espaço e remete a uma idéia de identidade

social.

Nesta perspectiva se fazem referências à forma do espaço urbanizado. Convém citar o

arquiteto italiano Aldo Rossi (1931), que foi um dos mais influentes teóricos a se dedicar a

este assunto. Segundo este autor, “Ao descrever uma cidade nos ocupamos

preponderantemente de sua forma, este é um dado concreto que se refere a uma experiência

concreta. Esta forma se resume na arquitetura da cidade, e pela arquitetura da cidade pode-se

entender dois aspectos diferentes; no primeiro caso é possível se assemelhar a cidade a uma

grande obra de engenharia e de arquitetura, mais ou menos grande, mais ou menos complexa,

que cresce no tempo. No segundo caso podemos nos referir a contornos mais limitados da

própria cidade, a fatos urbanos caracterizados por uma arquitetura própria e por conseqüência,

por uma forma própria. Em um ou outro caso nos damos conta de que a arquitetura não

representa senão um aspecto de uma realidade mais complexa”.

Os elementos visuais da forma urbana – o sítio, os limites da cidade, o lote, a praça, o

monumento, a vegetação e o mobiliário urbano, são determinantes na concepção e produção

do espaço da cidade, e responsáveis pela imagem determinada que será então, percebida na

paisagem. A forma da cidade não pode ser desvinculada de seu suporte geográfico, e é muitas

vezes determinada por este.

O referencial teórico apresentado acima, de cunho interdisciplinar, subsidiou a

compreensão da paisagem como expressão histórica e cultural, resultante material de todos os

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processos naturais e sociais que possam ocorrer em um determinado sítio. A contribuição da

geografia cultural permitiu perceber o processo de humanização como o grande transformador

das paisagens, e como esta carrega a marca da sua cultura e também lhe serve de matriz. Com

Milton Santos foi possível aprofundar a compreensão da paisagem como a expressão própria

de uma sociedade, no decurso de sua história. Onde os componentes desta paisagem refletem,

em parte, a escolha representada pelo estilo das construções e os processos de urbanismo, mas

refletem, sobretudo, as necessidades e condições próprias a cada etapa da evolução urbana.

A fenomenologia ressaltou as ações, as percepções, e as simbologias que transformam

os espaços em lugares, onde as experiências e vivências do lugar e a afetividade pela terra

desempenham um papel fundamental na construção e identidade de uma nova paisagem.

No próximo item será focalizado o papel da história na construção da paisagem

contemporânea e o papel da memória na preservação dos referenciais históricos que são parte

fundamental na construção e reconstrução da identidade de seus habitantes.

Fig 6 – Panorama da área de estudo Registro da paisagem na área central da Lagoa da Conceição feito do morro onde se situa a atual rampa de vôo livre no morro que se extende à Oeste da laguna. O aglomerado urbano abaixo, e no centro desta fotografia, representa o atual centrinho da lagoa; à direita temos a Lagoa de Baixo onde podemos observar o Canto da Lagoa. Ao fundo vemos o Retiro da Lagoa e as dunas se extendendo até a praia da Joaquina Fotografia do autor, 2005.

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Fig. 7 – Registro do aglomerado urbano se espalhando nas margens da laguna Panorama da área de estudo, apresentando a Avenida das Rendeiras em primeiro plano com a urbanidade se consolidando no centrinho da Lagoa (à direita) e do Canto da Lagoa (à esquerda) no fundo da imagem; É possível se notar nesta fotografia a ocupação das planícies nesta área central da laguna, que avançam em direção aos morros ao fundo, à Oeste. No alto à direita do centro da fotografia, pode-se ainda observar o cume do Morro da Cruz; no Centro da cidade. Fotografia do autor, 2006.

Fig. 8 – Panorama sobre a Estrutura Urbana da área de estudo Com o cair da noite a estrutura urbana da Lagoa se acende desenhando-a na paisagem. Nas fotografias panorâmicas noturnas podemos desvendar os principais eixos de ligação e os principais núcleos da ocupação pela intensidade das luzes. Nesta fotografia nota-se o eixo viário principal com Av. das Rendeiras com a luz branca de maior intensidade vindo em direção ao morro ocidental da Lagoa onde foi feito este registro. Observa-se também a conexão á direita pela av.Osni Ortiga em direção ao Rio Tavares que apresenta um núcleo de maior intensidade luminosa no canto superior direito. No canto inferior à direita pode-se observar o desenho geométrico do condomínio Saulo Ramos e Village no Canto da Lagoa; e finalmente, no canto inferior esquerdo da fotografia o centrinho da antiga freguesia, com maior intensidade luminosa mostrando sua via principal de circulação avançando em direção á Igreja que aparece no alto à esquerda deste registro fotográfico. Fotografia do autor, 2006.

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Fig. 9 – A grande transformação. O panorama da transformação da área central da Lagoa da Conceição. Um desenho de sua paisagem partindo do ano 1900 quando apenas a igreja e poucas edificações se destacavam, e os morros eram ‘pelados’ pelas roças. Já no ano 2000 (desenho central) a urbanização alcança as áreas planas e os morros da bacia desta área. Os dois últimos desenhos apresentam uma visão crítica do crescimento urbano contemporâneo. Desenhos sobre seqüência fotográfica da situação atual; Grafite e crayon sobre papel, do autor, 2006.

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1.2 Cidade e Memória

“Atiramos o passado ao abismo, mas não nos

inclinamos para ver se está bem morto.” William Shakespeare

As paisagens são marcadas por cidades, que segundo Henry Lefebvre (1991),

representam a projeção da sociedade sobre um local (1991: 56). A cidade sempre teve relação

com a sociedade no seu conjunto, com a sua composição e seu funcionamento, com seus

elementos constituintes (campo e agricultura, poder ofensivo e defensivo, poderes políticos,

Estados, etc.), com sua história. Portanto, ela muda quando muda a sociedade no seu conjunto.

Entretanto, as transformações da cidade não são os resultados passivos da globalidade social,

de suas modificações. A cidade depende também e não menos essencialmenrte das relações de

imediatice, das relações diretas entre as pessoas e grupos que compõe a sociedade (famílias,

corpos organizados, profissões e corporações, etc.); a organização dessas relações imediatas e

diretas, suas metamorfoses refletem às mudanças nessas relações. Ela se situa num meio

termo, a meio caminho entre aquilo que se chama de ordem próxima (relações dos indivíduos

em grupos mais ou menos organizados e estruturados, relações destes grupos entre si) e a

ordem distante, a ordem da sociedade, regida por grandes e poderosas instituições (Igreja,

Estado); por um código jurídico formalizado ou não, por uma “cultura” e por conjuntos

significantes.

A cidade é uma obra, a ser associada mais com a obra de arte do que com o simples

produto material. Se há uma produção da cidade, e das relações sociais na cidade, é uma

produção e reprodução de seres humanos por seres humanos, mais do que uma produção de

objetos. A cidade tem uma história; ela é uma obra da história, isto é, de pessoas e grupos bem

determinados que realizam esta obra nas condições históricas (LEFEBVRE, 1991: 46-47).

Para entender a história da cidade precisamos percorrer outros caminhos e buscar novas

formas de contá-la. O patrimônio construído é uma delas, pois elementos de seu urbanismo e

sua arquitetura representam uma memória visível desta história. Uma outra forma é através de

seu patrimônio imaterial.

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Italo Calvino (1990), com uma história poética das cidades da antiguidade4, nos

apresenta uma paisagem social da urbanidade e do viver humano nelas refletidos. Nela, ele

revela a cidade como um sólido e poderoso significado expressivo de edificação de uma

sociedade e de sua cultura. Ele conta-nos pequenos detalhes que conferem uma identidade

específica a cada cidade:

(...) tentarei descrever a cidade de Zaíra dos altos bastiões. Poderia falar de

quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferência dos

arcos dos pórticos, de quais lâminas de zinco são recobertos os tetos; mas sei que

seria o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das relações

entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado: a distância do

solo até o lampião e os pés pendentes de um usurpador enforcado; o fio esticado

do lampião à balaustrada em frente e os festões que empavesavam o percurso do

cortejo nupcial da rainha; a altura daquela balaustrada e o salto do adúltero que

foge de madrugada; a inclinação de um canal que escoa a água das chuvas e o

passo majestoso de um gato que se introduz numa janela; a linha de tiro da

canhoneira que surge inesperadamente atrás do cabo e a bomba que destrói o

canal; os rasgos nas redes de pesca e os três velhos remendando as redes que,

sentados no molhe, contam pela milésima vez a história da canhoneira do

usurpador, que dizem ser o filho ilegítimo da rainha, abandonado de cueiro ali

sobre o molhe. A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das

recordações e se dilata. Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter

todo o passado de Zaíra. Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém

como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos

corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras,

cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras.

(CALVINO, 1990: 14)

Já dizia o arquiteto italiano Vittorio Gregotti, que “A essência física da história é o

ambiente construído que nos cerca; como se transforma em coisas visíveis, como reúne

significados profundos que se diferenciam não só pelo que o ambiente aparenta ser, mas

também pelo que ele é naturalmente. O ambiente se compõe dos vestígios de sua própria

história.” (Gregotti, in, NESBITT(org), 2005:373).

4 Nesta obra o comerciante genovês Marco Polo encontra-se com o imperador mongol Kublai Khan, na capital do império, durante o século XIII. O imperador não pode sair da capital e, para satisfazer sua curiosidade, Marco Polo descreve a ele a paisagem das cidades e dos lugares por onde passou.

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Page 34: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

Sob esta ótica, trabalhar com a memória pode ser como percorrer a superfície porosa

de nossa cultura presentificada nos patrimônios culturais. A cidade é heterogênea, uma vez

que resulta de várias épocas e de contraditórios momentos históricos. Neste sentido podemos

comparar uma cidade com uma enciclopédia – ela guarda memórias, conflitos, sonhos,

expectativas, medos coletivos. Isto pode ser observado através de sua produção simbólica que

expressa o valor imaterial de seus lugares e monumentos. Assim, é possível dizer que a

cidade, antes de se prestar a um determinado fim, o de abrigo de atividades realizadas pelo

homem, é depósito de imaginações. Suas construções representam as diversas épocas de sua

história, que com o decorrer do tempo passam a incorporar seu acervo simbólico.

As cidades como enfatiza Lauro César Figueiredo (2005), são constantemente

construídas e reconstruídas, assim como suas sociedades se reestruturam, modificando seus

valores e suas relações com o meio ambiente. No entanto, esta forma de “reestruturação” ora

vigente nas cidades, talvez pela falta de clareza em assumir novos valores, vêm ocasionando a

destruição das áreas históricas e a perda dos valores culturais e tradicionais da sociedade, ou

seja, a descaracterização cultural destes lugares. Parece não se dar importância à necessidade

de preservação de sua história, à memória urbana, à documentação dos aspectos importantes da

cultura local que estão rapidamente se transformando ou desaparecendo. Desta forma,

acrescenta Figueiredo, o progresso e o desenvolvimento urbano sugerem também um processo

de perda de referências, através da degradação do ambiente antigo; tanto natural quanto

construído. Esses referenciais sofrem um processo de deterioração e destruição física e social

que se manifesta pela compreensão, algumas vezes tardia, da importância da preservação do

passado (FIGUEIREDO, 2005: 36).

A cidade contemporânea evoca uma memória efêmera. Quando parece que se começa

a consolidar uma resposta a um determinado problema, sobrevém uma nova solução, uma

nova resposta. A cidade está sujeita a este processo contínuo de mudanças, construção e

destruição, de substituição de elementos que não se consolidam durante a história. Perdem-se

muito facilmente os fragmentos que poderiam salvar alguma unidade de sua memória, e assim

se caracterizam descontinuidades não só temporais, mas também espaciais. A nova arquitetura

parece não estabelecer uma relação de continuidade formal, tipológica ou urbanística com

aquilo que já existe, o ritmo veloz das mudanças conspira contra a consolidação de imagens,

que não ficam na memória social.

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Page 35: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

Este processo de renovação urbana contínua afeta a identidade das cidades. As perdas e

a deterioração do patrimônio histórico possuem suas raízes na política, na economia e na

ocupação do território. Por um lado, a urbanização e novas atividades de comércio trazem

consigo melhores condições de vida, lazer e trabalho; por outro lado, vemos o ritmo acelerado

das mudanças transformando constantemente os antigos espaços. Como bem lembra

Figueiredo (FIGUEIREDO, 2005:140), “... a implantação de algumas instituições formais

como as escolas, igrejas, clubes, ensejavam na população formas de comportamento

diferenciadas daquelas as quais estavam acostumadas na vivência cotidiana de um povoado

desprovido dessas infra-estruturas básicas”.

Carlos Nelson dos Santos (1986) também alerta para o fato de que “espaços centenários

ou bicentenários são substituídos sem parar nas cidades brasileiras. Suportavam bem todo tipo

de uso. Os novos são inferiores, mesmo no caso excepcional de serem bem desenhados. A

razão é simples: excluem a mistura, especializam, isolam e tornam as variações difíceis (...)

Nos centros coloniais, carregados de religiosidade, igrejas de ordens, capelas, oratórios, faziam

às vezes de marcos que, continuando o casario homogêneo, quebravam-lhe o ritmo.

Preenchiam os vazios, conferiam dramaticidade a espaços. Sobrepunham-se a fundos que se

estruturavam a partir de sua diferença. Explicavam e aliviavam as monotonias da igualdade.

Perdeu-se tal ciência. Ela anda ausente das modernas realizações do urbanismo brasileiro,

cheias de evocações individualistas e desagregadoras. Soluções egoístas, que apostam no

divórcio e não querem saber de nada diferente por perto de cada edificação. Tornada um

mundo isolado, uma mensagem magnífica por si mesma ...” (SANTOS, 1986:51-52).

Como vimos no capítulo anterior uma cidade no decorrer de sua história pode ser vista

como um conjunto de fragmentos de cidades que vão se edificando umas sobre as outras, e que

se substituem e se acumulam. Cada sociedade produz os elementos particulares de

configuração espacial de sua existência. Parte de nossa memória se encontra fora de nós, em

nossos objetos, nos lugares construídos e vividos.

Se o passado deve ser preservado é porque ele tem sempre algo a dizer para situar e

referendar o presente; afinal uma cidade não é feita somente do desenho de ruas e arquiteturas,

ela é feita também de sonhos, segredos, interpretações objetivas e subjetivas que vão se

armazenando no seu desenho. Bairros, praças, ruas, edificações e monumentos documentam a

ficção vivida de uma cidade.

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Page 36: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

Neste sentido, identidade, memória e patrimônio são três conceitos que se cruzam e

que acabam por estabelecer entre si uma rede de interdependência. A identidade de um lugar

representa um conjunto de valores que são próprios de sua cultura, e que como tal a diferencia

dos demais lugares. Pensar a interação entre identidade espacial (lugar), memória e

patrimônio, se torna cada vez mais prioritário com os avanços da globalização. Em uma época

em que o conceito do ‘não-lugar’5 adquire cada vez mais importância no debate sobre a perda

da identidade espacial e o aumento da uniformização dos espaços urbanos, a busca desta

interação é uma forma de resistência. Pode ser caracterizada como uma busca de raízes.

A memória de uma cidade é também a memória de seus habitantes. Para imaginar o

novo é preciso recorrer à história, ou, colocado de outra forma, só é possível ser original a

partir da tradição. É necessário conhecê-la para poder transformá-la sem destruí-la. A

invenção dos significantes identificadores do presente depende da capacidade de raciocínio, e

este pressupõe a memória.

A questão da memória está na interseção entre história e identidade coletivas. A

memória torna-se imprescindível para a reconstituição do passado, seja individual ou coletivo,

sendo considerada, portanto, um recurso fundamental para a apreensão da identidade e da

história. Neste aspecto Maurice Halbwachs (1990) enfatiza diferentes elementos que considera

como estruturadores de nossa memória e também presentes na memória coletiva da qual

fazemos parte. Para o autor, a memória não é só um fenômeno de interiorização individual, ela

é também uma construção social e um fenômeno coletivo. Sendo uma construção social, a

memória é, em parte, modelada pela família e pelos grupos sociais. Vale dizer, a memória

individual se estrutura e se insere na memória coletiva. A memória de um lugar, de uma

cidade, é segundo ele, uma memória coletiva.

Neste sentido, Halbwachs ressalta como as testemunhas servem para precisar e

complementar os detalhes que esquecemos, aos quais adicionamos uma ‘massa compacta de

lembranças fictícias’, desde que tragam um conjunto de detalhes que rememore em nós a

lembrança que já possuímos, mas esquecemos. A memória de uma pessoa pode ser assim a

memória de muitos, possibilitando a evidência dos fatos coletivos (1990:26).

5 Marc Augé introduziu a expressão “não-lugar” para se referir aos espaços de passagem, frutos do urbanismo contemporâneo, incapazes de originarem qualquer tipo de identidade e de relação em uma sociedade onde o indivíduo não tem como escapar da espetacularização da vida.

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Page 37: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

A historiadora Ecléa Bosi (1994:63), destaca que no estudo da lembrança de pessoas

idosas é possível verificar uma história social bem desenvolvida; estas pessoas já atravessaram

um determinado tipo de sociedade, com características bem marcadas e conhecidas; elas já

viveram quadros de referência familiar e cultural, igualmente reconhecíveis: enfim sua

memória atual pode ser desenhada sobre um pano de fundo mais definido do que a memória de

uma pessoa jovem, ou mesmo adulta, que, de algum modo, ainda está absorvida nas lutas e

contradições de um presente que a solicita muito mais intensamente do que uma pessoa de

idade.

Há um momento em que o homem maduro deixa de ser um membro ativo da sociedade,

deixa de ser um propulsor da vida presente do seu grupo: neste momento de velhice social

resta-lhe, no entanto, uma função própria; a de lembrar. A de ser a memória da família, do

grupo, da instituição, da sociedade: “nas tribos primitivas, os velhos são os guardiões das

tradições” (BOSI, 1994:22).

Ao introduzir o livro de Bosi, Marilena Chauí lembra que “a função social de uma

pessoa de idade avançada é lembrar e aconselhar – memini, moneo – unir o começo e o fim,

ligando o que foi e o porvir. Mas a sociedade capitalista impede a lembrança, usa o braço servil

velho e recusa seus conselhos. Esta sociedade desarma o velho mobilizando mecanismos pelos

quais oprime a velhice, destrói os apoios da memória e substitui a lembrança pela história

oficial celebrativa (...) Que é, pois, ser velho na sociedade capitalista? É sobreviver. Sem

projeto, impedido de lembrar e ensinar, sofrendo as adversidades de um corpo que se

desagrega à medida que a memória vai se tornando cada vez mais viva, a velhice, que não

existe para si, mas somente para o outro. E esse outro é um opressor” (BOSI, 1994: XIX).

... “Já não existe mais”. Essa frase dilacera as lembranças como um punhal e, cheios de

temor, ficamos esperando que cada um dos lembradores não realize o projeto de buscar uma

rua, uma casa, uma árvore guardadas na memória, pois sabemos que não irão encontrá-las

nessa cidade (...) onde os preconceitos da funcionalidade demoliram paisagens de uma vida

inteira” (Ibid, XIX)

É assim através da memória do idoso que a vida social e a paisagem do passado chegam

à contemporaneidade. O passado pode ser compreendido por quem não o viveu e humanizar o

presente.

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Page 38: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

O historiador Paul Thompson (1992) mostra como uma fonte oral pode ser utilizada

juntamente com os recursos investigativos tradicionais, na construção de uma memória mais

consciente e democrática do passado. Ele orienta sobre como proceder no registro e

interpretação da história oral, a escolha dos personagens, a técnica de entrevista, o

armazenamento e catalogação dos dados, assim como a interpretação em face aos documentos

e estatísticas obtidos em campo.

Segundo Thompson (1992: 25), “no sentido mais geral, uma vez que a experiência de

vida das pessoas de todo o tipo possa ser utilizada como matéria-prima, a história ganha nova

dimensão. A história oral oferece, quanto a sua natureza, uma fonte bastante semelhante à

autobiografia publicada, mas de muito maior alcance. (...) os historiadores orais podem pensar

agora como se eles próprios fossem editores: imaginar qual a evidência de que precisam, ir

procurá-la e obtê-la (...) A entrevista propiciará, também, um meio de descobrir documentos

escritos e fotografias que, de outro modo, não teriam sido localizados”.

A memória do idoso torna-se particularmente importante no registro da história de

comunidades que não possuem mecanismos de proteção de seu patrimônio histórico-cultural,

devido à ausência de uma tradição de documentação face à aceleração dos processos de

mudanças e substituições das antigas estruturas. Este é o caso da Lagoa da Conceição.

II

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Page 39: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

História e memória

O pesquisador não pode se furtar de percorrer os caminhos da história – nela,

ele poderá recolher vestígios, os rastros deixados pelos registros realizados por aqueles

que testemunharam o desenvolvimento social, cultural e econômico do lugar sendo

investigado. Só assim ele poderá estabelecer e criticar um testemunho, além de traçar

indícios da história oculta, aquela dos despossuídos, e trazer à tona “um outro lado da

história”. Esta história não oficial é o fio condutor deste trabalho e os testemunhos

daqueles que viveram seu cotidiano será o foco do próximo capítulo.

Aqui estará sendo focalizada a história contemplada na bibliografia clássica,

sendo que no período histórico correspondente à vida das pessoas entrevistadas, inseri

trechos de suas entrevistas, com o objetivo de ilustrar e/ou contestar os fatos

documentados, através da memória de pessoas que testemunharam esta história.

2.1 Primeiros habitantes – fase pré-colonial

Segundo Walter Piazza, no momento da descoberta do Brasil ainda era bastante

expressivo o número indígenas que habitavam Santa Catarina e tal fato é comprovado pelos

relatos dos viajantes que, aqui, estiveram, e, posteriormente, pelo testemunho dos

missionários. Assim, no litoral catarinense situavam-se os indígenas da grande nação tupi-

guarani, da ‘lingua geral’ e que, regionalmente, vão ser denominados de ‘os Carijós’

(PIAZZA, 1983: 73)

Praticamente em toda a extensão da Ilha de Santa Catarina e em muitas outras das que

integram o seu arquipélago são encontradas mostras da presença de nativos de épocas

diversas, diz Carlos Humberto Correa. Os vestígios insulares são superiormente abundantes

em relação aos existentes no continente fronteiro, acrescenta o autor, o que indica a atração

que as ilhas exerciam sobre aqueles grupos que, assim, eram atraídos pela abundância de

alimentos e, certamente, se sentiam protegidos de ataques inimigos. Estes povoadores pré-

históricos, de origem tupi-guarani, pertencem a denominada “fase Jurerê”, com ampla

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Page 40: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

produção de cerâmica, aproveitamento de peças líticas e obras pictóricas distribuídas por todo

o litoral da Ilha de Santa Catarina e ilhas maiores do aquipélago, principalmente como a do

Arvoredo, no norte, e Campeche no leste (CORREA, 2004:23).

Sílvio Coelho dos Santos acrescenta que não se pode mais pensar que os indígenas que

habitavam o litoral do Brasil, e no caso particular os da ilha de Santa Catarina, fossem um

grupo de bárbaros, sem conhecimento de coisa alguma, vivendo sem organização e em grau

de penúria. Não, os indígenas formavam sociedades organizadas e plenamente adaptadas ao

ambiente costeiro. Haviam desenvolvido uma tecnologia adequada para esse ambiente onde

viviam ‘o seu mundo’ como qualquer homem (SANTOS, 1973:41).

Estes indígenas foram abundantemente encontrados pelos primeiros navegadores

europeus que chegaram à Ilha no século XVI, desaparecendo gradativamente à proporção em

que o contato cultural foi se efetuando, saindo da Ilha em fuga por motivos diversos ou se

aculturando (CORREA, 2004:23).

A função de abrigo e a posição estratégica para a navegação, foram os principais

fatores que levaram os navegadores estrangeiros ao descobrimento e reconhecimento da costa

catarinense, e da Ilha de Santa Catarina.

Em 1515, um único ponto da costa catarinense mereceu ser assinalado na projeção

cartográfica do navegador Juan Dias Solís: a baía dos ‘perdidos’ (designação do local em que

se perdeu uma embarcação da sua esquadra) – que corresponde às águas interiores entre a Ilha

de Santa Catarina e o continente fronteiro. No mapa mundi de Diego Ribeiro, em 1529, é que,

pela primeira vez, o nome de Santa Catarina é atribuído para a ilha e o mar que a envolve.

Sebastião Caboto, a quem se atribui o batismo de Santa Catarina à Ilha, na verdade ao publicar

os mapas da sua viagem, em 1544, chamou-a de “Porto dos Patos6” (PIAZZA, 1983:85).

A colonização, em si, começou anos mais tarde com a chegada de Francisco Dias

Velho. De acordo com Correa (2004), a data certa da fundação da póvoa da Ilha de Santa

Catarina é discutida pelos historiadores que se dedicam ao assunto. Entretanto, parece ser de

Evaldo Pauli o balizamento final em 1673 como o início da empreitada daquele bandeirante

paulista. Em 1678, Dias Velho ergueu uma ermida dedicada à Nossa Senhora do Desterro,

aproveitando o mesmo local, no alto de uma colina defronte ao mar, na qual ainda estava o

cruzeiro de pedra erguido vinte e sete anos antes. O povoado da Ilha de Santa Catarina foi

6 Havia um grupo indígena chamado Patos (pelos estrangeiros) que ocupava a área no entorno do rio Massiambu.

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Page 41: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

elevado à categoria de Vila em 26 de março de 1726, com a denominação de Vila de Nossa

Senhora do Desterro (CORREA, 2004: 40-47).

A partir de então teve início o processo imigratório português, com a vinda de

moradores do Arquipélago dos Açores. Viviam os açorianos, desde o século XV, naquelas

pequenas porções de terra montanhosa e extremamente escarpadas; era gente familiarizada

com as águas e com o mar e que se adaptaria facilmente às condições geográficas do sul do

Brasil.

A necessidade de fortificar e povoar a Ilha foi constatada pelo brigadeiro português

José da Silva Paes7, que em carta datada de 23 de Agosto de 1742, pleiteia:

Se das ilhas puderem remeter alguns casais seria utilíssimo e ainda alguns

recrutas, por que assim se aumentaria a cultura destas terras que são próprias, não

só para todos os frutos, da América, senão tão bem da Europa, e dos filhos dos

mesmos casais se recrutaria o terço ou tropas, que aqui assistissem, e seriam mais

permanentes do que os de fora (PIAZZA, 1983:123).

O edital do Rei de Portugal foi a resposta que autorizava a vinda de açorianos. Com

data de 31 de Agosto de 1746, autorizava o transporte de quatro mil famílias:

El-Rei nosso senhor atendendo as representações dos moradores da ilhas dos

Açores, que tem pedido, mande tirar delas o número de casais que for servido, e

transportá-los à América, donde resultará às ditas ilhas grande alívio em não ver

padecer os seus moradores reduzidos aos males que traz consigo a indigência em

que vivem, e ao Brasil um grande benefício em povoar de cultores alguma parte

dos vastos domínios do dito estado, foi servido por resolução de 31 de agosto do

presente ano, posta em, consulta do seu Conselho Ultramarino de oito do mesmo

mês fazer mercê aos casais das ditas ilhas, que se quiserem ir estabelecer no

Brasil de lhes facilitar o transporte, o estabelecimento, mandando-os transportar á

custa de sua real fazenda, não só por mar, mas também por terra até os sítios que

se lhes destinarem para as suas habitações, não sendo homens de mais de 40 anos,

e não sendo as mulheres de mais de 30; e logo que chegarem a desembarcar no

7 O brigadeiro José da Silva Paes foi o escolhido para ser o primeiro governante da terra catarinense. Teve uma vida militar muito ativa, quer em Portugal, quer no Brasil, destacando-se, sempre, como engenheiro militar, o que o recomendou no seu envio ao Brasil, como executor dos planos de fortificações do Rio de Janeiro, Santos, Colônia do Sacramento e ‘continente’ do Rio Grande (CORREA, 2004).

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Brasil a cada mulher que para ele for das ilhas, de mais de 12 anos e de menos de

25, casada ou solteira, se darão dois mil e quatrocentos de ajuda de custo, e aos

casais que levarem filhos se lhes darão para ajuda de os vestir mil réis para cada

filho, e logo que chegarem aos sítios que hão de habitar, se dará a cada casal uma

espingarda, duas enxadas, uma enxó, um martelo, um facão, duas facas, duas

tesouras, duas verrumas e uma serra com sua lima, e travadeira, dois alqueires de

semente, duas vacas e uma égua, e no primeiro ano se lhes dará a farinha que

entender basta para o sustento (...) (CORREA, 2004: 77). 8

2.2 A freguesia da Lagoa da Conceição

Com a vinda dos colonizadores açorianos a partir de 1746 são estabelecidas sete

freguesias: São José, São Miguel, Nossa Senhora do Rosário, Santa Ana, no continente. Nossa

Senhora da Conceição, Nossa Senhora da Lapa, Nossa Senhora das Necessidades, na Ilha de

Santa Catarina. Casal comenta o perfil da população à época:

A maior parte da população desta província é oriunda das Ilhas dos Açores:

os negros não são numerosos, e os mestiços ainda menos. Dos aborígines os Patos

entranharam-se pelo continente; os Carijós por serem afáveis, foram os primeiros

apreendidos pelos vicentistas: e daqui procedeu fazerem-lhes o nome comum a

todos os domesticados, de qualquer nação que fossem. (CASAL, 1976: 89)

A paisagem da Ilha também foi por ele descrita em Corografia Brasílica:

A Ilha de Santa Catarina, que tem perto de 9 léguas de comprido norte-sul.

Com uma até duas e meia de largura, é montuosa, abundante de água. Ainda

coberta de matos em parte. Não é falta de pedra, nem de barro. Entre seus montes

há várzeas de maior ou menor largura, e ainda sítios pantanosos. As praias

formam muitas enseadas, e abundam as conchas. Na parte oriental há uma lagoa

de duas léguas de comprimento norte-sul, e mais de 1000 braças na maior largura,

e profunda em partes: a qual estreita muito em certa paragem, de sorte que

parecem duas assaz desiguais. Unidas por uma garganta de 50 braças de largo

8 Estas informações foram extraídas de KRUSENSTERN, A. J. von. Atlas sur Reise um die wealt unternammen auf befehl seiner kaiserlichem majestat Alexander der Ernfen auf den comanmado. Acervo particular de Ylmar Corrêa Neto.

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com uma grande ponte. Quando no inverno começa a inundar as adjacências mais

baixas, os moradores da vizinhança abrem-lhe um desaguadouro para uma

enseada que lhe fica pouco arredada para o nordeste. O qual é logo entupido pela

ressaca do mar, em cessando a corrente, durante a qual lhe entra do oceano

grande quantidade de tainhas, robalo, carapebas, acarás, linguados, com outras

castas de pescados, que a fazem piscosa em todo o tempo. Na extremidade

setentrional deságua uma ribeira denominada Rio vermelho. Em cujas adjacências

se criam as melhores melancias de toda a província. (...) A paróquia de Nossa

Senhora da Conceição, que fica obra de uma légua ao oriente da capital, sobre um

teso pouco arredado da lagoa grande com vista duma considerável extensão do

oceano, é abastada de pescado. Os seus paroquianos cultivam linho, canas-de-

açúcar, mandioca com outros víveres do país. No seu distrito há uma armação de

baleias. (CASAL, 1976: 94-95)

A paróquia representou o primeiro embrião desta localidade no sopé do morro, e

afastado dss margens da laguna. Trataremos a seguir do seu processo de formação e de

consolidação.

Em 1746 começam a chegar os primeiros imigrantes açorianos à Ilha de Santa

Catarina. Alguns se estabelecem junto ao assentamento de Nossa Senhora da Conceição,

oficializando a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Lagoa em 19 de junho de 1750.

Sobre seus limites, em visita a este território em 1811, o padre Agostinho José Mendes

dos Reis deixou em relato um ‘termo de visita’, onde descreve as suas impressões sobre os

limites dessa freguesia.

Passou-se, depois, á freguesia de N. Sra. Das Necessidades, onde os objetos

de culto e paramentos estavam ‘com toda a decência possível’. Ali existiam as

irmandades do Santíssimo Sacramento e São Miguel e Almas, possuindo 420

“fogos” com 2026 “almas de sacramentos”. Limitava-se ao norte, aos Ingleses,

com a freguesia de N. Sra. Das Necessidades, ao sul, no Rio Tavares, onde se

extremava com a freguesia de N. Sra. Do Desterro, ao oeste, no Córrego Grande,

onde se divide com a freguesia de N. Sra. Do Desterro e a leste, com o “mar alto

imediato” (PIAZZA, 1983:314).

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Não se tem uma descrição detalhada sobre a implantação inicial do sítio, mas supõe-se

que tenha sido semelhante às demais povoações, com distribuição das terras entre os

agregados, de onde obteriam seus meios de subsistência (CABRAL, 1939:36).

A estruturação de ‘núcleos habitados’ neste período, tiveram como diretrizes as

normas eclesiásticas, que ordenavam à localização das construções, seguindo o modelo

tradicional da urbanização portuguesa. Na prática brasileira, segundo Murilo Marx (1991),

Eram vagas recomendações sobre o feitio urbano, suas vias, suas parcelas de

terreno, suas construções principais; A coroa, na prática, delegava a mitra o

desenvolvimento físico da cidade. A formação dos primeiros núcleos seguiram

um aspecto principal – o fundiário – e de conseqüência física, o parcelamento da

terra. Mais do que variados edifícios religiosos, o seu terreno e a ordenação das

vizinhanças foram decisivos para a conformação dos ‘embriões urbanos’.

Na Lagoa da Conceição, a igreja surgiu como edificação em destaque, a partir da qual,

se organizava a ‘vila’, os caminhos, o pequeno casario, e os espaços de lazer; Para a igreja, se

reservava o lugar mais alto e privilegiado; as casas e os engenhos se estabeleceram jnto aos

morros; e os barracos de pesca se espalhavam próximos às margens da laguna.

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Fig. 10 – Nesta pintura de Joseph Brüggemannn, de 1868, a paisagem herdada do período da colonização, pode-se observar a igreja na encosta do Morro da Freguesia, ao centro esquerdo da imagem e o caminho principal que estruturava a Freguesia (in CORREA, 2004:206).

A paisagem da Lagoa da Conceição é descrita por Virgílio Várzea:

Entra-se a descer o morro, por onde a estrada coleia num leito de barro

vermelho, pedregoso e cortado de córregos murmurantes e cristalinos até quase o

fim da encosta, onde assenta a sede da freguesia, composta de um grande largo

gramoso ao fundo do qual está a pequena igreja consagrada à nossa Senhora da

Conceição, com seu adro amplo e bem calçado, a cuja frente se ergue o alto

cruzeiro de madeira pintado de negro. Acham-se alinhadas em volta as principais

casas do povoado, algumas envidraçadas e assobradadas, todas em geral caiadas e

de um só pavimento, vastas e bem edificadas como obras antigas, que são, e onde

habitam os mais abastados agricultores do lugar. Nessa igreja celebra-se

anualmente uma festa que atrai muita gente da capital e dos lugarejos vizinhos,

trazendo movimentada e em alegria, durante uma semana, a população da

freguesia, que se diverte expansivamente, às noites, desde às vésperas até o dia,

em bailes e fandangos seguidos. A festa é a da padroeira do sítio e realiza-se a 8

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de dezembro (...) Da igreja para baixo, pelos vários caminhos e atalhos das

colinas e da planície, onde jaz a lagoa espraiando-se a 12 quilômetros de

extensão, entre montículos e grandes tabuleiros ou coroas marginais, desdobram-

se as demais habitações e os engenhos, em meio aos terrenos quadriculados pelas

roças de mandioca, de milho, cana, feijão e amendoim, semelhando a um enorme

tabuleiro de xadrez (VÁRZEA, 1985:92).

A forma urbana inicial da Freguesia surgiu em função de dois fatores primordiais, o

meio natural e a circulação, ou seja, da proximidade da água e da comida, e parece ser desta

forma que os antigos moradores se situaram no território e dividiram as terras.

Segundo Carmem Rial (RIAL, 1987), as águas determinaram a localização das

famílias no território da Lagoa; e seus meios de transporte, alimentação e os afazeres

domésticos eram sempre relacionados às águas da lagoa. A orientação hidrográfica era válida,

tanto para os deslocamentos à curta distância, quanto para os deslocamentos à média distância,

ou até mesmo longas viagens. Nas pequenas distâncias entre uma casa e outra da vizinhança,

eram os córregos que serviam como pontos de referência; que ajudavam a qualificar uma

posição ou um movimento.

As habitações dos colonos eram muito simples, conforme pode ser observado em

relatos de viajantes estrangeiros, que estiveram na ilha, nos séculos XVIII e XIX, como este

registro feito pelo Barão Georg Heinrich Von Langsdorff em 1803:

As casas dos colonos são pequenas, bem instaladas e geralmente em lugar

bastante bem situado. O interior consiste quase sempre em uma sala de estar, um

ou dois quartos e uma cozinha. Esta, às vezes, também pode estar situada à parte

e ainda provida de um quarto que serve para abrigar os escravos negros. Em casas

de pessoas mais abastadas, a sala é assoalhada, o que não acontece em casas de

pobres. Poucas são cobertas de telhas, pois a maior parte é com folhas de

palmeira, cuja espécie ainda é desconhecida. Aldeias como na Europa, existem

poucas. As casas se situam espalhadas umas das outras a uma maior ou menor

distância. Cada agricultor possui suas terras em volta de sua choupana. A maior

parte das casas está ao longo da costa, com plantações de laranja, café, bananas e

algodão em sua volta. Nas proximidades de cada choupana encontra-se,

geralmente à sombra dos pés de laranjas, uma fonte de água cristalina. (SC:

viagens: descrições: séc XVIII e XIX, 1979:188)

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Page 47: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

Segundo Sônia Maluf (1993), A casa de uma família típica de pescadores e lavradores

era então muito simples. Os lotes não tinham uma delimitação muito exata, normalmente não

eram sequer cercados. Nos espaços contíguos à casa, pelo ‘uso’, se consolidavam os lugares

de estender a rede, pendurar os peixes, lavar e estender as roupas, criar animais domésticos e

plantar a horta.

A vida familiar e de seus membros se dava em função destas atividades: a pesca e a

agricultura, ambas determinando espaços e sub-espaços. As atividades no núcleo da família

eram hierarquizadas funcionalmente (hierarquia expressada na cozinha, por exemplo) e

produziam, por conseqüência, uma hierarquização social (expressada nos espaços dos quartos

e sua localização com respeito à frente das casas).

Nas casas existiam espaços de domínio masculino durante o dia (pais e filhos), espaços

de domínio feminino à noite (renda-mãe-filhas), e outros espaços de maior status social.

Porém não expressos em seu maior ou menor uso, mas sim, por sua localização com respeito

aos pontos tidos como nobres como os caminhos ou a laguna.

2.2.1 A atividade pesqueira e a vida social

A pesca, como trabalho, era a atividade de maior significação e abrangência na vida

social. É uma atividade que depende das condicionantes climáticas e por isso está diretamente

relacionada à natureza. Esta atividade condicionava o ritmo da vida social.

A pesca envolve atividades preliminares, e ou paralelas, que normalmente eram feitas

nos ranchos ou casas. As atividades de tecer e consertar redes, bem como a limpeza de canoas

eram feitas nos ranchos. Já o conserto e até a confecção delas, poderia ser, pelo volume,

realizado em casa.

Até a segunda metade do século XX estas atividades tinham grande importância para a

vida social na comunidade da Lagoa.

Este ofício se iniciava antes dos 10 anos de idade com a ajuda nos trabalhos

complementares. Já a iniciação propriamente dita se dava a partir desta idade com o

acompanhamento aos pais e irmãos quando iam para o ‘mar’. O conhecimento transmitido

passava pela construção de instrumentos para a pesca, como a bernunça, tarrafa, redes e até

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Page 48: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

mesmo canoas. A partir dos 15 anos os jovens iam pescar individualmente, pois já possuíam

todos os instrumentos de pesca; ou optavam pela pesca industrial nos períodos de inverno

quando iam para o Rio Grande.

Na Lagoa o trabalho da pesca era feito coletivamente quando do uso de redes de

captura, que consistiam em cerco e arrastão. Ou era feito individualmente na pesca do

camarão com o uso de bernunça ou ‘puçá’, ou ainda na pesca de peixes com a ‘tarrafa’.

Segundo dados obtidos de pessoas entrevistadas, os deslocamentos necessários para se

trabalhar ocorriam entre os ranchos, na praia e na laguna, e se podia pescar em praticamente

todos os cantos desta. Os principais pontos de pesca tinham suas denominações próprias,

como: ‘Iótas’, ‘Junqueira’, ‘Larga Mar’, ‘Marisco’, ‘Campo’, ‘Baliza’ (em baixo da ponte),

‘Baía Funda’, ‘Caeira’, ‘Saco’, ‘Lagoa de Baixo’, etc.

A abertura permanente do canal Lagoa - oceano (quando da construção dos molhes da

Barra) tornou-a uma prolongação oceânica e alterou parcialmente seu sistema biótico que

passou a receber maior quantidade de água salgada.

Antes da abertura do canal da laguna, o regime de suas águas era sazonal e dependia da

maré e das chuvas; tratava-se de um processo natural de abertura e fechamento que ocorria

aproximadamente de 6 em 6 meses: normalmente de janeiro a julho, devido ao baixo regime

de chuvas, o vento sul empurrava areia para o canal causando o fechamento. E de julho a

dezembro com o alto regime de chuvas ocorria a abertura.

Este fato é descrito por seu Inacinho, em sua entrevista:

SI – a Lagoa não tinha...não tinha o cais...ela tampava...ela era um banco de areia

entendeu...tava um mar muito ruim tampava aquilo ali e...lá onde era ali

chovia...lá na Barra...lá embaixo...o canal a ida pro mar...não atinha né...quando

chovia bastante que tinha bastante água...né...aí dava mar ruim...mar ruim traz

areia...né...aquela ponta grandona né...das areia...e vem vindo...vem vindo...então

tampava...pra cá tampava...(tosse)

EU – o senhor já viu fechado aquele canal?

SI –(...) era tampado né...ah ali onde tem os molhe que é tudo ali aquilo ali era

praia...sabes de vez em quando ela tampava entendeu...era praia...era o diabo pra

ir ali na boca mêmo...na boca...a canoa passava puxadinha que era pedra

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Page 49: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

natural...as canoa passava...a canoa a carreta passava...que era duas canoa...uma

canoa parava passava por cima daquelas pedra...cheia de remendo de _ e tinha

hora que ficava na pedra...dando volta...aí então quando a Lagoa enchia...ali na

ponta ali...na ponta...é da ponta quem vai do Retiro pra lá...ali as duas lagoa se

ajuntava toda...aí o que é de lpá...que a gente ia pra lá...arrumava levava os cara

ali _ ...arrumava um bocado de gente...ia lá cavava...de pá e

enxada...e...cavando...cavando...cavando...quando ela arrebentava...chegava até a

derrubar rancho...que tava lá de perto né...uma força d’água que era um...é...só

que a maré...a maré do mar grosso não podia tá enchendo...entendeu?...se

enchesse não...a maré tinha que tá vazando entendeu...de vazando...aí depois

fizero o molhe...aí não tampou mais né...

Este regime natural conferia características especiais às águas da Lagoa da Conceição

(oceano/salgada – chuva/doce); e favoreciam o aparecimento de espécies migratórias como,

por exemplo, o Badejo, Camarão, Bagre, Tainha e Garopeba.

Para se adaptar a estas condicionantes naturais, na qual os peixes apresentam ciclos

biológicos em épocas diferentes, os habitantes do lugar desenvolveram técnicas de captura e

de cultivo diferenciadas. Esta ‘cultura de subsistência’ dos colonizadores açorianos agregou-se

aos conhecimentos indígenas locais, originando as técnicas de arrastões, tarrafa, cóvos, linha;

assim como os meios de locomoção em canoas, e posteriormente baleeiras e botes.

Segundo Sérgio Luis Ferreira (1994), além da pesca com canoas, pescava-se, como

ainda hoje, ‘à vau’, ou seja, tarrafeando a pé com água no máximo, até a cintura. A extração

de frutos do mar, marisco, ostra, berbigão, caranguejo, siri, caramujo, etc..., também ajudava

na economia familiar, sendo que essa tarefa era quase exclusiva das mulheres. Os homens iam

e vinham da pescaria; as mulheres extraiam moluscos e crustáceos necessários à alimentação

da família. A laguna, as praias, os costões e o mar eram, portanto, lugares de trabalho.

Naqueles tempos ia-se à praia em busca de alimentação necessária à sobrevivência, raramente

para o lazer. O controle desta produção e das relações de troca garantia certa autonomia e

independência a estas famílias que se dedicavam a estes ofícios. A rotina diária somente era

interrompida em dias de mau tempo, com vento sul ou nordeste muito forte, ou marés de

ressaca ou chuvas muito intensas. Quando não havia condições para a pesca a comunidade

pesqueira se dedicava a negociações de produtos da pesca ou simplesmente ao descanso.

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Page 50: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

O pescador não recebia no final do mês, mas sim, ao ‘final da lua’,

período que vai de três dias antes da lua nova ou cheia até três dias depois. Na

maioria das vezes não recebia, por ter ficado o dinheiro da safra empenhado para

o pagamento da venda. Férias, Que férias? O descanso eram os dias santos de

guarda, e estes eram muitos ao longo do ano. Mas nem se pensava em usar o dia

santo para atividades de lazer: no máximo uma procissão, uma novena ou uma

brincadeira de boi no campo... (FERREIRA, 1994: 16).

As águas eram a maior referência, seja para o transporte nas médias distâncias como

nos deslocamentos da Barra da Lagoa para a Freguesia; eram estas águas da laguna que

serviam para se estabelecer as ligações. As suas margens e as pequenas praias eram usadas

largamente como caminho para pedestres, e suas águas serviam para ligar um ponto a outro

através das embarcações.

Fig 11 – “A pesca tradicional” – detalhes da pesca e sua cultura, o uso de Botes e Baleeiras, embarcações de pesca encontradas no litoral catarinense e na Lagoa da conceição. Fotografias do autor, 2006.

Segundo a antropóloga Sônia Maluf (1993), a pesca sempre foi uma atividade

essencialmente masculina, sendo proibida a participação de mulheres não só nas tarefas

diretamente ligadas à pesca, como nos espaços a ela relacionados: os ranchos de barcos, as

embarcações, o mar. É um trabalho realizado coletivamente pelos homens, e estes podiam

passar meses longe de casa e das mulheres, convivendo a maior parte do tempo com seus

companheiros. Atividades e território exclusivo dos homens, a pesca era, e ainda é

fundamental na constituição da identidade masculina e principal espaço de sociabilidade entre

os homens. Através dela, os jovens eram iniciados na vida adulta e realizavam a passagem

para o mundo dos homens. Viajar para o Rio Grande (no sul) ou Santos (em direção ao

norte), cidades portuárias que ficam a cerca de mil quilômetros da ilha, era uma forma de

ingressar na maturidade. saindo do alcance familiar; e uma rara possibilidade de juntar algum

dinheiro (fazer o pé de meia, como dizem) para comprar um pedaço de terra, construir uma

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Page 51: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

casa e casar. Depois de uma viagem de vários dias pelo litoral, na carroceria de um caminhão,

lotada com dezenas de jovens, chegavam a Rio Grande, onde se empregavam em uma das

‘pareias’ de pesca. A ‘pareia’ reunia um grupo de cerca de trinta homens que trabalhavam

juntos nas mesmas embarcações, e dormiam em um barraco comum, nas tarimbas, camas de

madeira pregadas à parede. (MALUF, 1993:34)

Fatos que se ilustram com o depoimento de seu Andrino:

EU – tinha trilha no morro? Era o mesmo caminho onde é a estrada hoje?

SA – é o mesmo caminho...agora...só muda o carro agora...era tudo morro á

barro...estrada de chão né?...quando nóis compremo o primeiro carro...nóis botava

quatro corrente ás vezes pra subir aqui, e não subia...nós levava pescador

junto...puxar o carro com uma corda na frente...por causa da

lama...né...patinava...pra descer...nóis mandava dois, três atrás e empurrava a

dianteira do carro...porque o freio não agüentava deslizava né? As vezes quando

não dava por aqui mesmo, nóis ia por aqui, pelo Rio Tavares...Morro do

Badejo...a estrada era ruim também...a estrada era ruim também...estradinha feia

pra burro (...) não tinha estrada eu fui pescar nas ‘pareia’ dos português lá...tudo

português naquela época que tinha lá...meu irmão já morava lá porque tinha se

casado lá...meu irmão mais velho...pegava o navio no Rita Maria ali...ele

fundeava fora ali...o _ naquele tempo...o Loyd...tudo navio grande (...) meu

caminhão primeiro foi um Chevrolet 51...nóis compremo...mais eu e ele de

sociedade (irmão)...depois nóis dividimo a sociedade aí eu comprei um Dodje e

ele comprou outro...aí tinha...uma tolda por cima assim...tinha tudo né...carroceria

de madeira...adepos mais tarde eu troquei aquele por outro...um Dodje maior...já

nóis levava pescador daqui pro Rio Grande...aí tinha estrada né...quando levava

pescador daqui pro Rio Grande levava trêis dia daqui no Rio Grande de

caminhão...passava uma porção de barro por tudo naquele época... (seu Andrino)

Segundo Virgílio Várzea (1985), as pescarias ativas começavam na Ilha e no

continente pela quadra invernal, conforme anteriormente se viu, pois nos meses que se

estendem de setembro a abril, o povo entregava-se aos labores agrícolas.

Os ranchos eram espaços utilizados para as atividades relacionadas à pesca, podiam

ser fechados ou abertos, eram normalmente construídos em madeira com estrutura e pilares de

tijolos e cobertura com telhas de barro. Cada grupo familiar próximo dispunha de um rancho

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Page 52: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

comum. A localização destes ranchos na beira da laguna se davam relativamente distantes das

moradias, e acabaram por criar as primeiras trilhas em direção à praia. A relação social

produzida nestes espaços fortalecia a estrutura de parentesco e de vizinhança, pois sempre

reunia as pessoas da comunidade. Assim, os ranchos de pescadores faziam parte da paisagem

às margens da laguna. Em frente aos ranchos, viam-se as grandes canoas de voga (uma para

cada rede, comumente), negras e reluzentes de alcatrão, suspensas á proa sobre grossos rolos

de madeira, á palamenta embarcada e aguardando o momento de fazerem-se ao mar. À popa

de cada uma, sobre o longo paneiro raso, avultavam os montículos das redes que as pejam, por

entre as duchas negras das betas, os chumbeiros e as cortiças redondas que parecem

camândulas imensas de um estranho e gigantesco rosário. Estas embarcações eram feitas

geralmente de guapurubu (Schizolobium excelsum) e de figueira brava (Ficus doliaria):

tinham de comprimento de 50 a 60 palmos, por 5 ou 6 de boca, um suplemento de madeira

guarnece-lhes a borda de popa à proa – a bordadura, que ajuda no trabalho com as redes. Estes

ranchos funcionavam como local para encontro da população pesqueira, dentro e fora destes

estavam as companhias e o bando dos camaradas e ajudantes das redes, sendo estes últimos na

sua maior parte rapazes de 12 a 20 anos. (...) Esses homens reuniam-se em grupos que

tomavam o nome dos donos das redes, nome pelo qual esses grupos se distinguiam uns dos

outros. (VÁRZEA, 1985:163) EU – E onde que o pessoal escalava o peixe?

S. AD. – na beira da lagoa...e aí tinha os rancho...que botavam dentro dos

rancho...né?...sargadinho ali...depois botavo no sol secavam tudo...’acamava’ uma

com a outra né...e ia pro mercado pra lá exportá...porque não tinha frigorífico pra

ir pro mercado também...não tinha nada na cidade né...o mar até batia no mercado

ali... (seu Adelino)

Os lanços (puxar a rede), eram um evento coletivo na Lagoa da Conceição, onde todos

aproximavam-se para ajudar de alguma forma. Quando se puxava a rede às margens da

laguna, o patrão e os camaradas punham-se logo a contar as tainhas, agarrando-as com uma e

outra mão e atirando-as para junto da areia, onde a maré não alcançava. Aí reunido todo o

peixe em montão e resguardado do sol com uma coberta de ramagens, deixava-se um homem

a tomar conta. Em seguida voltava o patrão à canoa, (...) e outros lanços se repetiam

seguidamente. Nos meses de junho ou julho matavam às vezes cem mil, duzentos mil peixes.

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Page 53: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

A divisão dos peixes era um momento de reunião da comunidade, assim que recolhida a canoa

e a rede, o proprietário, com todo o pessoal, seguiam para o ponto da praia onde se

aglomeravam os montões de tainhas, para proceder então à divisão dos quinhões. Nestes

lugares já ‘formigavam’ densamente, sob a vaga claridade das estrelas, ou ao magnífico clarão

do luar, ou sob a escuridão de um céu torvo pelas noites tempestuosas – uma imensa multidão

de pessoas, que para aí entrava a afluir pela tarde, vinda de todos os sítios com a notícia dos

primeiros lanços. Uma algazarra vivíssima (VÁRZEA, 1985:167).

[...] É... aqui na ponte... e era bonito Marcelo...era bonito... quando eles davam

um lanço de peixe, que chegava na hora e... como se diz?... que a gente... na...

na...pegava no fio... que a rede chegava em terra... com aquela peixarada....oo

(entrevista Laíde)

Quando a pesca era assim opulenta, os donos das redes mandam guarnecer

imediatamente as demais canoas que possuíam em seus ranchos e abarrotavam-nas de peixe,

fazendo-as seguir para a capital ou lugarejos próximos, onde a carga era mercada a varejo ou

às barcadas, pelo mais baixo preço. A pesca funcionava assim como um ritual de reunião em

nível social e familiar. À maneira que os quinhões se separavam, os indivíduos os retiravam

para o lado, e munidos de um cipó, ou de um fino gancho de pau flexível, enfiavam o peixe

pelas guelras e formavam assim um cambulhão, que punham às costas imediatamente e se

recolhiam aos lares. (...) nessa mesma noite pelas casas dos donos de redes havia toda uma

faina doméstica: a do preparo e salga do peixe. O encontro das filhas moças, parentas e outras

famílias amigas da vizinhança, que se acomodavam nas cozinhas ou nessas amplas varandas

de chão dos prédios abastados, em torno do peixe colocado ao centro num grande montão; e

cada uma de cócoras, agachada sobre esteiras ou sentada em pequenos cepos de madeira,

empunhando uma faca amolada, com a pedra de afiar ao pé para quando se fizer necessário, e

começava assim o trabalho da extripação e da salga. Este serviço era feito outrora pelos

escravos da casa, homens e mulheres, que tinham longos serões nessas noites de pesca junto

ao braseiro confortável. Extinta a escravidão, passou a ser desempenhado pela própria família

dos pescadores, que, quando se julgava insuficiente para dar conta da tarefa, reclamava auxílio

da parentela e gente conhecida das proximidades, a qual acode prontamente mediante pequena

remuneração. E assim, era até a madrugada, nessas cozinhas e varandas inundadas de peixe,

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Page 54: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

havia uma alegre algazarra de faina que só terminava quando a última tainha era escalada.

(VÁRZEA, 1985:169)

As contribuições de Ferreira, Maluf e Várzea nos permitem visualizar a cultura da

pesca e desta forma entender parte da vida social à época. As mulheres faziam os serviços

domésticos, a preparação e conservação dos alimentos. A cultura culinária desenvolveu-se na

área de atuação das mulheres. As técnicas produzidas nestes espaços deram origem a pratos

típicos como o ‘ensopado de corvina’, ‘peixe escalado frito’, ‘ensopado de camarão’, ‘tainha

frita’, tainha recheada e ‘camarão frito’ ou ‘ao bafo’.

Diversos equipamentos de cozinha e preparo de alimentos como ‘fogão à lenha’,

gamelas (de madeira), ‘panelas de barro’, Taxos, ‘colher de pau’ ou mesa de madeira são

algumas expressões desta cultura.

...e a minha mãe chamava...uma carreira de filha por aqui...uma carreira de filho

por ali...botava naquelas gamela de pau...as colher era de pau também na

época...hoje é que _ xícara, copo...e das boa...naquele tempo não tinha nada disso

aí... então sentava ali...quem quisesse comer?...comia...aquela banana verdurenga

amassada com açúcar...quem não queria comer...apanhava na cara e ia pra cama...

(Seu Nenê)

A conservação dos alimentos também era um ofício muito importante e era

desenvolvido tanto para os produtos da pesca (peixes e camarão) como para alguns produtos

agrícolas (café). Em relação à conservação de frutos do mar a técnica mais comum era a salga,

o peixe era ‘escalado’; que era o hábito de se pendurar o peixe em varais para secar,

normalmente nos espaços contíguos à casa. Esta técnica era ainda muito utilizada até a

chegada da luz elétrica e das geladeiras.

Com o crescimento urbano a atividade pesqueira na Lagoa tende à extinção. Alguns

impactos deste crescimento já interferem neste ofício. Hoje pode-se notar a interferência de

lanchas e outras embarcações particulares de lazer que impactam esta atividade indiretamente.

As áreas onde se exerciam as atividades de preparo e complementares também estão se

reduzindo drasticamente, e já existem poucos lugares para se guardar as redes, limpar as

canoas e sair para a pesca; assim a orla da laguna aos poucos vai sendo privatizada e o

pescador vendendo seu espaço.

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2.2.2 A agricultura e a vida social

O homem aprendia também o ofício da lavoura, um conhecimento que era transmitido

pelo pai. Assim, quando o mar ‘não tava pra peixe’, se deslocavam para as roças, os engenhos

para tarefas que ajudavam a complementar o sustento das famílias.

Em 1900, a Lagoa da Conceição tinha 3450 habitantes e cultivava café, uva,

algodão,fabricava aguardente, açúcar, melado, e exportava para a capital alho,

cebola, amendoim e gengibre. Produzia-se ainda tecidos de algodão branco ou em

cores, toalhas de linho e riscados com os quais se vestiam quase todos os roceiros.

Desta forma os açorianos alternavam sua vida de trabalho entre a roça e a

pesca. A grosso modo, do outono ao inverno estavam no mar e da primavera ao

verão em terra. A pesca da tainha, da anchova e do camarão marcam esta

sazonalidade na qual os homens participavam diretamente. As mulheres e os

filhos tinham uma participação indireta, por exemplo, através da salga do peixe.

Já o trabalho agrícola envolvia diretamente toda a família. Sabemos que a

força do trabalhador familiar constitui um importante fator no cálculo econômico

do lavrador/pescador. Era na família e nas relações de parentesco que

essencialmente repousavam as relações de trabalho. Neste sentido, a família

açoriana se caracterizou por ser, ao mesmo tempo, unidade de produção e

unidade de consumo. (Paulo F. Lago ‘Gente da Terra Catarinense’. In CECA,

1996:65-66)

As atividades básicas destes colonizadores açorianos, e de seus descendentes, também

descritas por Várzea (1985) respeitavam os ciclos da natureza. Os produtos agrícolas tinham

períodos de cultivo em épocas diferentes, respeitando as condicionantes naturais; o que

repercutiu em técnicas de cultivo diferenciadas e em épocas determinadas.

As principais plantações de cana-de-açúcar da Ilha localizavam-se na Lagoa da

Conceição, e o Rio Vermelho era o principal produtor de amendoim. As lavouras locais

produziam milho, mandioca, café, uva, cana, feijão, alho, cebola, gengibre e linho. Existiam

lugares onde eram produzidos desde tecidos em teares rudimentares, até engenhos melado,

açúcar, aguardente e farinha.

Como pode ser visto neste relato de seu Adelino sobre ‘paisagem agrícola’ da Lagoa

em meados dos anos 60:

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EU – e o seu pai fazia o que seu Adelino?

S. AD. – meu pai fazia canoa...naqueles tempo, IBAMA, não tinha nada...então

ele cortava aqueles ‘garapivú’ grande...fazia canoa...e...mas ele, nóis tinha então

esse terreno aqui e tinha outro grande lá...que tinha engenho de farinha e engenho

de cana...então ele saía de manhã com a enxada dele nas costa nóis também tudo

atrás dele...os quatro...nóis era quatro home tudo com a enxadinha...chegava lá o

pai capinava o dia todo...ninguém ia pra...pra bagunça... (...) ...era da lavoura lá

em cima...nóis plantava mandioca, feijão, batata...tinha milho...tinha aquele

terreno grandão...depois vendemo...do lado da praia até em cima o restaurante do

morro...tinha engenho de cana e engenho de farinha...quando era tempo de farinha

nóis ia plantava um mês...dois mês lá...pra fazer farinha...

Retornando ao relato de Virgílio Várzea, que reforça e estende a descrição oferecida

por seu Adelino, pode-se observar que

o terreno da freguesia é em geral montanhoso e só tem plano, além do

tabuleiro que margeia uma parte da lagoa e o lado do oceano, a longa várzea que

se estende do Rio Tavares ao Ribeirão; formada de terreno arenoso e fértil,

arroteando seguidamente há séculos e sempre produtivo. (...) Das sementes

cereais, como o trigo, o milho de todas as qualidades, a cevada, o centeio, a

produção é abundantíssima, e muito mais das leguminosas, como são o feijão, a

fava, a ervilha e outras. É extrema a produção de mandioca, que constitui a base

principal do sustento de quase todos os habitantes. Os processos e instrumentos

agrícolas utilizados pelos lavradores da Ilha, ainda são os mesmos que se

empregavam há um século ou mais. E a exploração de certos produtos,

igualmente a mesma, com o acréscimo apenas de um ou outro, mas também com

o abandono total ou quase total da cultura do linho de várias qualidades –

cânhamo, galego e donzelo – que era feita com algum proveito na freguesia da

Lagoa e em outros sítios (VÁRZEA, 1985:179).

O trabalho de Várzea, neste sentido, oferece um retrato detalhado, vivo e humano da

paisagem rural da Freguesia e dos habitantes da Lagoa e não posso deixar de continuar com

ele mais um pouco.

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Fig. 12 – “Vida rural” - Um carro de boi, a taipa de barro e um engenho (no Rio Vermelho). Imagens do período rural que predominou até os anos 80 na Lagoa da Conceição. Fotografias acervo Carlos Damião (fotografia central do autor), 2007.

Na vida rural, nestes sítios, diz Várzea, os habitantes conservavam os mesmos usos e

costumes de outrora, os quais, entretanto, pela sua ingenuidade e simplicidade, são por ele

descritos em detalhe. É assim que ele consegue fazer o leitor visualizar os mandiocais da

Lagoa, por exemplo, descrevendo a paisagem de quadrados de roças, pelos morros e baixadas,

onde ...

...frutos das primeiras sementeiras, que eram plantadas nas cinzas dos matos

queimados, e produziam muito, porém as que sucediam, produziam menos. As

terras são preparadas com a enxada; com estas se fazem covas pouco profundas,

onde se lançam as sementes, que depois se cobrem com pouca terra, que o

semeador empurra com o pé, de maneira que não se usa o arado, nem de outros

instrumentos de lavoura de que faz uso em Portugal.

É de maio a outubro de cada ano (durante o inverno), em geral, que começam

a trabalhar os engenhos de farinha e os de cana: os primeiros funcionam em todas

as freguesias e arraiais uns após outros ou muito conjuntamente, durante todo

aquele espaço de meses, conforme o tempo em que as roças foram plantadas, pois

as de mandioca o podem ser em qualquer época; os segundos só trabalham de

maio a agosto comumente, que são os meses próprios para a colheita da cana, mas

a sua plena atividade limita-se verdadeiramente a junho e julho, época

caracterizada lá entre os roceiros pelo tempo do açúcar (VÁRZEA, 179 - 183).

Outro importante aspecto dos engenhos de farinha e de cana, salientados pelo autor, é

que seus proprietários eram todos lavradores abastados, pois era necessário um capital

razoável para a sua construção e manutenção. As características físicas do espaço do engenho,

sua localização e as interações sociais que aconteciam em torno dele também são focalizadas

por Várzea, (...) o prédio, as mais das vezes, como se observa comumente, não

passa de um grande rancho de paredes de pau a pique barreadas e cobertas de

tiririca, muito abundante ali nos terrenos alagados. Por essa razão os lavradores

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Page 58: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

pobres só podem fazer farinha depois que esses proprietários acabam a sua. Então

tomam de empréstimo os engenhos, pagando a utilização que deles fazem, com a

pequena retribuição de alguns dias de serviço de lavoura prestados àqueles

proprietários. Normalmente os engenhos elevam-se ao centro das áreas de terra

mais adequadas a cada espécie de cultura, para facilitar a condução das colheitas

que tem de ser neles preparadas atendendo também a outros requisitos

indispensáveis, como água próxima e abundante para todos os misteres, pastagens

para animais, vias de comunicação fáceis, etc. Daí o serem, na sua maior parte,

colocados longe das habitações dos proprietários, muitas vezes à distância de um

quilômetro ou mais, porém sempre à beira das estradas de rodagem e nas

proximidades de cachoeiras, regatos ou rios. Por estarem assim afastados

guardam acomodações para famílias, que neles habitam nos longos dias das

farinhadas (...) Dos engenhos comumente saem para todos os lados os atalhos

que levam às plantações em torno; os engenhos tem a cercá-los, quase junto ás

paredes e ao telhado, grandes bananais, cafeeiros e laranjais que os ocultam ás

vezes sob o rendilhado das ramagens espessas, através das quais mal se os avista

de longe, por estreitos fragmentos barreados. Em maio começam a emigrar para

os engenhos as primeiras famílias dos lavradores-proprietários, quando estes não

possuem redes, pois os que as têm só podem entrar na farinhada ao fim da quadra

mais ativa da pesca, lá para outubro ou novembro (VÁRZEA, 1985:184).

Ainda seguindo o autor, as famílias proprietárias dos engenhos se dividem para as

tarefas relacionadas com os mesmos, e, enquanto ali pernoitam, os demais partem para o

campo, isto é, uns ficam na produção da farinha e outros na colheita. A colheita tem início

pelos mandiocais dos morros, uma vez que estes estão mais distantes dos engenhos, agrupados

na planície, próximos à laguna, pastagens e estradas. A descrição feita por Várzea nos permite

entender a paisagem da Lagoa, à época da proliferação dos engenhos.

O engenho de farinha apesar de ser uma atividade praticamente extinta na lagoa, é um

espaço em que homens, mulheres e crianças participavam conjuntamente, porém, em tarefas

diferenciadas. Segundo Maluf, As tarefas consideradas menos importantes e menos pesadas como

raspar e lavar a mandioca, e peneirar a farinha, estas, eram feitas pelas mulheres e

crianças. Os homens comandavam o trabalho do engenho, mas há casos, como o

de dona Catarina – depois que seu marido morreu – em que são as mulheres que

dirigem o trabalho. Assim, ao contrário da temporada de pesca, em que são os

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Page 59: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

homens que se deslocam e se mobilizam em torno dessa atividade, no período da

farinhada toda a família é envolvida, passando a morar dentro do próprio

engenho e regrar suas atividades diárias de acordo com as tarefas necessárias para

a fabricação da farinha de mandioca. Por fim, verificada a colheita total dessas

roças, chamadas ‘mandioca maneira’ por ficarem à mão nesses sítios para os

trabalhos do engenho, está finda a farinhada, recolhendo-se a família ao seu lar,

para só voltar no outro ano, com o mesmo ardor e alegria, no ritmo constante de

uma vida que se desdobra a te o túmulo, clara, obscura e serena, em meio aos

afetos sinceros e de costumes imaculados e simples (MALUF, 1993:38).

Outros produtos de destaque na produção agrícola local foram a cachaça e o melado.

As plantações de cana-de-açúcar mais importantes da ilha estavam localizadas nas Freguesias

da Lagoa e do Ribeirão, e são assim descritas por Várzea:

As roças de cana vicejavam geralmente nas planícies, mas também sobre as

encostas dos morros onde muito se desenvolviam, apesar dessa planta dar-se

melhor nos terrenos planos ao nível do mar. No entanto, a cana das baixadas ou

planuras não excedia muito, em suco sacarino, a destas terras elevadas, que são às

vezes preferidas pelos lavradores ali para semelhante cultura. Três espécies de

cana eram cultivadas comumente – a caiana (Saccharum officinarum), a roxa ou

de Batávia (Saccharum violaceo) e a moída ou crioula (Saccharum syneensi), esta

última em menor abundância e mais utilizada para a fabricação de aguardente, a

‘aguradente de cana miúda’ chamada (1985:202).

O engenho de cana funcionava como o de farinha, que já foi citado, numa espécie de

vasto rancho com paredes de pau-a-pique barreadas e as mais das vezes cobertos de tiririca.

Os ranchos eram baixos e amplos, e situados sempre em lugar alto, nas encostas, por exemplo,

e próximos a algum riacho ou cachoeira, e nas proximidades dos grandes canaviais. Segundo

Várzea, compunham-se de duas seções – uma elevada, onde se achava colocado o aparelho

principal ou moenda; a outra em um plano inferior, mas unida á primeira e colocada no

declive natural do terreno. É nesta última que se acomodam o alambique para a destilação da

aguardente, os cochos e demais utensílios necessários, e a caldeira onde se põe a garapa ou

caldo de cana para se reduzir o açúcar (VÁRZEA, 1985:202).

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Page 60: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

As entrevistas realizadas tornam possível visualizar a atmosfera de trabalho nos

engenhos de cana, que até 1960 faziam parte da paisagem da Lagoa.

...fazia cachaça...era tudo naquelas barrica grande né...ia fazia trazia ali...nós

fabricava cachaça e lá a gente tirava a cachaça que queria...naquela época...se

quisesse tira mais a cor assim...aí tinha que deixar correr com bem pouquinho cor

no _ assim...aí ela forma devagarinho e sai macia né... (Seu Andrino)

Além dos engenhos, outras produções agrícolas compunham a paisagem rural, tal

como descreve Várzea:

Os linhos galego, donzelo e cânhamo: a batata, o amendoim, as cebolas e os

alhos são vegetais da maior produção. as plantas odoríferas tais como a alfazema,

o alecrim, o jasmineiro, a roseira, manjericão, os craveiros e outras aí se dão

muito bem; as hortenses, como o repolho, couves de diferentes espécies, a alface,

a chicória, o nabo, o rábano, o pepino, a mostarda, a cenoura, o tomate, o aipo, a

hortelã, a salsa, o coentro, abóboras: carneira, menina e outras; o melão, a

melancia, o morango, aí vem bem, e se criavam perfeitamente. As árvores

frutíferas, como a laranjeira, o limoeiro, o pessegueiro, o damasqueiro, o

marmeleiro, a figueira, são vulgares, e dão saborosos frutos; e já hoje (1810) há

algumas pereiras, ameixeiras, e ginjeiras, que mui bem se criam, e produzem. E

que direi das excelentes madeiras, de que tão abundante é a capitania (VÁRZEA,

1985:95).

A produção da corda merece ser destacada, pois era fundamental para a pesca e para a

produção agrícola.

Do gravatá de rede (bromélia lagenaria), arbusto abundante, era extraído uma fibra

rija e flexível, com a qual era produzida a corda utilizada para diversos usos, tais como no

trabalho das embarcações e redes de pescaria; cabos, velas de embarcações, e fio de rede.

Durante o período do descanso, da pesca (entre safra), “os mestres ou

fazedores de redes trabalham desde o alvorecer até à noite, junto às janelas e

portas de suas habitações, nos terreiros ou ao longo dos caminhos, torcendo o fio

de gravatá que as mulheres fiavam nos longos serões pacíficos. À luz fumarenta

da candeia, sentada sobre esteiras de perí (Ciperácea) a um recanto da varanda ou

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da sala, ao pé das altas varas polidas encostadas à parede e onde se enroscava,

segura por atilho de embira, a basta meada têxtil, de um vago perfume a cabo

novo e semelhante a uma imensa cabeleira alourada, que se abre para baixo em

grande pasta fofa onde os dedos ‘feminís’, industriosos e ágeis, num movimento

delicado e sutil, tateiam e unem artisticamente o fio que se enrola ao fuso zunidor

girando em impulso contínuo. Assim se produziam as cordas” (VÁRZEA,

1985:160).

Neste item foi focalizada a vida social em torno da pesca e da agricultura, pelos

descentes dos colonizadores da Lagoa, à época do candieiro e da pomboca.

Até meados de 1960 a luz elétrica ainda não havia chegado na Lagoa; algumas

entrevistas e a descrição de Virgílio Várzea nos trazem indícios de como era esta paisagem

sem luz.

Segundo Várzea (1985:207), da semente da mamoneira (Ricinus communis) era

extraído o óleo mais utilizado para iluminação, por demais rudimentar e simples, cuja

fabricação era feita por cozimento, como descreve D. Carolina:

Eu – tinha luz?

D. Carolina – não... era luz de vela... quando não era vela minha mãe fazia de

azeite sabe?... de baga de anóz... chegava a vender... tinha um pé grande daquelas

baga... naquela casa abaixo bem em frente a Laíde... na casa bem grande branca

que fizero ali... mais ali... dá umas baga... não sei se tu já viu?

Eu – dá baga?

D. Carolina – é uma baga grande verde tá... depois tem aquele miolo de dentro...

sabe... como uma castanha... e aí a gente bota pra secar... socava... saía o miolo de

dentro assim igual numa castanha... depois socava assim num pilão e a minha

mãe botava a ferver e a gente fazia aquele óleo... e aí fazia aquele azeite... _ ...

quando não era aquela lâmpida a gente fazia com aquela... com aqueles pano... até

pomboca... o pessoal antigo né... uma candeia pra botá querosene... pra gente

trabalhá no... e quando não era... vela era muito difícil... pessoal tinha medo de

vela... e memo assim... porque era _ ... assim... quando não era aquela casinha pra

botá querosene... aí meu pai fazia assim... abria uma lata... e era assim pra gente

porque a gente usava era banha... arrumava uma latinha e fazia um... quatro canto

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né... e a minha mãe fazia algodão... meu pai também então botava algodão... ia

trouxando... fazia tudo com um... um que faz uma trança...

Eu –pra botar fogo?

D. Carolina – é... e botava o óleo ali... e a gente botava aquela...aquele _ aqui

dentro... cada ponta tinha quatro... daí cantinho assim nóis tinha... era quatro

irmãos... e nóis fazia uma roda assim de noite... e ia fazer renda cada uma ficava

com aquele bico... aquele bico pra fazer renda...

Assim, na primeira metade do século vinte, a paisagem da Lagoa, caracterizada

basicamente pela agricultura e pela pesca, refletia uma economia ainda familiar e de troca.

Nas poucas vendas (armazéns) existentes, eram obtidos os gêneros não produzidos em casa,

como sal, querosene, fósforo, etc., os quais eram pagos muitas vezes com produtos agrícolas.

... Aqui quase não tinha venda, agora tem é demais... nóis tinha que ir comprar

pra lá... de onde tinha a casa de baile... ia comprar ali... a luz... ninguém tinha...

nóis ia pegar querosene aqui... lá no... onde eles fizeram aquele supermercado que

tem ali agora... perto do SAL... onde ‘tirava’ querosene é ali (...) passa da ponte

agora e tá cheio de casa ali... nóis ia de pé... pra tirar querosene nóis vinha de pé...

mas tinha só um litro pra cada pessoa (...) porque naquele tempo não tinha luz,

não tinha nada né... a gente vinha tirá querosene aqui em baixo. Era um litro pra

cada pessoa. E era por fila, ninguém pulava na frente não. (dona Laíde)

2.3 Memória Viva

O narrador conta o que ele extrai da experiência - sua própria ou aquela contada por outros. E, de volta, ele a torna experiência daqueles que ouvem a sua história.

Walter Benjamin

Fig. 13 – Memória Viva da Lagoa. Fotomontagem do autor, 2008.

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A memória dos entrevistados é aqui observada como forma de obter uma descrição da

transformação da paisagem da Lagoa, na voz das pessoas que viveram este processo. Em que

medida os moradores tradicionais expressam ou espacializam uma forma de vida que lhes é

particular? Eles manisfestam descontentamento (ou não) acerca das transformações ocorridas

no local? É possível identificar uma identidade coletiva?

O que havia na Lagoa que já não existe mais?

EU – e tinha a farra do boi?

SA – ah sim a gente tocava boi tudo aí...né...aqui a gente de vez em quando tava

descendo o morro...pra baixo aqui pro LIC não tinha nenhuma casa ali...era tudo

plantação...é tudo mandioca, milho, tudo plantado ali...ali aqueles pasto tudo...era

meu ali né...então nóis tocava tropa de boi...vinha tudo em tropa na minha...na

minha não, naquela época né?...tinha cinqüenta, sessenta boi...cem!...então...aí

deixava, pedia pra botar no pasto e deixava ali né...de tarde depois, eles pedia,

comprava o boi...pedia eles pra ir abrindo a tropa...tirava o boi...mas era boi

brabo!..naquele tempo brabo...né...largavo lá porque daí o boi vinha em cima dos

cavalo...tudo naquela época...era brabo...depois aí...garravo o mato aí...quem é

que chegava mais?...então era uma festa...(seu Andrino).

Ao pedir que os entrevistados descrevessem a Lagoa no passado, mencionei

inicialmente uma fase de sua vida , a infância, por exemplo, buscando suas relações com as

ações cotidianas: “o que o seu pai fazia?” “o que o senhor fazia quando pequeno? onde?” Em

outras palavras, como eles se apropriavam dos espaços da Lagoa. Logo lhes vem à tona a

lembrança física dos lugares, uma subentendida territorialidade dos espaços, idealizados,

ordenados por aquela sociedade.

As perguntas, elaboradas de forma simples e informal, tiveram como objetivo obter

informações que descrevessem a paisagem do lugar em seus diversos aspectos, como era o

modo de vida de seus habitantes, como eram os espaços e os caminhos da Lagoa da Conceição.

Fui a campo munido de um gravador portátil e realizei uma série de entrevistas de curta e

média duração; após as entrevistas dei início à ‘transcrição integral’ de seu conteúdo, o que

considerei fundamental para o estabelecimento de conexões e interpretações, pois tornou

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visível tudo o que no momento da entrevista, por estar concentrado em outras coisas, não

percebi.

Para analisar as informações colhidas considerei como ponto de partida a compreensão

do contexto cultural no qual as memórias narradas aconteceram. Isto porque os entrevistados

incorporam em alguma medida, os valores, as regras sociais, os sistemas de significação e as

redes de conceitos da cultura na qual eles se desenvolveram. Os fatos narrados passam, assim,

a mostrar o entendimento que estas pessoas possuem, de acordo com a sua herança cultural.

Desta maneira ao selecionar os entrevistados levei em conta a sua natureza,

localizando-os espacialmente e temporalmente como ‘sujeitos históricos’. No caso,

espacialmente por serem habitantes da Lagoa da Conceiçaão, e temporalmente por terem

vivido em meados do século passado.

As oito entrevistas realizadas neste estudo, inseridas em sua íntegra nos anexos,

complementam as informações históricas coletadas na pesquisa bibliográfica (acima), e se

cruzam, através de fragmentos específicos, nos três aspectos centrais da análise das

transformações da paisagem da Lagoa, foco do próximo capítulo.

Assim, ao coletar e analisar as entrevistas, procurei seguir alguns procedimentos:

• Elaborei um roteiro básico - adaptado para os diferentes tipos de pessoas, mas sempre

seguindo os mesmos parâmetros.(variou ritmo, detalhamento, explicações dadas pelo

entrevistador)

• Elaborei perguntas que permitissem levantar informações sobre o espaço e o uso do

lugar:

1. Perguntas introduzem alguma informação da época, para focalizar o aspecto a ser

questionado, e desta forma ampliam a compreensão do entrevistado sobre o

contexto e o tema sendo investigado. Por exemplo: “Então o senhor participou desta

coisa de trazer a estrada pra cá? ... Porque era tudo uma trilha né? ... Sempre foi?

(Este tipo de pergunta usualmente leva o entrevistado a contextualizar as

dificuldades vivenciadas à época)

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2. Perguntas que levam o entrevistado a fazer uma descrição espacial do lugar e seu

entorno

3. Perguntas centradas na transformação social e seu impacto na vida dos moradores

4. Perguntas sobre novos hábitos e costumes, adquiridos com o desenvolvimento atual

do lugar

5. Fiz um cruzamento das informações obtidas nas diferentes entrevistas com

documentos históricos. Este cruzamento procurou evitar que os dados investigados

decorressem das características da personalidade de apenas uma das fontes

As entrevistas revelaram aspectos da paisagem da Lagoa na metade do século passado,

sob a perspectiva de sua transformação econômica, populacional e fundiária.

O cruzamento das informações permitiu traçar um quadro confiável daquela paisagem;

pois todos os entrevistados viveram a Lagoa da Conceição quando não havia estradas, luz

elétrica, automóveis ou comércio formal. Esta etapa da pesquisa permitiu observar com mais

atenção a dimensão das mudanças que ocorreram nos períodos mais recentes.

... agora eu to nessa vida aí... num escala mais o peixe... nunca mais se fez

arrastão... (dona Laíde)

É notável a velocidade da transformação da sociedade e da paisagem da Lagoa em um

período relativamente curto de tempo. Note-se que apenas seis décadas atrás, a economia era

de subsistência e o processo de produção e venda de produtos eram feitos basicamente em

família.

Os hábitos alimentares e a comercialização de produtos era bastante diferente da atual,

como descreve seu Andrino: ...eles não penso e comiam como hoje...aí tem os açougue...tudo ali...eles vão lá e

compram a galinha...não...a galinha comia uma vez por semana...ou por mês...a

carne era a mesma coisa...a carne, eles iam matar o boi, então eles vinham oferecer

a carne pro pessoal né?...traziam uma listazinha que um queria um quilo...outro

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queria dois...outro comprava meio quilo...aí depois então, o cara matava...vinha no

cavalo trazer, a carne aí, pro pessoal...

Era um modo de vida que envolvia, além da produção, a ida aos armazéns da cidade,

ou seja, uma viagem a pé que chegava a ter dois dias de duração. A descrição de seu Nenê,

além de detalhar o processo de produção de cordas, permite visualizar como era o caminho

para se ir até a cidade e como eram alguns aspectos da paisagem do lugar:

SN: ia a pé...mais a minha mãe vendendo corda, daquela fruteira que dá em cima

do mato...a gente cortava aquelas coisa de piteira...e lascava assim com o

canivetinho...lá na Barra da Lagoa...lá do lado do rio...a gente lascava tudo

aquelas folha larga de piteira...com a faquinha amarrava tudo em

‘mólhinho’...dez, quinze, vinte ‘mólhinho’...botava diante da...lá, na ponta dos

molhe, não sei se já visse?...não tem uma cruz lá?...em cima da pedra lá...que eles

chamo é pros barco pra vê trapiche...

EU: na ponta do costão ali né? (a cruz do costão na prainha da barra?)

SN: é lá tem uma piscina...é!...lá tem uma piscina que quando o mar sobe alto,

enche aquela piscina de água...água sargada...então ajeita mais rápido trinta,

quarenta...não era só a minha mãe não...muita gente...na época todo mundo fazia

isso porque...daquilo que se mantinha os filhos, e minha mãe teve quatorze

filhos...mantinha todo mundo com aquilo...era cordácoespideira...os filhos

ajudavam ela lá naqueles morro nosso...e lascava tudo amarrado em mólinho

molinho...botava dentro daquela piscina...a curtir quinze, vinte dia...ela fica

assim...uma coisa assim...aquele fio...vai tirando aquela piteira...aquela capa de

fora que é verde...e aí fica podre...depois a gente vai lá bota a mão assim...fica só

o fio...branquinho por dentro...aí a gente faz a corda...faz corda pra amarrá (...)

botava o fim da corda...botava ali no meu portão (mostrando distância 5m)...aqui

ficava meu irmão...aqui ficava eu...aqui ficava o Luís...cada um a torcer...aí

depois o outro ia lá...fazia assim ó...os trêis dedos...já vinha fazendo a corda de lá

até chegar aqui em nóis...fazia dez, quinze, vinte corda...de quatro, cinco _

trapos...amarrava...e saía da Barra de madrugada...e amanhecia lá na

Trindade...no Pantanal...bem dentro dos armazéns antigos...que hoje não existe

aquelas venda antiga...mas naquele tempo os armazéns...aquelas venda antiga

compravam muita corda pra amarrar animais...no Córrego Grande, Pantanal...

EU – essas que vocês faziam?

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SN – é, compravam da gente...comprava a dois conto cada uma...trêis conto...e

vendiam a seis...a sete...aquilo que estancieiro que ali tinha muito animal...então

eles compravam aquelas corda no armazém...mas quem fazia...aquela _

antigamente...da Costa da lagoa...da Barra da Lagoa...a gente saía da Barra da

Lagoa...porque agora os carro pequeno...os ônibus...as carroça...passam lá pela

Praia Mole né?...sobe o morro da barra e desce...não...o caminho da barra era

aqui...do lado de cá...na beira da Lagoa...não era por cima...era por baixo...a gente

entrava no final da Avenida Rendeiras...sempre por baixo...aí viajava um

pouco...quando chegava bem naquela encruzilhada, de onde teve uma corrida de

barco...que encostou muito barco no hotel ali (hotel Cabanas da Mole)...ali tem

uma figueira...e ali tem uma...uma...uma coisa d’água...uma bica d’água que

nunca seca...então a gente, pra matar a sede ...matava sempre ali...e o caminho era

sempre á beira d’água por cima daqueles _ ali...daquelas pedreira...sempre

sempre, sempre...saía da barra trêis hora, quatro hora, da madrugada...pra chegar

lá no saco dos limõns seis, oito, dez hora do outro dia...tudo a pé (...) dez corda

daquela nas minhas costa...dez nas costa dela...deus que bote ela em bom lugar...e

ali a gente ia vender...mais vendia tudo...e aí...aí com o dinheiro daquelas corda a

gente trazia...duzentos réis defumo... duzentos réis de açúcar...duzentos réis de

sal...naquele tempo...hoje tem açúcar né?... (seu Nenê).

A extinção dos engenhos de produção de aguardente e farinha assim como o processo

de desaparecimento da economia familiar, podem ser registrados no testemunho de seu

Adelino: EU: existiam outros engenhos além desses?

Seu Adelino: tinha...lá do canto...sabe onde é o Canto dos Araçás?...sabe?...aqui

até o Morro do Badejo tinha vinte e cinco engenho de farinha, vinte e cinco!...não

é mentira minha que eu não sou home de mentir...hoje tá preso por um que é do

seu Inacinho ali...ainda tem unzinho ali não tem?...é o único que sobrou...é...mais

nóis tinha vinte e cinco engenho aqui...e chegava a ‘boca da hora’ quando era

tempo da safra da tainha...no mês de Julho...da mandioca...óia aqui ó...mês de

Junho...todas mulher iam raspar mandioca pra ganhar biju...né...fazê café da

manhã...era gostoso um bijú daquele...então todo mundo...agora hoje, hoje essas

moça aí de hoje...elas não querem quebrá a unha...é...são mandriona...(seu

Adelino).

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Assim como os engenhos, os alambiques e as tecelagens foram, aos poucos,

desaparecendo da paisagem da Lagoa.

EU: e quando que os engenhos começaram a sumir assim?...o sr. lembra?porque

hoje em dia não existe mais nenhum engenho né?

Seu Andrino: não!...nem de cana...nem de farinha...por causa desses negócio aí

né?...não deixaram mais plantar, não derrubar mato...só tinha um aqui na

lagoa...ali no seu Inacinho...também não plantou mais... (seu Andrino).

O final deste período histórico está bem caracterizado na extinção destes meios de

trabalho; e principalmente, na impossibilidade de se continuar nestes ofícios, como pode ser

observado no relato de seu Inacinho, proprietário do último engenho da área central da Lagoa:

EU: então...seu Inacinho...dá pra dizer que no centrinho da Lagoa, hoje, o seu é o

último engenho? Que parou de funcionar?

Seu Inacinho: é o último...é a luz...se der a gente compra ali...já falei pro cara...de

a gente comprá mandioca...uns 500 quilo á 1000 quilo...pra ir gente no engenho

pra fazê uma farinha...farinha de _ ...aí pra comê...

(...)

EU: porque que o senhor parou de trabalhar com engenho?

Seu Inacinho: não hoje em dia não dá mais...primeiro porque, cô já não tenho

terreno...então hoje não tem terreno...no morro...se eles liberasse no morro pra

trabalhar...também acho que já me custa ir...porque eu já to...já to com 82 ano

né...sente dor nas perna...essas coisa...acho que trabalhá na roça não dá mais...a

gente vai se cansando... (seu Inacinho)

EU: e os filhos?

Seu Inacinho: tão tudo empregado...não adianta né...porque não adianta o quê que

vai fazê...o Niso é ó...um deles é empregado da prefeitura...é empregado lá no _

...um que passô agora aqui com a carreta aqui...puxa um papelão...não dá pra se

metê na róça...na róça não dá...aqui não dá mais... (entrevista seu Inacinho).

Este parece ter sido o fim de uma atividade que durante muitos anos fez parte da

cultura local, e que sugere o final de um período histórico de características rurais na Lagoa.

Como conclui seu Nenê:

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Page 69: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

...Tinha engenho aqui na Costa da Lagoa...tinha na Barra...tinha no Rio

vermelho...tinha ali lá em...tinha em Ribeirão da Ilha...em tudo...Biguaçú...agora

acabou...hoje já vem tudo lá...diretamente da fábrica... (entrevista Nenê)

As atividades agrícolas como a fabricação de farinha de mandioca nos engenhos, estão

hoje praticamente extintas. Existiam muitos engenhos que desapareceram da paisagem local,

no entanto, ainda podemos rememorar sua existência e extinção através das palavras do seu

Inacinho: EU: tinha muito engenho aqui seu Inacinho? Além do seu? O senhor lembra?

Seu Inacinho: lembro...lembro...qué vêji?...eu acho que daqui até o Morro do

Badejo...parece que era...parece que era 30 engenho que tinha...agora eu não

tenho muita lembrança não...mas eu sei...que daqui pro Canto tem...qué

vê?...tinha nessa casa aqui...na casa do Zinho...aqui o meu sogro tinha

um...né...tudo de farinha...engenho de cana aqui era só na Costa...que eu sei 3 ou

4 engenho de cana na Costa...mas mesmo assim açúcar não fazem...lá eles fazem

melado...e _ pra fazer cachaça...(tosse)

EU: e vendiam o que produziam nos engenhos?

Seu Inacinho: aí vendia aqui pra Lagoa aqui...e daqui tem os compradô...de

carro...o pai do Arlindo tinha venda né...deixava e também levava pra

cidade...entendeu?...pra vendê na cidade...mas levava escondido por causa do

fiscal né...que aí tinha... _ multa...não deixavam...tinha que ter licença pra

deixar...pra vendê...porque um monte de gente faz né...as pessoas...essa aqui tinha

um engenho aqui...o seu Bentinho meu sogro...ali dentro da...onde tem aquele

muro que tem ali...que tem um muro aí que tem uns pé de goiaba que tá ali...que

tá cheio...que tá sujo de mato ali...naquela casa tinha outro...então são 3...aqui em

cima atrás da igreja tinha outro...4...aqui onde é o grupo ali...tinha outro...5

né...ali antes de chegar a entrada do lic...ali tinha 3 perto um do outro...ali que eu

vi...aqui tinha 1, 2, 3, 4, 5...então nesse meio aqui tinha 5...com 3 que tinha

ali...8...né...8...aí passando aquela volta que vai...que é a estrada do Canto...tinha

o Chico Tambino e tinha o pai do Mercindo...né...tinha o seu Tomé que era

tucado da mão...aí já tinha 3...onze né...tinha o seu Lourenço...não...o Seu

Lourenço é o tucado da mão...tinha o...como é o nome do _ do homi...ah o seu

mane Tomé...é era o seu mane Tomé...era 8...tinha o sogro do Damião...9...ah ali

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Page 70: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

quem passa...tem uma ladeira que a gente sobe assim...que é a casa que era do pai

do vilmar que tinha a venda...ali parece que tinha uns dois ou três também...no

morro do Badejo também tinha parece que uns 2 ou 3...e tem a quebrada...que

também tinha parece que só na quebrada tinha 3 engenho atrás do outro...

A extinção, por seu Inacinho: “Ah acabou!”...

Ah acabou!...ah não...só que eu tenho um genro que é maluco ó...maluco tá

com duas embarcação lá...que coisa...mas eles fizéro uma casinha pra

alugar...fizero uma casinha pra alugar...que agora todo mundo vem atrás de

casinha pra alugar...e ele tem terreno...que é da mulher...pode fazer...pode ser de

casinha rosa...né aquela...madeira mêmo...não é certo?...tá até ganhando um

troquinho...o jeito que tá lá eles tira óleo de madeira lá...dá uns 300, 500 por

mês...todo mês...então também ele tirava né...quase uns 500 por mês...então...já

dá pra fazer outra...ele tem que procurar o que ganha...e tá ele com duas

embarcação...matando um siri magro na Lagoa...matando um xigôzinho

né...fazendo rede...pra que empatar dinheiro em rede?...tô certo?... (seu Inacinho)

Nos relatos obtidos e no cruzamento das informações foi possível se traçar um quadro

da paisagem do lugar á época do surgimento do automóvel no local Até a década de 50 o

acesso era bastante difícil para os automóveis, como podemos ver no relato do seu Andrino:

EU – tinha trilha no morro? Era o mesmo caminho...é onde é a estrada hoje?

SA – é o mesmo caminho...agora...só muda o carro agora...era tudo morro a

barro...estrada de chão né?...quando nóis compremo o primeiro carro...nóis botava

quatro corrente às vezes pra subir aqui, e não subia...nós levava pescador

junto...pra puxar o carro com uma corda na frente...por causa da lama

né...patinava...pra descer...nóis mandava dois, três atrás e empurrava a dianteira

do carro...porque o freio não agüentava deslizava né? As vezes quando não dava

por aqui mesmo, nóis ia por aqui, pelo Rio Tavares...Morro do Badejo...a estrada

era ruim também...a estrada era ruim também...estradinha feia pra burro...só que

hoje tá tudo mudado né (...) e foi indo, foi indo, foi indo, até que melhoraram a

estrada...a estrada melhorou bem aqui foi no tempo do Paulo Fontes foi prefeito...

né?...ele que melhorou a estrada...foi feito aqui tudo com aqueles preso da

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Page 71: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

penitenciária...alargaram tudo ali...a marreta...tudo nesses morro aí...alargado à

marreta...

Estes serviram como uma forma de transporte de pessoas e de mercadorias, como pode

ser constatado no relato de Seu Andrino, um dos primeiros proprietários de automóvel na

Lagoa:

(...) o primeiro carro na Lagoa quem comprô parece que foi aquele da esquina

ali...do Badeca Vieira, um Ford...boteco 22...naquela época...depois _ muito

tempo...aí é que nós compramo esse Ford...é foi os primeiro mesmo...foi nóis (...)

aí comprei um caminhão...comecei a trabalhar com o caminhão...fui pra

estrada...naquele tempo nóis fazia linha de passageiro...daqui pra cidade...eu e o

meu irmão...cada um tinha o seu carro...é levava pra feira...por causa do negócio

que tinha aí...negócio de balcão...então nóis precisava ir pra feira de

madrugada...saía de madrugada fazia a feira e trazia pra eles aí...naqueles tempo

com carreta né...carroça...fazia a feira com carroça depois passemo a fazer com

caminhão...meu caminhão primeiro foi um Chevrolet 51...nóis compremo...mais eu

e ele de sociedade (irmão)...depois nóis dividimo a sociedade aí eu comprei um

Dodje e ele comprou outro...aí tinha...uma tolda por cima assim...tinha tudo

né...carroceria de madeira...adepos mais tarde eu troquei aquele por outro...um

Dodje maior...já nóis levava pescador daqui pro Rio Grande...aí tinha estrada

né...quando levava pescador daqui pro Rio Grande levava trêis dia daqui no Rio

Grande de caminhão...passava uma porção de barro por tudo naquele época... (seu

Andrino)

O transporte das mercadorias era difícil e os deslocamentos até os pontos de comércio

eram feitos a pé ou por carroças, cavalos ou a pé, como pode ser constatado no relato de Seu

Adelino e Seu Nenê: EU: e tinha vendas?...como é que era o comércio na Lagoa?

Seu Adelino: aqui na Lagoa...sabe voltava às duas hora da madrugada...pega a

camioneta...adepôs é que veio a camioneta...porque até agora é de carreta

(carroça)...e ia um com a carreta lá embaixo...duas hora da madrugada e trazia de

carreta tudo em saco...por aqui...e da Barra eles levavam daqui e o cavalo que

passava...botavam dentro da canoa e ia a remo ali levar pra Barra...e outro levava

até a Costa...pra vendê lá na venda pra eles comê né... (seu Adelino)

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Page 72: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

(...) a gente trazia...duzentos réis de fumo...duzentos réis de açúcar...duzentos réis

de sal...naquele tempo...hoje tem açúcar...esse...tem o adoçante...em vidro...açúcar

doce mesmo...tem o União...tem outras marca de açúcar...já em pacote...naquele

tempo eram tudo saco de sessenta quilo...naqueles armazém...então era com

aquele dinheirinho...comprava duzentos réis de açúcar, era um monte...duzentos

réis de açúcar naquela época era um saco, né?...fumo?...era um saco desse

tamanho (altura da cintura)...aqueles fumo de corda...pra botar no cachimbo...fazê

cigarro de palheiro...agora hoje não...aí não tem mais nada disso...tudo mudado

(...) então...o açúcar...açúcar cristal...é açúcar assim como o sal...é em

granito...tem o açúcar...é um açúcar enfarelado...com assim uma carinha de milho

bem clara...é açúcar...açúcar amarelo...né?...todo arroz, não era comprado nada

em quilo...era...biscoito...comprava cinco biscoito desse tamanho...por um

vintém...chegava em casa...(EU - o dinheiro era vintém?)...é vintém...era mil

réis...vintém...né?...acontece...que nóis comprava cinco biscoito desse tamanho

por cinco vintém...quando dava dez, sobrava comprava dez né... (seu Nenê)

Dentro do contexto de crescimento do bairro hoje, se entrecruzam classes e modos de

vida distintos, que convivem em um mesmo espaço e muitas vezes de maneira conflituosa.

Sejam os jovens oriundos de outros centros, empresários em busca de mercado, migrantes em

busca de qualidade de vida, ou nativos descendentes dos colonizadores açorianos,

representando cada qual, costumes diferenciados. As distinções entre estes diferentes estilos

de vida pode ser constatado nas palavras de seu Nenê:

...antes da ‘ripaíada’ (hippies)...desses _ cheio de _ aí...que ando mal

vestido...de cabelo amarrado, de prancha...no cabelo...de brinco...chegam

lá...fazem casa tudo lá do lado de lá do rio...e fazem um rancho lá...mora dez,

doze pessoa lá dentro...não tem cama boa...a mesa deles é o chão (...) eles não

tem chuveiro dentro de casa...eles instalam uma mangueira ou chuveirinho na

rua...e ali na rua todo mundo lava o rabo (...)...lá, a casa dessa gente de fora

aí...que não tem...onde mora é uma lâmpida só... _ ...andam muito mal

vestido...andam muito mal comidos como disse na história...porque são uma

cambada também que...que quando tem dinheiro que os pai ajuda...tudo bem...e

acabou o dinheiro... (seu Nenê)

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Page 73: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

As entrevistas que subsidiaram este capítulo foram realizadas com moradores que

representam personalidades típicas dos descendentes açorianos, que mantém um

reconhecimento de seus pares como tal (foram indicados por muitos dos moradores locais

consultados) e algum tipo de liderança na comunidade. Mesmo aqueles que não se

reconhecem como tal, são referências para os demais.

As estórias e histórias narradas, por um lado, pintam um quadro da paisagem e dos

costumes dos moradores e ilustram as transformações que eocorreram até o período recente.

Por outro lado, revelam as formas de adaptação destes moradores à vida cotidiana na

contemporaneidade.

Deixo este registro como testemunho de um período da história da Lagoa da Conceição

que representou a transição da sociedade rural para uma sociedade urbana.

Fig. 14 – Um século de mudanças. Acima a paisagem das roças e do casario colonial no morro da Igreja em 1900. Abaixo a paisagem atual. Desenhos do autor, 2006.

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III Do rural ao urbano

Fig. 15 – Do rural ao urbano.

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Page 75: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

...aqui era a Freguesia da Lagoa...hoje é a Lagoa da Conceição... (seu Nenê)

Fig. 16 - 68 anos de transformação. Acima, a paisagem da área central da laguna em 1940 ainda com seus aspectos rurais, quando as grandes parcelas de terra desenhavam a planície. Uma imagem ainda sem construções em toda sua extensão. Abaixo, a paisagem de 2005 mostrando o resultado de 68 anos de ação humana onde os sucessivos fracionamentos das grandes parcelas estimularam a urbanização ainda horizontal da área central desta localidade. Fotografia 1940: Foto B studio e fotografia abaixo, do autor, 2005. Este capítulo tem como objetivo observar aspectos que influenciaram as transformações

na paisagem do território à margem ocidental da laguna, mais especificamente no espaço onde

se situou a antiga Freguesia da Lagoa, e onde hoje está o centrinho do distrito da Lagoa da

Conceição.

Pretendo aqui enfocar as mudanças mais significativas neste lugar a partir da década de

40, período em não havia luz elétrica, produtos industrializados ou automóveis; desta forma,

se optou por este recorte temporal, pois foi a partir deste período que a paisagem passou a se

transformar com maior velocidade. Aqui serão observados os aspectos da modernidade que

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Page 76: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

influenciaram as mudanças na vida social e na paisagem do lugar. Como diz Santos (2003:

17), vivemos num mundo confuso e confusamente percebido (...) de um lado, o extraordinário

progresso das técnicas; de outro, a aceleração contemporânea e todas as vertigens que cria, a

começar pela própria velocidade.

A distinção feita entre as sociedades tradicionais e as modernas, tal como observada

por Marx e Engels, ressalta a mudança constante, rápida e permanente que caracteriza a era

moderna: É o abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a incerteza e o

movimento eternos. Todas as relações fixas e congeladas, com seu cortejo de

vetustas representações e concepções, são dissolvidas, todas as relações recém

formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo que é sólido se

desmancha no ar (MARX e ENGELS, 1973:70).

A sociedade moderna se caracteriza por mudanças constantes. Segundo Lefebvre, “esta

mudança pode ser visualizada nas formações urbanas, e também nas relações sociais mais

gerais” (LEFEBVRE, 1991:54). Acrescento também a imagem da ‘destruição criativa’,

segundo Marshall Berman, muito importante para a compreensão da modernidade, “Afinal

como poderia um novo mundo ser criado sem se destruir boa parte do que viera antes?”

(BERMAN, 1982: 26). Marx (apud HARVEY, 1992), ao falar da experiência de espaço e

tempo na modernidade, sintetiza esta noção de mudanças constantes:

Há uma modalidade de experiência vital – experiência do espaço e do tempo, do

eu e dos outros, das possibilidades e perigos da vida – que é partilhada por homens

e mulheres em todo o mundo atual. Denominarei esse corpo de experiência

“modernidade”. Ser moderno é encontrar-se num ambiente que promete aventura,

poder, alegria, crescimento, transformação de si e do mundo – e, ao mesmo tempo,

ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. Os

ambientes e experiências modernos cruzam todas essas fronteiras da geografia e da

etnicidade, da classe e da nacionalidade, da religião e da ideologia; nesse sentido,

pode-se dizer que a modernidade une toda a humanidade. Mas trata-se de uma

unidade paradoxal, uma unidade da desunidade; ela nos arroja num redemoinho de

perpétua desintegração e renovação, de luta e contradição, de ambiguidade e

angústia. Ser moderno é ser parte de um universo em que, como disse Marx,

“Tudo que é sólido desmancha no ar” (HARVEY, 1992: 21).

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Page 77: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

O que é analisado em escala global, pode ser observado localmente em um estágio

anterior. A Lagoa de hoje ainda não se verticalizou e nem todos os seus espaços foram

ocupados, o que permite investigar o contexto das transformações a fim de prever (e quem sabe

mudar) o rumo sugerido pelo atual modelo de desenvolvimento.

Para examinar o contexto histórico e social de transformações na paisagem da Lagoa

focalizarei três aspectos distintos e inter-relacionados: o econômico, o populacional e o

fundiário. Em aspectos econômicos analiso as mudanças no modo de vida dos habitantes da

Lagoa; como se transformaram as relações de trabalho e renda, a consolidação do turismo

como atividade econômica e de um mercado que extinguiu a economia informal e de

subsistência que perdurou até meados dos anos 70. Em aspectos populacionais observo as

evidências e as razões que transformaram a composição da população local. Aqui investigo a

evolução quantitativa da população, assim como as mudanças no perfil do habitante. Em

aspectos fundiários descrevo como a questão de divisão e repartição das terras influenciou a

configuração da paisagem atual; procuro enfocar o processo de desmembramento das grandes

parcelas de terra que marcavam a paisagem rural até os anos 70.

A descrição deste contexto de mudanças espaciais e sociais da paisagem da Lagoa é

enriquecida com as narrativas dos moradores entrevistados, que desta forma oferecem o seu

testemunho sobre o curso destas mudanças.

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Page 78: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

3.1 Transformação econômica – ‘A Carroça e a Pajero’

Fig. 17 – 1 Cavalo Vs 1000 cavalos. Até o ano de 1951 não existiam automóveis na Lagoa, somente carroças ou carros de boi. 57 anos passados temos a proporção de 1 automóvel para cada 2 habitantes da ilha, quem sabe até uma maior proporção na Lagoa. Nesta fotografia vemos este contraste nos meios de locomoção que representam dois períodos históricos distintos. Centrinho da Lagoa/2007, do autor. Com ‘a carroça e a pajero’ procuro simbolizar o passado e o presente, a transformação

da economia local que produziu um contraste visível na paisagem contemporânea da Lagoa;

entre seus distintos extratos sociais e suas respectivas condições econômicas.

Até meados de 1960 a Freguesia da Lagoa apresentava a particularidade da existência

de uma indústria doméstica. Diversos produtos alimentícios (farinha, aguardente, café,

pescados, etc.) e materiais (cordas, balaios, redes, óleo, etc.) que abasteciam a cidade eram

produzidos na Lagoa. Esta era uma localidade basicamente rural, com um sistema

econômico ainda voltado para a agricultura de subsistência e a pesca.

Como visto anteriormente, o comércio de produtos básicos, na Lagoa, era restrito a

poucas ‘casas de negócio’ e sua comercialização era por peso (e também por dúzia, cacho,

unidade). O transporte das mercadorias era difícil e os deslocamentos até os pontos de

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Page 79: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

comércio eram feitos a pé ou por carroças, ou cavalos. Este quadro representa a Lagoa da

Conceição há 50 anos atrás.

A economia, de caráter familiar, com o tempo foi sendo ‘absorvida’ por um novo

sistema econômico comercial, uma vez que a industrialização dos produtos da fazenda afetou

as antigas práticas de subsistência, que passaram a se sujeitar às novas condições do modo

capitalista de produção - o mercado.

Na descrição do modelo de mercado universal de Harry Braverman (1980), pode-se

ver como a economia baseada no capital monopolista estimula a consolidação deste mercado,

e um processo de desenvolvimento urbano que, aos poucos, se fecha em torno do trabalhador

e em torno do agricultor; e os confina a um contexto e circunstâncias que impedem as antigas

práticas de auto-abastecimento.

Ao mesmo tempo em que a renda proporcionada pelo trabalho torna disponível o

‘dinheiro’ para adquirir os produtos fabricados pela indústria, este sistema competitivo torna a

prática da produção doméstica muito enfraquecida. É assim que ocorre a deterioração das

antigas especialidades. Esta nova lógica reforça a necessidade de cada membro da família

entrar no mercado de trabalho e ter uma fonte de renda independente. O status social, já não é

mais a capacidade de fazer coisas, mas simplesmente, a capacidade de comprá-las.

Como expressa com simplicidade dona Laíde em entrevista: “... não é por logo agora,

que já... que pra gente comer um peixe, tem que sempre comprar né... tem que comprá... tem

quicomprá, temquicomprá, temquicomprá...”.

Segundo Braverman, este modelo de mercado transforma a vida social em uma densa e

compacta rede de atividades interligadas, que enfraquece a família como empresa cooperativa,

cuja produção conjunta se constituía como um modo de vida. O trabalho deixa de ter uma

função ‘natural’ e configura-se como uma atividade ‘de mercado’. O enfraquecimento das

relações familiares de produção afeta também as relações de comunidade, e o sentido de

vizinhança (BRAVERMAN, 1980).

Em termos da cultura tradicional, o domínio do mercado, a industrialização da pesca e

dos gêneros agrícolas estimulou os trabalhadores a abandonar suas antigas práticas e a se

adaptar à vida assalariada. Como diz Santos (1986):

(...) a substituição das pessoas, a alteração dos equilíbrios sociais de poder, a

introdução de novas formas de fazer, geram desequilíbrios dos quais resultam,

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de um lado, a migração das lideranças tradicionais locais e a quebra de hábitos

e tradições, e, de outro lado a mudança de formas de relacionamento

produzidas lentamente durante largo tempo e que se vêem, substituídas por

novas formas de relações cuja raiz é estranha e cuja adaptação ao lugar tem um

fundamento puramente mercantil.

No que concerne à relação da economia, em especial do domínio do mercado, com a

questão da terra, diz Nazareno José Campos (1991), que a pequena produção mercantil

açoriana se caracterizava, entre outras coisas, pela existência e utilização de terras comunais.

Tratava-se na verdade do uso comum, como suplemento da propriedade individual.

Os campos comuns constituíam-se em áreas que a princípio pouco interesse

de uso econômico despertavam ao pequeno produtor ou a outra pessoa

qualquer. Não passavam de terras de solo e vegetação relativamente pobres,

que só se tornariam econômicamente interessantes posteriormente. A forma de

utilização das áreas comunais que mais predominava era a criação de gado à

solta. O gado pastava livremente, misturando-se uns aos outros, sem cercas que

separassem o gado de diferentes usuários (...) O usuário do campo comum era,

em sua maioria, pequeno produtor, que em geral possuía entre 2 e 5 cabeças de

gado, em média, no campo. Este gado era utilizado em interesse próprio (leite,

carne, transportes, trabalho, lavoura ou engenhos). Havia também alguns

grandes criadores que chegavam a possuir 40 a 50 cabeças ou mais.

Existiam, ainda, entre a elite comercial, administrativa ou militar de

Florianópolis, aqueles que se apossavam das terras comuns e promoviam nelas

plantações (arroz, mandioca, etc.), construíam engenhos, pagavam pequenos

produtores para tirarem lenha e outros produtos. Criavam, assim, uma

importante fonte lucrativa. A utilização destas áreas na Ilha de Santa Catarina

era intensa até aproximadamente a década de 40; a partir de então se acelerou o

processo de apropriação de átis áreas, seja por interesses privados, seja por

interesses do próprio estado. Desde o século passado, as terras públicas já se

constituíam em objetos de conflitos e discussões, especialmente entre os

usuários e pessoas interessadas em apropriá-las. (Campos, 1991: 109-118)

Estes aspectos da transformação da economia, no caso da Lagoa da Conceição, se

espacializaram posteriormente na expansão residencial e principalmente no comércio de

terras que se tornou rentável; enquanto a pesca e a lavoura como meio de subsistência já não

garantiam mais o sustento das famílias. Com a economia moderna o mercado de trabalho

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volta-se para o emprego assalariado, e para a renda da terra, seja através da construção e

aluguelde casas, ou da própria venda das terras. Os antigos moradores que não dominavam a

lógica das relações urbanas, como também deste novo modo de vida, venderam parte de suas

terras ou as desmembraram entre a própria família. Posteriormente, com a supervalorização

das áreas próximas ao centro, os antigos moradores foram sendo expulsos e os que ficaram, ou

seus filhos, acabaram incorporados em serviços subalternos. Para os trabalhadores nativos,

tudo isso implicou em uma intensificação dos processos de trabalho e uma aceleração na

desqualificação e requalificação necessárias ao atendimento de novas necessidades de

trabalho; que eram bastante distintas de sua cultura tradicional. Neste processo, uma grande

parte da população nativa passou diretamente do setor primário, (onde já estavam

historicamente assentados vivendo da pesca artesanal, da atividade agropecuária e morando

em suas pequenas propriedades agrícolas), para o setor de serviços. Estas transformações

sócio-culturais desencadeadas a partir de então (1960), foram aceleradas, assim, com a

chegada de novos moradores e o aumento da demanda por comércio, e serviços na localidade.

Na década de 70 a Lagoa passa a sentir os reflexos do crescimento urbano dirigido

pelos planos de desenvolvimento dos balneários, que aceleraram a ocupação de áreas

ocupadas da Lagoa e das praias; assim como o aumento da demanda residencial, em reflexo à

instalação de instituições como a UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e Eletrosul

(Centrais Elétricas S. A. - subsidiária da Eletrobrás) no bairro próximo da Trindade.

A partir deste período a Lagoa passou a absorver uma maior procura por moradia de

migrantes oriundos de outros estados, e surgiram na sua paisagem os loteamentos Village e

posteriormente Saulo Ramos; bem como loteamentos informais e diversas residências que

representaram o início da expansão urbana em direção a planície e a orla. O período pós 70

representou o declínio da identidade rural da Lagoa.

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Fig. 18 – Ontem e hoje. Fotografias da área central da Lagoa da Conceição. À esquerda, a orla da Lagoa da Conceição (década de 70) próximo à Ponta das Almas (lugar conhecido também por Caieira), e ainda sem a ocupação de suas margens pelas residências. Fotografia de acervo de Carlos Damião. Na fotografia da direita vê-se, de outro ângulo, um trecho da mesma área, que corresponde a atual Rua Rita Lourenço de Oliveira, que funciona como um ‘canal murado’ (minha expressão). O contraste destas fotografias mostra uma grande transformação urbana em um período de 38 anos. Fotografia de 2007, do autor.

O crescimento urbano, aos poucos mudou o perfil dos habitantes, e trouxe novos

hábitos e novos meios de ganhar a vida. Em termos de economia já era possível observar ser

mais rentável para as famílias dos antigos agricultores e pescadores trabalhar com serviços de

apoio ao consumo do que se dedicar a antigas práticas de subsistência.

Na década de 80 o fenômeno turístico passa a adquirir relevância econômica e a

promover modificações culturais e paisagísticas significativas. Foram anos marcados pela

expansão urbana desvinculada do Centro, gerada basicamente pelas atividades de turismo e

lazer. Este fenômeno alterou a fisionomia urbana valorizando apenas o produto turístico como

hotéis, restaurantes, loteamentos, residências para aluguel e da ocupação avançando em

direção as margens da laguna.

Fig. 19 – A lógica de mercado. Placas da Lagoa da Conceição. Fotomontagem do autor, 2008.

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A partir da década de 90 a economia local passa a sofrer maior influência da atividade

turística, quando suas terras passaram a ser muito valorizadas. A Lagoa que na década anterior

vinha se caracterizando como área de expansão residencial do centro da cidade passa a crescer

como polo turístico. Atualmente grande parte da comunidade local vem se adaptando a esta

grande demanda residencial, seja através da ampliação de seus imóveis, seja na construção de

novas residências visando o aluguel ou na venda de suas terras como fonte de renda. O

modelo turístico aqui implantado intensificou as atividades de comércio, serviços e de lazer.

Com o turismo internacional ou mesmo de outras regiões do país estabeleceu-

se um envolvimento puramente comercial com o lugar, graças à sazonalidade e

talvez, à eventualidade de sua presença. Trata-se de um turista muito mais

exigente com os serviços de apoio, e se constitui uma demanda muito maior

destes mesmos serviços. A ocupação do território em um ou outro caso é

também diferenciada: este turismo mais consumista exige infra-estrutura com

investimentos em hotéis, campings, restaurantes e comércio sofisticado voltado

aos esportes náuticos (POPINI, 1991: 52-53).

Este modelo de desenvolvimento, entretanto, não privilegiou os diversos aspectos da

história e da cultura local, voltou-se exclusivamente para a comercialização de terras e para a

sazonalidade das temporadas de verão. A pesca artesanal e a pequena agricultura dos antigos

colonos açorianos foram aos poucos, sendo substituídas pelos serviços de apoio ao consumo

turístico e pela moradia secundária utilizada durante o curto período de verão. Entre os moradores nativos da Lagoa encontra-se uma diversidade de

ocupações profissionais que os distanciam das práticas tradicionais como a

pesca, por exemplo (...) O pescador vendeu o pedaço de encosta onde deixava

seu barco; seus filhos não seguem a tradição; novos hábitos trazem barcos a

motor para a lagoa; o pescado começa a rarear; surgem outras oportunidades de

trabalho e a pesca passa a ser ocasional (...) O morador tradicional investe em

estrutura para os turistas, construindo casas no mesmo terreno onde habita ou

utiliza áreas da família para abrir restaurantes, pousadas e pequenos comércios.

Esta prática, a exemplo das áreas de encosta no caso da pesca, leva-o a ficar

sem terra também para plantar. (KUHNEN, 2002: 164)

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Page 84: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

Hoje a Lagoa apresenta uma grande diferenciação social; os antigos moradores

contrastam com os novos moradores e com suas formas de habitar e de empreender o

crescimento da localidade. São diferentes agentes que atuam na espansão urbana do local, seja

através da construção de condomínios e murados e controlados; seja nas áreas de auto -

construção, como pequenos aglomerados familiares, que retratam a diferenciação sócio-

espacial comum em sociedades de países em desenvolvimento.

...na lagoa hoje só mora....na beira d’água só mora milionário...sabes...na

beira d’água só tem...cada casa de gente rica...aquela coisa ali...era tudo de

nóis...foi vendido...foi vendendo pra eles...e a gente foi comprando em outros

lugar mais afastado da beira d’água (...) aquela coisa que era dos nativo aí...tú

não vê mais nada...agora é tudo de gente de fora.(...) e agora qualquer

terreninho pra tu fazer só a casinha...é duzentos conto... (seu Nenê)

Fig. 20 – Diferentes velocidades. O conflito entre distintos modos de vida, a agitação e a alta velocidade da modernidade emergente; em contraste com o modo de vida calmo e menos veloz do pescador artesanal. Uma imagem presente na paisagem da Lagoa da Conceição contemporânea. Fotografia do autor, 2007. Percebe-se que a economia influencia diretamente o movimento da paisagem,

modificando as relações de trabalho e de convivência em sociedade. Na Lagoa, a orla da

laguna e seus morros, aos poucos, espacializam esta diferenciação e desigualdade social,

característica de nosso modelo de desenvolvimento.

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Page 85: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

3.2 Transformação Populacional Procurei mostrar como certos aspectos da economia influenciaram as relações de

trabalho, as migrações e a transformação do modo de vida local.

Neste ítem focalizarei o crescimento da população da Lagoa, e como se intensificou

este processo. Para tanto levantei algumas evidências que demonstram este crescimento e as

alterações do perfil da população local. A transformação de uma paisagem rural praticamente

despovoada para uma paisagem urbana.

Inicialmente gostaria de observar que o fenômeno de grandes aglomerações urbanas é

algo que surge em escala global. As tendências de crescimento da população apontam para

grandes concentrações urbanas, segundo os dados da Global Urban Observatory:

Al inicio del siglo XX, el 10% de la población vivía en ciudades

En el año 2000, alrededor del 50% de la población mundial vive en ciudades

En el año 2025, la población urbana podría llegar a los 5.000 milliones (dos

tercios en países pobres) (KOOLHAS, 2001: 1) Estas projeções indicam um crescimento demográfico em grande escala, pois se a

população do globo duplicava sua quantidade em séculos, hoje o faz em décadas. Para se

introduzir esta problemática, torna-se necessário levar em conta esta perspectiva em seu

contexto histórico, que segundo Milton Santos é um processo cumulativo (1991: 38): A aceleração da expansão demográfica é cumulativa. Entre a época neolítica,

quando houve a grande revolução que gerou o Homo sapiens, até os inícios da

cristandade, um período que se conta em milênios (três, cinco?), a população do

planeta apenas dobra, passando de cem ou cento e vinte milhões a duzentos e

cinqüenta milhões de habitantes. Para que a população dobrasse outra vez, foram

necessários quase quinze séculos, entre a época romana e o reinado de Luís XIV,

quando os efetivos humanos somavam quinhentos milhões, para alcançar

quinhentos e quarenta e cinco milhões em 1750. A nova duplicação do estoque

humano vai dar-se em apenas um século, pois em torno de 1850 havia entre um

bilhão e cem milhões e um bilhão e duzentos milhões de homens. Desde a fase

em que Bismarck e Cavour constroem a unidade da Alemanha e da Itália e o fim

da segunda guerra, a população mundial se duplica de novo, chegando a dois

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Page 86: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

bilhões e quatrocentos milhões em 1950. Daí para cá, a aceleração se torna

prodigiosa. Quinze anos depois, em 1965, contamos três bilhões e meio de

criaturas sobre a face da terra. Somos, hoje, quase cinco bilhões e se admite que

na virada do século a sociedade humana esteja formada por quase seis bilhões e

quinhentos milhões de viventes. (SANTOS, 1991: 38) É possível constatar que o aumento vertiginoso da população em nossa área de estudo,

não está tão distante daquela projeção em escala global.

Eu: e o que o sr. acha da Lagoa de hoje?...

Seu Andrino: mudou tudo né...população demais né?

Até a metade do século passado o crescimento populacional da Ilha de Santa Catarina

foi pequeno. O processo demográfico se intensificou após a segunda guerra mundial e veio

ganhando vulto até os dias atuais. Em um período de 30 anos, de 1940 a 1970 a população da

ilha mais do que dobra em número; segue-se um outro período de 30 anos, de 1970 a 2000 e

ela dobra novamente.

TABELA 1 - Quadro da evolução da população de Florianópolis (1872 – 2000) Período População

Total / Urbana / Rural Taxa de urbanização

Crescimento anual Período – Total - Urbano

1872 25.709 / 11.322 / 14.387 44,04% 1872-1949 1,26% 1,98% 1890 30.689 / 16.506 / 14.178 53,78% 1872-1919 1,02% 1,51% 1919 41.338 / 22.874 / 18.464 53,33% 1919-1939 0,62% 1,31% 1939 46.753 / 29.700 / 17.053 63,53% 1919-1949 1,65% 2,72% 1949 67.630 / 51.115 / 16.515 75,58% 1939-1949 3,76% 5,58% 1959 98.520 / 79.870 / 18.650 81,07% 1949-1959 3,83% 4,56% 1970 143.414/ 125.841 / 17.373 87,75% 1959-1970 3,47% 4,22% 1980 187.871/ 161.773 / 26.908 86,11% 1970-1980 2,74% 2,54% 1991 254.941/ 239.566 / 15.375 93,97% 1980-1991 2,81% 3,63% 2000 339.063/ 329.007 / 10.056 97,03% 1991-2000 3,22% 3,59% 2002 360.601 2003 406.564 / 358.180 / 10.922 97,04% Fonte: elaborada a partir de dados do IBGE (PIMENTA, 2005: 40). Mantido os padrões do crescimento demográfico verificado nas últimas décadas pelos

censos demográficos, a população urbana de Florianópolis dobraria a cada 19 anos e a da

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Page 87: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

região metropolitana a cada 25 anos, o que significaria dobrar a densidade populacional a cada

25 anos.

A Lagoa da Conceição vem absorvendo os reflexos deste crescimento populacional.

Segundo dados do Diagnóstico Ambiental Preliminar da Lagoa da Conceição (ABES / CREA-

SC, 2000), em 1980 essa localidade tinha apenas 7.897 habitantes fixos. Já em 1991 aumentou

para 14.784, atingindo 19.316 residentes em 1996. O censo de 2000 estimou 23.929 habitantes

para a localidade. Este crescimento revela a ampliação de sua área urbana, a partir de 1991,

com a inclusão de outras localidades como a Barra da Lagoa (atualmente outro distrito), Canto

da Lagoa e Praia Mole.

Entre 1980 e 2000, a população residente na bacia da Lagoa sofreu um crescimento

anual de 4,77%, mais que o dobro da taxa de crescimento estadual, atingindo 23.929

habitantes.

TABELA 2 - População da Lagoa da Conceição (IBGE - 2000) 1980 – 7.897 habitantes

1991 – 14.784 habitantes

1996 – 19.316 habitantes

2000 – 23.929 habitantes

Comparando-se o índice de crescimento da Lagoa com o da Ilha como um todo, nota-

se que a Lagoa apresentou um aumento populacional superior ao da Ilha nas últimas duas

décadas. Os números do IBGE mostram um aumento quase duas vezes maior que a média

para a Ilha no período de 1980-1991, e acima desta média, para o período mais recente de

1991-2000.

1980-1991 1991-2000

Lagoa 5,70% 3,48%

Florianópolis 2,81% 3,22%

A área focalizada neste estudo comprende o Centrinho da Lagoa, e tornou-se uma área

de grande influência para as demais localidades da Lagoa da Conceição. Esta área concentra

atualmente instituições, serviços e comércio que lhe conferem características de centralidade.

No Centrinho, segundo BARBOSA (2003: 43-44) a população era de 11.237

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Page 88: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

habitantes (IBGE 2000), incluindo Canto dos Araçás, Centrinho e Canto da Lagoa. O que

significa quase 50% , ou metade da população total da Bacia Hidrográfica.

O aumento populacional observado, nos últimos decênios é preocupante, devido às

características culturais, ambientais e os recursos naturais apresentados pela diversidade dos

ecossistemas desta área. A qualidade de vida ambiental urbana está diretamente associada com

o crescimento da população, e de como esse crescimento se comporta em relação ao meio.

Este crescimento progressivo é estimulado, por fatores econômicos, pelas migrações,

pela deterioração do nível de vida nos grandes centros; e em parte, pela propaganda

exacerbada de nossos meios de comunicação.

As belezas da Lagoa transparecem em seu sítio físico, uma amostra dos elementos

naturais presentes no meio ambiente ilhéu, com seus remanescentes da Mata Atlântica, dunas,

restingas e fauna e flora exuberantes; estes fatores tem tido forte atração para um grande

contingente migratório que vem se deslocando para esta região, e escolhendo a Lagoa como

local de estabelecimento.

A Lagoa da Conceição, seus recursos naturais e qualidade de vida, se comparados aos

de outros centros urbanos do país, são um apelo aos migrantes que vem em busca destes

atrativos. O distrito se enquadra nesta descrição de ‘atrator’ migratório típico, porém apresenta

a peculiaridade de atrair migrantes de classe média e alta, cultos e oriundos dos grandes

centros urbanos do país, assim como, migrantes pobres e não qualificados em busca de

oportunidades. De reduto açoriano que perdurou com estas características até as décadas de

1970 e 1980, a Lagoa transformou-se em um potencial centro gastronômico e de

entretenimento da Capital, assim como local de morada das classes mais abastadas,

apresentando atualmente uma economia mais forte do que a de muitos municípios

catarinenses. Bares, boates, lojas, restaurantes, hotéis e pousadas dividem espaço nas estreitas

ruelas com casas e prédios. O movimento, que no passado era restrito apenas à temporada de

verão, hoje é verificado durante todo o ano. Com o desenvolvimento, vieram muitas pessoas

de outras partes do país, e motivaram as transformações: tanto sociais, através da mudança do

perfil do habitante; como espaciais, através dos sistemas de circulação criados. O excesso de

veículos ou o saneamento básico precário e a crescente insegurança parecem ser reflexos desta

nova realidade.

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Page 89: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

Assim, o elemento humano foi aos poucos, modificando a fisionomia da paisagem da

Lagoa, pois o processo migratório vem produzindo um incremento populacional significativo

e crescente em todas as classes.

3.3 A transformação fundiária – ‘Da grande parcela ao pequeno lote’

Eu – E a freguesia Dona Laíde?... ela ia desde a Costa até aqui? (apontando para

o centrinho)

Dona Laíde – É... mais só que não é... não era aumentada como tá agora, né

Marcelo... agora que tá demais... (dona Laíde)

Qual a influência das divisões de terras no desenho da paisagem?

Fig. 21 – Da grande parcela de terra ao pequeno lote. A transformação da paisagem na área do Centrinho da Lagoa. A terceira imagem desta sequência mostra a situação atual, e o aglomerado urbano que se formou nos últimos 48 anos sobre a área estudada; desenho obtido a partir de fotografia do autor. Grafite e pastel seco sobre papel, 2006. Como em outras localidades de colonização portuguesa, a freguesia da Lagoa foi

‘semeada’, estruturou-se partindo dos atracadouros e das fontes de água e rios. Era a

proximidade destes lugares que orientava a construção das casas e outras edificações. Segundo

o professor Sérgio Buarque de Holanda (2005: 95), tanto as cidades portuguesas como as

castelhanas eram um instrumento para a dominação. As cidades castelhanas tinham um maior

‘zelo urbanístico’ e apresentavam uma malha ortogonal onde triunfava a linha reta. Já as

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Page 90: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

cidades lusitanas não obedeciam a uma formação tão rígida com normas que permitiam a

construção de uma cidade menos concentrada e mais natural. Por isso dizer que as cidades

, de distribuição e partilha da

eiras

sicas, limitavam os terrenos e os próprios caminhos, dando forma à paisagem da Lagoa.

portuguesas eram ‘semeadas’ e as castelhanas ‘ladrilhadas’.

O sistema fundiário da Lagoa da Conceição foi estabelecido segundo as normas

portuguesas - da igreja se organizou a vila. A igreja tinha também uma função administrativa e

edificada em sítio mais alto, marcava a paisagem. Ela servia de referência para os caminhos

que estruturaram a ocupação. Assim, o patrimônio religioso orientava o sistema fundiário, que

por sua vez, ordenava a ocupação do território. A este contexto

terra, correspondeu o delineamento de nossa paisagem colonial.

Embora a principal estrutura de organização fosse a nucleação da freguesia, e esta fosse

voltada para a circulação, as áreas entre as vizinhanças foram aos poucos sendo ocupadas ao

longo dos caminhos, reforçando suas ligações e desenvolvendo uma estruturação interna e, por

terra. Caminhos dispostos e serpenteados ao longo das margens ou nos sopés dos morros, com

terrenos compridos e perpendiculares a estes. Esta estruturação, reforçada pelas barr

Fig. 22 – Nesta imagem um dos registros mais antigos da paisagem urbana na área de estudo, ainda antes da fotografia. (Bruggemann, 1868). Nota-se a igreja marcando a paisagem no ponto mais alto do ‘Morro do Assopra’, e o casario espalha

ifurca e vem em direção àdo e esparso ao longo do caminho que se estende em direção ao Canto da Lagoa, e se cidade de Florianópolis pelo morro, onde passa uma pessoa na imagem. Imagem

abalha

observação visual de sua paisagem. A estrutura viária atual derivou destes antigos caminhos; o

btr da pelo autor, 2008. Alguns aspectos do antigo núcleo urbano da Lagoa podem ser destacados pela simples

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Page 91: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

sistema de circulação, em muitos casos, está colocado sobre as partes da rede formada por

estes caminhos.

Neste pequeno núcleo de origem açoriana se desenvolveu uma organização sócio-

espacial caracterizada como uma comunidade composta por famílias e seus agregados, cada

qual caracterizada pela permanência dos filhos casados morando na mesma propriedade dos

pais. Este tipo de organização familiar vai influir no desenho do tecido urbano, instituindo uma

forma de parcelamento do solo que consiste na divisão da testada e na manutenção da

profundidade dos terrenos. Desta maneira de dividir e compartilhar a terra resultou uma

configuração de terrenos estreitos e compridos com fundos para os divisores de água ou

subindo os morros, que condicionam a forma urbana na paisagem atual.

Fig. 23 – Nesta imagem representam-se os vetores da expansão urbana em 1940. Em pontilhado os caminhos tradicionais que faziam a comunicação com outras localidades naquele período, e em preto os vetores do crescimento urbano que direcionaram o crescimento urbano a partir de 1970. As melhorias na estrada de acesso à Lagoa influenciaram diretamente o processo de

transformação daquela paisagem colonial; com a acessibilidade melhorada e a conseqüente

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Page 92: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

integração por terra entre as diversas localidades, ocorreu o aumento da população e um

retalhamento mais intenso das terras, através dos loteamentos. As parcelas de terra rurais, e os

eventuais lotes urbanos, desde então, vem alterando o perfil territorial e o quadro da

urbanização para outros moldes, com outra rapidez; passaram a moldar uma paisagem

característica e bem distinta da tradicional. Um retalhamento mais intenso da terra, e uma

outra forma de humanizar, organizar e se apropriar da paisagem.

...foram fazendo as ruas mais largas...foram vendendo assim os terreno...quem

tinha terreno naquela época...(seu Nenê).

Esta nova possibilidade de partilhar e vender parcelas de porte menor, impulsionada

pela valorização da terra e pela vanguarda do turismo atuaram incisivamente para a

estruturação deste novo desenho urbano. Este foi gerado informalmente, em muitos casos, por

iniciativa dos moradores, para facilitar o desmembramento de suas terras:

Sr. Adelino –...essa estrada aqui foi eu que fiz (travessa...)...não foi a

prefeitura...então eu fiz pras minhas irmãs vender os lote lá embaixo...pra minha

vizinha aqui...

EU – era um caminho?

Sr Adelino – era só um trilho...um trilho...então ali no Banco do Brasil, nóis

carregava numa carroça a areia...pra nóis bota até ali o prédio...tá?...então pras

minhas irmã vende os lote que o papai deu pra cada um...tá...aí adepois ali o

prédio da minha vizinha aqui...que chamava aqui...então pediu pra abri, que era

pra lotear o dela...pra vendê...faze os prédio né?...que eu trabalhei ali também de

vigia né.... (Sr. Adelino).

A partir da década de 70 o processo de divisão das antigas glebas9 ganhou impulso e

produziu uma mudança significativa na paisagem. Transforma-se a lógica da divisão

territorial, e assim, é a propriedade privada que passa a dirigir o crescimento urbano e o

desenho de uma nova paisagem. As grandes e estreitas parcelas de terra que desenhavam o

‘xadrez’ dos campos comuns, começam a ser desmembradas em lotes, e a conformar o

aglomerado urbano do Centrinho da Lagoa.

9 Gleba. Grande parcela de terra; porção de terra cultivável ou de utilidade para mineração.

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Fig. 24 – Do caminho antigo da Freguesia que corria junto ao pé do Morro do Assopra (que contém a igreja na parte inferior desta fotografia), foram feitas perpendicularmente as ruas que dirigiram o crescimento urbano da Lagoa em direção a orla da laguna. O desenho urbano resultante, neste caso, foi influenciado pelo parcelamento do solo, pois as quadras de caráter residencial que hoje conformam a paisagem desta área, adquiriram a forma das antigas parcelas de terra.

Fig. 25 – A configuração urbana atual e os desmembramentos das grandes parcelas de terra . Em destaque (preto) o traçado da antiga Freguesia da Lagoa e edificações do período colonial ainda presentes na malha urbana atual. Nesta imagem obtida da planta de cadastramento atual fornecida pelo IPUF (Geoprocessamento, 2008), pode-se observar (detalhes) a forma destas antigas parcelas, finas e compridas, partindo das via principal em direção aos morros ou as margens da laguna. Montagem e tratamento de imagem do autor, 2008.

O espaço urbano vem se adensando progressivamente como, com simplicidade,

explica seu Inacinho: ‘já tem bastante casa em cima da outra’. As novas formas de moradia

no espaço da Lagoa revelam diferentes lógicas de apropriação do espaço. De acordo com

Ariane Kuhnen (2002: 141), as novas construções podem estruturar e organizar o meio numa

espécie de comunicação não verbal, e a forma dada a certos elementos como o tamanho de

janelas, portas e muros, podem ser a expressão de uma cultura e da sua vinculação àquele tipo

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de comunicação. A própria forma de construção das casas denota, em certa medida, a relação

entre o espaço público e o privado destes moradores.

O costume nativo de não cercar seu terreno representa a ausência de limites físicos de

propriedade. Segundo a autora, a forma como planejam sua residência também é um símbolo

desta maneira de ser. Diferentemente, as casas dos novos moradores não possuem grandes

janelas e aberturas para o exterior, também por não serem casas grandes não tornam esta

escala possível. A altura das janelas permite que as senhoras ali se debrucem para conversar

com as vizinhas, já que não há cercas ou muros altos, como em grande parte das residências

dos novos moradores (ibid, 2002: 142).

Assim, as casas dos antigos moradores mantém uma interessante relação com a rua,

que se expressa na sua própria fachada. As famílias antigas ainda costumam, em noites

quentes, sair na calçada com as cadeiras da cozinha para ali conversarem. As casas

apresentam uma continuidade com o espaço público. O acesso casa - rua é muito próximo. Há

pouca vida social no interior das casas dos nativos, eles a vivem no exterior, na pesca, na roça,

no jogo de dominó, na calçada, na rua, nos espaços públicos.

Os novos moradores, diferentemente dos nativos, vivem parte de sua vida social no

interior de suas residências. Projetam suas casas com grandes aberturas envidraçadas,

varandas de onde contemplam a natureza ou recebem familiares e amigos reservadamente, em

privacidade. Poder-se-ia talvez classificar como um expoente do individualismo, advindo das

mudanças que ocorreram historicamente na relação entre o público e o privado nas sociedades

ocidentais. Os diferentes grupos que formam hoje a sociedade da Lagoa têm características e

processos espaciais bem distintos, que vão do mais planejado ao mais espontâneo, do mais

regular ao mais irregular, do mais formal ao mais informal, do mais projetado ao mais livre.

As diferenças entre estas formas, que hoje constituem uma diversidade de soluções, se

deram por vários fatores: a história de cada ocupação, as características do sítio, as questões de

propriedade, as origens da população, a organização da comunidade, os contextos políticos e

sociais. Podemos encontrar uma grande gama de formas espaciais na paisagem do lugar. Com

o desenvolvimento das técnicas construtivas e dos materiais utilizados na construção, a

própria paisagem também é transformada. Nesta paisagem atual ainda pode-se ver este

contraste entre o antigo e o novo.

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Fig. 26 – Impacto de vizinhança - novas técnicas construtivas e novos vizinhos. Esta fotografia mostra diferentes formas de habitar o espaço e o crescimento urbano da Lagoa; revela também a pressão simbólica que é exercida sobre os moradores tradicionais que decidem não migrar. Aos poucos estes moradores perdem espaço, luz, ventilação, distanciamento, visão de outras áreas, etc e ganham lixo, odores, barulho. Fotografia do autor, 2006.

Fig. 27 – Do ornamento ao moderno. O velho e o novo, em um contraste da linguagem e das técnicas construtivas de dois períodos históricos distintos. O casario colonial com suas aberturas de madeira, seus telhados cerâmicos e suas fachadas desenhadas por ornamentos simbolizam o período colonial; em contraste as superfícies envidraçadas e a alta tecnologia do aço da modernidade emergente. Conforme Mumford Lewis (1961: seção ilustrada 38) “Aço e vidro tinham um efeito hipnótico sobre as mentalidades progressistas do séc. XIX, e tem ainda sobre seus sucessores.” Fotografia do autor, 2006.

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O desenho urbano atual representa as várias fases da história da Lagoa, suas diferentes

emonstram a evolução da estrutura

técnicas construtivas e formas de expressão arquitetônica.

A seguir apresento uma seqüência de imagens que d

urbana da área de estudo nas últimas seis décadas. As imagensforam elaboradas a partir do

material de geo-processamento da Prefeitura Municipal de Florianópolis, que serviu de base

cartográfica.

Fig. 28 - As linhas fundamentais do crescimento urbano da Lagoa. Em desenho elaborado partindo da base cartográfica de 2000 oferecida pelo IPUF (quadro 3).

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Em 1940 eram os caminhos da freguesia que estruturavam a vila; o acesso principal

para a cidade era feito somente por um caminho de barro que cruzava o morro, e existiam

outros caminhos ainda não pavimentados, que ligavam a Freguesia a outras localidades como a

Barra da Lagoa, Retiro, Canto e a Costa da Lagoa.

A década de 70 foi o período que marcou a criação de novas ruas e introduziu o

automóvel na paisagem da Lagoa; naquela década se consolidou a estrada pelo morro ligando a

localidade aos outros bairros da ilha, e o acesso às praias. Também foram feitos os arruamentos

que estruturaram a ocupação da planície do centrinho da Lagoa.

A imagem de 1970 revela as diferenças entre a estrutura urbana do período colonial,

linear e sinuosa, e as intervenções urbanas mais recentes motivadas pela necessidade de

expansão residencial, que apresentam uma outra forma de implantação, com um traçado

urbano de forma regular característico do movimento moderno. Surge uma nova paisagem,

como diz Milton Santos: Forças de transformação e forças de resistência entram em luta e dão como

resultado seja a criação de uma paisagem inteiramente nova, seja a transformação

ou adaptação da paisagem antiga, que, então se degrada. (1969: 11-12)

Esta nova paisagem resulta da expansão do traçado urbano, que adaptou-se às

condições topográficas e fundiárias, formando um conjunto heterogêneo de quadras e ruas que

difere das formas de parcelamento tradicionais do período anterior.

Já na imagem do ano 2000 é visível a expansão da mancha urbana, o aumento de

ramificações do antigo traçado que surgiram ao longo das últimas décadas se ampliaram em

função da valorização da terra, e da vinda de novos moradores.

Observa-se que os vetores da expansão urbana avançaram em direção à orla e aos

morros, partindo do traçado da antiga freguesia que se situava mais afastada da águas da

laguna. O desenho urbanístico atual – ou a sua falta – refletem viva e claramente as maneiras

distintas de ocupar o território e as desigualdades da sociedade brasileira; enquanto algumas

áreas são dotadas de infra-estrutura e surgem em função de um planejamento localizado, outras

áreas surgem na informalidade e não são assistidas pelas mesmas condições de infra-estrutura e

serviços.

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Page 98: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

Fig. 29 - A configuração urbana atual da área de estudo. Destaca-se, em amarelo, a estrutura da antiga Freguesia e os pontos em vermelho identificam as construções daquele período que ainda existem hoje. Em destaque (tom escuro) a mancha urbana atual. Esta imagem da área de estudos foi construída pelo autor a partir do levantamento cartográfico atual disponibilizado pelo IPUF (2008). A configuração urbana atual da Lagoa da Conceição apresenta aspectos de cidade: a

área abriga hoje instituições públicas, condomínios, bares, restaurantes, supermercados, hotéis,

lojas comerciais, edifícios de apartamentos, oficinas mecânicas, postos de combustível,

mercearias, farmácias, clubes sociais, casas de diversão, consultórios, escritórios imobiliárias,

academias e quadras esportivas conformam o caráter de centralidade da área.

Todas essas inserções antrópicas conduziram a muitos tipos de alterações, incluindo-se

as drásticas reduções ou total desaparecimento de aspectos naturais pré-existentes. Nesse

aspecto, vimos que a grande área livre da planície central da Lagoa, utilizada para pastagem e

plantações, deu lugar ao meio urbano em um curto período de tempo. Se voltarmos 50 anos na

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Page 99: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

escala de tempo, veremos a paisagem descrita por seu Andrino (86), onde toda a área que

abriga hoje o Centrinho da Lagoa era pastagem: “A gente tocava boi tudo aí...pra baixo aqui

não tinha casa nenhuma...era tudo plantação...é mandioca, milho, tudo plantado ali...então nóis

tocava tropa de boi...vinha tudo em tropa...tinha cinqüenta, sessenta boi...cem!” Hoje vemos as

tropas de automóveis.

Os espaços inexplorados se tornam explorados e os antigos problemas de ordem natural

são substituídos por problemas urbanos: falta de estacionamento, excesso de barulho, de esgoto

poluindo as águas da laguna, de congestionamentos, de violência.

As projeções de crescimento para a Lagoa já indicam novas alterações estruturais na

paisagem; já são previstas a abertura de novas artérias de escoamento do tráfego, e a expansão

das áreas urbanizadas pelo próprio zoneamento do plano diretor em discussão.

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Page 100: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

CONSIDERAÇÕES FINAIS ‘Árvore sem raízes?’

“Um povo sem o conhecimento de seu passado histórico, origem e cultura é

como uma árvore sem raízes”. Marcus Garvey10

As raízes de uma árvore são a sua parte mais vital, pois a ancoram no solo, e a

abastecem com água e outros nutrientes; sem elas a árvore não pode sobreviver. Além disso,

as raízes devem se equiparar ao corpo; se o tronco e folhas de uma árvore crescem e se

espalham sem um desenvolvimento proporcional em suas raízes, a árvore desabará sob seu

próprio peso. Por outro lado, uma profusão de raízes proporciona uma árvore mais saudável e

mais forte, mesmo se tiver um tronco esquálido e poucos ramos, folhas e frutos. E se as raízes

são fortes, a árvore se regenerará mesmo quando seu corpo for danificado ou tiver os galhos

cortados.

O ponto de partida desta reflexão é uma metáfora. Com a árvore insinuo o atual distrito

da Lagoa da Conceição, sua natureza e sua urbe, focos deste estudo. Com as raízes insinuo a

história do lugar como uma herança de índios, colonizadores e “colonizadores” dos

colonizadores. Desta forma pretendo me referir ao surgimento e ao crescimento de uma parte

importante da cidade de Florianópolis.

Uma árvore sem raízes me fez refletir sobre a transformação da sociedade como um

todo (transformação social), e sobre o território focalizado, no que se refere aos aspectos do

urbanismo, da história e arquitetura da cidade (transformação espacial).

Assim, neste estudo, procurei enxergar as raízes da Lagoa da Conceição e focalizar

com maiores detalhes uma fase de seu crescimento, identificando os traços de sua

transformação mais recente. Para isso, parti de uma discussão conceitual sobre paisagem e

cultura, e elaborei um levantamento histórico do lugar, ilustrado pela memória dos seus

habitantes, a fim de cruzar aspectos sociais e urbanos na percepção da metamorfose deste

lugar.

10 Marcus Mosiah Garvey foi um ativista jamaicano que lutou pelo fim da discriminação racial. A citação faz parte de um pôster de Bob Marley da década de 90.

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Page 101: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

Para tanto me reportei a fontes provenientes de campos de conhecimento distintos, que

pudessem contribuir para minha abordagem sobre a transformação da paisagem. Da área da

geografia, autores com perspectivas distintas, mas complementares, como Milton Santos, que

procura desvendar a dinâmica social e enfatiza a paisagem como expressão de uma sociedade

ao longo da história. “A cidade é uma acumulação desigual de tempos”, diz o autor. Santos

ressalta a importância do processo histórico para se compreender a relação entre a construção

de uma nova paisagem e as condições políticas, econômicas e culturais que motivam sua

transformação.

Na geografia cultural de Paul Claval (1999) observei alguns aspectos culturais que

representam tradições, costumes e crenças - como se dá o processo de organização, construção

e transmissão do conhecimento no âmbito de uma sociedade, e como a paisagem pode ser um

instrumento para se compreender as diferentes culturas. Claval me fez ver como as culturas

são diversas, e como é importante a preservação dos aspectos que conferem identidade às

diferentes sociedades e lugares.

A noção de identidade e caráter, compreendidos como expressão de uma determinada

cultura, a essência ou o espírito do lugar, me conduziram à contribuição da fenomenologia

para tentar compreender ações, percepções, e as simbologias que transformam espaços em

lugares. A relação do conceito de paisagem com a memória e a história do lugar foi então

investigada principalmente através das contribuições poéticas e teóricas de Ítalo Calvino,

Maurice Halbwachs, Ecléia Bosi e Paul Thompson.

Assim, neste primeiro capítulo, ao navegar por estes conceitos e pela obra destes

autores, pude perceber a complexidade das interações entre distintas áreas de conhecimento

para a comprensão da paisagem urbana. Tornou-se necessário o conhecimento da história do

lugar.

No segundo capítulo, História e Memória, procurei em um primeiro momento fazer

um retrospecto histórico que aborda os primeiros habitantes do lugar, a paisagem natural dos

índios, a paisagem rural dos colonizadores e agora, a paisagem urbana dos colonizadores dos

colonizadores. Apesar do enfoque amplo observei com maior profundidade o período de

formação da Freguesia da Lagoa e o modo de vida rural e da pesca. Em seguida, me

concentrei na Memória Viva, através do que considero uma rasante pela etnografia - a

memória de pessoas vivas, que levaram a pesquisa aos caminhos da poesia. Foi uma forma de

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Page 102: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

aproximação à história local, uma forma de socialização da pesquisa. Ouvir as vozes da Lagoa

me ajudaram a compreender o grau de transformação do lugar. Deste capítulo surgiram as

bases para compreender a dimensão da transformação do rural ao urbano.

No terceiro capítulo, Do rural ao urbano, procurei descrever a ruptura com o antigo

modo de vida rural. Em seus aspectos econômicos (A Carroça e a Pajero) descrevi a

transformação da cadeia produtiva e do modo de vida dos moradores da localidade, assim

como focalizei a extinção de antigas práticas e o surgimento de um grande mercado

instituindo novas maneiras de ganhar a vida e novos valores. Em aspectos populacionais

procurei descrever a evolução populacional da localidade; tanto quantitativamente através de

dados demográficos, como qualitativamente através de contribuições da Sociologia e da

Geografia. Em seus aspectos fundiários (Da grande parcela ao pequeno lote) investiguei a

influência do processo de divisão das terras que desmembrou as grandes parcelas de terras do

período colonial.

A problemática abordada nos capítulos anteriores é comum a diversas sociedades, e

certamente se agravam com as novas maneiras da sociedade produzir e reproduzir suas

relações a partir do avanço tecnológico e da globalização. Nesta nova era o espaço ganha

novos contornos, novas características, novas definições.

Sendo a cidade uma projeção da sociedade sobre um local, como definiu Lefebvre

(1991), como poderíamos planejar o crescimento urbano de uma sociedade tão desigual? Sobre

os riscos da continuidade deste modelo de desenvolvimento, Lefebvre enfatiza ser impossível

considerar a hipótese de reconstituição da cidade antiga; é possível apenas encarar a construção

de uma nova cidade, sobre novas bases, numa outra escala, em outras condições, numa outra

sociedade.

O movimento da paisagem se revela nas imagens e na memória de quem acompanhou

o processo de desenvolvimento de um lugar. É assim que neste estudo procuro tecer

considerações sobre a história da Lagoa e sobre a memória de pesssoas que viveram uma parte

desta história, presenciando a transformação de sua paisagem. A paisagem pintada por Joseph

Brüggemann, em 1868 (capítulo 2, p. 30 ), mostra traços do modo de vida de um período

colonial.

Aquela paisagem colonial se comparada com uma imagem mais recente como na

fotografia da década de 40 (capítulo 3, p.55 ), revela um movimento lento, de poucas

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Page 103: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

alterações significativas em um período de 72 anos (1868 – 1940). De 1940 aos anos 60

observa-se um período de duas décadas em que a paisagem se movimenta lentamente; a

ocupação humana ainda se concentrava próximas aos morros e os aspectos de colônia agrícola

e pesqueira ainda predominavam naquela paisagem; seja nas grandes áreas de pastagem com

animais, ranchos de pesca à beira da Lagoa, roças, ou mesmo na urbanização não concentrada.

Acelera-se a metamorfose na década de 70, quando surgem alterações estruturais

naquela paisagem de traços coloniais; o urbano começa a ser estruturado com os arruamentos

que introduziram a possibilidade de se repartir as grandes parcelas de terra, e lotear grande

parte da planície central do distrito da Lagoa, levando a urbanização em direção às margens da

laguna (capítulo 3, p. X).

Os aspectos físicos da paisagem atual (2008) mostram a malha urbana se expandindo, a

partir de sua estrutura viária principal, se extendendo por sobre novas áreas e densificando-se

em sua área central. Com a valorização do solo urbano já existe a tendência de verticalização

de algumas áreas, em processo semelhante ao que transformou a paisagem da Lagoa Rodrigo

de Freitas no Rio de Janeiro.

Assim como o ordenamento formal da cidade tradicional podia ser visto como a

expressão física de uma moral baseada principalmente nas virtudes e fins comuns (público), o

ordenamento formal da cidade moderna pode ser visto como a expressão física da moral

individualista, voltada para o poder e as regras. Hoje a Lagoa cresce muito rapidamente,

regida por códigos de zoneamento e de edificação, onde se vê uma crescente valorização do

lugar como áreas comerciais e de entretenimento.

A própria arquitetura que predomina nos dias de hoje é, em muitos casos, construída

por incorporadores imobiliários, e passou a ser encarada, e com certeza louvada pelos

proprietários, como mercadoria de compra e venda e um recurso de marketing. Numa ordem

social nova, marcadamente individualista, a cidade cresce.

As características da economia e da sociedade moderna sugerem a construção de uma

cidade segregada, pois a lógica de mercado indica que desigualdade social que existe hoje,

tende a se agravar. A economia de mercado, competitiva, estimula a diferenciação social, onde

as diferentes classes requerem diferentes espaços de permanência e a Lagoa da Conceição

acaba por ‘espacializar’ estas nescessidades. Na Lagoa há esta ‘mistura’ nos traços da

tradicional cultura rural e pesqueira, e na emergente cultura urbana de raízes industriais e

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Page 104: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

digitais, que ilustram a convivência e os contrastes da sociedade. Diferenças que se mostram

entre uma Carroça e a Pajero, uma baleeira e uma lancha, ou um casebre e uma mansão.

A principal razão deste contraste está no fato do crescimento da cidade atual ser

movido basicamente pela lógica do mercado. Nesse ponto, diversos agentes passam a atuar no

crescimento urbano, ‘vendendo o território’ e dirigindo informalmente o crescimento do local.

Nesse aspecto, a Lagoa se desenvolve embasada na valorização de seu solo, e segundo

interesses particulares, em uma ordem social marcadamente individualista.

O contexto sócio cultural e físico descrito acima aponta para a percepção de uma

história nova, recente, e já em vias de extinção. A cenografia do tempo passado desaparece

para atender necessidades do presente.

Neste processo de transformação, o que não pode ser deixado de lado, é a importância

que o passado tem para o futuro.

Conforme procuramos mostrar, a paisagem carrega os traços de sua história. A

paisagem atual foi fruto de uma ocupação que inicialmente deu-se junto aos morros, e logo foi

se espalhando pelo território e em direção as águas da laguna. Durante certo tempo este

modelo de ocupação formou uma estrutura de assentamentos, em geral linear, ao longo de

caminhos sinuosos e acomodados ao relevo, com alguns adensamentos pontuais. Estas

características físicas, marcadas por uma diversidade de soluções, representam um patrimônio

para a cidade, que se expande progressivamente.

A permanência de antigos espaços de convivência e construções de relevância histórica

pode auxiliar a marcar uma linha de continuidade evolutiva na identidade da cidade de

Florianópolis. Se quisermos preservar nossas raízes, o crescimento da cidade deve partir

destes espaços a serem preservados, especificando as diferentes escalas de preservação que

teriam que ser claramente definidas. Sob esta ótica, o planejamento urbano deve tentar

estabelecer um conjunto de ações integradas.

No caso da Lagoa da Conceição, o patrimônio da cultura açoriana ainda apresenta

inúmeras faces, do ecológico ao material, e ao imaterial. O imaterial inclui saberes,

celebrações, estórias e tradições. O folclore, o artesanato, a pesca, as festas religiosas e

profanas são algumas de suas manifestações, que configuram os traços da cultura açoriana,

ainda vivos na paisagem local.

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Este estudo procurou investigar o impacto do desenvolvimento acelerado na

transformação da sociedade e da paisagem do lugar; indica os riscos de destruição do

patrimônio histórico, artístico e cultural que foi deixado pelos índios e pelos colonizadores da

Ilha de Santa Catarina.

Uma eventual continuidade desta investigação apontaria para o levantamento de um

correspondente projeto que busque alternativas para viabilizar a preservação dos traços

culturais que conferem identidade ao lugar, e o diferencia de outros lugares.

A tranqüilidade ainda existente em sua paisagem, a relação direta com as águas da

laguna, seus habitantes e os fragmentos de seu patrimônio histórico arquitetônico, são alguns

fatores que convergem para a construção de uma futura cidade, mais humana, que ainda

guarde os traços de sua natureza e de sua história. Como uma árvore em crescimento. Que

ainda tenha raízes fortes!

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Anexo 1 – Delirius Gráfikus

Fig. 30 – A metamorfose de uma ilha. Seqüência sobre a transformação da paisagem da Ilha de Santa Catarina, apresentando uma visão crítica do processo de desenvolvimento natural e antrópico. O quinto quadro representa a situação atual da ilha em 2008, obtido sobre fotografia. Desenhos do autor, 2005 – 2008.

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Fig. 31 – A metamorfose de um lote. Seqüência de desenhos baseados em uma situação real. O quinto desenho representa a situação atual da humilde residência de uma senhora de 76 anos, filha de lavradores, que habita a Lagoa da Conceição desde os tempos da ‘paisagem sem luz’. Grafite sobre papel, desenhos do autor, 2006.

Fig 32 – Metamorfose de um entorno. Uma visão crítica sobre a transformação dos espaços históricos nas cidades brasileiras. Neste desenho imaginário, a Igreja da Lagoa da Conceição frente à ‘explosão urbana’, do autor 2007.

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Page 112: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

Fig. 33 – Tempo x Espaço. Aqui a transformação da orla das Rendeiras, na Lagoa da Conceição, com o Centrinho da Lagoa ao fundo. Os dois primeiros quadros representam a evolução da paisagem em um século (1900 – 2000), o terceiro desenho representa minha visão crítica acerca do desenvolvimento urbano, uma visdão fictícia. Grafite sobre papel, do autor, 2007 Desenho é linguagem também e enquanto linguagem é acessível a todos. Demais, em cada homem há o germe, quando nada do criador que todos os homens juntos constituem. A arte e com ela uma de suas linguagens – o desenho – é também uma forma de conhecimento.

O desenho é a linguagem da arte e da técnica. A definição de desenhar do Padre Bluteau registra, no seu magnífico vocabulário português e latino: “Dezenhar:- ou dezenha no pensamento. Formar uma idéia, idear. Formam in animo designare (ARTIGAS, 1997).

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Fig. 34 – Os rumos do desenvolvimento 2. Ao fundo vemos o Canto da Lagoa se estendendo até a área do Rio Tavares. Um desenho crítico sobre os rumos do desenvolvimento urbano, do autor, 2007.

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Fig. 35 – Os rumos do desenvolvimento 3. Esta sequência de desenhos (em aquarela) teve como ponto de partida o terceiro quadro, presenteado pelo amigo Jander de Amorim. Este quadro (3) mostra o telhado de minha residência em primeiro plano, e a vista da Lagoa da conceição em sua área central (atual centrinho e ponte) no ano de 2000. A regressão ao período colonial (2) e pré-colonial (1); assim como a progressão à contemporaneidade, do quadro atual em 2008 (4), e o quadro densamente urbanizado, uma imagem de teor crítico em relação ao futuro (5), são do autor, 2006 – 2007.

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ANEXO 2 – ÍNTEGRA DAS ENTREVISTAS

“Quanto faças, supremamente faze. Mais vale, se a memória é quanto temos. Lembrar muito que pouco. E se o muito no pouco te é possível Mais ampla liberdade de lembrança Te tornará teu dono.” Fernando Pessoa

TRANSCRIÇÃO INTEGRAL - ENTREVISTA DONA LAÍDE Data: 27-06-2007 Eu - O quê que a senhora lembra de antigamente? A senhora lembra de quando era criança? Dona Laíde – Aaa lembro...lembro... a gente morava lá em cima, na Costa da Lagoa...nós saía lá de cima da costa, daonde eu morava, e fazia os terço de natal aqui na igreja... nóis vinha de canoa... deixava a canoa lá nos Araçás, e de lá vinha de pé... vinha aqui na Lagoa... acabava as novena aqui na igreja, nóis ia pro... ‘prus terno de reji’... os ‘terno de reji’... cantava junto quase tudo... depois nóis ia pro baile, que era ali na, na casa do seu andrino ali. Eu – e a senhora morava na Costa? Dona Laíde – Morava na Costa, mas... eu vinha... vinha com meu pai... eu vinha também com ele... vinha ele, a mãe... vinha nóis tudo... era... as duas amiga lá de cima... a Ana, a ..., a Liandra... nóis vinha... quando acabava os terço nóis ia pra cima... nóis ia embora, pegava a canoa. Até uma vez... a noite... o falecido papai tomou um porre!... um porre, nóis fomo embora quase na hora da manhã... aí ele chamou a Ana e chamou a Liandra... na canoa né?... ele disse, olha vamo embora, eu levo vocês... mas eu não tenho condições de levar a canoa.. Laíde não tem condição de levar a canoa... aí diz a mãe ‘o viera’ porque que fosse tomar tanto assim?... aí a Ana mais a Liandra; não, deixa a canoa que nóis levemo... foi dito e feito, era só ir remando até lá em cima e o pai sentado na canoa... Eu – E era pela canoa ou pela trilha né? Tinha trilha? Dona Laíde – pelo mar né! Eu – só pela água?

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Page 116: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

Dona Laíde – sim, pelo mar. É de noite... era fácil, era mais fácil de ir embora... que era noite... e elas levaram a canoa... porque elas eram mais...né?... também não tinha muito vento, né... era calminho como agora... e elas levaram... Eu – Então tinha umas vendas, assim né? Dona Laíde – tinha...tinha...tinha outra aqui na caieira, na caieira já não me lembro bem, ali... parece que era ali no Damião, no seu Damião lá... passa da ponte agora e ta cheio de casa ali... nóis ia de pé... pra tirar querosene nóis vinha de pé... mas tinha só um litro pra cada pessoa. Eu – Então era pouco produto assim? Dona Laíde – é, era querosene... porque naquele tempo não tinha luz, não tinha nada né... a gente vinha tirá querosene aqui em baixo. Era um litro pra cada pessoa. E era por fila, ninguém pulava na frente não. Eu – a roupa dona Laíde? Vocês chegavam a fazer as roupas nessa época? Dona Laíde – É as roupa... a gente... nóis tinha costureira... mas também, era aqui em baixo também... era ali na ponta... ali no... como é que se diz?... ali na... na ponta das almas... ali no... Eu – Araçás? Dona Laíde – isso, onde tem a passagem de barco... tinha uma costureira que costurava ali e tinha outra lá em cima na Costa... e.. quando a gente comprava no centro, nóis ia de pé... nóis saía de casa ás 5 horas da manhã... ia pra cidade... trazia a canoa, deixava lá no Araçás, e vinha de pé... nóis ia de pé até o centro e voltava de pé... porquê naquele tempo não tinha ônibus, não tinha nada... não tinha ônibus... o ônibus pra pegar era lá no ‘Itacobí’... era ali na ‘Marisha’... sabes onde é né? Que é ali no... Eu – Os irmão marista? Dona Laíde – não, na... ‘Marisha’... uma casa que tinha ali... um casal... e o nome da mulher chamava-se marisha... tinha... era ali... o ônibus vinha até ali... era da trindadense. Eu – da lagoa pra lá (centro) então, era a pé? Dona Laíde – É, nóis ia de pé... ou então, de caminhonete... que era a caminhonete do seu Andrino, e a caminhonete do falecido seu Damião... Eu – eram os dois únicos que tinham caminhonete? Dona Laíde – É, os dois único que tinha caminhonete... levava peixe, levava siri, levava camarão... levava tudo... Eu – pra vender? Dona Laíde – É, lá pro mercado... pro mercado do centro... levava de caminhonete e lá descarregava... sim... naquele tempo o barco ia ali ainda... o mar chegava bem na porta do mercado... chegava ali... agora hoje, ainda brinco com o Valdir (filho)... ô Valdir tu não te lembra, mas a mãe “acasou’... o mar chegava bem na porta do mercado... ô mãe?!... digo eu... o barco chegava ali na porta do mercado... e agora onde é que chega o mar?! Eu – ficou longe né?! Dona Laíde – Não tem o mar né?! Porque aterraram tudo... e uma vez o falecido papai tava com um ... no hospital... nós fomos lá... no Hospital de Caridade, né?... Fomo lá no hospital vê ele... quando nóis descemo tinha chegado o barco do Arlindo... tinha chegado carregado de... de peixe... ‘manjuvão’... cada manjuvão desse tamanho... tava eu, a mãe, a nossa cunhada lá da barra... ele... aí ele disse, ó e o Arlindo ta dando peixe... o barco chegava... ali... marcelo... que eu digo pra ti... bonito... carregado de peixe... coisa mais linda mai linda mai

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Page 117: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

linda... e deu... deu peixe pra nóis... trouxe bastante peixe pra casa... aí nóis viemo de caminhonete... a caminhonete do seu Andrino... que cara que... vemo na lagoa... ele é vivo ainda... como o seu andrino não tem nenhum... Eu – O seu Andrino é... o Edson andrinho? Aquele que é político... ou o pai dele? Dona Laíde – O pai dele...é... é vivo ainda... volta e meia ta lá embaixo na ponte, ... então... então... e o seu Andrino vai te contá bem a história toda pra ti... o seu andrino... Eu – Eu ia perguntar pra senhora também sobre trabalho... se a senhora podia me falar como é que era pra ganhar a vida antigamente... assim... Dona Laíde – Ah, a vida pra mim... eu trabalhava pra fora né... eu me vestia... fazia renda... em casa... quando dava semana boa era na roça... de manhã até a noite... trabalhava na roça com papai... Eu – a família trabalhava junta? Dona Laíde – sim, ia de manhã... levava comida, levava tudo... ia de manhã, só voltava de noite... mas eu vô ti contá uma história que tu vai ficar tolo... Nóis tinha muita galinha... e uma veji nóis tinha dez galinha chóca... que acabaram a ‘postura’ e chocaram... só que ninguém queria... o pai não queria... que elas chocassem com o ... que era muita galinha... aí nóis tentava tirar um ‘choco’ dela... aí nóis tinha aqueles balaio de mandioca... né... que carrega mandioca... e tudo o mais... pra fazer farinha... e foi assim, papai disse... tava calmo (clima), tava uma calada e tudo mais... nós fomos pro morro... aí diz o papai assim... passa a mão nas galinha prende na beira da água... bota umas pedra grande em cima e deixa lá... deixa lá presa no mar... que aí elas não tem... como se diz? ...como botar por causa da água... é... intão intão intão... botemo os trêis balaio... quando nós voltamo... ô marcelo... Eu – afundou? Dona Laíde – não! Que afundou quê... que era na beira da praia né?... só pra elas não abaixar pra chocar... aí botemo as pedra bem grande em cima... ele mesmo é que botou... o papai... e daí tomamo café e fomos embora pro morro... quando chegou ali por volta do ... deu um pé de vento forte... né... elas tavam presa... ô... só não viraram o balaio... uma fez força com o bate da maré e tudo... e o balaio virou e elas se escaparam... e as outra não tiveram força né... quando nóis cheguemo e... e a mãe tadinha... ai nossa senhora minha mãe... nossas galinha... ai minha nossa senhora... fomo lá na praia lá... ô mãe as galinha tão morta... EU – ai meu deus... Dona Laíde – ô marcelo... Eu – e as chocadeira é mais importante dona laíde? É né? Dona Laíde – Não, mas nós... tinha... tinha duas chocando né? Não precisava mais... aí tiremo essas galinha... óia... foi a força de embruiá elas no pano e aquecê... fizemo fogueira no chão pra aquecer essas galinha... pra galinha não morrer... óia... fizemo o que bom... disse o papai: nunca mais!... porque nóis ia pro morro e só voltava de noite né?...era plantar feijão...era plantar cana... era plantar mandioca... plantar milho... né?... voltava de noite... e aí pra mim... como se diz?... eu quase não podia fazer renda pra me vestir... porque ele não me dava nada pra mim... ele não me dava... eu tinha que comprar tudo pra mim... pra mim poder passear... pra roupa... pros ... do cabelo... e tudo mais né?... aí nóis vinha... eu só me vestia com o dinheiro que eu... eu apanhava café pra fora... moia cana... e... fazia renda... meu serviço era isso... como ainda é hoje... hoje a gente não fagi mais né?... que a renda hoje não dá lucro, né marcelo.... mais naquele tempo era tudo... Eu – mas a senhora acha que era mais fácil ganhar a vida na época antiga? Dona Laíde – sim! Pra mim era... era... era...

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Page 118: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

Eu – hoje em dia tem que arrumar dinheiro pra comprar as coisas... é mais difícil né? Dona Laíde – É claro! é claro... sabes que eu me viro né?... mas é por... por causa da minha pensão que eu tenho... mas naquela época não... eu trabalhava... eu apanhava capim, muito café pra fora... Aan... apanhava mesmo á vontade... ia pro morro apanhar café e tudo o mais... daí ‘derrepento voa’ aquela época... né... agora é que ta muito diferente... Eu – a senhora viu quando surgiu a televisão? Quando apareceu a primeira televisão na lagoa... a senhora lembra? Dona Laíde – não isso eu não tenho bem lembrança... isso eu não recordo... a escola... era muito ruim também que não tinha uma escola... eu entrei na aula na primeira série e no primeiro ano eu saí... eu quase não ia á escola... porque quando dava uma semana boa... aí ia pro morro... segunda... terça... quarta... quinta... sexta... até sábado... no morro... quando dava semana ruim de tempestade... de chuva... nóis não ia nem pro morro e nem eu ia pra aula porque não tinha estrada... Eu – era longe a escola, né? Dona Laíde – É era um pedação... era como daqui... a bem dizer... como daqui lá embaixo na escola também... e além disso... se fosse caminho bom... mas tinha ‘treis córgo’ (córrego)...3 ‘córgo’ né... e quando dava aquelas tremenda daqueles temporal... os córgo enchia a gente não tinha como atravessar... os córrego... tinha passagem... mas não era ponte... era um pau da largura assim (com as mãos)... dessa largura assim... e a gente tinha medo de passar... por causa da correnteza... se a gente secorregasse... ia embora... Eu – e a senhora vinha lá da costa né? Dona Laíde – É eu vinha do morro pra ir pra escola... mas não ia... e eu não aprendi... male apenas que eu sabia meu nome... agora... Eu – mas a senhora sabe fazer muita coisa né? Nem tudo se aprende na escola né? ... eu ia perguntar... só pra... a última... sobre a juventude... a juventude de antigamente... os costumes eram bem diferentes da de hoje? O que que a senhora acha dessa juventude de hoje? Dona Laíde – ah é... muito diferente... muito diferente porque eu... a respeito da minha vida inteira... eu não tenho arrependimento de nada... não tenho... o tempo que a gente ia pro baile... a gente dançava... a gente namorava... e tudo de tem namorado... mas não era como agora... óia.. fui a muito carnaval na cidade... fui muita festa no parque na cidade com meus amigo... vinha de lancha a motor até na ponta aqui... e passava... pegava a caminhonete como eu tava falando... ia de caminhonete... e voltava de caminhonete... até a ponta aqui e pegava a lancha e ia embora... não tenho entendimento de minha vida de solteira...e... Eu – era bem mais tranqüilo né? Dona Laíde – É era muito mais tranqüilo... era muito melhor... não tinha essa patifaria... não tinha essa malícia... não tinha... não tem essa... como que se diz?... me desculpa... essa pouca vergonha que a gente ta vendo aí agora... marcelo... ta muito diferente... hoje ta muito diferente pra gente criar uma criança... ta muito diferente... uma vez... eu fui numa festa no parque da cidade... e nós fomos de caminhonete...e tinha alguém que as veiz abusava comigo... né...tava voltando... eu fui com ele de carro... não... não... não fui com ele de carro... foi carnaval... e eu ia de fantasia né... carnaval... uma saia estampada com uma blusinha de listrinha... e nãi via... eles chegavam tudo ali... daqui da ponte... (ele já morreu)... o marido de uma prima minha... e ele ia... ia fumando cigarro com... nas minhas costa, e eu vinha no banco... ele vinha no banco de trás e eu no banco da frente... e ele vinha fumando... e ele quase que queimou a minha blusa... aí que quando uma pessoa gritou... olha toma cuidado que fulano de tal vai queimar a tua blusa... eu não conto tempo... só virei-lhe com a mão pra trás... pau! (risos) foi na cara do sujeito... ele caiu direitinho no fundo do caminhão... Eu – falta de respeito dele né?

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Dona Laíde – É, sim... aí... um disse assim... aí começou... começou a falar... num instante... ó seu Andrino... para o carro... pára o carro... aí ele parou... perguntou aí... não! vem aqui atrás... aí o seu andrino: vem cá o que que há? Aí um assim... não, porque o antenor tá aqui abusando com a Laíde aqui... e ta fumando cigarro e queimando a blusa dela e ela meteu-lhe a mão na cara... ele não contou tempo: cai fora! Eu – vai a pé né? Dona Laíde – cai fora! Aqui comigo tu não vai mais... ele disse pra ele... tu, comigo não vai mais... quês i vai..., com todos passageiro aqui... agora pra abusar... e usar de ignorância aqui no meu carro não!... ah mais eu vou direitinho... não... não vai direitinho não... aí o vavá ficou com medo... né marcelo... aí ele... não... disse pro andrino... toca o carro... toca...toca e deixa ele pra fora... Eu – o seu andrino era bem importante né? O que que ele fazia dona Laíde? Dona Laíde – O seu andrino? Coisa que... eu tinha empregado na casa dele... treis meji... e antes né... o andrino é gente fina... bem legal fino... a mulher dele não era muito boa não... mas lê... credo eu toda vez que ele me vê... ô Laíde tudo bem? Eu digo... é seu Andrino... ele me cumprimenta e tudo... ele é o mesmo... mas agora eu ficou solteira né marcelo... por cá de agora marcelo eu te disse pra ti... que eu não ia a passeio nenhum... não ia mesmo... não ia porque não...os baile num...e olha que dancemo... e olha que eu dançava... Eu – hoje em dia... já não... também...ainda tem os bailes dona Laíde? Dona Laíde – tem, tem...lá no SAL... toda quarta feira tem baile do... do... dos idoso... de tarde... ás quarta feira... hoje não vou porque já não danço né... né?... Eu – mas já é bem diferente... os baile? Dona Laíde – a dancei... dancei muito... um bocado... dancei até deputado... aonde a gente vem com os pai... vê se tu lembra... que ficava aquelas marca de gasosa... nunca ouviu falar né? Eu – aquelas ‘marchinha’? Dona Laíde – não, a marca twist... a marca da gasosa... as moça tirava os moço pra dançar... aí eles pagavam a gasosa... eles pagavam a gasosa pra moça... é... a quando tocava aquela marca.. é aquela coisa... eu não tenho... é mas eu não tenho, não tenho... eu falei agora pra ti... eu não tenho arrependimento de ninguém... eu não tenho... eu me divirto bastante. Eu – bons tempos né? Dona Laíde – ai, era bom mesmo... nessa época de agora, vou lhe... não pode sair pra lugar nenhum... credo... pra lugar nenhum não dá... a gente vê coisa na televisão aí... tem uns negócio que não dá... Eu – é só roubalheira, e malin... tamo perdido hã? Dona Laíde – eu não sei... não sei o que é que vai dá nesse mundo... não sei se vai dá... Eu – a senhora vê também o Hélio Costa (programa local tv)? Aqueles programas? Eu vejo todo dia... Dona Laíde – sim, só quando eu não to... quando eu tou trabalhando lá embaixo eu não vejo mais... Eu – é todo dia tiroteio, e não sei o quê, né? Todo dia agora né? Antes não era assim né dona laíde? Dona Laíde – eu era guria... (...) era na Barra da Lagoa... nóis ia pras festa de São Pedro na Barra... ia de noite...vinha no outro dia de noite... uma vez... nóis tava fazendo farinha na Costa... e... nóis tava fazendo farinha.... e tinha festa na Barra... acho que o papai tava pescando... e ele não...ele foi pescar... aí nóis queria ir pra festa e não tinha quem levasse nóis... festa de São Pedro... aí chegou um vizinho nosso... não, voçês querem ir

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se arruma que eu levo vocês... levar nóis ali na... lá em cima no ‘mato arto’... (Eu - mato alto?)... é lá em cima na Costa... lá em cima... e também tinha aqui em cima na ponta do... no canto aqui do...ali na tua casa ali... dali a gente ia pro mar... aí nós fomos pra casa... se vestimo... de lá fomo embora... levemo roupa pro outro dia... aí embarquemo na canoa de lá fomo... E nós foi numa época que cortaram a rede do Leotídio, o tal do ‘chico deusinho’... um cara que... o filho dele ele trabalha na... na caça e pesca... ele come de joelho... aí cortaram a rede dele... na barra...(Eu – uh deu briga... deu rolo...) si deu marcelo... si deu... (Eu – porque cortar a rede hã...) ahn... credo... mas daí o filho dele (...) na barra... tem enganação e enganação né... tem enganação em tudo que eu tenho lugar... aí eu ué... tem polícia na barra por tudo... andaro sim segurando de gente lá na barra por tudo... nãã que a polícia andou tomando conta da gente lá na barra?...era eu, era mãe, era a cunhada... Eu – tinha uns ‘rolinho’ né? Não era que nem hoje, mas sempre tinha... Dona Laíde – não, mas a polícia tava na barra tomando conta da gente mesmo... porque passasse perto da canoinha tava perdido empurravo fumo (...) aí nós passemo né e trouxemo a canoa pra bota na água... ai ai ai nóis aqui... calma mãe nóis não temo nada não... nóis viemo pra festa do ...e o marido dessa senhora aqui, ele é rachero... eles pensavam que era gente que ia pra... fazer um arcaso na praia né... (...) era festa no rio Vermelho... não tem... não tem arrependimento não... Eu – tinha a freguesia no Rio Vermelho, era a daqui e a do Rio Vermelho, era duas ‘separada’... né dona Laíde? Ia nas festa lá também... Dona Laíde – é... é... ia ali né... festa de São João... aqui era de São Pedro e a de lá era de São João... (Eu – São João do Rio Vermelho é o nome né?)... eu gostava muito... ah... credo Eu – ah obrigado pela aula de história... porque... isso daí né...a gente num... é mais novinho né... a gente não viu essas coisa né? Dona Laíde – é carnaval lá embaixo... no canto da lagoa... (sobre o clima) ta vindo tudo... pra cá... vai chove hoje... Eu – é tava feio ainda pouco... abriu né... (o tempo) Dona Laíde – então... é abriu o sol... agora ta vindo de novo do sul... (...) saía de lá da costa para ir lá pra baixo (...) acordava cedo, o papai (...) eles chegava lá e ficava sexta, sábado, e domingo, segunda e terça... só voltava quarta. Eu – as pessoas ficavam mais na casa dos outros, né? Hoje em dia é só visita, e... Dona Laíde – É e o povo tinha o... me desculpa amigo... tinha um respeito pros outro... tinha educação... tinha consideração... uns cos outro... (Eu – mesmo se não conhecesse né?) ... é... e agora não tem... não tem nem pra si... (Eu – pode ter alguém morrendo do lado que já passa e finge que não é com ele...)... não tem ...não tem... educação... não tem nada... eu não sei... que qui é isso?... Eu – é isso que eu quero tentar entender também, dona Laíde... porque eu concordo com a senhora... ta perdido esse mundo... Dona Laíde – mai não... o mundo tá perdido...tá... o mundo ta virado!... não... ninguém me diga isso na minha cabeça... o mundo não ta virado... o mundo tá no mesmo lugar que tá... é o povo que ta virado (...) qui a gente fazia... e levava comida pros nossos marido, na praia... de noite... como aqui na caieira que o ... o marido pescava... era pescador na época... seu Deca... era aqui com o Damião e tudo... pescava... era pescador... cercavam de noite... e ele pedia pra janta pra eles... porque eles não comiam, saíam duas da tarde né? Até a noite toda... cercavam e puxavam a rede... hoje como se diz?... eles tiravam os peixe tudo só deixavam o peixe da rede... Eu – e as mulheres ficavam em casa cuidando da casa? E levava a comida?

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Dona Laíde – Cuidando da casa... cuidava da casa... (Eu – e levava a comida?)... quando não tinha... né, que morava com a minha sogra... ela disse óia... ô Aíra não vem jantá... casa de bem moço (...) ela disse óia... ô eles cercam ali na caieira... o dia todo... o Ari não que janta?... não não qué... que tem uma janta pra levar... e deixar a menina com o chicão... deixava ela levar a comida e deixava ela dormir... aí a gente ia lá levar o peixe... chegando lá a gente fazia peixada... leva os peixe como tainha ou qualquer coisa... e fazia... fazia pra mim e pra... e... quando ele chegava ainda tinha comida... Eu – que praia eles pescava dona Laíde? Dona Laíde – era aqui! Era na ponte...é... logo ali... aqui na ponta das almas... aonde aonde eles ‘topavo’ peixe eles iam e fiava né? Eu – ah no mar... no mar aqui de dentro né? Dona Laíde – É... é aqui... é... aqui na ponte... e era bonito marcelo...era bonito... quando eles davam um lanço de peixe, que chegava na hora e... como se diz?... que a gente... na... na...pegava no fio... que a rede chegava em terra... com aquela peixarada....oo Eu – esse ano tá dando bastante né? Dona Laíde – então... então... eles tão fazendo (...) não é bonito? Eu – é... e escalava (o peixe) porque não tinha geladeira né? Dona Laíde – ã... escalava... é... (Eu – que aí durava fora do gelo né?)... eu escalo peixe! Ã... ainda tenho tainha escalada aí... (Eu – é... eu quero aprender... eu tenho que comprar aquela gaiolinha...) eu escalo até pra fora... não escalo agora porque hoje já não se escala mais o peixe... Eu – aí a senhora tem aquela gaiolinha? Dona Laíde – não... Eu – dá pra só pendurar no varal né? Dona Laíde – no varal... aqui em casa não pode não... eu nunca to em casa agora... agora eu to nessa vida aí... num escala mais o peixe... nunca mais se fez arrastão... porque... porque que acabaram cos arrastão aqui da lagoa?... eu... purcausa da inguinorância... pur causa da inguinorância... da esganação... foi onde cabaro... isso aí... porque se não fosse a esganação e a malcriação do homi, os arrastão, nunca que tinham se acabado... aqui... na costa... é claro... era na costa... era o do seu..., era o do seo Anólfo, era o seu Damião aqui... em arrastão... era o seo Dacopirino... era muito... não era poço não... (Eu – agora não né?)... acabaro com tudo... acabaro com tudo... não é por logo agora, que já... que pra gente comer um peixe, tem que sempre comprar né... tem que comprá... tem qui comprá, temquicomprá, temquicomprá... é onde...como se diz né...com o dinheiro que a gente ganha não dá pra nada né... (Eu – é...) quando... quando nóis escalava de peixe lá em casa... era dois varal de peixe de pé a ponta... de peixe... e é bonito... que a gente escamava peixe... a gente escalava e botava... dentro dágua pra clarear... a gente acabava de ... tocava a mão, botava no balaio... puxa pra casa salgar... e botava no varal. Eu – tum! No varal... tudo penduradinho...ai dona Laíde, obrigado então pelas palavras... Dona Laíde – se tive de uma coisa mais. Eu – haha eu gosto muito da senhora viu? Dona Laíde – eu gosto muito de ti marcelo. Eu – qualquer coisa que a senhora precisar também...

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Dona Laíde – tá, pode deixar tá...

ENTREVISTA SEU ANDRINO – TRANSCRIÇÃO INTEGRAL Terça feira 16 de outubro 2007. (...) EU – aonde o sr. Nasceu seu Andrino? SA – lá na Barra da Lagoa... EU – e naquele tempo tinha muito?...as pessoas nasciam em casa mesmo? Tinha parteira? SA – é...naquele tempo não foi parteira...a mãe teve 20 filhos parece...mas tudo em casa, era tudo em casa...era parteira ás vezes, tinha uma lá na Barra, tinha outra aqui na Lagoa...então, ás vezes, a mãe tava doente ia pegar ela de canoa lá na Barra... EU - Então o senhor nasceu em casa, na Barra...nativo da Barra... SA – o sexto filho também...nasceram tudo em casa...os rapaze, o Edson (Edson Andrino político local)...tudo em casa ali...na frente do grupo...naquela casa ali... EU – quantos filhos o sr. teve? SA – eu tenho...ó com essa aí...tenho...tinha...foi sete!...cinco home e três mulher...não duas mulher...é a Leia e a Marina... Eu – é a sua filha né?...que me recebeu... SA – é ali, é a Marina... EU - e o sr. lembra como era a Lagoa, quando o sr. era pequeno?... SA – rapaz, não tinha nada aí...casa não tinha nada...não tinha nada...aqui era dois rancho de canoa que tinha aqui...né... EU – já tinha a ponte? SA – tinha ponte...mas era de madeira...naquela época... EU – ainda não tinha carro né?... SA – não, o primeiro carro que eu comprei foi em 51... EU – o sr. foi o primeiro carro da lagoa? Parece que o seu Damião também tinha carro... SA – o Damião...e também tinha outro...o primeiro carro na lagoa que compro parece que foi aquele da esquina ali...do ‘badeca’Vieira, um Ford...boteco 22...naquela época...depois _ muito tempo...aí é que nós compramo esse Ford...é foi os primeiro mesmo...foi nóis... EU – e a freguesia?...já tinha a freguesia né? Tipo, aqui em baixo aqui, não tinha nada...mas lá em cima tinha?

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Page 123: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

SA – não...não...o ponto de encontro era lá onde eu morava...lá na frente do grupo...né? aquele terreno que ali é tudo meu até embaixo...e ali na caieira ali...era o ponto de parada...aqui quase não parava ninguém...aqui na ponte... EU – aqui era só os ranchinho?... SA – é aqui era pescador...camarão pegava aí de monte...naquela época...era tudo escuro aí, não tinha...lâmpada, não tinha nada...naquela época né... EU – era na querosene? SA – na querosene!...aquelas pomboca de querosene, naquela época... EU – e...o sr. lembra como vocês brincavam quando era pequeno? Do que fazia...assim...aonde brincavam...o lugar? SA – (risos) ah...brincava aí de boi...um fazia que era boi...o outro corria atrás...de cavalinho...aquelas coisa né?...aquela época era pequeno...lá na costa...aí quando vinha vento sul lá embaixo...nóis dizia...ó nós vamo atacá o vento suli aqui...pegava uma vara cada um...ia lá pra uma pontaria que tem lá pra atacar o vento suli... (...) EU – tá...mm...e o senhor lembra...como é que era ‘o comércio’ naquela época...o sr. lembra? SA – acho que não sei, eu tive venda naquela época, eu tive venda ali na...na frente do grupo ali...o comércio ali...(EU – uma venda?)...é uma vendazinha que eu tinha...pra tu tê uma idéia...não eu _ tudo...um vinha comprar...uma querosene...era açúcar...era duzentos grama...trezentos grama...carne seca que a gente trazia ali do Rio Grande, naqueles barco...vendia ali...mas era...era movimento fraco né...e tinha...tinha pouca gente mesmo né...muito pouca gente... EU – e tinha os engenhos? SA – engenho de farinha ali na frente no grupo...já tinha engenho de farinha ali também que fazia farinha...ah tinha muito engenho...nóis lá na Costa começamos na roda fabricando cachaça...fabriquei muita cachaça...subia lá praqueles morro lá...o pai fazia aquelas róça...tocava fogo...nóis chegava em casa pretinho que era um carvão...quando nóis era pequeno...nóis começamo a trabalhar já de pequeno...com sete, oito ano já trabalhava... EU – tinha alambique assim? SA - tinha alambique...tinha engenho de farinha...tudo junto ali na costa...a casa...a casa ainda existe lá...(...)...é ainda existe...é bem na beirinha da praia lá...reformou tudo como é que era...tudo...tudo...a água nóis puxava lá do morro encanada...né...aquelas calha de bambu né...porque não tinha nem cano plástico nem nada né...naquela época...era cano de bambu...depois mais tarde...a gente veio embora...veio morá na ponta das alma ali...ali botamo engenho de cana também...nóis tinha engenho de cana...o pai trabalhava na lavoura e pescava também...tinha pesca na lagoa...lá no mar grosso também... EU – e o sr. foi pra pesca também? SA – fui...pesquei...então...ô pesquei de monte...dava lanço de tainha ali na barra de cem mil tainha, naquela época né?... EU – e hoje? hoje tá diferente? SA – ah tá! hoje...(...) ...depois com 17 ano eu fui pescar no Rio Grande...diz que já fui de navio que as veze não tinha nem _ ...fui de navio e voltei de navio pra cá...e o irmão que morava lá...o mais velho né...pescava lá já a tempo...aí eu _ cheguei lá até _ não queria mais vir embora...a mãe que mandava dizer pra ele, pra mandar eu

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Page 124: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

embora...pra mandar eu embora...até um dia eu disse, ó ô tens que ir embora mano...a mãe tá querendo que tu vai...aí ele me levou lá no navio e...aí eu fui embora depois... EU – se não o senhor tinha ficado lá? (risos)...era bom lá? SA – é...ah não sei né...é...a vida era dura né...é ali...chegava...vivia embarcado...naquelas canoa né?...canoa grande pra dez, doze, _ ...e naquele tempo era a remo né...não tinha motor não... EU – e não tinha previsão do tempo né? Pegava aqueles vento sul lá fora? SA – chegava aqui de madrugada nóis botava um saco enrolado dentro da canoa...um barril d´agua e ia pra fora da barra a remo...se tivesse vento ia a pano, se não tivesse ia...depois chegava a noite ali...mais ou menos quatro, cinco hora da tarde, descia...pegava em terra cinco, seis hora...aí tocava a gente de viagem para o _ na cidade do rio Grande...a gente ia remando até o Rio Grande...levava o pessoal...era duro pra burro... ...camarão, a gente pulava na água...pra arrastá camarão...um dia eu me lembro...sexta feira santa...aí _ ...fomo arrastá camarão...lá na _ ...mandaro eu pulá na água...dia frio, dia de sexta feira santa...eu pulei na água com os óio expresso...aqui ó...eu fazia assim cá...por causa da friagem...e arrastava mesmo...tinha que trabalhá né?... EU – eu, e quando que a família do senhor...que os engenhos começaram a sumir assim?...o sr. lembra?...quando? SA – não!...de cana...nem de farinha...por causa desses negócio aí né?...não deixaram mais plantar, não derrubar mato...só tinha um aqui na lagoa...ali no seu Inacinho...também não plantou mais... EU –Como é que eram os morros?... eram que nem hoje?... SA – ah...eles plantavo muito...em tudo quanto era praia era róça aí...esses mato tudo era róça...a Costa da lagoa tudo...ê...a gente chegava plantava em canoa...naqueles mato era só de canoa...era róça de cana,feijão,era milho...era tudo, plantava né... EU – e o que que o sr. acha da Lagoa de hoje?... SA – mudou tudo né...população demais né? EU – qual é o lugar assim que lembra mais a sua infância, as coisas do passado aqui para o sr.? não sei se.... SA – ah aqui, Costa da Lagoa aqui...a Lagoa...te lembra bem daqueles tempo...né?...dava aqueles temporal a gente ia pra cidade...e nóis ia de pé daqui, até lá na agronômica...de pé pra pegá o ônibus lá... EU – tinha trilha no morro? Era o mesmo caminho...é onde é a estrada hoje? SA – é o mesmo caminho...agora...só muda o carro agora...era tudo morro á barro...estrada de chão né?...quando nóis compremo o primeiro carro...nóis botava quatro corrente ás vezes pra subir aqui, e não subia...nós levava pescador junto...pra puxar o carro com uma corda na frente...por causa da lama né...patinava...pra descer...nóis mandava dois, três atrás e empurrava a dianteira do carro...porque o freio não agüentava deslizava né? As vezes quando não dava por aqui mesmo, nóis ia por aqui, pelo Rio Tavares...Morro do Badejo...a estrada era ruim também...a estrada era ruim também...estradinha feia pra burro...só que hoje tá tudo mudado né...pessoal não tinha medo de assim...negócio assim de assassinato...essas maconha...não tinha nada disso...voçê andava aí, de noite, no escuro...tudo...não tinha problema de nada...hoje é que não dá mais né...hoje eles matam um ali por causa de dez real, pra tirá do bolso...eles matam uma pessoa...não dá nem pra falar com eles, nem pra discutir...com eles...de noite eles param aí (frente da casa dele)...vem fazer bagunça aí na frente...tudo...eu falei pro _ ...o que?...vai lá pedir... _ eu não vo lá pra pedir... _ eu não vô lá lá...nem _ esses maconheiro aí...eu não vô lá pra... EU – E sobre as festas seu Andrino...Sempre teve o carnaval?...as festas religiosas?

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Page 125: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

SA – ah...naquele tempo faziam festa boa né...acho que era festa de Santo Amaro, Nossa senhora...Espírito Santo...ah nóis fazia festa...todos os dias... EU – isso o sr. acha que permanece assim...tá diferente? SA – nãonãonão...tá diferente...tem vezes na época nóis fazia ás vezes três baile ali na igreja...tinha três casa que tem ali...eram três baile...um de preto outra de branco... EU – e o carnaval já tinha? SA – ah tinha dois ou três baile de carnaval aí...carnaval nóis fazia carnaval bom aí...tinha bloco na rua tudo aí... EU – e aonde que era na lagoa...o carnaval? SA – era lá perto da igreja...ali naquela rua...os baile era ali...agora o carnaval de bloco a gente fazia na rua né...saia ali do LIC (cruzamento hoje conhecido como ‘trevo do lic’)...pra cá tudo...naquela _ lá nóis fazia o bloco... EU – a freguesia antiga?...tinha a igreja e as casinhas...né?...casa de câmara e cadeia?...o quê que tinha?...ela era lá na rua lá de cima então?...aqui pra baixo não tinha nada?... SA – não a cadeia era aqui em baixo...ali no casarão ali (atual casa da cultura da praça Bento Silvério)...de fundo...a cadeia era ali...no mato eles prendiam...ficava ali...aí ali nóis fazia baile também...tinha salão fazia baile ali naquele casarão de trás...pois é...as eleição...nóis tinha eleição...as urna era aqui...e mais lá em cima...sertão da dona lá em cima tá?...e a comida as vezes era aqui e lá em cima...que as vezes matava o boi né...pra política né?... EU – e o senhor era político também?...era da...? SA – era!...da época da UDN...que eu sempre fui da UDN...meu pai tudo...sempre fui da UDN... EU – era a UDN e o P...? SA – PSD!...seu Filomeno era PSD...né? EU – ah era adversário é?...(risos) SA – adversário...eu já era da UDN...mas estava sempre junto um com outro...pessoa tão boa né...mas então...a gente ia ver qual era o boi mais gordo que tinha...ah então eu vô votá com aquele, que lá o boi tá mais gordo...tinha aquela...tinha carne lá que quer fazer ovelhinha ensopada de carne...tudo pra turma comer né...comia e votá né?...que a gente _ e votava... EU – é a ‘vaca atolada’? SA – nãonão...picadão...picadão...era só picadão...naqueles tempo a carne e verde é difícil...eles não penso e comiam como hoje...aí tem os açougue...tudo ali...eles vão lá e compram a galinha...não...a galinha comia uma vez por semana...ou por mês...a carne era a mesma coisa...a carne, eles iam matar o boi, então eles vinham oferecer a carne pro pessoal né?...traziam uma listazinha que um queria um quilo...outro queria dois...outro comprava meio quilo...aí depois então, o cara matava...vinha no cavalo trazer, a carne aí, pro pessoal...olha hoje então...quanto açougue tem aí?...eles vende tudo aí...como mudou as coisa né?...galinha taí á toa...é barata pra burro... EU – então o sr. participou dessa coisa de trazer a estrada pra cá?...porque era tudo, uma luta né? sempre foi né... SA – ah é...e foi indo, foi indo, foi indo, até que melhoraram a estrada...a estrada melhorou bem aqui foi no tempo Paulo fontes foi prefeito...né?...pai do Xandi fontes...né?...ele que melhorou a estrada...foi feito aqui...tudo

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com um...aqueles preso da penitenciária...alargaram tudo ali...a marreta...tudo nesses morro aí...alargaram tudo ali...a marreta...tudo nesses morro aí...alargado á amrreta...hoje...que já se passava carro á muito tempo é que veio a estrada... EU – aí é depois disso que veio o ônibus...que o acesso melhorou né...? SA – foi! Foi!...até eles deram transferênciazinha de ônibus pra nóis...que nóis tinha duas camionetezinha que levava o pessoal né?...eu tinha uma, o Damião tinha outra... EU – é a dona Laíde me contou umas história do carnaval...eu perguntei pra ela, ela disse: ah o seu Andrino que tinha a camionete aí a gente pegava carona com ele até o Itacorubí... SA – ah a gente fazia linha de passageiro, daqui pra...pra...arroz trazia pro pessoal...a carga das venda...da Costa, da Barra da lagoa...trazia pra ver a feira...é trazia cedo pra fazê a feira no mercado...pra turma lá...pra eles fazê de carro...eu trazia e o Damião trazia...era assim...só tinha cavalo com carreta assim...carroça e tudo...naquela época... (...) EU – e tinha a farra do boi? SA – ah sim a gente tocava boi tudo aí...né...aqui a gente de vez em quando tava descendo o morro...pra baixo aqui pro LIC não tinha nenhuma casa ali...era tudo plantação...é tudo mandioca, milho, tudo plantado ali...ali aqueles pasto tudo...era meu ali né...então nóis tocava tropa de boi...vinha tudo em tropa na minha...na minha não, naquela época né?...tinha cinqüenta, sessenta boi...cem!...então...aí deixava, pedia pra botar no pasto e deixava ali né...de tarde depois, eles pedia, comprava o boi...pedia eles pra ir abrindo a tropa...tirava o boi...mas era boi brabo!..naquele tempo brabo...né...largavo lá porque daí o boi vinha em cima dos cavalo...tudo naquela época...era brabo...depois aí...garravo o mato aí...quem é que chegava mais?...então era uma festa...mas lá era _ naquela época...era...hoje é...eles pego esses boi tudo manso...tudo aí... EU – é...era isso...o senhor falou dos alambiques que era o que eu queria saber...dos engenhos, porque eles desapareceram né?...hoje em dia são os supermercados né?...são as lojas, as vendas... SA – eles levavam...fazia cachaça...era tudo naquelas barrica grande né...ia fazia trazia ali...nós fabricava cachaça e lá a gente tirava a cachaça que queria...naquela época...se quisesse tira mais a cor assim...aí tinha que deixar correr com bem pouquinho cor no _ assim...aí ela forma devagarinho e sai macia né... EU – essa coisa de cerveja...é coisa mais moderna né?...naquela época existia cerveja? SA – existia...existia...tomavo cerveja quente tudo aí...não tinha gelo...não tinha nada naquela época...mas aí a gente levava cachaça pra vendê pra cidade né...barril...na carroça ali...com cavalos...farina levavo...tinha muita farinha naquela época...era tudo que tinha... [...]

TRANSCRIÇÃO INTEGRAL - ENTREVISTA SEU ANDRINO – PARTE 2

Terça feira 19/11/2007 Sou recebido gentilmente pela filha do segundo casamento do Sr. Andrino, Salete, que me permite entrar e me acompanha até uma mesa próxima á cozinha onde ele sentado lê o jornal (ela vai para a cozinha pra terminar de lavar a louça)...cumprimento ele que sorri e sento ao lado na mesa...abro uma fotografia da lagoa na década de 40, nela aparece ‘vazia’ toda a área onde hoje é o centrinho da Lagoa... EU – ó seu Andrino...o sr. viveu isso aqui?...era em 40 né?...

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SAL – (a filha que ouvia se aproxima para ver a fotografia) ahh...é...ah eu não que eu não sou daqui...moro aqui a 29 anos...mas ele sim...mas aqui...aqui é o quê?...aqui é a ponte! (reconhece)... S.A. – é...aqui as duna...mais ninguém... SAL – (aponta na foto o terreno ao lado da ponte onde moram) e aqui é nóis então... S.A. – tinha um rancho aí...eu vim e morei isso aqui em 68...é...isso aí foi em 40...eu acho que eu tinha um bar lá nas duna...naquela época...devia ter... EU – o sr. lembra aonde era...como era a Caieira? S.A. – a caieira era lá (aponta em direção á ponta das almas)...ali era o ponto que a gente chegava antigamente...era ali...porque aqui quase não parava...não tem?...naqueles tempo era canoa á remo tudo...então desembarcava lá...o peixe quando o barco chegava da Barra tudo...desembarcava ali na Caieira né...então passou um tempo então...o _ ficou assim...quando tu vem ali no fim dessa rua11, bem quando tu faz aquela curva ali... (...) até o pessoal que trabalhava com peixe naquela época...chamava o pai de noite...o pai se levantava da cama ia lá recebê o peixe...arregaçava a calça...saía da cama e ia pra lá...não tinha trapiche não...só encostava com o barco... EU – quando o senhor nasceu? S.A. – mil novecentos e vinte e um...primeiro de março. EU – e quantos irmão o senhor tinha? S.A. – ah...deu vinte...vinte e dois...vivo eram doze...mas é...deu aborto...um que morreu...eu...isso tudo aí a mãe ganhou vinte e dois filho...mas vivo mesmo ficou doze...agora só tenho quatro...quatro só... EU – e o quê que o seu pai fazia? S.A. – meu pai era pescador e lavrador... EU – e a sua mãe? S.A. – minha mãe era dona de casa... EU – e o senhor lembra de seus avós?...o que eles faziam? S.A. – ah dos meus avo eu não lembro mais... EU – o senhor estudou? S.A. – estudei até os setenta e um ano...naquela época...nóis morava lá na costa e vinha de pé estudá aqui...perto da igreja ali...numa aula que tinha ali...a casinha ainda existe ali...lá quem desce o morro da igreja é logo ali embaixo...seu Alvinho morava ali... EU – e o quê que o senhor fazia na sua infância? S.A. - ah eu trabalhava junto com o pai né...trabalhava na roça...aquelas coisa...chegava da aula nóis ia limpar pasto...nóis ia pra roça...depois com 17 ano eu fui pro Rio Grande...pescar no Rio Grande... EU – quando que o senhor começou a trabalhar?

11 Um trecho de praia antes da ponta das almas.

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S.A. – desde os oito ano já andava lá na Barra com o pai de canoa...quando ele ia pescar lá na Barra...sempre teve rede lá...e a gente ia pescar lá...então o pai levava a gente desde pequeno pra barra também...nóis‘deitava’ de canoa á remo pra lá tudo...naquela época... EU – nessa época o senhor morava na... S.A. – na Costa da lagoa...depois é que nóis se mudemo mais tarde viemo morar aqui na Ponta das Almas ali...tinha engenho de cana...engenho de farinha que nóis fizemo... (...) ...aí o pai tinha arrastão né...tinha arrastão mas o pai trabalhava também na lavoura...tinha arrastão na Lagoa...a rede...aquela rede que arrastava pra praia né...era assim... EU – quando o senhor foi pro Rio Grande...o sr. foi pescar embarcado? S.A. – não...fui embarcado na praia né...fui de navio...certo?...não tinha estrada eu fui pescar nas ‘pareia’ dos português lá...tudo português naquela época que tinha lá...meu irmão já morava lá porque tinha se casado lá...meu irmão mais velho...pegava o navio no Rita Maria ali...ele fundeava fora ali...o _ naquele tempo...o Loyd...tudo navio grande... EU – e ganhava bem naquele tempo? S.A. – ah naquele tempo não ganhava não...a pesca...dinheiro quase não valia nada...mas ganhava na...fiquei lá quatro ano pescando... EU – e aí quando o senhor voltou? S.A. – fui com dezessete voltei com vinte e um ano pra cá...eu não queria nem vir embora...a mãe é que mandava buscar...e o meu irmão botava eu ali no navio...e o pai me _ ...aí eu vim...aí botei um negócio aqui pra mim...um bocado de tempo casei... EU – casou aqui mesmo na Lagoa? S.A. – casei com uma moça daqui mesmo...né...do Rio Vermelho...morava no rio vermelho...mas morava aqui na Lagoa...tinha casa aqui na Lagoa também... EU – nessa época o senhor trabalhava com a pesca? S.A. – eu trabalhava com pesca...minha mulher era professora...então eu tinha um negócio ali...tinha uma venda naquela casa que tem na frente do grupo ali...sabe?...então eu tinha um negócio ali dezoito ano...aí minha mulher ajudava a tomar conta do negócio e dava aula... EU – e porque que o senhor fechou o negócio lá? S.A. – ah eu achava que não dava mais...fechei né...aí comprei um caminhão...comecei a trabalhar com o caminhão...fui pra estrada...naquele tempo nóis fazia linha de passageiro...daqui pra cidade...eu e o meu irmão...cada um tinha o seu carro...é levava pra feira...por causa do negócio que tinha aí...negócio de balcão...então nóis precisava ir pra feira de madrugada...saía de madrugada fazia a feira e trazia pra eles aí...naqueles tempo com carreta né...carroça...fazia a feira com carroça depois passemo a fazer com caminhão...meu caminhão primeiro foi um Chevrolet 51...nóis compremo...mais eu e ele de sociedade (irmão)...depois nóis dividimo a sociedade aí eu comprei um Dodje e ele comprou outro...aí tinha...uma tolda por cima assim...tinha tudo né...carroceria de madeira...adepos mais tarde eu troquei aquele por outro...um Dodje maior...já nóis levava pescador daqui pro Rio Grande...aí tinha estrada né...quando levava pescador daqui pro Rio Grande levava trêis dia daqui no Rio Grande de caminhão...passava uma porção de barro por tudo naquele época... EU – e quando o senhor terminou de fazer isso com transporte?

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S.A. – ah faz muito tempo... EU – aí depois que o senhor parou...como é que o pessoal fazia pra ir pra cidade? S.A. – aí botaro linha de ônibus aqui...aí o prefeito naquela época era o Osmar Cunha...era o prefeito...aí que ele deu a preferência por causa de nóis...botava o ônibus que quisesse...que eu tinha um S80, o Damião tinha outro...e eu tinha um irmão que tinha um mercedinho...queria que nóis botasse uma linha de ônibus...queria desmanchar dois carro daquele e fazê ônibus...mas o meu irmão não quis...já não aceitou naquele tempo...aí o Ado botou...Ado botou a linha de ônibus...aí ficou até hoje...aquela linha podia ser nossa... EU – e quantos filhos o senhor teve mesmo? S.A. – da primeira foi sete... EU – todos estudaram? S.A. – é...um estudou mais...outro menos...Marina se formou...o Edson...já os outro ‘levaro’ até os quatro, cinco ano mas não quisero mais estudar... EU – aonde que eles estudaram? Também era aqui na lagoa? S.A. – não eles estudaram no Catarinense...os outro também estudaro tudo...na época no Catarinense...e as menina estudaram no Coração de jesus...Santa Maria...aí eles estudavam interno naquela época... EU – quando o senhor fez restaurante?...o senhor teve restaurante? S.A. – eu comecei maizomeno ali em 65...maizomeno...inaugurei pro casamento da Marina em 68...mas antes disso eu já tinha lá na praia...o primeiro restaurante que foi feito na Lagoa...nas dunas ali...no lado das dunas... SAL – (grita da cozinha) ali onde fica o postinho da polícia militar! S.A. – não...não era aquele...era outro antes...era antes aqui mais a areia veio tomando...veio tomando...é ali onde é a peixaria...é ali onde era o meu primeiro restaurante... EU – ninguém mais tinha restaurante naquela época? S.A. – aqui não...foi...fazia peixada tudo...naquele tempo não existia restaurante na ilha toda né...o único que tinha aqui era o meu mesmo e dava um movimentão que era uma coisa...depois eu comecei a fazer aqui (terreno dele ao lado da ponte)...e adepôs eu fiz lá (o ‘dunas’)...fizeram aquele onde é lá a polícia...eu fiz o restaurante lá...aí adepôs vendi...era meu e de meu irmão... EU – porquê o senhor parou de trabalhar com restaurante? S.A. – ah porque eu enjoei né...fazia um tempo a minha esposa foi e faleceu...ô casei outra vez...aí meus filho ficaro lá...aí vai...nós trabalhemo uns ano ali...eu mais a Salete...depois ninguém quis mais... SAL – (da cozinha) trabalhâmo treze ano! EU – e quanto tempo o senhor foi político? S.A. – ah desde o tempo do meu pai...o meu pai sempre foi...foi e minha mulher também...era bem política né?...era _ do governador Luís Henrique...que nóis era ex UDN naquela época...agora eu parei né...porque tenho problema...eu acompanho só né... EU – e como era fazer política naquela época?

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S.A. – cada...cada partido tinha...comprava os boi...porque eles dava comida né...o pessoal aqui quando _ o dia todo...eles vinha de longe de pé...aquelas coisa...então nóis dava comida...então cada um que queria, comprava o boi...e aí eles vinham ver qual era o boi mais bonito, mais gordo...pra ir lá votar então...naquela época nóis dava tamanco...dava roupa...tudo pra votá... SAL – (grita da cozinha) a compra de voto já tinha naquela época! (risos) EU – e quando o senhor teve plantação na costa quem mais tinha? S.A. – ah tinha bastante...tinha...ali tinha dezoito engenho de farinha...de cana tudo...minhas tias tinha...o pai tinha...tinha outro senhor lá da Costa tinha...era de cana, feijão, mandioca...plantava tudo né...a gente chegava a levar farinha pra cidade pra vender, feijão...cachaça nóis levava de barril pra cidade pra vender... EU – e o pessoal que trabalhava ganhava salário? S.A. – o pessoal que trabalhava na roça com o pai...o pai por exemplo dava...eles plantavo...e o pai tinha o engenho e o pai ganhava o ‘terço’...pra fabricar né...plantava as roça lá tudo...o pai plantava também mas sempre era pessoal de fora...aqueles negro...naqueles tempo plantavo né...fazio os _ ...então a gente fazia lá... EU – de onde que vinham os negros? S.A. – eu quem me criou foi os negro...eles viviam sempre com o pai lá em casa...uma porção de preto...quando nóis trabalhava nas terra...nóis tomava benção com aqueles negro tudo...a gente respeitava né...era tudo nosso senhor...sim senhor...e os negro também era educado né...eles já não eram escravo não...trabalhava... ... EU – e tinha baile na casa do seu Andrino que as moça vinha depois de cantar o terno de reis? S.A. – tinha...era eu mesmo...era aonde eu tive ali na frente do grupo...aquela casa que tem ali...nóis fazia baile ali...nóis fazia carnaval...fazia ás vezes no sábado...assim...era dia de festa nóis fazia...soltava...soltava boi assim...tinha tropa de boi...naqueles tempo os boi era carregado de tropa...não era de caminhão né...então a gente soltava...botava os boi no pasto ali na frente do grupo...então no outro dia a gente ia brincar mandava soltar um...tinha boi brabo...uh, era uma correria só...quando aqueles tropeiro laçavo o boi...nóis não agüentava o boi vinha em cima do cavalo...largava o laço...largava tudo...e depois saía pelo canto (Canto da Lagoa)...aí abaixo...pegava a rua e nóis ia atrás toda vida...mas tinha pouca gente naquela época né... ... EU – e como era ali onde hoje é o ‘trevo do lic’? S.A. – pois li era uma estrada que nem ia por ali...e ali onde é o ‘trevo do lic’ ali...a estrada vinha pra cá...passava na frente da minha casa no grupo ali...a gente não tinha...aquelas casa do canto era uma estradinha né...aquela ali que vem sempre pra praia não tinha...ali aquela estrada entrava ali no ‘bano’ em frente as vassoura saía cá embaixo...aquela estrada do posto foi pouco tempo que foi feita... EU – tinha algum lugar onde o pessoal se encontrava que hoje não existe mais? S.A. – ali onde mais se encontrava é lá onde eu morava mesmo ali...foi depois que começou aqui pra ponte...ali tinha uma vendinha que tinha...ali na esquina do supermercado (supermercado da ponte)...ali era um lugar de encontro...tinha uma venda ali e o bar...e nóis parava de camionete e tudo...pra descarregar as feira...tudo ali na frente né...então nóis vinha tudo ali...depois de sair de lá da caiera vinha ali...o encontro era ali... ...

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TRANSCRIÇÃO INTEGRAL - ENTREVISTA D. CAROLINA DATA: 28-06-2007

Eu – Era assim... umas perguntinhas da lagoa de antigamente... a quanto tempo a sra. Conhece a lagoa?... a sra. Nasceu aqui? Assim... D. Carolina – nasci lá na Barra... na Fortaleza... é o mesmo qui na lagoa né?... Eu – ahan... na fortaleza da barra? D. Carolina – foi... Eu – e aí...tá... e a sra. Lembra quando a sra. era pequena... como é que era a lagoa? Era muito diferente assim? D. Carolina – Se era... bem diferente porque tu vê né... matava bastante peixe... tinha rede... tinha arrastão... e hoje tem os negócio do pessoal de fora na... muita casa... não tinha mais essas casa... dava de contá as casa... e o morro não era assim né... era aquele morro de pedra... de barro... Eu – e o pessoal plantava no morro? D. Carolina – ahh plantava... meu pai mesmo plantava bastante... ele plantou de tudo né? A gente apanhava café... Eu – e a senhora morava com a família?... junto assim... com os pais... lá na barra? D. Carolina – lá na barra... cá encima ali na ponte... sabe onde é né?... na fortaleza _ ... a barra é lá embaixo... mas é lá na fortaleza... Eu – (intervenção errada) tinha o canal naquela época? Não tinha canal... molhe... nada né?... era... o rio saía assim... lá na... D. Carolina – era o rio... saía lá no mar da... da barra. Eu – mas o pessoal pescava... tinha a colônia de pesca tudo... D. Carolina – é isso daí sempre teve né?... Eu – e a sra. lembra como era o comércio?... tinha comércio assim?... D. Carolina – não tinha... tudo era no centro... Eu – tudo era no centro? D. Carolina – tudotudo... que a gente ia...

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Page 132: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

Eu – tinha luz? D. Carolina – não... era luz de vela... quando não era vela minha mãe fazia de azeite sabe?... de baga de noz... chegava a vender... tinha um pé grande daquelas baga... naquela casa abaixo bem em frente a Laíde... na casa bem grande branca que fizero ali... mais ali... dá umas baga... não sei se tu já viu? Eu – dá baga?... eu... eu até vi... não... nunca reparei... da baga fazia... D. Carolina – é uma baga grande verde tá... depois tem aquele miolo de dentro... sabe... como uma castanha... e aí a gente bota pra secar... socava... saía o miolo de dentro assim igual numa castanha... depois socava assim num pilão e a minha mãe botava a ferver e a gente fazia aquele óleo... e aí fazia aquele azeite... _ ... quando não era aquela lâmpida a gente fazia com aquela... com aqueles pano... até pomboca... o pessoal antigo né... uma candeia pra botá querosene... pra gente trabalhá no... e quando não era... vela era muito difícil... pessoal tinha medo de vela... e memo assim... porque era _ ... assim... quando não era aquela casinha pra botá querosene... aí meu pai fazia assim... abria uma lata... e era assim pra gente porque a gente usava era banha... arrumava uma latinha e fazia um... quatro canto né... e a minha mãe fazia algodão... meu pai também então botava algodão... ia trouxando... fazia tudo com um... um que faz uma trança... Eu – uhum... um.. pra botar fogo? D. Carolina – é... e botava o óleo ali... e a gente botava aquela...aquele _ aqui dentro... cada ponta tinha quatro... daí cantinho assim nóis tinha... era quatro irmãos... e nóis fazia uma roda assim de noite... e ia fazer renda cada uma ficava com aquele bico... aquele bico pra fazer renda... Eu – (pergunta burra) e onde comprava o óleo ou a querosene? D. Carolina – a minha mãe... a minha mãe fazia o óleo... Eu – ah... fazia da baga... D. Carolina – é fazia da baga... Eu – ah entendi... aí não precisava nem comprar... D. Carolina – não... ela vendia até pra fora... Eu – então não tinha... praticamente não tinha venda? Assim... D. Carolina – nããão... tinha... tinha uma ou outrazinha pra vim... mas era longe sabe... nóis ia... nóis vinha fazê compra... aqui nas rua das rendeiras... lá naquele canto de lá (retiro da lagoa)... Eu – tinha estrada? Já tinha estrada? D. Carolina – não... era morro... era morro e o que não era barro... era areia.. a gente era guria, eu vinha com a minha irmã... aí vinha... tinha o _ e o Almeida... esse pessoal _ do Almeida... vinha de pé sabe?... ás vezes... vinha assim um velhinho... Eu – vinha de pé do rio Vermelho até aqui comprar? D. Carolina – ah... em pé... eles vinham... até pro cerco tudo... eles vinham de pé... _ ...né...e nóis também ia pro centro também... quando era guria... toda quarta feira eu ia com a minha prima de pé... quando chovia o barro... era uma tristeza... aí nóis fiquemo com medo do velhinho... coitado... eu e a minha irmã... aí viemo de volta né... não fizemo compra... cheguemo em casa... minha mãe chego e meteu o pau em nóis... neu e na minha irmã. Eu – e nesse tempo o caminho era ali onde é a estrada hoje? Ou era mais pra lá?

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Page 133: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

D. Carolina – não... não... é... era ali... é o mesmo de sempre... na terra de lá da faixa... né... vai... de sempre no morro... no morro das sete volta... é a mesma coisa... naquele tempo não era estrada... mas era ali... não tem nada de mudança... Eu – tá...e aí eu ia perguntar... como é que se ganhava a vida antigamente? Lá na barra... assim... era um sacrifício? Era... D. Carolina – ah era um sacrifício... uh... nóis fazia rede pra fora... que pescaria sempre teve né... isso... Eu – era as mulheres que faziam a rede? D. Carolina – é... fazio... e outras fazio renda... Eu – e a renda era pra se vestir? Ou fazia pra vender? D. Carolina – é... hoje não dá renda sabe? Hoje não dá mais pra vendê... que o pessoal qué barato né?.. não sei... naquele tempo nóis ia... se arrumava... comprava casaco... comprava bastante coisa... de roupa tudo... enxoval tudo que vinha da renda...e... e fazia rede pra fora... na _ ... Eu – e os homi pescavam? Iam pra pesca? D. Carolina – pescavo! E... pescavo... outros iam simbora pro Rio Grande... naquele tempo já tinha Rio Grande... quando nóis era guria... mas quem aqui _ passava trabalho né... imagina... que nóis passemo trabalho... pegava aqueles sirizinho pequininho assim pra come ó... o pai ia pegá... Eu – de as vezes faltá comida... assim?... é... e não tinha briga? Tinha briga violenta assim? Como tem hoje? D. Carolina – não tinha nada... não tinha... mas... é difícil tê né?... mas tinha... _ ... Eu – e a sra. acha assim que... como a sra. vê os costumes hoje? Mudou muito? D. Carolina – ah mudou tudo... Eu – mudou tudo né? D. Carolina – as vezes aindo digo alguma coisa do tempo... minha neta: ô vó... ô vó... hahaha... que qui se vai fazê né?... Eu – era isso dona carolina... queria saber porque a sra. viu com os próprios olhos né... como é que era antigamente... eu... aí eu tou estudando pra onde que nóis estamos indo né?... ta mudando os costumes... tudo né... antes era mais tranqüilo? D. Carolina – tá perdido né?... Eu – bom... então obrigado... D. Carolina – mudou tudotudo... mas meu pai não _ ... ele plantava _ ... plantava batata... plantava ‘ipim’... cebola... isso aí que a gente se defendia... e também tinha muita banana... e eu tinha... ela era irmã do meu pai... e o negócio assim do lado... bem de pertinho né... aí ele pedia pra nóis levar as banana verde... que ele dava madura pra nóis... tomar café né... Eu – e entre os seus filhos e os seus netos... ou da sua irmã... eles tão hoje em dia... ninguém mais trabalha com aquilo de antigamente? Todo mundo...

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D. Carolina – hoje nóis temo um ‘berço de ouro’... que eu digo pra eles né... tenho duas neta aqui... e quatro no Rio Grande... mas todos... (eu interrompo estupidamente) Eu – mas a família assim... ninguém mais trabalha com a pesca ou com a renda?... com aquelas... D. Carolina – não...tem um filho meu que trabalha na pesca... Eu – ah... então ainda trabalha... D. Carolina – trabalha lá no Rio Grande... ah o pai dele é pescador né... e aí ele não quis ficar aqui... ganhava muito dinheiro né... Eu – porque tem coisa que a gente aprende da família né... é isso que eu digo... não... tem...a gente tem que valorizar né? D. Carolina – é aí eles tudo...e aí o pai deles era um pescador e matava bastante peixe né... e eles era crinça... eles ficavo co olho naquilo né... eu gostava também... Eu – a sra... e lá tinha engenho também? Na Barra? D. Carolina – na barra? Ah tinha um... tinha uma de açúcar... tinha cachaça... a gente ia comer aquele... aquelas coisa que _ ... ah que maravilha... Eu – e aqui também tinha muito engenho? D. Carolina – tinha engenho de farinha... aqui seunãomingano tinha o seo Inacinho... lá pro canto eu não sei... o Inacinho tinha aqui... ali embaixo... e... Eu – decerto lá pra costa tinha também? D. Carolina – lá pra costa também tinha... a gente... mandioca... a gente _ ... a gente fazia biju... e cuscuz... escuta só... Eu – (eu interrompendo) e plantava por aqui mesmo assim... de certo né?.. perto dos engenhos? D. Carolina – o Inacinho plantava lá pra cima... né... o meu pai tratava lá no morro... não tem o morro da Galheta... a na Galheta aa... é... na Galheta e a Praia Mole... meus tios era... tudo deles... Eu – plantava nos morros... e fazia... no engenho de farinha... né? D. Carolina – e quem morava lá pra... quem vai pra barra... que tem aqueles campo cheio de casa... aquilo tudo era roça de mandioca... ali era areia aquela estrada... aquilo tudo era lindo... desfrutei pouco daquilo... Eu – e os engenhos hoje em dia, não tem mais quase né?... D. Carolina – hoje não tem mais nada... acabou... inacinho ainda tem o dele... ali... mas lá pra baixo ninguém tem mais... terminou tudo... Eu – ta obrigado dona Carolina... obrigado mesmo! D. Carolina – obrigado pelo abacate... TRANSCRIÇÃO INTEGRAL - ENTREVISTA D. MARIA

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DATA: 11–07-2007 Eu – ...não... mas é assim... é o que a sra. viu com seus olhos né?... a sra. pode falar do jeito que a senhora... D. Maria – aaahhhhh.... Eu – a sra. nasceu aqui? D. Maria – é claro eu nasci aqui... criei aqui e tudo... né... sessenta e poucos ano né?... Eu – e... naquele tempo as pessoas nasciam em casa assim...? alguns? D. Maria – Ô acho que era tudo né?... ô acho que era tudo... porque naquele tempo o acho que não tinha senhora que acudia... eu acho que não... não sei... eu não me lembro bem... isso aí não me lembro... Eu – e a casa da sra. era por aqui assim...? D. Maria – não... era lá no Canto da Lagoa... lá no... quem vai lá pro village... ali... é... Eu – então depois que a senhora veio para cá? D. Maria – é... aí só nessa casa aqui eu moro 48 ano... nessa e na outra velha co tinha... esse terreno aqui a gente compro lá de um cara lá... agora... Eu – e a sra. lembra de quando era pequena... como é que era a lagoa? D. Maria – ô como era na lagoa... é... era uma tristeza... uma pobreza... não tinha nada não tinha nada... Eu – era bem diferente de hoje?... assim... D. Maria – tá gravando não tá? Eu –tô... D. Maria – ahi... aí de vez enquando vem uma porção de gente da universidade aqui!... ai que vergonha... Eu – nãã... haha... é porque a senhora... e a gente... a sra. não tem que ter vergonha... é mais ouvir a opinião da sra.... como era... porque a gente é tudo novinho né... a gente não viu... D. Maria – é... claro... Eu – assim... como é que era o comércio? A sra. lembra? D. Maria – ah agora... Eu – tinha comércio? ...Tinha venda?... D. Maria – tinhatinhatinha... tinha bastante venda... tinha... Eu – e... tinha... engenho? D. Maria – tinha... tinha... Eu – e era lá? (apontando freguesia) a sra. lembra onde era ‘os engenho’?...

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D. Maria – é... era... assim ali no Inacinho né... ainda tem aquele... ali... e tinha lá pro canto da lagoa... a gente raspava mandioca... a gente cantava ratoeira... aahh era a melhor coisa do mundo!... ô meu deus... Eu – tinha luz? D. Maria – nãonãonão... tudo luz de... de... daquelas candeia... não sei como é aqueles negócio... não... não tinha luz... Eu – de óleo? De querosene?... D. Maria – è... é... daquilo... era vela... era... como é... a gente... ia nas casa comprá... querosene... aquele pouquinho que a gente... era bem pobre bem pobre bem pobre né... ô não sô rica ta certo... mas tendo em vista ô que eu era... graças a deus... mas era tudo a andá pelo escuro... ahn credo era uma tristeza... Eu – e como é que se ganhava a vida? Naquela época... era?... trabalhava no... na róça? D. Maria – ah o meu pai trabaiava na róça... nós ajudava o meu pai... a gente apanhava café... a gente tirava a batata pro cara vender ‘nas verdura’ naquelas... lá pro centro... ah sabe cumé que era o negóço... eu pegava essas coisa... é... Eu – e... tinha... pescavam também? (interrupção vizinho)... eu... e assim...ahnn... eu ia perguntar dos costumes... os costumes eram bem diferentes de hoje em dia? D. Maria – ô ah mas credo... Eu – hoje em dia o que qui a sra. acha? O mundo ta meio maluco? D. Maria – ah um agito... agora é o agito... agora ãã... Eu – eu queria perguntá... se a lagoa... se hoje em dia é muito diferente pra ganhar a vida? Do que era naquela época... D. Maria – ah não... agora eu acho melhor porque... tem bar... tem pessoa que trabalha fora... e das coisa... e mais antigamente não tinha serviço não... nóis fazia renda... nóis ia pra casa da... dumas senhora velha lá... pegava uns pauzinho... ou as embira de bananeira... daquelas palhinha de bananeira... amarrava... e fazia... pra prendê porque nossa mãe não se importava... o meu pai era mais melhor... mas minha mãe era meio... era braba né... daí... mãe deixa nóis fazê renda... ah _ o quê... não sei o quê... aí nóis ponhava na nossa cabeça mesmo... é sim... Eu – e aquele tempo a sra. chegou a pegar de... que não tinha estrada? A sra. lembra que iam a pé pro centro? Assim...? D. Maria – ia de pé... ia todo mundo di pé... quanta vezi eu fui... que _ qui nóis ficava... Eu – e onde é que era a trilha? Era lá... pro canto? D. Maria – ah onde é que é o morro da lagoa... é no morro da lagoa... onde é as sete curva... é porque... também... que era... a num sei como é que era o nome... e... nóis ia de pé... com _ nas costa pro _ que era da tropa _ ah meu deus credo.... Eu – ah é isso... obrigado... eu... não sei se lembro o nome da sra... D. Maria – é maria é maria...

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TRANSCRIÇÃO INTEGRAL – ENTREVISTA SEU ADELINO E DONA LOLA Segunda feira 12/11/2007

SEU ADELINO – Meu pai?...tá nóis era onze irmãos... EU – aonde que o sr. nasceu? S. AD. – Aqui mesmo...nas bananeira...não foi na maternidade...e a nossa parteira morava aqui atrás da minha casa aqui...ali assim...tá?...era parteira nossa...então naqueles tempo, não tinha calçamento no morro da lagoa...era de barro vermelho...não tinha carro aqui na lagoa...só tinha carreta...tá?...só tinha carroça...essa estrada aqui foi eu que fiz (travessa...)...não foi a prefeitura...então eu fiz pras minhas irmãs vender os lote lá embaixo...pra minha vizinha aqui... EU – era um caminho? S. AD. – era só um trilho...um trilho...então ali no Banco do Brasil nóis carregava numa carroça a areia...pra nóis bota até ali o prédio...tá?...então pras minhas irmã vende os lote que o papai deu pra cada um...tá...aí adepois ali o prédio da minha vizinha aqui...que chamava aqui...então pediu pra abri, que era pra lotear o dela...pra vendê...faze os prédio né?...que eu trabalhei ali também de vigia né.... EU – tinham outras ruas? S. AD. – tinha...tinha essa aqui...até o pasto aberto antigo né?...e o pasto até no cemitério...mas lado de lá não tinha... EU – tinha um caminho principal da freguesia?... S. AD. – não, era só esse aqui que era o caminho antigo que ia pra igreja...nessa outra rua nossa né...pra lá o pasto aberto...então as ‘areia’ não tinha...eu quando me casei á cinqueta e três anos...eu tinha quatorze...eu sou casado á cinqüenta e três anos...então agora eu tenho quase setenta...então eu saí daqui de pé...fui lá no retiro buscar ela...não tinha calçamento...era só capim na praia das areia lá...não tinha nada...então nóis fomo...fui lá peguei ela...vim aqui (igreja) casei no civil...ali no lado da igreja... EU – e tinha a ponte aqui na lagoa? S. AD. – tinha de madeira...de madeira... EU – então se ia andando pela beira da lagoa até o Retiro? S. AD. – ia tudo de pé...na beira da lagoa...aí cheguemo lá no Retirofizemo a boda lá...aí depois pra cá nóis vinha de pé...então...mas já tinha duas camionete aqui...que era do Damião ali pai do oliveira...do lado do bar...e tinha o Andrino...o velho Andrino...então aí...eles fazio o serviço de levar...era acorrentado por causa do barro vermelho no morro da lagoa...tudo acorrentado pra subi no barro vermelho né...então aí nóis peguemo e embarquemo...aí ele assim: Adelino...eu vim aqui tomar uma cerveja no teu casamento...e depois pra lá tu vais comigo...então embarca aí...eu mais a Lola que era a noiva...e o meu sobrinho que morava ali naquela casa ali...que era pequeno também tava lá...então...chegou ali pra nóis subir...acorentado na ladeira não subia...eu disse óia deixa que eu só vou pra casa...que a minha casa era ali que eu dei pro meu genro...tú deixa que eu vou de pé mais a Lola...ele assim: não, não vou levar vocês...tanto que ele forçou que trouxe nóis aqui...mas eu tava cansado já pensou?trêis viagem de pé lá no retiro e vim né...então... (...) ...adepôs é que eu fui pra prefeitura...nóis pescava muito no Rio Grande...então a mulher arrumou aí com o intendente, eu vim pra prefeitura...a ponte da barra tava no chão lá...todo peixe vinha à remo praqui...daqui as carreta levava pra cidade... EU – não vendia aqui na Lagoa?...não tinha um lugar pra vender?

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S. AD. – nãonãonão...nóis escalava o peixe pra poder tê escalado né...lá pro Rio ia tudo escalado...tainha...tudo...pegava lá no mercado pra baixo lá...daqui se escalava o peixe né... ia pra lá... EU – E onde que o pessoal escalava o peixe? S. AD. – na beira da lagoa...e aí tinha os rancho...que botavam dentro dos rancho...né?...sargadinho ali...depois botavo no sol secavam tudo...’acamava’ uma com a outra né...e ia pro mercado pra lá exportá...porque não tinha frigorífico pra ir pro mercado também...não tinha nada na cidade né...o mar batia no mercado ali...o mar batia ali... EU – e tinha vendas?...como é que era o comércio na lagoa? S. AD. – aqui na lagoa...sabe voltava as duas hora da madrugada...pega a camioneta...adepôs é que veio a camioneta...porque até agora é de carreta...e ia um com a carreta lá embaixo...duas hora da madrugada e trazia de carreta tudo em saco...por aqui...e da Barra eles levavam daqui e o cavalo que passava...botavam dentro da canoa e ia á remo ali levar pra barra...e outro levava até a Costa...pra vendê lá na venda pra eles comê né...então nóis dava lanço aqui na lagoa de cinco, seis mil tainha...peixe...tudo aqui...vivia do arrastão e do camarão né...então vinha...ali nóis trazemo na Caieira, ali tinha um taxo12 grandão...que eles cozinhavam camarão...lá na ponte lá onde é o bar do velho Andrino...tinha outro taxo...cozinhavam o camarão ‘entalado’...e botava a secar ali na esteira...esteira de ‘tabôa’...pra secar...olha nóis passava ali...cada um camarão arcado assim, vermelho, cozido...no sal...pra secar, pra mandar ensacado pra fora...ali nóis passava ali...ninguém tirava um camarão pra nóis comer não...nóis era pequeno...passava ali ninguém tirava...nóis tava enjoado de camarão (risos)... EU – e de quem era? Quem que fazia? S. AD. – as tarrafa matavam e tinha o dono que comprava... EU – lembra quem eram os donos? S. AD. – tinha...tinha o seu Valdomiro...tinha uma porção de gente...então nóis morava ali em baixo...nessa casa que era no canto daquele prédio ali...o seu Valdomiro morava aqui atrás...ele buzinava...então a mãe dizia...olha tem que vê o camarão...na ponte...nóis ia até lá...chegava lá...os balaio desse tamanho tavam tudo cheio...então nóis cascava aquele camarão...descascava...tirava a cabeça, tirava a casca...ganhava um tostão o quilo...cascado...então cascava vinte, vinte e cinco quilo...até de manhã né... EU – e o dinheiro naquela época? S. AD. – quem tinha um mil real naquele tempo era milionário...era milionário mesmo...hoje mil real é por mês...né (risos)...então, aí cascava aquele camarão, chegava ali...aquela rua de lá pra cá...ao lado daquele hotel ali...aquele prédio...no lado da igreja não tem (assembléia de deus da rua xxx)...ali tinha a Adelina...mas tinha a sinhazinha...que era mãe dela e fazia pão de ló...depois que nóis passava ali comprava uma rosca...um tostão cada uma (...) aí nóis comprava um pão de ló daquele...uma rosca...chegava ali comia um café...nóis ia lá pra cima pro morro capiná...e ninguém sentia fome o meio dia todo...agora hoje a pessoa come um pão desse ali...tá comendo um pneu dum ‘fúqui’ (risos)...é mesmo...pão de ló daquele e um arroz não tinha fome o dia todo né...papai pegava não tinha relógio...olhava pro pulso e dizia: olha é onze hora eu vou ‘andano’...e vou ver os meus ‘cóvo’...os ‘cóvo’ é lá fora...fazia uma...fincava os pau...e os ‘cóvo’ que o Badejo entrava ali dentro...cada um Badejo desse tamanho ó... EU – então os ‘cóvo’ era pra pesca?... S. AD. – é era um de redondo...e tinha uma boca pro peixe entrá...aí chegava lá meio dia...metia um gancho ali e quando puxava aquilo...que vinha pra cima...era trinta quarenta Badejo daquele...desse tamanho...chegava ali a minha mãe...botava escamava dois daquele...botava dentro duma panela de barro grandão...fazia um caldo e o resto ‘escalava’ botava no varal parecia que era roupa no arame...Badejo escalado desse tamanho assim

12 Taxo uma grande panela.

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ó...botava um paletó no pau abanava por causa dos ‘aribú’...porque não tinha geladeira...aqui nóis comia dez, doze dia, nóis tudo ali com aquela ‘badejada’ escalada...quando acabava aquele ia vê o outro...nóis tinha três ‘cóvo’ lá fora...né...porque lá ele fica vivo... e tu vê...nóis tudo era pobre mas ninguém roubava...ninguém matava...eu to com setenta e oito, nove ano...nunca fui á polícia graças á deus...criei oito filho...nunca ninguém roubou...dei um lotezinho cada um, aqui tudo...perto de mim... EU – e hoje, dá pra notar muita diferença daqueles tempos? S. AD. – mas como dá pra vê...dá! e não tinha de quem desse um emprego não...hoje tem e lês não querem né amigo?...ólha eu trabalhei ali...agora eu sou aposentado, mas trabalhei naquele prédio ali...três anos...nóis fizemo aqueles dois prédio ali...e ainda trabalhava noutro...noutro terreno lá vazio...trabaiava lá por mês também...agora fizemo doze casa lá na frente...fizemo doze casa embaixo, em cima...e quatro garagem pra...quatro garagem pra quarenta carro...não teve um que dissesse assim, seu Adelino vê se arruma um lugarzinho...um daqui...vê se arruma um pra bota a carregar tijolo no carrinho de mão...ou botá um traço pra ele...lá a mesma coisa...povo hoje não quer...os rapaze não querem nada néô...querem saber nada...né...isso tudo passou pela gente...e a gente tinha aquele orgulho de ter um pedaçinho de terra pra fazer uma casinha...pra se casar...pra ser um home de si...né...hoje essa gurizada se o pai não der tudo...eles não querem nada meu amigo...não querem nada... EU – e o seu pai fazia o que seu Adelino? S. AD. – meu pai fazia canoa...naqueles tempo, IBAMA, não tinha nada...então ele cortava aqueles ‘garapivú’ grande...fazia canoa...e...mas ele, nóis tinha então esse terreno aqui e tinha outro grande lá...que tinha engenho de farinha e engenho de cana...então ele saía de manhã com a enxada dele nas costa nóis também tudo atrás dele...os quatro...nóis era quatro home tudo com a enxadinha...chegava lá o pai capinava o dia todo...ninguém ia pra...pra bagunça... (...) ...era da lavoura lá em cima...nóis plantava mandioca, feijão, batata...tinha milho...tinha aquele terreno grandão...depois vendemo...do lado da praia até em cima o restaurante do morro...tinha engenho de cana e engenho de farinha...quando era tempo de farinha nóis ia plantava um mês...dois mês lá...pra fazer farinha... EU – existiam outros engenhos além desses? S. AD. – tinha...lá do canto...sabe onde é o Canto dos Araçás?...sabe?...aqui até o morro do badejo tinha vinte e cinco engenho de farinha, vinte e cinco!...não é mentira minha que eu não sou home de mentir...hoje tá preso por um que é do seu Inacinho ali...ainda tem unzinho ali não tem?...é o único que sobrou...é...mais nóis tinha vinte e cinco engenho aqui...e chegava a ‘boca da hora’ quando era tempo da safra da tainha...no mês de Julho...da mandioca...óia aqui ó...mês de Junho...todas mulher iam raspar mandioca pra ganhar biju...né...fazê café da manhã...era gostoso um bijú daquele...então todo mundo...agora hoje, hoje essas moça aí de hoje...elas não querem quebrá a unha...é...são mandriona... [...] EU – e o sr. lembra do quê que o senhor brincava quando era pequeno? S. AD. – quando era pequeno?...naquele tempo?...ás vezes quando a gente tinha um tempozinho que sobrava...né...a gente amarrava uns dois ‘bigo’ de banana...isso aqui era só bananeira praqui acima da nossa chácara...puxava aquilo que fazia como dois boi...assim...puxava por ali á fora e brincava pela rua...e dentro do nosso terreno ali mesmo né...mas a gente ia pra escola...eu não aprendi a ler né...mas graças a deus não morri de fome amigo...sempre trabalhei...tenho amor ao meu serviço...trabalhei 22 ano na prefeitura aqui...me aposentei por tempo de prefeitura...e pescaria (...) me aposentei (...) agora não to trabalhando mais porque...não sirvo mais também...sô aposentado né...ela também (a esposa)... [...] Chega da rua a esposa do seu Adelino, Dona Lola: D.L. – tás conseguindo fazê a tua pesquisa? EU – (risos) é consegui pegar ele aqui no portãozinho... S. AD. – então era assim...a gente vivia isso aqui... D.L. – era do café...era da roça e era da pesca...é o que nóis vivia...

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S. AD. – trabalhava mais de cinqüenta mile catarina no Rio Grande de pesca...sabe...era daqui...a ilha toda...a ilha toda em peso e a gente...e dos Gancho...de Laguna...de Imbituba...tudo ia gente pro Rio Grande...então parelha do Rio Grande não tinha...mas era tudo de catarina...do Rio Grande não tinha um que quisesse uma farinha... EU – e tinha rixa entre catarina e gaúcho? D.L. – agora é que tem...os gaúcho agora ‘baixaro’...num guento mais...apesar de que eu tenho neta que é filha de gaúcho...mas num gosto... S. AD. – mas eles não se ajuntavam com nóis...porque eles não gostavam de pescar...não iam pro mar...também o peixe nas praia tinha dia como na praia do Retiro (no Rio Grande)...tinha mais de sete tonelada de peixe...e aí o arrastão trazia pra praia...não se via uma criança com balaio ajuntando o peixinho pra levar pra casa...eles comiam feijão com arroz mas não pescado...nós açoriano...o nosso rolo era com os portugueses...né...português tinha muito...eles: ô patrício, o dia que o barco de pesca ‘batê’ aqui no Rio Grande...eles vão acabar com o Rio Grande (no sentido dos catarinas não irem mais pescar no Rio Grande)...eu disse...ó eu não acredito seu Manoel...porque a gente bota a perna dentro da água e cheira a perna...a perna cheira á peixe...ele disse: mas ele acabô...porque eles acabaram com portugale...e eles vão acabar com o Rio Grande...nós tamos aqui no brasile...porque o barco de pesca acabou com portugale...e eles vão acabar aqui com o Brasil...e eles vão apodrecer no cais como os nosso apodrecero lá...e dito e bem feito...porque o português é burro mas não é muito...tali os barco da Pioneira13...do Arlindo...do Dico...tá tudo apodrecendo...não tem mais quem vá... D.L. – não tem mais um pescador pra pescá... S. AD. – porque se eles for...pagam o óleo...pago o gelo...pago a comida e ganho cinqüenta, sessenta conto numa viagem e não dá pra família come em terra né meu amigo...então não vão mais...então tão apodrecendo...o português tava certo...português não é muito burro não... EU – hoje em dia a pesca mudou? S. AD. – nãonão...de barco, que eles ia mesmo porque acabaro...que não é o que eles matam...é o que eles boto fora...que se vê esse barco ‘antum’ (atuneiro)...esse barco ‘antum’ que vem do nordeste...eis que de vez em quando eles morre...que de Laguna pra lá a costa toda é baixa...aquele que entrá na beira da praia...no mar grosso lá...né?...que em Laguna ele quebra aqui...é baixo...é o mesmo....com o nordeste e com o sul (vento)...então esses barco ‘antum’...esses barco levo miúdo pra faze ‘isgodo’, isca...então até agora eles botavo fora aqueles miudinho...duzentos quilo...sempre de peixe bom...eles boto 3 tonelada miudinho fora...a Gaivota, o ‘Pavelão’, os passarinho de cima, faz nuvem no sol...aquilo tudo cresce né... D.L. – e chegou um ponto que eles despejava a rede assim que ficava tudo ‘aboiado’...porque já tava morto...tá fazendo falta agora... S. AD. – tá fazendo falta...porque o mesmo home...o mesmo estudo do home é que acaba...voçê não vê...depois chegou o celular e o telefone...foi que aumentou o roubo...computador...computador, isso tudo acabou...cada vez pior...os pai tão aí apavorado cós filho... [...] eles tão no banco aqui ó...escuta...eles tão no banco...a pessoa tá no banco...então ele tá com o celular aqui...o vagabundo né...eu tenho um mil, Dois mil aqui...ele tá olhando...ele não sai dali...eles ó...e os dois tão lá de motoca fora...os trêis de olha...aí assalto ele lá pra parti pra nóis trêis...aí eles vai...nóis aqui...ali um vendeu o terreno e deixou o dinheiro no Banco do Brasil ali...foi lá tirou trêis mile...e foi sepultar um ali...foi num velório...e eles lá viro...eles lá viro eles sair côs trêis mil...e quando ele chegou que entrou a porta do cemitério...os dois motoqueiro chegou assim: dá o dinheiro aqui...ele assim: mas eu não tenho dinheiro meu filho...não, me dá, eu vi o rapaz ali tu tirá do banco... D.L. – era uma hora da tarde...o defunto ali...foi no velório...foi na porta que o rapaz entrou...pra tu vê como é qui tá...negócio de gravação...negócio de celular...tú vai...numa viagem...faz alguma coisa...a gente tá sabendo tudo

13 Pioneira da Costa, firma de pescados famosa da Ilha de Santa Catarina. Cuja matriz fica embaixo da cabeceira da ponte Hercílio Luz.

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nas notícia...mas estragou muito...estragou...e essas muié se esticando tudo?...o olho...o olho fica fechadinho...a boca fica assim ó...e os cabelo pintado?...quantas pessoa que eles pinto o cabelo?...tú acha que eu vou estragá minha cabeça?...porque na natureza...

TRANSCRIÇÃO INTEGRAL – ENTREVISTA SEU NENÊ

segunda feira 22 de outubro de 2007 Passo pela rua e vejo o seu nenê costurando sua tarrafa, sentado na varanda de sua casa, no centrinho da lagoa...após duas tentativas frustradas de entrevistá-lo semanas atrás, arrisco novamente: EU – seu nenê, boa tarde! Será que hoje dá pra eu lhe fazer aquelas perguntas sobre a lagoa?...quero lhe mostrar uma foto... SN – claro, pode entrar... Entro pelo portão e ele continua a costurar sua tarrafa pendurada no pilar da varanda...(peço pra sentar na cadeira vaga á seu lado)...ele xinga então o rapaz que foi pescar e danificou a tarrafa dele...mostro a foto da lagoa na década de 40... EU – olha só seu nenê...essa foto aqui...o sr. chegou a conhecer a lagoa assim?...isso aqui eu acho que era lá por 1940 né? SN – na época a gente era guri...(não demonstrando grande interesse na foto) EU – o sr. morava já por aqui assim? SN – não a gente nasceu na Barra... EU – o senhor nasceu na Barra?...em casa?...não era...aquele tempo... SN – não tinha maternidade...não tinha...se uns tempo pra cá é que veio a maternidade, médico, essas coisa...mas acontece que as mulher nossa ganhava a família em casa sem parteira, sem _ ...as parteira caseira... EU – aí nasceu a família toda em casa? Lá na Barra? SN – a minha mulher lá em casa tem quatorze...então nasceu lá uns oito lá na barra...os outro filho meu não nasceram lá... EU – e o sr. lembra como é que era a Lagoa aqui? Quando o sr. era pequeno? SN – ahn a mesma coisa que era aqui...a mesma coisa...só que hoje não...a Lagoa não era...já existia a lagoa...já existia o mato...a praia...só que naquela época não tinha nada...deus sabe...lagoa é uma coisa muito rica né?... EU – e o sr. lembra aonde é que brincavam?...assim...quando vocês eram guri...? SN – ah soltavo galo na praça também...não tinha praça...mas ali tinha um _ , uma grama ali...que brincavo ali...ali tinha outras dunas lá na praia... EU – não tinha estrada né?...ainda... SN – na época não...na época... EU – era o caminho pela... SN – era...ia andando...pra barra...estrada de carvalho de serão...carregando peixe na vara de pescar...e hoje o peixe vem de caminhão da barra...naquela época eu carreguei peixe no barco, e barco da barra pra cá...de barco...carreguei mais de vinte e cinco anos...peixe...eles matavam lá na barra...e eu trazia praqui...descarregava ali na frente da loja Koerich...e dali o caminhão levava pra cidade... EU – ali tinha um trapiche principal? SN – tinhatinhatinha...trapiche...trapiche ali, é que foi reformado agora...mas já tinha trapiche pra tudo quanto é lugar...antes era coisa ruim...agora a prefeitura veio aí e...

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Page 142: LAGOA DA CONCEIÇÃO: A METAMORFOSE DE UMA PAISAGEMFigura 10 – Pintura em óleo sobre tela de Joseph Brüggemannn, 1868. Acervo MASC (in CORREA, 2004: 206).....pg. 32 . Figura 11

EU – e o sr. lembra da ponte?...da ponte como ela era? Quando o sr. era pequeno? SN – a ponte era uma ponte veia de madeira...caindo aos pedaço... _ ...todas ponte aí era de madeira... EU – e o sr. lembra como é que era a rua? SN – era tudo caminho...tinha passarela aqui ó tudinho...aí foram alargando...foram comprando os terreno...foram fazendo casa...foram fazendo casa de negócio...então aonde tem a lagoa _ ... EU – e o sr. sempre mexeu com pesca? SN – eu comecei a pescar com idade de quinze ano... EU – quinze ano já tava ‘na lida’ né? SN – lá no Rio Grande do Sul... EU – Rio Grande lá?...o sr. chegou a ir pra lá?... SN – embarcado, em barco de pesca...tive lá mais de quinze ano...depois fui pro Rio de Janeiro... EU – hmmm...então o sr. passou um bom tempo embarcado né? SN – ah mais de trinta ano de pesca... EU – pegou uns tempo ruim lá fora de vez em quando? SN – quando ventava...era uma vez, duas vez no mês...então de vez em quando _ ...tú vai ali e mata uma tainhota...mata um camarão...um sirí...tá tudo aqui em casa...lá fora em arto mar não...lá passa dois, três mês em arto mar pegando chuva, vento e onda alta... _ todo molhado... EU – é uma vida dura né?...e o sr. acha que hoje, melhorou a lagoa então... SN – melhorou tudotudotudo...mudou cem porcento...só que naquele tempo, era tudo barato...e não existia dinheiro...dinheiro que a gente ganhava naquela época era pouco...nós comprava cinco biscoitos desse tamanho por um vintém... EU – e trocava por trabalho?...tinha aquela coisa de caderninho? SN – vendiam peixe aí a preço de banana...50 centavo o quilo...e ia pro mercado comprá com nota de compra...tinha compra era tudo...era...duzentos réis de açúcar grosso...duzentos réis de feijão...duzentos réis de fumo de corda...era meio quilo de farinha de mandioca...era...na época não existia dinheiro...mas o pouco que a gente comprava...era tudo bom...tinha bastante fartura e gastava uma mixaria...e hoje...tem gente aí que gasta...não tem é porque não ganha...então qué comer...não ganha...então não tem nada em casa...e quem ganha compra tudo de luxo... EU – e o sr. conheceu os alambiques? Tinha aí os engenhos? SN – tinha engenho aqui na Costa da Lagoa...tinha na Barra...tinha no Rio vermelho...tinha ali lá em...tinha em Ribeirão da Ilha...em tudo...Biguaçú...agora acabou...hoje já vem tudo lá...diretamente da fábrica... EU – tem mercado, açougue né?...é mais fácil?... É...minhas perguntas ‘era isso’...é mais sobre...o quê qui mudou né?como era a Lagoa antes...aqui? (levanto agradecendo pra finalizar, e noto que ele ficou mais á vontade)... SN – a lagoa era a mesma coisa...a lagoa não mudou nada...a praia também não mudou nada...só que...foram fazendo as ruas mais largas...foram vendendo assim os terreno...quem tinha terreno naquela época...e os turista foram entrando e onde fizeram essa beleza aí... EU – foram contruindo e agora tá crescendo né? SN – mas não dava...sacumé? mas não é qualquer sinhozinho, qualquer menino, qualquer moçinha que vem aí e compra um terreno pra fazer uma casinha...porque agora não tem dinheiro...porque o terreno naquela época...era...cinco mil reais...dez mil reais o terreno...de quatrocentos, seiscentos, dois mil metros quadrado...e agora hoje, um terreno que nem esse aqui que tem quatrocento e sessenta metro quadrado...lá de trás até aqui...isso aqui...só o preço desse terreno...fora a casa...só isso aqui...vale mais de duzentos e cinqüenta mil... EU – é valorizou a lagoa aqui...

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SN – não só a lagoa...na barra não tem mais lugar pra fazer casa...só lá em cima do morro...lá em cima do morro minha mãe deixou um terreno muito grande lá pra gente...a gente ainda tem terreno lá...então...um lote do lado de cá do rio, quem vai pra barra de ônibus...quem mora do lado de cá do rio...tem bem mais valor do que quem mora do outro lado..porque pra fazer casa do lado de cá...o caminhão de qualquer firma vai lá e entrega o material na obra...e quem mora do lado de lá do rio...tem que ir lá na beira do rio e pagar gente pra atravessar de lata em lata...dentro daqueles ‘caíco’ á remo...pra atravessar lá pro morro...aí é mais...é muito mais mão de obra...antes da ‘ripaíada’ (hippies)...desses _ cheio de _ aí...que ando mal vestido...de cabelo amarrado, de prancha...no cabelo...de brinco...chegam lá...fazem casa tudo lá do lado de lá do rio...e fazem um rancho lá...mora dez, doze pessoa lá dentro...não tem cama boa...a mesa deles é o chão... EU – e agora que chega o verão?...aí vai ser...enche a lagoa de gente? SN – eles não tem chuveiro dentro de casa...eles instalam uma mangueira ou chuveirinho na rua...e ali na rua todo mundo lava o rabo....e ninguém vê mesmo que é de noite...luz...essa casa aqui (a dele) tem doze pico de luz...aqui tem um, lá atrás tem dois...mais dentro de casa tem dez...nóa entrando de noite tudo aceso é uma cidade...lá, a casa dessa gente de fora aí...que não tem...onde mora é uma lâmpida só... _ ...andam muito mal vestido...andam muito mal comidos como disse na história...porque são uma cambada também que...que quando tem dinheiro que os pai ajuda...tudo bem...e acabou o dinheiro... EU – isso antes não tinha seu Nenê?...antes era uma coisa mais...hoje em dia é que o pessoal tá ficando mais...(sem resposta – mudo assunto)...e essa tarrafa? Vai pra água? SN – hoje não...ôi não...só amanhã... EU – e o sr. pesca aqui na lagoa ainda? SN – aqui e lá pra cima no mar...aqui embaixo ali...lagoa de lá...aqui...pega siri...pega tainha... EU – e dá peixe que nem antes?... SN – toda noite dá...só não pega quem não quer...camarão...sirí...peixe... EU – e o sr. não acha que tá ficando poluído ali? Aos pouquinho?...o sr. nota alguma diferença? SN – poluído tá muito tempo...sai de casa pra tomar banho nessa lagoa...era duas hora da tarde... _ lá na Joaquina ... mas também...Joaquina tem que saber entrar...praia Mole, Barra da Lagoa, Ingleses, Praia do Santinho, Cacupé, Daniela, isso aí...quarenta e duas praia...é...o negócio é tentar entrar em água escura quem sabe nadar... EU – sempre vai um aí né?...todo verão morre um...uma meia dúzia...então tá seu Nenê...obrigado (estava para encerrar a entrevista pois ele não estava muito á vontade)...era mais...isso da história da Lagoa que eu to vendo...aqui mesmo não tinha nada né? SN – a lagoa não mudou nada...o que mudou foi as estrada...qué dizê...o carro pequeno...o ônibus...a carreta vem lá da cidade...desce aquele morro ali...aquele morro não passava ninguém...era uma estradinha só apertadinha...pra cavalo de serão... EU – e o sr. chegou a ir a pé pro centro?...Algumas vezes? SN – sim, muitas vezes...muitas vezes... EU – de cavalo? SN – a pé...mais a minha mãe vendendo corda, daquela fruteira que dá em cima do mato...a gente cortava aquelas coisa de piteira...e lascava assim com o canivetinho...lá na Barra da Lagoa...lá do lado do rio...a gente lascava tudo aquelas folha larga de piteira...com a faquinha amarrava tudo em ‘mólhinho’...dez, quinze, vinte ‘mólhinho’...botava diante da...lá, na ponta dos molhe, não sei se já visse?...não tem uma cruz lá?...em cima da pedra lá...que eles chamo é pros barco pra vê trapiche... EU – na ponta do costão ali né? (a cruz do costão na prainha da barra) SN – lá tem uma piscina...é!...lá tem uma piscina que quando o mar sobe alto, enche aquela piscina de água...água sargada...então ajeita mais rápido trinta, quarenta...não era só a minha mãe não...muita gente...na época todo mundo fazia isso porque...daquilo que se mantinha os filhos, e minha mãe teve quatorze filhos...mantinha todo mundo com aquilo...era cordácoespideira...os filhos ajudavam ela lá naqueles morro

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nosso...e lascava tudo amarrado em mólinho molinho...botava dentro daquela piscina...a curtir quinze, vinte dia...ela fica assim...uma coisa assil...aquele fio...vai tirando aquela piteira...aquela capa de fora que é verde...e aí fica podre...depois a gente vai lá bota a mão assim...fica só o fio...branquinho por dentro...aí a gente faz a corda...faz corda pra amarrá _ ...botava o fim da corda...botava ali no meu portão (mostrando distância 5m)...aqui ficava meu irmão...aqui ficava eu...aqui ficava o Luís...cada um a torcer...aí depois o outro ia lá...fazia assim ó...os trêis dedos...já vinha fazendo a corda de lá até chegar aqui em nóis...fazia dez, quinze, vinte corda...de quatro, cinco _ trapos...amarrava...e saía da Barra de madrugada...e amanhecia lá na Trindade...no Pantanal...bem dentro dos armazéns antigos...que hoje não existe aquelas venda antiga...mas naquele tempo os armazéns...aquelas venda antiga compravam muita corda pra amarrar animais...no Córrego grande, Pantanal... EU – essas que vocês faziam? SN – é, compravam da gente...comprava a dois conto cada uma...trêis conto...e vendiam a seis...a sete...aquilo que estancieiro que ali tinha muito animal...então eles compravam aquelas corda no armazém...mas quem fazia...aquela _ antigamente...da Costa da lagoa...da barra da Lagoa...a gente saía da barra da lagoa...porque agora os carro pequeno...os ônibus...as carroça...passam lá pela Praia Mole né?...sobe o morro da barra e desce...não...o caminho da barra era aqui...do lado de cá...na beira da Lagoa...não era por cima...era por baixo...a gente entrava no final da avenida rendeiras...sempre por baixo...aí viajava um pouco...quando chegava bem naquela encruzilhada, de onde teve uma corrida de barco...que encostou muito barco no hotel ali (hotel Cabanas da Mole)...ali tem uma figueira...e ali tem uma...uma...uma coisa d’água...uma bica d’água que nunca seca...então a gente, pra matar a sede ...matava sempre ali...e o caminho era sempre á beira d’água por cima daqueles _ ali...daquelas pedreira...sempre sempre sempre...saía da barra trêis hora, quatro hora, da madrugada...pra chegar lá no saco dos limõns seis, oito, dez hora do outro dia...tudo a pé... EU – tudo a pé?...era uma caminhada longa... SN – ia por aqui...entrava por aqui...entrava por aqui pela osni ortiga...passava lá pela Costeira...lá pelo campo do avaí...e saía depois pra vir embora...saía aqui pela Trindade...Carvoeira...ali no Pantanal...Pantanal né...saía do Saco dos Limões entrava no Pantanal, ou entrava na Serrinha...que é aquela rua que passa na frente das _ da Trindade... EU – aí ali era uma caminho pro morro? SN – é era um caminho...na época também era caminho viu...mas hoje tá tudo cheio de casa...então tá fechado... EU – e sem luz né?...quando voltava á noite devia ser ruim... SN – é...era com vento...era com chuva, tudo...a gente botava dez corda...dez corda daquela nas minhas costa...dez nas costa dela...deus que bote ela em bom lugar...e ali a gente ia vender...mais vendia tudo...e aí...aí com o dinheiro daquelas corda a gente trazia...duzentos réis defumo... duzentos réis de açúcar...duzentos réis de sal...naquele tempo...hoje tem açúcar...esse...tem o adoçante...em vidro...açucar doce mesmo...tem o união...tem outras marca de açúcar...já em pacote...naquele tempo eram tudo saco de sessenta quilo...naqueles armazém...então era com aquele dinheirinho...comprava duzentos réis de açúcar, era um monte...duzentos réis de açúcar naquela época era um saco, né?...fumo?...era um saco desse tamanho (altura da cintura)...aqueles fumo de corda...pra botar no cachimbo...fazê cigarro de palheiro...agora hoje não...aí não tem mais nada disso...tudo mudado... EU – agora compra o cigarro em maço né? SN – é dois conto...dois conto e pouco...depende da marca...então...o açúcar...açucar cristal...é açúcar assim como o sal...é em granito...tem o açúcar...é um açúcar enfarelado...com assim uma carinha de milho bem clara...é açúcar...açúcar amarelo...né?...todo arroz, não era comprado nada em quilo...era...biscoito...comprava cinco biscoito desse tamanho...por um vintém...chegava em casa...(EU - o dinheiro era vintém?)...é vintém...era mil réis...vintém...né?...acontece...que nóis comprava cinco biscoito desse tamanho por cinco vintém...quando dava dez, sobrava comprava dez né...chegava em casa...as menina era mais comportadinha, sacumé mulher né?...e menino tudo de rabo de fora...botava um pano no meio da cozinha...era cozinha com chão batido...chão batido é de barro...batia cós pé pra fazer o chão...e pra fazer uma casa de parede de estuque... fazia a parede de bambu e depois amassava o barro...o barro cós pés...e barreava a parede de um lado pro outro...na época que a parede feita...a casa feita de parede de estuque... EU – o sr. chegou a fazer?

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SN – ah a gente morou...a gente morou dentro nessas casas...aí foi melhorando, melhorando...e hoje tá todo mundo bem... EU – hoje é com cimento né? o pessoal né?... SN – é hoje ninguém qué mais casa de chão batido...ninguém qué mais casa tapada com aquela palha de sapé...do mato...fazia pro telhado...com o sapé...fazia uma...uma...uma madeira em cima...maizomeno...que hoje existe tudo de bom...canela preta, peroba, tudo quanto é madeira...naquele tempo madeirinha ruim...só botava umas madeirinha, uns caibrozinho, umas ripinha e fazia...pegava uma bambu...como daqui lá no portão (5m)...rachava o bambu em dois...pegava um molhinho...a gente ia botando aquela palha no meio daqueles dois bambu...e botando e marrando...ia botando...ia botando pra não cair...fazia uma esteira daquela...de bambu...esteira de capim...daqui até o portão...fazia outra pra...a gente contava que largura que tinha...fazia cinco, seis, oito, dez esteira daquela...com capim do mato...pra tapar a casa... EU – e aguentava aquele vento sul?..aquela chuva?...funcionava?... SN – e...quando não tinha madeira pra picar pro outro lado...fazia também...duas ou três esteira...com bambu...e pendurava...amarrava com arame...aí ficava de pé...agasalhava mais a parede...aquela parte também trás mais umidade...a gente já comeu o pão que o diabo amassou côs pés...agora hoje essa gurizada aí nossa não querem mais nada...não querem andar aí na frente da polícia que é uma vergonha...roubando...matando...ainda hoje mataram um ali no campeche né?... no Rio Vermelho, o lugar que comprava terreno mais barato...agora tá tudo caro...o Rio Vermelho era um lugar que só existia gente antiga...os antigo foram vendendo pra esses gente que se chama ‘vip’...que ando nesses...então como os pai desses rapaze novo hoje é que tão mandando no Rio Vermelho...mas como hoje são os filhos deles...então os pai compraram...e agora eles tão correndo com os pais e tão ficando com tudo...e tão...no Rio Vermelho, lá no Travessão...é uma rua só...tem o Travessão...tem o mocotó...tem uma porção de umas ruazinha, lá por lá...mas do Rio Vermelho...é o lugar que tem menos rua mesmo...que o Rio vermelho só pega ali no final do asfalto...e vai bem lá pros Ingleses...tem umas ruas só...mas virado só...mais pra dentro daqueles interior...pra esquerda e direita...esquerda e direita...então eles começaram a comprar um pedacinho mais no plano de cá...foram fazendo uma casinha...foi aterrando um pedacinho de rua pra chegar na casa deles...aí o outro via...comprava um pedacinho...aí juntava e fazia a rua também...e hoje, o rio Vermelho tá uma cidade...mas é uma cidade que tem agora, todo mês morre quatro ou cinco...esse mês já mataram uns quatro...ou cinco...mataram dois num dia...mataram um noutro dia...agora mataram mais dois...já morreu uns cinco... EU – e quando o sr. morava na Barra...o sr. também ia lá?...porque o Rio Vermelho já tem... SN – ah o Rio vermelho é...a mesma idade da barra da lagoa...Ingleses...outras praia...Ribeirão da Ilha...Pântano do Sul...armação...e alí...o Rio Tavares...Porto da Lagoa...aqui era a freguesia da Lagoa...hoje é a Lagoa da Conceição... EU – na Barra era outra né...no Rio Vermelho era outra freguesia...hoje tá virando...daqui a pouco vira uma coisa só né? será?.... SN – mudou muito...mudou muita coisa...e hoje ainda tem mais...tem gente...aquela benção...pegava na mão da minha mãe, da minha avó...do meu tio...do vô...bença pai...bença mãe...bença vó...bença bisavó...hoje eles não apega na casa da mãe, do pai pra tomá benção...o pai...hoje eles tão é dando na cara do pai pra correr com o pai pra ficar com aquilo que o pai tem... EU – a família tá né?...hoje em dia...e antes as pessoas tinham um monte de filho né?...hoje em dia não tão mais tendo filho quase... SN – naquele tempo tinha uma carrada de filho mas todo mundo soube educar e todo mundo...olha...eu com quatorze filho...eu tenho 14 filho..mas já pensasse?...quatorze sem ter emprego naquela época...sem ter emprego naquela época...dá roupa pra filha mulher...pra filho homem...calça jim...bonita costura...até chegar moça pra casar...moço pra casar...óia...eu tinha dia que queria compra um pãozinho pra cortar, em um pedacinho tamanho de uma unha, pra cada filho...mas não tinha...tinha dia que eu tinha dinheiro pra comprar quinze, vinte pão...e tinha dia que três, quatro...é a comida naquele tempo...era banana verdurenga...não era nem madura nem verde...como tá assim meio madura também...aí a gente bota numa panela...dentro bota á ferver...depois amassa...bota um pouco de açúcar por cima...e a minha mãe chamava...uma carreira de filha por aqui...uma carreira de filho por ali...botava naquelas gamela de pau...as colher era de pau também na época...hoje é que _ xícara, copo...e das boa...naquele tempo não tinha nada disso aí...então sentava ali...quem quisesse

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comer?...comia...aquela banana verdurenga amassada com açúcar...quem não queria comer...apanhava na cara e ia pra cama... Neste momento passa na rua um vizinho, senhor de idade, que cumprimenta-nos e pergunta sobre a tarrafa...e segue para casa...) EU – eu estou atrapalhando o seu trabalho? (risos) SN – não...não tá atrapalhando não...ó esse aí (o senhor que passou)..mora...não tem o Banco do Brasil ali?...aquele banco do Brasil que fechou ali...na farmácia...não tem a farmácia Ganzo?...Banco do Brasil ali...então...ele morou...criou seis filho...tudo professor...tudo de direito...tudo os advogado...e agora tá sozinho mais a mulher...então vendeu uma casa ali por quatrocentos pau...a dele...naquela servidão que tem ali do lado do banco do Brasil...ele morava ali...vendeu ali...e agora mora naquele apartamento novo que tem ali...tá sozinho mais a mulher...vendeu lá mais barato...é melhor...botou o dinheiro no banco...tá aí numa boa...mais a mulher..._...também já é uma pessoa de idade... EU – todas as terras ali...a maioria...era dos nativos né?...as terras da beira d’água né?...foram...o pessoal de fora foi comprando?... SN – aquela coisa que era dos nativo aí...tú não vê mais nada...agora é tudo de gente de fora...e na época comprava por dez mil...dez, quinze...não era reais ainda...era cruzeiro..era mil réis...e agora qualquer terreninho pra tu fazer só a casinha...é duzentos conto... EU – e antes podia parar com o barco, a canoa em qualquer lugar?...na beira?...hoje em dia é casa de um, terreno de outro... (silêncio) ... Um dos pássaros engaiolados canta...eu comento: canarinho? SN – esse aí é do reino...esse aí canta que é uma coisa...mas, tem aquele um ali...é coleira...coleirinha de...uma coleirinha de pescoço bonitinha...eu tinha uns oito a dez...semana passada minha filha mora na barra...veio aqui levou uma gaiola com dois...a minha empregada é DO QUE ELE VIVE HOJE?? lá do estreito...ainda depois de amanhã ela tá aqui...aí dei dois pra ela levar pras criança dela...ali pra Trindade foi dois...ontem andou um casal de porto alegre aqui...hospedado uma semana...foram simbora ontem...levou dois daqui também...daquele amarelo...sei que eu tinha uns dez ou doze aí...agora só tenho esses dois aí...mas eu tenho uma porção de gaiola aí vazia...de vez em quando cai...cai um num alçapão desse...a gente abre o alçapão...de vez em quando cai... EU – então tá seu nenê...obrigado viu?...pelas palavras né...que eu não vi esses tempos né...mais novo...se bem que eu conheço a Lagoa há um tempão já...brincava aí quando era pequeno...já faz uns trinta anos já... SN – agora mudou tudo...na lagoa hoje só mora...qué dizê...na beira d’água só mora milionário...sabes...na beira d’água só tem...cada casa de gente rica...tem lancha voadeira e tem um trapiche bem bonito...porque aquelas casa que eles moram ali com trapiche e casa bonita...aquela coisa ali...era tudo de nóis...foi vendido...foi vendendo pra eles...e a gente foi comprando em outros lugar mais afastado da beira d’água...eu tenho uma casa ali na outra rua...então... EU – o sr. já teve terreno desses aí na beira d’água assim?...de vender?... SN – já...olha...aí então acontece que eu...eu não vendi terreno...que dizê eu vendi dois terreno lá na Barra...na beira do rio...então me desfiz de dois lá...a preço de banana...e comprei um aqui por duzentos e oitenta reais...280 réis...não era real...era cruzeiro na época...faz muitos anos...eu comprei um ali...de quatrocentos metro por duzentos e oitenta...agora hoje...eu não dou...tú vê...porque tenho uma casa muito bem boa e um terreninho... EU – é seu Nenê tem que ficar com um pedacinho pro senhor né? SN – e meus filhos tudo aí né...tú vê...tenho quatorze...tenho uma filha muito bem casada no Campeche...tenho uma lá no Morro das Pedras...tenho um que mora em Canasvieiras...tenho um que mora em Santos...tenho dois que mora aqui na Costa...tenho quatro que mora na Barra...mas todos eles tem casa...todos eles tem casa, e todo eles tem casa de negócio...é lanchonete...é bar... EU – foram na vida né?...o sr. educou...aí depois vai côs próprios pés né?... SN – é...ah...o negócio é seguir os deles...os filho ou a filha...que tem gente que nãoi aceita isso...tem gente que não aceita...eu tenho um pavor de ver uma filha...um filho...que não respeita a cara do pai e da mãe...então naquela época a nossa família só via respeitar a gente e tomavo os conselho que a gente dava...agora tu tens uma

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filha hoje...tú tas dentro de casa com a tua mulher...quando tu vê a tua mulher...onde é que tá a filha?...a mulher diz: saiu!...saiu porque ela deixou...se não tivesse deixado ela sair, ela não saía...então ela vivia _ essa guria...a guria foi pra rua...volta de madrugada...quando volta de madrugada pra casa...ninguém sabe o que é que tá fazendo na rua que não dá...mas quando volta... _ ...olha filho teu foi lá e tá pra pari...a mãe não deu educação pra ela... Acabou a fita... Agradeço e despeço-me

ENTREVISTA SEU INACINHO Segunda feira / 18-02-2008 [EU – entrevistador / SI – seu Inacinho / _ - palavra não decifrada pelo entrevistador] Seu Inacinho é um senhor de 82 anos, antigo lavrador e dono do último engenho de farinha da área do centrinho da Lagoa, que funcionou até o ano de 2006...Após cinco tentativas frustradas...consigo ‘pegar’ o seu Inacinho, sentado na varanda de sua casa, e finalmente realizar a entrevista...eram 17:30 hs quando me aproximo e pergunto: EU – oi seu Inacinho!...será que hoje posso lhe fazer aquelas perguntinha?...ou a hora não é boa? SI – óia a hora não é boa...mas se for só as pergunta...pode entrá aí.... EU – Aonde o senhor nasceu seu Inacinho? SI – Eu nasci...Colônia Santana...alí Colônia Santana ali...Imaruí...que tem aquela pedra grandona né...alí...terreno que não era do meu pai...era duma velhinha que...que tava na casa dela...depois ela passou pra ele...ali...dali eu não sei a idade que eu tinha...mas o tanto pelo que eu me lembro de certas coisa que eu...que eles botava na carreta quando tava carregando mudança...acho que eu devia ter uns dois ano pra trêis...uns dois ano maizomeno...né...nóis levemo morar na Serraria...na região de São José...mas era Serraria né...ali abaixo do muro da bina...ali o pai morou três ano...aí voltou pra Téia...foi lá pro arto do escoto...lá teve mais seis ano... EU – e como é que o senhor ‘veio parar’ aqui na Lagoa? SI – aqui eu não vim parar...ele que me trouxe...aí nóis viemo praqui em 39 (1939)...saímo de lá e viemo praqui...aqui ele se acabou...como _ porque morreu...é melhor que acabado... EU – e o que é que o seu pai fazia? SI – lavrador né...lavrador e vamo dizê assim...lavrador e negociava...só que o que ele negociava...é que ele vendia o que adquiria entendeu?...ele vinha vendê ali no estreito né...vinha uma carreta...ele ia vender ali no estreito ali...e eu vinha com ele porque eu era adulto...mas naquele tempo não tinha muito movimento...mas sempre passava... _ passava um carro... EU – ele tinha engenho? SI – tinha engenho de cana e engenho de farinha...lá em Biguaçú...e também na Serraria...quando ele veio pra cá...ele vendeu tudo e comprou aqui...ele comprou com o perdão da palavra um ‘cagadô’...ali onde tem aquela padaria aí...padaria ali...aquela padaria...essa casa da santa ai...era um terreno que vai lá em cima do morro...lá no final do morro...então naquela época...ele não comprou...ele alugou...entendeu o que ele fez?...ele vendeu o terreno lá por 10 conto...fiado...porque fiado de 10 conto recebendo 2 conto de pagamento...sempre comprô né...era conto de réis... aí veio deu um conto pro Andrino de calço...comprou aquele dali por 3...aí mudou...não sei se nóis moremo...[lembra da irmã e muda de voz]...eu tenho a minha irmã...mas tanto tempo que ela...ela fez 72 anos...a mais moça...e aí ela...ele não pagou...e aí eles botaro a gente na rua... _ fizero certo...fizero direito (...) ele não pagou né...se eu lhe compro uma coisa e não pago...qual é o fim?...eles vai na rua...não é certo?...é...que é seu não é meu né...então...jogaro ele na rua...e nessa época eu já tava aprendendo a pescar...aí fui indo...aí eu tinha uma roça de mandioca aqui pra cima do morro aqui...toda vida...aí ele me ensinou a trabalhar na roça...eu né...

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EU – era por aqui as róças? SI – a róça era aqui em cima aqui ó...em cima desse poste aqui em cima aqui (apontando em direção ao morro da igreja)...daí pode...pode usar isso aí pra plantar mandioca...que a mandioca dá aí mesmo...ah...plantavo milho...pra comê né...é milho, feijãozinho...as abóbora...essas coisa...aí tá...daí fizemo essa róça antiga...fomo lá pro Canto dos Araçás...tinha uma senhora que era...(interrompe, entra a Daniela)...essa é a minha neta...aí fomo morá no Araçá...e a mãe grávida...tinha a Lurde...a mãe do...do Rolnei...pois é...é um de cabelo bem pequeno...com aquele cabelinho de nego...né...tá sempre aqui...meio dia teve aí...aí nóis viemo alí...mais uns 4 pra 5 filho...maizomeno...e eu vi o homi que deu o nome dessa rua aqui...era o tio da mulher que eu me casei...rua João Pacheco da Costa...é o nome do tio da minha mulher né...era uma casa que tem ali _ que tá pra vendê...que já morreu ele...o Aldí morreu...a mulher morreu...tá pra vender...então...a rua era o nome do tio dela...que ele era professor daqui...entendeu?...era professor...ele teve estudo e estudou...aí ah mas assim como antigo diz primeiro né...e ele era professor...mas era um professor de mão cheia...o aluno que não aprendeu a ler com ele não aprendia com mais ninguém...(EU – então ele era professor aqui da Lagoa?)...é aqui da Lagoa...aqui lá pro Canto da Lagoa né...(muda de assunto)...mas eu tenho um cunhado que não fez carreira por causa da bebida...e era moço também...não fez carreira na marinha por causa da bebida...já pensou sair daqui do Brasil...pra ir pro estrangeiro buscar navio?...guentá em pé no navio...daqui pra lá e de lá pra cá...os marinheiro tudo ‘adornado’ né...é muita coisa né...eu disse pro _ um dia...é eles são...ô João tú que coisa...mas eles são...eles são marinheiro de água doce...mas era...que ele foi lá buscar dois navio né...porque tinha aqui...tinha aqui né...a marinha tinha aqui...foi lá duas vezes buscar o navio...(EU – aonde era a marinha aqui?)...ah a marinha né...a esquadra da marinha né...foi lá buscar...ele era marinheiro...era da esquadra da marinha...era do mar...ele só vinha em casa de cinco, de seis meses maizomeno que eles vinha... EU – O senhor fazia isso também? Pescava embarcado? SI – não...não...eu pescava embarcado...mas era em...embarcação de boca aberta...e a gente ocupava...era um lugar pra gente chamar _ uma empadeira...só pra gente ir pra casa...ocupá banco...vinte home era o máximo...vinte...quinze...aí de vim farinha pequena...a gente chamava...era cinco...não cinco não...era nove...ás vez 10...ás vez onze...pro pau né...farinha pequena...então farinha grande não...farinha grande era sempre um metre...o menos que tinha era vinte home... EU – aonde era essa pesca? SI – lá no Rio Grande...a gente ia lá pro Rio Grande que aqui a gente não ganhava um tostão...agora hoje ninguém anda bobo aí pra ganhar... _ ...não é certo?...é...emprego é sustento...ó eu tenho um bocado de brita ali...eu vou fazer uma casa ali atrás...a brita é do _ ...pra tirá...a mulher que tá aqui que eu cuido...não quer que eu tire...porque eu ando com dôri (dor) nas perna...como é que eu vou arrumar uma pessoa pra tirá?...eu acho que é eu que tenho que tirar...nem que seja só meio carrinho de mão por dia...(tosse)...então a vida foi essa né...aí eu tinha umas cabra...que eu...mas cabra eu tinha á vontade...batia umas cabra...vendia umas cabra...vendia umas pórquinha que eu tinha...e arrumei duzentos mil réis...aí lá...ali no Canto dos Araçás...bem no Canto do Araçá...na Ponta Grossa...eu...a mulher ficou viúva...o marido era pescador...tinha uma canoa pra vender...eu queria comprar uma canoa...aí nesse meio tempo...a mãe ainda tava grávida...não tinha ganhado a rapariga...que é a Lurde...a mãe arrumou duzentos mil réis...que ela negociava mais o Jackson na cidade...vendia galinha, banana, fruta, laranja...o que tinha pra vender...limão...e ela...com o guri...que foi caminhando...e pra comer... _ trabalhava...ah adquiriu duzentos mil réis...e eu adquiri duzentos mil réis da cousa...aí entendi de comprar a canoa...aí ela assim também...então compra a canoa...não quês ajudar a comprar o terreno então compra a canoa...e quando eu...aí...fui lá na praia e virei a canoa do lado de fundo pra cima pro lado de baixo... EU – quando foi isso seu Inacinho? Faz tempo? SI – iii rapaz...isso aí...ai eu não tenho muita lembrança...mas o que eu sei...de 44 pra 45 (1944 – 1945)...ou 45 maizomeno...pois é...a gente pedia pra pescar né....era a minha coisa...aí...aí fomo pro a gente cercou...sabe o pai do Ziquinho?...Ziquinho ali da ponte...aquele negrinho...que tinha uma camionete aquela coisa...sabe o ziquinho?...é a filha dele faz excursão...a netinha...aí o pai dele precisou _ vir cá...no dia que ele nasceu eu levei um pão por deus na canoa pequena...né...canoa pequena...logo formo um bordado ao redor (de peixe)...ele rema a

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coisa tava carregadinho de peixe...chegou tinha enrolado no pão...ele é que me ensinou a pescar...e aonde que...não quase igual hoje...todo mundo pescava...essa rapaziada que anda aqui...que anda aí queimando fumo...vô dizê...também queimo outros não gosta não sei né...cada um vê no que vai dá né...cara desse cê vê...queima um fumo...mas é...é particular né...sabe... _ ...mas essa rapaziada que andava aqui...anda muito é _ ...porque _ que anda queimando fumo...eles andavo tudo com a gente na Lagoa...eles trancavo á Lagoa...porque ali trancava o rastro né (de peixe)...todo mundo ia...a rede trancava...se era de camarada né...leva a carreta tudo bem...se não ia lá ajudar entendeu?...é...não cuidavam de outra coisa né...não tinha outra coisa pra eles cuidá...e hoje eles não anda _ não se pode _ mais nada né...não se pode dá uma róça nada...todo mundo vivia na róça...e a Lagoa cresceu né...é uma cidade né...quando nóis viemo praqui...qué vê?...quando eu vim praqui...tinha uma casa aqui no rumo dessa antena aqui...dentro aqui dos cafezeiro...uma!...essa que eu to dizendo ali onde tem a padaria que é...depois baixaro...a casa era antiga...duas!...essa aqui...trêis!...essa da piscina quatro...tá...ali onde tem o chão que era uma casa de madeira que queimaro...é cinco!...né?...(tosse)é dali 5...agora ia pra baixo...qués vê uma coisa?...ali onde é aquela do filho do...cumé? dá...a neta do Andrino ali...não tem uma casinha bonitinha que eles colocaro ali...tinha outra também...um chalé também...um chalezinho de material _ ...indo lá...onde o Jado mora...as outra não tinha...aqui tão fora...aquelas que não foram casada ainda não...e tinha outra ali na esquina ali...que é a da academia ali (hoje confraria das artes)...é as casa que tinham... EU – e o meio era pasto? SI – é...era pasto...aí ia plantar mandioca pra baixo...é mandioca nóis andava aqui pra cima, mas bem dizer dentro da Lagoa...né o pessoal...né...e ó tinha aquelas casa grande lá...não a primeira a segunda...né...é lá tinha a que é do...a que tá pra vender...que era do Arlindo...que é da prefeitura... EU – e a estrada? SI – a estrada era essa aqui (João pacheco da Costa)...e a outra ali da...a do Canto...e essa outra aqui da...aqui do grupo...a que entra de encontro do cemitério....era...não tinha mais nada...ia até a ponte...e da ponte pra lá...ia carreta ou se pegasse um carro ia até lá o canto do Retiro né...(não ia pra barra ainda)...mas pra pegá era pela praia né...era...era tudo praia...então lá era praia...e é assim o...aqueles capim né....e se era coisa as carrêra...as carreta ali enterravam...os carro atolava...sabe o que é que a gente fazia quando era pequeno?...aí eu era um rapazote....vinha um Fordeco daquele...aquele nóis chamava de Fordeco...aí vinha ali na areia...pra cá do cemitério...nóis ia lá...cavava...cavava...de fora a fora...cavava assim....quebrava o graveto né...naqueles tempo a gente fazia...também era malvado...quebrava o graveto na parte que tava ali...tudo de fora a fora...aí botava um bocadinho de folha por cima e tapava com areia...ele vunha por...e gora?...e uh ó _ saía do carro e queimava...(EU – eles ficavam brabo?)...uh! e como ficava...tinha um nego aí que morreu na água aí: ah! Essa rapaziada aí...que eu vo _ que essa rapaziada com _ ...eu ia pra Caiera no bar dos rapazi...aí eu e mais o _ que mora ali embaixo...e o gado correu lá dentro onde é o lic (Lagoa Iate Clube)...né com medo né... EU – quem é que tinha carro? SI – ah um sujeito da cidade...gringo...era um velho que vinha da cidade pra cá...é...aqui não tinha...não...qués vêji uma cousa...quando...qué vê quando o Damião comprou uma...mais o falecido Damião comprou uma...uma camionete...aí mais o Andrino ali...eu vô lembrar bem...foi em 51!...que em 50 eu tava no Rio Grande...aí eu vim...aí fiquei _ eu _ tive em 51 ... _ em 51 pra _ ...meado de julho maizomeno...é foi meado de julho...acabô deu a corrida eu vim a cabo...né...já tava já á um ano e seis mêzi sem vim em casa...sem _ ...e a mãe tava apavorada...aí o rapaz que morava ali no casarão...aquele ali que dava ali é o governo...quem quisesse morar morava ali né...tava ele, o pai dele e o outro irmão...o outro irmão...o outro irmão já tinha se casado...agora não to me lembrando bem...ele era casado...ô não sei se ele andava fazendo festa...por causa da irmã...que tinha uma irmã né...e...aí ele: ô Inacinho eu vou na frente e eu lá te espero pra nóis ir embora pra Lagoa...tá...ele saiu na frente...ele chegou como hoje por essa hora assim (17:30hs)...e eu fui chegar no outro dia também por essa hora...espera ri dali tia nós fóremu...só ouvia só ouvia...se eu chegasse do Rio velho...se eu chegasse ali na cidade...eu mêmo me arrancava...mais não...ele espero...ele espero aí nóis coisa ali...que...ó morreu ou se enterro anti onti ô onti não sei...um tio do Isac...ele assim o Dimo arruma um carro aí...que naquele tempo...não se chamava ‘táke’(táxi)...era limosina...aí arrumo um carro nóis viemo...paremo ali atrás do terminal...depois deixei minha bagagem e vim pra casa dele...aí...eles fizero qué vê...a mulher dele já é morta também...a gente chama...como é...côxa de velha...sabe o que é coxa de velha?...é tostá um pouco de farinha de mandioca...com

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açúcar e tempero...com uma canela e o cravo né...com erva doce...e faz aquela massa...não e escaldada é crua entendeu?...é com água crua né...por isso que eu digo...isso fritado na frigideira faz um bolinho que é um espetáculo...ah ela fez aquela côxa de velha...tomei um bocado de café...ah agora o caminho de casa... EU – então vocês faziam coxa de velha com farinha? SI – é...faz aquela massa como faz uma massa de pão de farinha de trigo...entendeu?...e aí vai pegá com uma colher e faz aquele...aquela massinha assim maizomeno...e bota na frigideira...óia...óia isso é gostoso que é uma beleza...bem talhadinha né...ainda era o que todo mundo gostava...até os cara que chamo...qué vê?...ah tem o nome como...isso aí tem o nome de coxa de velha...e tem outro...de polvilho que chama pomba de nega...(risos)ah mais é gostoso...ô...bem gostoso também...então naquela época era essas coisa aí mêmo... EU – quando foi que o senhor parou de trabalhar com engenho? hoje em dia não dá mais? SI – não hoje em dia não dá mais...primeiro porque co já não tenho terreno...então hoje não tem terreno...no morro...se eles liberasse no morro pra trabalhar...também acho que já me custa ir...porque eu já to...já to com 82 ano né...sente dor nas perna...essas coisa...acho que trabalhá na róça não dá mais...a gente vai se cansando... EU – e os filho? SI – tão tudo empregado...não adianta né...porque não adianta o quê que vai fazê...o Niso é ó...um deles é empregado da prefeitura...é empregado lá no _ ...um que passo agora aqui com a carreta aqui...puxa um papelão...não dá pra se metê na róça...na róça não dá...aqui não dá...a róça dá no continente...entendeu?...aquela estância de terreno né...é muito _ de terreno...e aí aquilo...tem as máquina pra trabalhar né...ainda mesmo assim...tem época que depois de sair a safra ainda ficam devendo pro governo né...tá entendendo...ainda...na enxada não dá...pra tu vivê só dela não dá...então aqui...a ilha toda...que eu acho...que eu vô dizê uma coisa que eu não digo bem na certa...mas aonde é...daquela época nóis viemo pra aqui...a ilha toda aqui de beira mar...o pessoal que era beira mar eles trabalhavam na róça e pescavo...tá...e aqui era a mesma coisa...trabalhavam na róça e pescavam...era difícil vê uma pessoa aqui que não era pescador...a gente tudo era pescador...esse hômi aqui que já é morto á tempo ali...que ainda tem uma filha ali...o filho mora ali embaixo ali...né que os filho deram duas filha...elas tão em...como é...teve um derrame...que então...não levanto mais da cama nem mais nada...mas também...ele era pescado ainda pescou...então ele era home de pescar... EU – e dessa época da Lagoa... o senhor acha que ainda dá pra levar á vida daquele jeito? SI – Ah acabou...ah não...só que eu tenho um genro que é maluco ó...maluco tá com duas embarcação lá que coisa...mas eles fizéro uma casinha pra alugar...fizero uma casinha pra alugar...que agora todo mundo vem atrás de casinha pra alugar...e ele tem terreno...que é da mulher...pode fazer...pode ser de casinha rosa...né aquela...madeira mêmo...não é certo?...tá até ganhando um troquinho...o jeito que tá lá eles tira óleo de madeira lá...dá uns 300, 500 por mês...todo mês...então também ele tirava né...quase uns 500 por mês...então...já dá pra fazer outra...ele tem que procurar o que ganha...e tá ele com duas embarcação...matando um siri magro na Lagoa...matando um xigôzinho né...fazendo rede...pra que empatar dinheiro em rede?...tô certo?...fez uma casinha...sabe aquela casinha né...tava ganhando...tava ajuntando porque tinha a dele que é da mulher...ele vai embora era um homem errado...mas tinha a casinha a outra alugada...uma é né...já entrou com o outro tinha...certo?...mas não tem...ele morreu no tempo né...Lagoa não deu...a pescaria daqui acabou...Rio Grande acabou...Rio Grande não tem mais nada...aonde eu pesquei...não se marra como eu dizia outro tempo dia desse...quem foi...é o que é filho meu...parou...que tá uma miséria danada...que nem pra comê não dá...trás as embarcação e guarda pra fora...mas não chêgo...os barco grande acabaro...é acabado...óia que a gente lá...a gente matava peixe pra botar fora...quando nóis teve fora no Rio Grande era tainha...mas o tanto que levemo... _ camarão... _ camarão daqui inté lá fora...e os dono né o...e os dono da...que tinham parêia...como é que chama...a parelha...tinha a parelha de pesca...e as pessoa que tinha aqui né...pessoal todo se mandava tal cousa mandavo embora...e a gente tava lá pra ganhar dinheiro...pode vê que adiantava...ia lá gastava gasolina...óleo...pra matá pra botá fora... _ nem pra _ não tinha ...aí ia fora...óia os pai desse Vado...nós pescava numa praia lá que chama praia do Caco...né...nóis tava com ele lá...nóis tava ajudando bastante...que nóis tava ajudando lá esperando tainha de entrada...e trabalhando com camarão...aí que deu muito camarão...nóis descarregamo ás canoa toda...nóis carreguemo 5 caminhão de camarão...a mais pequena era capacidade pra dois mil quilo...e a mais era de seis mil

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quilo...acho que outra de cinco...quatro...e outra de três mil quilo...né...pra eles ir pra fábrica né...ficamo com um caíco...pra arrastá o camarão...pra puxá pra terra...porque embarcação nossa foi tudo... EU – e como é que conservavam esses peixes todos? SI – tinha luz elétrica...é...mais não tinha o...de haver o gelo e assim...essas porção de coisa na fábrica né...(tosse)...voçê chegava na fábrica...até dava dó em você...tinha pilha de peixe maior que essa casa...que era um galpaozão grandão né...e era um baita...a fábrica era mais que daqui lá na boca da rua... _ entendeu?...né e eles escalam...eles escalava também...mas não se dava conta...o peixe era tanto que não se dava conta...aí ele mandou o pai do Vado passear...o Davi...era o tal da farinha que eu era o encarregado...ele assim...sabe quantos alqueire de camarão ele trouxe pra terra?...400 alqueire...estopô veio ás duas manguinha pra terra...esperemo...os caminhão foram chegando...nós fomo carregando...fomo carregando...carreguemo 400 alqueire...levemo pra fábrica...viemo pra fábrica _ ...que cada embarcação tinha 2 fábrica...bota fora...bota fora...botemo tudo fora...agora hoje...hoje faz falta né?... EU – hoje o senhor toma leite de caixinha? SI – é...de vaca não tem pra coar...ainda agora eu mandei o Niso comprar um litro...é...e água de côco... EU – o senhor não tem mais as vacas? SI – não...não...não deixaro não... EU – quem que não deixou? SI – o pessoal né...da _ ...é...como reclamavam...nem gato...nem galinha...O Niso ainda tá com dois novilho que tão botando ali...e traz pra cá...mas é escondido né...dá cheiro...dá cheiro né...pode crê que dá cheiro...aí eu pus pra vendê...eu tive que vendê né...ó...ainda agora onti...eu falei pro Niso...pra puxá papel...pra papel _ precisa mão de obra...aqui ainda tem...tem o bastante dessa carreta de pneu né...(tosse)...mas é tudo casa pra barco né...quase não tem casa de dois piso...é tudo de um piso só...então o pessoal dali do rio que já tão tudo coisando pralí né...aí que mais uns anos também lá cresce...já tem bastante casa em cima da outra...e acaba também...mas que é bom...de lá ter uma criação é...e aqui não dá mais...nem uma galinha...mas nem uma galinha... EU – tinha muito engenho aqui seu Inacinho? Além do seu? O senhor lembra? SI – lembro...lembre...qué vêji?...eu acho que daqui até o Morro do Badejo...parece que era...parece que era 30 engenho que tinha...agora eu não tenho muita lembrança não...mas eu sei...que daqui pro Canto tem...qué vê?...tinha nessa casa aqui...na casa do Zinho...aqui o meu sogro tinha um...né...tudo de farinha...engenho de cana aqui era só na Costa...que eu sei 3 ou 4 engenho de cana na Costa...mas mesmo assim açúcar não fazem...lá eles fazem melado...e _ pra fazer cachaça...(tosse) EU – aí vendiam o que produziam nos engenhos? SI – aí vendia aqui pra Lagoa aqui...e daqui tem os comprado...de carro...o pai do Arlindo tinha venda né...deixava e também levava pra cidade...entendeu?...pra vendê na cidade...mas levava escondido por causa do fiscal né...que aí tinha... _ multa...não deixavam...tinha que ter licença pra deixar...pra vendê...porque um monte de gente faz né...as pessoas...essa aqui tinha um engenho aqui...o seu Bentinho meu sogro...ali dentro da...onde tem aquele muro que tem ali...que tem um muro aí que tem uns pé de goiaba que tá ali...que tá cheio...que tá sujo de mato ali...naquela casa tinha outro...então são 3...aqui em cima atrás da igreja tinha outro...4...aqui onde é o grupo ali...tinha outro...5 né...ali antes de chegar a entrada do lic...ali tinha 3 perto um do outro...ali que eu vi...aqui tinha 1, 2, 3, 4, 5...então nesse meio aqui tinha 5...com 3 que tinha ali...8...né...8...aí passando aquela volta que vai...que é a estrada do Canto...tinha o Chico Tambino e tinha o pai do Mercindo...né...tinha o seu Tomé que era tucado da mão...aí já tinha 3...onze né...tinha o seu Lourenço...não...o seu lourenço é o tucado da mão...tinha o...como é o nome do _ do homi...ah o seu mane Tomé...é era o seu mane Tomé...era 8...tinha o sogro do Damião...9...ah ali quem passa...tem uma ladeira que a gente sobe assim...que é a casa que era do pai do vilmar que tinha a venda...ali

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parece que tinha uns dois ou três também...no morro do Badejo também tinha parece que uns 2 ou 3...e tem a quebrada...que também tinha parece que só na quebrada tinha 3 engenho atrás do outro... EU – a quebrada ficava aonde? SI – antes...antes de subir o morro do Badejo...porque lá tem uma...um beco assim quem sobe pra cima...e eles ainda tem o engenho lá ainda...ainda funciona ainda...a pouco tempo não tinha nada... EU – o caminho antigo pro centro partia ali da quebrada? SI – não...era aqui...é no mesmo morro...só que tem uma coisaera um tanto que passava uma carreta...é uma camionete tinha que dá uma ré...pra fazê a volta...e dava a volta porque senão não passava... EU – e luz tinha? SI – não...era querosene...é era querosene...agora tu vê ó...anti onte...foi sábado parece...(faltou luz na Lagoa)...eu tenho uma pomboca grande ali de camarão né...aquela que tem...é até de cobre né...aí me lembrei daquela coisa...fui lá ligeiro...acendí...pensei que ela não ia acendê...mas não...acendeu...mas é antigo...depois ela apagou mas guentou bastante tempo...aí tem um senhor aqui da venda aqui...que precisa _ ali entendeu...aí ele falou ó a pomboca! (risos)...e tinha ali aquele camarada ali...tinha umas pequeninhas entendeu...dentro de casa...e _ isso era um pratinho assim...com óleo de peixe ou...de mamona de baga de Anóz...e botava o pavio...era 2, 3 _ de pavio...e chamava-se candieiro...então tinha uma varinha que era pra mexê...daí pegava um pauzinho...chamava vareta....pra mexê ali praquele pavio caí lá pra frente...e ficá queimando ali dentro...isso foi antes de seco antes de vazar...finalzinho...por causa da querosene entendeu?...uma coisa que pegou no tempo da querosene até hoje não...aí quando da guerra...da guerra mundial...aí passou a querosene...aí a...(acabou á fita) (continuação lado 2 da fita) SI – Ah e o morro...o morro era cheio de cafezeiro...que ainda hoje tem...entendeu...as mulhé iam tudo lá apanhá café...então era cá que tu ia de...sei lá qué vê...de Maio em diante...ah é, de Maio em diante...óia de Março em diante nóis cá ia pra apanhá café...então ás veze ele ia madurando, ia apanhando né...e era aquelas guria de colhê de cumbuca trabalhando... EU – não era o ano todo no engenho...tinha época né? SI – tinha...tinha...não...no engenho...qué dizê...no engenho começava a farinha...foi muita farinha pra fazê...muitos anos eu vim a gente começava no mês de Março ia até Agosto...no inverno...que quanto mais frio...quanto mais frio a farinha melhor...até na _ também...quanto mais frio mais a farinha melhor...mandioca no calor não presta...e nóis lá ficava...família toda trabalhando né... EU – vocês usavam carro de boi seu Inacinho? SI – não aqui não...aqui era cavalo...mas pro continente era carro de boi...no Rio Vermelho era carro de boi...Ribeirão era carro de boi...aqui pra dentro aqui...Canasvieiras e Vargem tudo também era carro de boi...mas na Lagoa era á cavalo...era cavalo e burro...e levava as coisa de balaio...levava pro engenho...ia assim com carga...quatro carga...cinco...quase seis... EU – o que era tradição que hoje não é mais? SI – aí o _ não tem mais...acabou...né...carro de boi também aqui...nunca deu...quem tinha aqui eles tinha na olaria ali...mas não...quase não trabalhavam...e não tem que na ilha...tenho andado em volta da Lagoa que não tinha...acabou... _ aqui...óia...Costa...Retiro...botava a corda nas costa e puxavam...não era carro de boi...mas era aquela _ puxando carga do morro e mandioca...isso aí eles puxava...a turma da Costa né...do Canto do Araçá pra lá...(tosse)...a Barra já usava o carro de boi...lá no campo eles usavo carro de boi...indo lá que eles chamavo lá no sítio...até uma vez carro de boi...se levava era pouco...era mais era cavalo...né...no Retiro também era cavalo...Canto da lagoa assim era cavalo...nessa mediação aqui também era cavalo...já no Ribeirão não...era carro de boi...

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EU – nessa época não tinha nenhum automóvel por aqui? SI – não...aí quando eu comecei aí não terminei o Ford...aí o Damião mais um amigo compraro a camionete os dois...eles compraro a camionete aí foram trabalhar...foi em 51...né...então eles levavam gente pra cidade...levavo e trazia...levavo que não tinha ônibus né...aí foram indo...foram indo...aí foi...se separaram os dois parece...(EU – eles cobravam pra levar?)...é...é...aí cobravam...aí depois eles foi se separaro...e cada um cobrou a sua...cada um puxava a sua...depois o Liquinha...o Leca também comprou uma...o Leca...o Murilo né...aí o que foi que ele fez?...o que foi que ele fez...hoje todo mundo dirige né?...hoje todo mundo dirige...todo mundo tem carro...todo mundo dirige... EU – então...seu Inacinho...dá pra dizer que no centrinho da Lagoa, hoje, o seu é o último engenho? Que parou de funcionar? SI – é o último...é a luz...se der a gente compra ali...já falei pro cara...de a gente comprá mandioca...uns 500 quilo á 1000 quilo...pra ir gente no engenho pra fazê uma farinha...farinha de _ ...aí pra comê...(EU – pra fazer hoje só com mandioca de fora?)...é só...aí eu falei pra ele; não, não, eu compro...então mas não compra ainda que tem o Ed tem o Pedro...a gente dava pra trabalhar...porque eu gastei 500 quilo eu sei quanto que dá de farinha...né...(EU – quando foi a última vez que fizeram?)...é...faz dois ano então...(2006)...é no ano passado eu não fiz...acho que não...se eu fiz não me lembro... EU – então biju na Lagoa agora é raridade? SI – não...mas é...sabe porque...é porque...ali no centro tem o biju entendeu...mas não é feito aqui na...é feito lá em três riacho...que eles tão trabalhando aí...lá de 3 riacho...Antônio Carlos... [agradeço e desligo, mas seu Inacinho continua conversar...ele mesmo diz pra eu ligar de novo...e ligo novamente o gravador] SI – a Lagoa não tinha...não tinha o cais...ela tampava...ela era um banco de areia entendeu...tava um mar muito ruim tampava aquilo ali e...lá onde era ali chovia...lá na Barra...lá embaixo...o canal a ida pro mar...não atinha né...quando chovia bastante que tinha bastante água...né...aí dava mar ruim...mar ruim traz areia...né...aquela ponta grandona né...das areia...e vem vindo...vem vindo...então tampava...pra cá tampava...(tosse) EU – o senhor já viu fechado aquele canal? SI – ah eu vi...pois eu andava por cima dela fechado...fazia um panacho de rede...deixava arar pra arrebentá a rede...era tampado né...ah ali onde tem os molhe que é tudo aliaquilo ali era praia...sabes de vez em quando ela tampava entendeu...era praia...era o diabo pra ir ali na boca mêmo...na boca...a canoa passava puxadinha que era pedra natural...as canoa passava...a canoa acrreta passava...que era duas canoa...uma canoa parava passava por cima daquelas pedra...cheia de remendo de _ e tinha hora que ficava na pedra...dando volta...aí então quando a Lagoa enchia...ali na ponta ali...na ponta...é da ponta quem vai do Retiro pra lá...ali as duas lagoa se ajuntava toda...aí o que é de lpá...que a gente ia pra lá...arrumava levava os cara ali _ ...arrumava um bocado de gente...ia lá cavava...de pá e enxada...e...cavando...cavando...cavando...quando ela arrebentava...chegava até a derrubar rancho...que tava lá de perto né...uma força d’água que era um...é...só que a maré...a maré do mar grosso não podia tá enchendo...entendeu?...se enchesse não...a maré tinha que tá vazando entendeu...de vazando...aí depois fizero o molhe...aí não tampou mais né... EU – Naqueles tempo andava mais pela água que pela terra né?...o seu andrino me disse que vinha pegar parteira de canoa... SI – é então...pois era...não tem uma casa ali...ali em cima no casarão...abaixo daquele casarão um pouquinho...tem uma casa que era parteira...a tia Liandra...tem a rua do Alberto do Adi... (EU – o ‘Aldí’?)...não ouviu falar daquele que o filho matou o irmão?...o outro matou o irmão...eu sei isso aí...o cara da praçinha...ele mora ali nessa rua ali que...a vó dele era parteira...ele corto o embigo dessa minha irmã que....tia Liandra...lá antes daescola ali em cima...em cima da igreja...a Lúrde...

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Eu – quantos irmãos o sr. teve seu Inacinho? SI – parece que seis é...é...quatro mulher e dois home...fora o que morreu né...morreu parece que uns três ou quatro...é e também tem uma filha que é do Rio Grande...é gaúcha...foi natural do Rio Grande...e já morou no Rio Grande...aí o pai que era irmão do Valdir do Jair...e aí tá...dalí...trabalhava na farinha boa...de lá ele _ pro dono da parelha... mas não foi o dono, o que é encarregado...e aí saiu e veio embora...saíu da casa da mãe e foi embora pro Canto...lá embaixo chegou lá...aí levou ela...veio cá levou ela pra lá...de lá ele se foi...aí ele morreu lá...e ela ficou....