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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO PRO-REITORIA ACADÊMICA PROGRAMA DO MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO JAIR GOMES DE SANTANA EMBATES DA FÉ: CATÓLICOS E PROTESTANTES NO RECIFE, 1860-1880 RECIFE 2007

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  • UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO PRO-REITORIA ACADMICA PROGRAMA DO MESTRADO EM CINCIAS DA RELIGIO

    JAIR GOMES DE SANTANA

    EMBATES DA F: CATLICOS E PROTESTANTES NO RECIFE, 1860-1880

    RECIFE 2007

  • UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO PRO-REITORIA ACADMICA PROGRAMA DO MESTRADO EM CINCIAS DA RELIGIO

    EMBATES DA F: CATLICOS E PROTESTANTES NO RECIFE, 1860-1880

    Dissertao de Mestrado apresentada

    ao Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio da UNICAP,pelo aluno Jair Gomes de Santana, para

    obteno do ttulo de Mestre em Cincias da Religio,tendo como orientadora a Dra. Zuleica Dantas Pereira Campos.

    RECIFE 2007 JAIR GOMES DE SANTANA

  • S232e Santana,Jair Gomes de Embates da f :catlicos e protestantes no Recife,1860 - 1880/Jair Gomes de Santana ; orientadora Zuleica Dantas Pereira Campos,2007. 94f. Dissertao (Mestrado) Universidade Catlica de Pernambuco. Programa de Mestrado em Cincias da Religio,2007. 1.Catlicos-Recife,1860-1880. 2.Protestantes-Recife,1860-1880. 3.Sociologia crist.I.Ttulo. CDU 2:301

  • EMBATES DA F:CATLICOS E PROTESTANTES NO RECIFE, NAS DCADAS DE 1860-1880

    BANCA EXAMINADORA DISSERTAO PARA OBTENO DO GRAU DE MESTRE Presidente e Orientador: _______________________________________ 2 Examinador:________________________________________________ 3 Examinador:________________________________________________ Recife, 22 de maro de 2007.

  • A Estela,minha esposa, Thiago e Natlia,meus filhos a minha gratido pelos momentos roubados famlia para me dedicar pesquisa e para escrever este trabalho.

  • Agradecimentos:

    A minha orientadora, Prof. Dra. Zuleica Dantas Pereira Campos, pela confiana

    que depositou no meu trabalho e pela maneira segura e tranqila com que me

    introduziu ao pensamento de Michel Foucault, levando-me ao aprofundamento

    necessrio para realiza-lo. Sou grato tambm pela forma como me orientou, bem como

    pelas palavras de estmulo, que me deram tranqilidade para prosseguir.

    Ao Programa de Mestrado em Cincias da Religio, na figura do seu

    coordenador,secretrios e dos professores.

    Ao Prof. Dr. Junot, por me ajudar a conseguir o financiamento da APLUB, sem o

    qual no conseguiria fazer esse Mestrado.

    Ao Prof.Dr. Edjece Martins, que me sugeriu incluir as concepes de Ernst

    Troeltsch, no meu projeto, me cedeu os seus livros e dedicou parte de seu tempo, para

    que pudssemos estudar o seu pensamento.

    Ao amigo Artur Garcea que me ajudou na construo do meu projeto, me

    fazendo questionamentos que me levaram a reelabor-lo.

    Ao amigo Adenilson Souza, pelo estimulo e apoio para que eu fizesse o

    mestrado.

    A Sindrnia Ktia Pereira, que me cedeu a sua monografia, bem como as suas

    fichas de pesquisa, que foram fundamentais para me orientar na busca de minhas

    prprias fontes documentais, me fazendo ganhar tempo.

    A Secretaria de Educao da Prefeitura do Recife, que me deu licena

    remunerada para realizar o Mestrado.

    A Secretaria de Educao do Estado de Pernambuco, que cedeu 50 por cento

    da minha carga horria, no Liceu de Artes de Ofcios, para me dedicar aos estudos do

    Mestrado e a pesquisa.

    Ao Diretor do Liceu, Prof. Roberto Pimentel e aos coordenadores que se

    empenharam para conseguir meu substituto, a fim de que eu pudesse me liberar o mais

    depressa possvel das aulas que foram reduzidas, bem como na montagem de um

    horrio que facilitasse os meus estudos.

  • A Gerncia de Ensino Fundamental e Mdio da Prefeitura do Recife, pela

    presteza em encaminhar os trmites burocrticos para a minha liberao.

    Aos colegas do G.T de Histria da Prefeitura do Recife, pelas palavras de apoio,

    e peo desculpas pelos transtornos que causei, pois o mestrado me afastou da

    Coordenao do G.T., aps trs meses frente do grupo, de uma gesto que seria de

    dois anos.

    Aos funcionrios do Arquivo Pblico Jordo Emerenciano e da Fundao

    Joaquim Nabuco. Meu agradecimento especial ao Setor de Microfilmagem da FUNDAJ,

    onde recolhi a maior parte dos documentos pesquisados, pela presteza dos

    funcionrios em me dar acesso aos documentos.

    Aos funcionrios da Biblioteca Central da UNICAP pelo tratamento gentil nas

    nossas visitas dirias a mesma.

    A Janana Vilela Cabral, pela ajuda na digitao e organizao grfica do meu

    projeto, apresentado ao mestrado de Cincias da religio.

    A minha esposa Estela pelo carinho e apoio constante nas horas mais difceis. E

    aos meus filhos Thiago e Natlia que suportaram o pai o tempo todo agarrado aos

    livros, roubando-lhes diariamente o tempo que lhes devia ser dedicado. E disputando

    diariamente o computador, que eles queriam para se divertir e eu para estudar.

    Ao Prof.Dr. Ferdinand Azevedo pelos livros que me cedeu e pelo cuidado com

    que leu meus textos e pelas sugestes que me deu para melhorar meu trabalho.

    Ao Prof. Dr. Joo Luis Correia pelo apoio e pelas sugestes que deu ao meu

    trabalho.

    A todos aqueles que contriburam, de forma direta ou indireta, para a realizao

    desta dissertao e que no foram mencionados.

  • O fato religioso, seja o que for que se pense a respeito de suas origens e de seu contedo, constitui um aspecto importante da vida das sociedades contemporneas, contribuindo para especific-las.[...] a crena religiosa seria apenas o reflexo do fato de se pertencer sociedade, a expresso de uma solidariedade com uma certa ordem, ou teria uma existncia autnoma, irredutvel a outros fenmenos? (Ren Rmond)

  • RESUMO

    O objetivo desta dissertao foi compreender os embates sociais entre catlicos

    e protestantes nas dcadas de 1860 e 1880, no Recife. Analisamos os discursos

    produzidos nos jornais da poca, O Jornal do Recife e O Cathlico.

    Este estudo levou em considerao os acontecimentos scio-econmicos,

    polticos e culturais do Brasil e do mundo na segunda metade do sculo XIX. Essas

    mudanas colocaram em cheque a prtica religiosa da Igreja no Brasil, obrigando-a a

    transitar para um outro modelo: o ultramontano.

    A tentativa de enquadrar o catolicismo popular (uma seita catlica) ao modelo

    ultramontano, no foi bem sucedida e levou uma parte dessas pessoas para o universo

    protestante. Em Pernambuco (1842), surgiu um protestantismo negro atravs do

    movimento do Divino Mestre, uma seita protestante. Esse movimento liderado por um

    negro, que alfabetizava os seus seguidores, e rejeitava as tradies catlicas, trouxe

    pavor elite poltica da provncia. O governo temia uma revolta semelhante aos mals

    da Bahia ou uma revoluo como a do Haiti.

    O protestantismo missionrio no ameaava as bases econmico-sociais da

    provncia, por isso foi bem recebido, pelos maons e pelos liberais. Mas a atividade

    missionria protestante se desenvolveu entre mestios, mulatos e negros.

    Os embates da f estudados aqui ocorreram na mdia, atravs dos jornais. Os

    protestantes aproveitaram as polmicas nos jornais, como estratgia para ocupar

    espaos institucionais aos quais no tinham acesso. Dessa forma, conseguiram o apoio

    daqueles que se opunham a Igreja, aproveitando o clima proporcionado pela questo

    religiosa no Imprio.

    Palavras-chave: Protestantismo, Igreja, poder, experincia religiosa, mdia

  • .

    ABSTRACT

    This work aimed to understand the social problems involving Catholicism and Protestantism, during the 1860s and 1880s, in Recife. Weve observed all the speeches

    presented in newspapers by that time,specially in Jornal do Recife and O Cathlico.

    This study considered the social, economical, political and cultural events in

    Brazil and in around the world, in the second half of the 19 th century. These changes

    made the religious practice become weak in Brazil, forcing it to change its model to the

    ultramontane.

    The attempt to make the popular Catholicism become an ultramontane model

    didnt succeed and most people were taken to the Protestant universe. In Pernambuco

    (1842) a Negro Protestantism rose because of a Protestant group called Divino

    Mestre. That movement had a negro as their leader, and he taught his followers how to

    read also rejected the Catholic tradition. All the local Protestantism feared him. The

    government was afraid of a rebellion similar to the Mals in Bahia or another like the

    one in Haiti.

    The missionary Protestantism didnt threaten the local economy and the social

    bases, so it was welcomed by the masons and liberals. However, the Protestant

    missionarys activity developed among, half-blood people and Negroes.

    All the incidents involving faith, which were studied here, were in the media, in

    newspapers. Protestants used the polemic presented by newspapers as strategies to

    occupy institutional spaces to which they didnt have access before. This way, they got

    the support of those who were against the Church and took advantage of the situation

    provided by the Religious matter in the Empire.

    Key-words Protestantism, church, power, religious experience . media

  • SUMRIO 1 INTRODUO 12 2 CATLICOS E PROTESTANTES NO BRASIL DO SCULO XIX 22 2.1 Sob a Marca da Diversidade: Protestantismo no Sculo XIX 35 3 SER CATLICO E SER PROTESTANTE 46 3.1 A Experincia Religiosa Catlica 47 3.2 A Experincia Religiosa Protestante 60 4 OS EMBATES DA F NA MDIA DO SCULO XIX 69 4.1 A Imprensa da F: Jornal O Cathlico 74 4.2 A Imprensa Liberal: Jornal do Recife 82 5 CONSIDERAES FINAIS 91 6 REFERNCIAS 95

  • 12

    1 INTRODUO

    o discurso no simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominao, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. Michel Foucault

    Com nossa dissertao, objetivamos compreender os embates sociais entre

    catlicos e protestantes nas dcadas de 1860 e 1880, no Recife. Para realizar o

    nosso intento, tomamos como referncia os discursos produzidos nos jornais da

    poca, a saber O Jornal do Recife e O Cathlico. Para realizar o nosso propsito,

    partimos dos discursos produzidos nesses jornais. Apesar de serem dois tipos de

    jornalismo diferentes, o Jornal do Recife, era um peridico secular, enquanto O

    Cathlico (era o rgo da imprensa oficial da Igreja na cidade), constatamos que a

    religio freqenta as pginas de ambos, com o mesmo nvel de importncia.

    O Jornal do Recife, por causa do seu liberalismo, procurava sempre atacar

    as posies da Igreja oficial1, em sua cruzada em defesa da cincia e da

    modernidade. Ao mesmo tempo destacava as notcias que apontavam para um

    modelo de f que convivia melhor com a cincia e que vm de sociedades bem

    mais progressistas do que a nossa: o protestantismo.

    Por seu turno, O Cathlico construiu o seu discurso, enquanto defensor da

    verdadeira f. E dessa forma se deram os embates entre esses dois modelos do

    cristianismo.

    O perodo que estudamos emblemtico, nele o mundo estava vivendo o

    que Ren Remond (1990) chamou de movimento das nacionalidades, em que se

    d a afirmao do fato nacional. Esse movimento bebeu em duas fontes: a

    Revoluo Francesa e o historicismo. A Revoluo francesa suscitou o

    1 No sculo XIX, no h uma relao muito boa entre o catolicismo e a cincia. Isso se deve ao fato de uma valorizao excessiva do saber cientfico e da negao da verdade religiosa. A Igreja Catlica sentiu bem mais esse problema por causa da universalidade de sua ao religiosa e por que no passado ameaou a ao e at a vida de cientistas atravs da inquisio. Assim, tornou-se o alvo das crticas dos cientistas e filsofos no sculo XIX (Cf. Martelli,1995). Apesar disso, no podemos afirmar que a Igreja tenha sido totalmente contrria racionalizao do saber. Mesmo entre os jesutas do sculo XIX, havia padres que se dedicavam ao estudo da cincia e no Colgio So Francisco Xavier no Recife, os jesutas ensinavam cincias (Cf. AZEVEDO,1983)

  • 13

    nacionalismo moderno, pela influncia de suas idias, isto , os princpios de 1789

    (liberdade, igualdade, fraternidade). A segunda forma de sua influncia foi o

    exemplo da nao francesa enfrentando a Europa coligada dos soberanos,

    mostrando o que pode o patriotismo da grande nao, como os prprios

    franceses se chamam a si mesmos (RMOND,1990,p.153). O historicismo

    inspirou a tomada de conscincia dos particularismos nacionais: o historicismo d

    maior nfase singularidade dos destinos nacionais, afirmao das diferenas;

    e prope aos povos um retorno ao passado, o culto de seus particularismos, uma

    exaltao de sua especificidade (idem,p.154).

    As revolues de 1848 na Europa, influenciaram o mundo. Rmond

    afirmou: quando se fala, a esse propsito, de primavera dos povos, quer fazer-se

    referncia ao mesmo tempo emancipao nacional e afirmao da soberania

    popular(idem,159).

    Na segunda metade do sculo XIX, o Brasil passava por um processo de

    modernizao, que se iniciou em 1808, com a abertura dos portos ao comrcio

    mundial, especialmente o ingls. Nessa poca, o Brasil retomou um importante

    crescimento econmico baseado no caf, cujas exportaes correspondiam a

    cinqenta por cento do total mundial (Cf. SANTOS,1994).

    Em Pernambuco, os Anais da Medicina nos mostram, que apenas 43% da

    populao chegava aos 30 anos e mesmo assim as mulheres eram a maioria

    desse grupo. A populao mais pobre sofria devido fome, a insalubridade e a

    falta de higiene. Alis, a gua potvel era um dos grandes problemas da cidade do

    Recife, o abastecimento era feito por canoeiros que comercializavam com as

    pessoas da cidade (Cf. CARVALHO,1998).

    O esprito de 1848 chegou a Pernambuco na forma de um movimento que

    foi chamado de Revoluo Praieira2. No Recife os liberais perderam os seus

    cargos para o novo grupo poltico, os conservadores (tambm chamados de

    Guabirus, uma referncia prtica da corrupo por parte desse grupo). Foi no 2 Nos referimos a Revoluo Praieira aqui, porque personagens que participaram do movimento e faziam parte da ala radical (como Abreu e Lima e Pedro Autran da Mata), estavam em pontos opostos na dcada de 60. Embora ambos tivessem razes catlicas Abreu e Lima defendendo os protestantes na questo das Bblias falsas e Autran defendendo as posies da Igreja. Abreu e Lima continuava sendo um liberal e foi nessa condio que entrou nesse embate religioso.

  • 14

    governo do deputado Herculano Ferreira Pena, 2 de outubro de 1848, que se

    iniciou o movimento, por causa das demisses das autoridades liberais da

    provncia. Os liberais quando estavam no poder tambm demitiam os

    conservadores.

    De acordo com Manoel Correia de Andrade (1995,p.6) : Na verdade, a

    maioria absoluta da populao pernambucana se contrapunha aos conservadores

    devido ao domnio que eles exerciam sobre a provncia, ao controle dos cargos

    pblicos e ao despotismo como eram tratadas as classes inferiores.

    Destacando a participao popular, Andrade afirmou que o povo viu na

    Praia a oportunidade de fazer sentir a sua presena e explodir, esperando que os

    polticos liberais estivessem altura do momento histrico,entretanto, no

    movimento tinha contradies: havia pessoas dentro do grupo que no queriam

    tocar na questo da escravido (ANDRADE,p.5).

    Os inimigos dos praieiros eram: os portugueses que dominavam o comrcio

    na cidade e os senhores de engenho que dominavam as terras do interior. O

    movimento foi alm de todos os movimentos liberais desse perodo: A Praia era

    um fenmeno tipicamente regional, olhado com desconfiana pela parte

    emperrada do Partido. esta que influi na demisso de Chicorro da Gama

    (CHACON,1979,p.22). As posies dos radicais praieiros os colocaram em rota de

    coliso com os liberais moderados (luzias) e os conservadores (saquaremas). Eles

    estavam organizados em duas alas: uma radical liderada por Borges da Fonseca e

    Pedro Ivo e a conservadora liderada por Nunes Machado e os filhos do padre

    Roma. Jos Incio de Abreu e Lima dirigia o jornal do Partido, o Dirio Novo, que

    se opunha ao Dirio Velho (Dirio de Pernambuco, ligado aos conservadores). As

    divises internas contriburam para a derrota dos praieiros. A derrota no ataque ao

    Recife e a morte de Nunes Machado muito contriburam para o fracasso do

    movimento, bem como o aumento das divergncias existentes entre os

    monarquistas liberais e os republicanos.

  • 15

    No sculo XIX a Igreja Catlica passava por uma transio, com a

    implantao do ultramontanismo3 e seu alinhamento com Roma, ao passo que

    buscava autonomia em relao ao governo imperial.

    A nossa proposta foi mostrar que os conflitos entre catlicos e protestantes:

    contriburam para que a Igreja construsse uma identidade catlica, que passou a

    ser necessria no momento em que se deu o conflito, a disputa pelo rebanho.

    na condio de religio hegemnica,o catolicismo, no precisava elaborar e

    difundir uma identidade religiosa para os seus fiis: pois ser catlico era antes

    uma condio civil: ser brasileiro era igual a ser catlico.

    medida que comeou a perder seus fiis, mesmo que de maneira muito

    tmida, a Igreja precisou construir um discurso para provar de maneira cabal, a

    sua superioridade em relao s igrejas protestantes.

    Entretanto, considerando-se a importncia dos ingleses e depois dos

    americanos em suas relaes comerciais com o Brasil, bem como a sua presena

    no territrio brasileiro, atravs de empresas de servios (ferrovirios, luz e gua),

    casas bancrias, no setor de exportao e importao e, levando-se em

    considerao suas relaes com o governo imperial no cabia desqualificar a

    sua f (protestante) de maneira irresponsvel. Assim a Igreja desqualificou a

    apostasia, isto , aqueles que nascidos catlicos tornaram-se protestantes,

    respeitando aqueles que eram de origem protestante. Da podermos afirmar que,

    no se constri nenhum discurso, mesmo religioso, descolado das realidades

    materiais, das relaes que se estabelecem na sociedade. Um discurso produzido

    alienado da sociedade, faz com que a instituio que o produziu perca sentido e

    desaparea.

    O movimento do Divino Mestre4 corrobora o que afirmamos anteriormente.

    A sua seita, radicalizando em sua contestao Igreja oficial e escolhendo como

    adeptos apenas os negros, desconsiderou as caractersticas multirraciais e

    3 ULTRAMONTANISMO foi um termo usado desde o sculo XI para descrever cristos que buscavam a liderana de Roma, ou que defendiam o ponto de vista ou davam apoio a sua poltica (VIEIRA,1980,p.32) 4 Agostinho, um negro, aps ter uma viso divina, organizou uma seita que rejeitava a liturgia e os santos catlicos. Ele lia e pregava o Evangelho em pblico e chegou a alfabetizar os seus fiis para que tambm pudessem l-la.

  • 16

    multiculturais de nossa sociedade. Assim foi rejeitada pelos brancos e mestios

    estando fadada ao fracasso, isto , a sua no permanncia, no universo religioso

    brasileiro.

    O alvo do nosso estudo foram os intelectuais da Igreja Catlica (padres e

    bispos) e os intelectuais das igrejas Protestantes. Procuramos compreender como

    esses dois tipos de sacerdotes se representavam dentro da sociedade em que

    viviam e a partir dos papis que representavam.

    O conceito de poder aqui utilizado como sendo uma prtica social,

    formada historicamente. A religio vista como uma forma de poder diferente do

    Estado mas articulada a ele. O poder tambm circular, no est localizado em

    um lugar especfico ,mas est presente em todas as relaes que se estabelecem

    na sociedade. O poder possui uma eficcia produtiva, uma riqueza estratgica,

    uma positividade. (FOUCAULT,1996,p.16) E por isso que tem como alvo o

    corpo humano, objetivando o seu aprimoramento, o seu adestramento,

    transformando-o em um corpo dcil, como afirmava Foucault (Cf.1993).

    Outro conceito fundamental para o nosso trabalho o de experincia

    religiosa. Vejamos o que Meslin nos diz:

    A noo de experincia religiosa constituiu uma das palavras-chaves de toda a anlise do fenmeno religioso, mas ela esconde uma tal ambigidade que necessrio definir o que entendemos quando a utilizamos (MESLIN.1992.p.85).

    A palavra experincia geralmente est vinculada ao campo das cincias

    exatas. Desde o sculo XVII, experincia entendida como um conhecimento que

    confivel, porque pode ser repetido, desde que as mesmas condies que o

    produziram possam ser totalmente recriadas. Dessa maneira, o conhecimento que

    vem da experimentao pode ser provado.

    Entretanto, quando se trata do sagrado,a experincia no pode ser

    repetida, no depende da vontade do homem religioso e de natureza pessoal.

  • 17

    Para Joachin Wach (1898-1955), a religio a experincia social do

    sagrado. A experincia religiosa produz um conhecimento de tipo experimental,

    que no anula o entendimento nem elimina toda forma de racionalidade

    Wach procurou harmonizar a perspectiva fenomenolgica de Rudolf Otto, que v o

    fenmeno a partir de dentro, com a abordagem dos clssicos da sociologia, que

    consideram o fenmeno a partir de fora.

    Enquanto Durkheim e Weber:

    colocam a questo da experincia religiosa dentro de um interesse fundamentalmente orientado para problemticas sociais, ou seja extrnseco, Wach, ao contrrio, tende a interpretar o desenvolvimento social da experincia religiosa dentro de uma pr-compreenso fundamentalmente religiosa, ou seja, intrnseca ao prprio fenmeno.(MARTELLI,1995,p.172).

    Wach, entende que apenas quem teve uma experincia religiosa autntica

    capaz de reconhecer, na pesquisa histrico-social, o que autenticamente

    religioso. Porm, quais so as caractersticas de uma experincia autntica?

    Primeiro, ela uma resposta para aquilo que se experimenta como

    realidade ltima. A experincia religiosa uma resposta total de todo o ser. Ela a

    experincia mais intensa que o ser humano capaz de fazer. E por fim, implica

    numa dimenso prtica, ela impulsiona o homem a agir.

    As nossas fontes (O Jornal do Recife e O Cathlico), foram pesquisadas na

    diviso de microfilmagem da Fundao Joaquim Nabuco (FUNDAJ). Elas no

    foram concebidas como reproduo fiel da realidade, mas como representaes

    construdas pelos diversos grupos religiosos, dentro de uma conjuntura

    socioeconmica , poltica e cultural

    O procedimento terico-metodolgico adotado para lidar com a

    documentao, baseou-se na analise do discurso, a partir das concepes de

    Michel Foucault. Entendemos que a produo do discurso em todo tipo de

    sociedade: ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e

    redistribuda por certo nmero de procedimentos que tm por funo conjurar seus

    poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatrio, esquivar sua pesada e

    temvel materialidade (FOUCAULT,2006,p.8-9)

  • 18

    Os discursos religiosos so produzidos a partir de uma vontade de verdade que se apia nas instituies, as quais so a origem dos discursos. Para Foucault,

    esses discursos: indefinidamente, para alm de sua formulao, so ditos,

    permanecem ditos e ainda esto por dizer (FOUCAULT,2006,p.22). Por isso,

    resolvemos estud-los, porque entendemos que os embates continuam. Hoje, eles

    se do de outra forma, porque o ser catlico e o ser protestante tambm

    mudaram.

    No nosso cotidiano a liberdade religiosa uma prtica comum, os

    protestantes hoje so quase 20% da populao e continuam crescendo de forma

    espantosa, em suas vertentes: tradicional, pentecostal e neopentescostal, seus

    templos hoje so maiores do que as baslicas catlicas e contam com elementos

    tecnolgicos como :ar condicionado,data-show, cultos on line pela internet e

    garagem para acomodar os carros da classe mdia, que no tem vergonha de

    anunciar sua f em tshirts, e adesivos pregados nos vidros de seus carros. Tudo

    isso em pouco mais de cem anos. um fenmeno digno de ser estudado e que

    vem sendo objeto de muitas pesquisas em nosso pas.

    Na primeira parte do nosso trabalho, tratamos do catolicismo e do

    protestantismo nos sculos XVIII e XIX. Discorremos sobre as bases polticas e

    religiosas do catolicismo no Brasil.

    No sculo XVIII, o catolicismo estava inserido no modelo da igreja-

    Cristandade (um modelo ainda medieval), que identificava religio com sociedade:

    no h autoconscincia de Igreja como Igreja, mas sim como sociedade global

    (HOORNAERT,1983,p.246).

    No sculo XIX, a Igreja no Brasil transitou para o modelo ultramontano,

    procurando livrar-se da tutela do Estado, enquanto procurava vincular-se a Roma.

    E junto com essa transio veio a questo religiosa, que abalou o governo de D.

    Pedro II.

    Enquanto procurava enquadrar o seu rebanho ao novo modelo,

    submetendo a religiosidade popular aos ditames da hierarquia, eis que chegaram

    os protestantes, representando uma ameaa potencial Igreja.

  • 19

    Na segunda parte da nossa dissertao, estudamos o ser catlico e o ser

    protestante, isto , a experincia religiosa.

    Em relao ao catolicismo, percebemos a liderana no processo de

    construo do novo modelo, tambm chamado de Igreja hierrquica, segundo os

    moldes do Conclio de Trento. John OMalley (2000, p.7) falando sobre Trento

    afirmou:

    Change, that is,reform, is crucial to Catholicism in this period. When historians apply the term to Catholicism, however, they generally do so without telling us with any precision what the concept means in this new context, so that it sometimes seems to stand for something quite specific, like disciplining bishops and pastors of parishes to do their jobs, and sometimes for something as global as a Great Awakening.5

    Levando em considerao que uma identidade construda ou reconstruda

    em oposio ao outro. Trento foi o despertar da Igreja para elaborar um novo

    modelo. Citando o pensamento de Hubert Jedin, OMalley afirmou que Trento foi

    importante por que marcou um novo perodo para a histria da Igreja: um perodo

    de transio (Cf. OMalley). Ele questionou em seu livro (Trent and all that) o que

    na Igreja Catlica causou a Reforma? E ele mesmo respondeu: os abusos de

    todos os lados (protestantes e catlicos). Para ele o zelo pela reforma no estava

    no papado, com exceo de Paulo IV e Pio V. A paixo pela reforma da Igreja

    estava nos oficiais eclesisticos:bispos e arcebispos. Podemos explicar isso pelo

    fato destes agentes da hierarquia estarem mais prximos dos conflitos, do que os

    papas.

    No Brasil , esse modelo exigiu que se fizesse a reforma do clero, afastando-

    o das atividades polticas e exigindo o cumprimento do celibato eclesistico. A

    Igreja no Brasil tambm agiu no intuito de coibir todos os abusos, que levavam a

    um distanciamento dessa Igreja em relao a Roma.

    5 Mudana, isto , areforma foi crucial para o catolicismo neste perodo. Quando historiadores aplicam esse termo ao catolicismo, como sempre, eles geralmente o usam sem eficcia, sem preciso e no esclarecem o que este conceito significa nesse novo contexto;assim s vezes parecem ficar perto de algo especfico, como bispos disciplinadores e padres de parquia fazendo o seu trabalho, e s vezes se referem a alguma coisa global como um Grande Despertar. (Traduo Nossa).

  • 20

    O episcopado passou a ter uma ao direta e sistemtica sobre a Igreja,

    para separar o sagrado do profano, para elevar o nvel da formao religiosa do

    povo, enfim, para centralizar o poder espiritual na Igreja, removendo-o dos

    espaos em que ele escapava ortodoxia da mesma.

    Os protestantes trazem consigo o ascetismo intramundano. Todo crente

    um sacerdote, por isso precisa: ler a Bblia, viver uma vida de santidade no

    mundo, para que o seu exemplo possa trazer outros para a salvao.

    A experincia religiosa protestante procurou juntar a forma (o culto e suas

    expresses) ao contedo (pois o homo religiosus protestante precisava ter uma

    base doutrinria, para que ele pudesse expor com segurana a razo de sua f).

    Aqui tomamos as concepes de Ernst Troeltsch (1865-1923) sobre Igrejas e

    seitas. Para ele cada um desses tipos-ideais tinha uma relao tpica com a

    sociedade. Troeltsch mostrou que a Igreja tende a universalidade, isto , tem a

    mesma extenso da sociedade;acolhe todas as pessoas e lhes distribui os meios

    de graa. Para ele a Igreja tem uma funo integradora reforando a coeso e a

    ordem social. Outras caractersticas so a tolerncia tica, pertena por

    nascimento, tendncia adaptao e ao compromisso, o universalismo

    expansionista , a estrutura hierrquica interna, que leva ao desenvolvimento de

    status e papeis diversificados. Quando nos referirmos Igreja estaremos falando

    sobre a Igreja Catlica, isto , uma instituio formada por papas, bispos, padres,

    os aparatos usados pelos homens da Igreja, as ordens seculares, as ordens

    regulares, bem como o pensamento que governa a Igreja.

    A seita adota um comportamento intransigente para com o mundo,

    rejeitando comportamentos e instituies da sociedade a qual pertence pois os

    considera pecaminosos. Os textos sagrados devem ser obedecidos a partir de

    uma interpretao literal.

    Os componentes da seita no tm compromisso com o mundo, por isso se

    isolam da sociedade, esperando a volta do Reino de Deus. A seita elitista, tem

    carter voluntrio e os membros buscam a perfeio individual e ao ascetismo. A

    seita hostil ao Estado ou indiferente a ele.

  • 21

    No mundo protestante h um controle meticuloso do lder sobre a

    membresia e desta sobre o sacerdote. Todos precisam ter uma vida exemplar.

    Assim como dizia Foucault preciso vigiar e punir.

    Na terceira parte do nosso trabalho, o foco foi os embates entre a liderana

    catlica e protestante, atravs dos jornais. Nele passamos a analisar os discursos

    produzidos na mdia do sculo XIX.

    Percebemos que catlicos e protestantes utilizaram a mdia de forma

    competente. Entretanto, procuramos mostrar que esses conflitos atravs dos

    jornais, abriram um espao institucional que os protestantes no tinham .

    Os protestantes limitados a pregar dentro de casas sem aparncia de

    templo, no podendo dispor do espao pblico, que era dominado pela Igreja, no

    que Hoornaert chamou de catolicismo ostensivo (das festas, das procisses),

    ganham atravs da polmica nos jornais, um espao para divulgar a sua f de

    maneira livre; e o aproveitam contando com a simpatia dos setores mais

    progressistas da sociedade brasileira: liberais e maons.

    Entendemos que a histria uma reinveno do passado e que essa volta

    ao passado se d a partir dos questionamentos do presente. Assim jamais

    esgotaremos o nosso tema. E outros questionamentos levaro a outros leituras

    dos mesmos documentos que trabalhamos, bem como outras abordagens

    conceituais traro outras contribuies, para o entendimento dos embates entre

    catlicos e protestantes no Brasil.

  • 22

    2 CATLICOS E PROTESTANTES NO BRASIL DO SCULO XIX Neste captulo pretendemos analisar como catlicos e protestantes construram sua f no Brasil. Sero ressaltadas as bases polticas, econmicas,

    sociais e culturais atravs das quais, disseminaram sua f.

    Demonstraremos como era a Igreja Catlica nesse perodo, a implantao

    de um outro modelo de Igreja (ultramontano) que representou a chegada do

    Conclio de Trento ao Brasil. Ao mesmo tempo trataremos da vinda dos pioneiros

    protestantes ao Brasil , trazendo consigo uma outra cultura e um outro modelo de

    f crist, mais apropriado a modernizao que era desejada pelo Estado brasileiro.

    2.1 Por Um Catolicismo Ultramontano

    Apesar de comportar em si mesma uma grande diversidade, a tradio crist catlica sempre foi capaz de conciliar e envolver essa diversidade com a vigorosa unidade que se manifesta, por exemplo, no plano institucional (MENDONA,2002,p.12)

    Hoje quando pensamos a Igreja Catlica no Brasil nos ocorre uma idia do

    seu poder como algo hegemnico, um bloco monoltico. Entretanto, isso um

    engano. Quando lanamos um olhar sobre a mesma nos sculos XVIII e XIX, no

    esse o quadro que vemos. Sendo assim,o nosso objetivo demonstrar como a

    Igreja Catlica se relacionava com a sociedade de seu tempo, influenciando e

    sendo influenciado por ela.

    Nos sculo XIX, a Igreja catlica no Brasil est em crise

    A necessidade de pr um paradeiro ao rtmo de decadncia que atingia a Igreja em todos os setores de sua organizao e de sua pastoral impunha-se como imprescindvel e urgente aos olhos daqueles que viam e analisavam a situao eclesistica sem partidarismo. (LUSTOSA,1985,p.10).

  • 23

    O que era exatamente essa crise?

    Em primeiro lugar, essa crise ligava-se desagregao da herana

    colonial, como diagnosticou Srgio Buarque de Holanda(Cf.1999). Politicamente

    havia o questionamento do absolutismo monrquico, que em Portugal, no perodo

    pombalino, tomou a forma de despotismo esclarecido; com o advento da

    Revoluo Francesa, crescia na Europa um movimento que exigia a

    implementao de monarquias constitucionais. No podemos deixar de mencionar

    que o governo de Napoleo continuou trazendo instabilidade s cabeas coroadas

    da Europa. Por outro lado, a economia mercantilista v-se ameaada pelo livre

    comrcio e pela primeira fase da revoluo industrial que lanava as bases do

    capitalismo industrial. Assim:

    O sistema colonial se deteriorava de alto a baixo. A prpria rede de relaes sociais alterava os papis, os lugares e os laos de seus membros e os novos segmentos sociais emergentes, sobretudo a burguesia, exigiam mudanas nos quadros da sociedade. (LUSTOSA,1985,p.11).

    As mudanas polticas e econmicas foram acompanhadas por mudanas

    sociais (o surgimento de novos atores sociais), bem como por mudanas de

    comportamento e de mentalidade:

    No era sem motivos que, consciente do alto preo a pagar nos riscos das mudanas sociais, a Igreja via, com restries, a penetrao do iderio dos Ilustrados no qual a maioridade da razo, proclamada e defendida outrance6, levantava questes delicadas para o estatuto da religio em uma sociedade secularizada, com o perigo mesmo de um reducionismo religioso que, passando pelo desmo7, poderia chegar s fronteiras do tesmo8 materialista. (LUSTOSA,1985,p.11).

    6 Exageradamente (traduo nossa) 7 Desmo doutrina que professa a existncia de Deus, princpio de todo o existente, segundo a razo natural, ao mesmo tempo que exclui a revelao sobrenatural. Foi condenado pela Igreja, devido ao segundo aspecto.( AQUILINO,1994) 8 Tesmo doutrina que admite a existncia de um Deus pessoal, causa do mundo. Para Kant, a doutrina que afirma poder determinar por analogia a natureza de Deus.(LALANDE,1999,p.1111)

  • 24

    O quadro geral descrito acima, tambm pode ser aplicado ao Brasil. Em

    1808, a famlia real portuguesa chegou ao Brasil, fugindo da invaso francesa a

    Portugal. Dessa maneira, o Brasil tambm tomou novos rumos polticos: deixou de

    ser colnia de Portugal e passou a ser Reino Unido. A abertura dos portos trouxe

    a liberdade econmica que oxigenou a economia, mas tambm trouxe os ingleses

    e sua predominncia sobre os negcios do Brasil. Essa relao concedeu aos

    britnicos o privilgio de poder trazer a sua f ao pas e de ter as suas prprias

    Igrejas.

    Paralelamente a implementao de uma nova f, percebe-se que o clero

    diocesano era despreparado para a ao pastoral: Padres ignorantes, sem

    formao teolgica suficiente, desprovidos de recursos e estmulos para sanar as

    deficincias culturais,havia-os por toda a parte. (LUSTOSA,1985,p.12). Dessa

    forma, o devoto tinha um atendimento espiritual precrio e faltavam sacerdotes

    para cuidar do rebanho.

    A Igreja Catlica no Brasil era refm do Estado: pela instituio do

    padroado, o rei de Portugal (no sc. XVIII) e o imperador do Brasil (no sc. XIX)

    tinha poderes sobre a Igreja. Assim cabia ao Estado o recolhimento de dzimos, o

    pagamento das cngruas do clero (que eram muito mal remunerados) e at o

    direito de permitir ou no que uma encclica papal ou qualquer outro documento

    chegasse ao conhecimento dos fiis. Assim h ausncia de estruturas

    independentes e a necessidade de financiamento (realizado ora pelo Estado, ora

    por instituies privadas). O Estado fiscalizava os religiosos, vigiava o ingresso

    dos novios, concedendo licenas limitadas para o acesso dos candidatos ao

    noviciado. O Estado : Ficava de olho nas fazendas e bens prprios das Congregaes, alis inmeros e valiosos, que passariam para o Estado pela lei de mo-morta9 [...] Sob o ponto de vista organizacional, a Igreja no Brasil vinha sentindo a necessidade de uma ampliao ou multiplicao dos centros de deciso(as circunscries eclesisticas). Reivindicada vrias vezes, a

    9 MO MORTA na legislao antiga, era um princpio segundo o qual no podiam ser alienados os bens pertencentes a corporaes ou instituies religiosas, beneficientes ou culturais, por constituirem um patrimnio morto (bens de mo morta). Esse princpio, segundo o qual tais bens mortos no podiam mudar de mo, foi abolido pela Constituio da Repblica (MAGALHES,p.570).

  • 25

    reestruturao das bases fsicas do Governo da Igreja foi sempre deixada margem. (LUSTOSA,1985,p.12).

    Em face do exposto,podemos perceber que, as deficincias na organizao

    e na adminstrao repercutiram na pastoral. Apesar de tudo isso, ser catlico era

    uma obrigao para todos os brasileiros (fossem eles amerndios, afro-brasileiros

    ou cristos-novos): O nosso ponto de partida o seguinte: o catolicismo brasileiro assumiu nos primeiros sculos de sua formao histrica um carter obrigatrio. Era praticamente impossvel viver integrado no Brasil sem seguir ou pelo menos respeitar a religio catlica.(HOORNAERT,1991,p.13).

    Eduardo Hoornaert, destaca tambm a interferncia que a inquisio

    portuguesa teve sobre a evoluo do catolicismo brasileiro, embora essa

    influncia tenha sido indireta pelo fato de que no Brasil no houve Tribunal do

    Santo Ofcio. Dessa maneira praticar o catolicismo no Brasil resultou desse

    influxo:

    A inquisio ajudou poderosamente a formar (ou deformar) a conscincia catlica no Brasil, criando a impresso de que todos so catlicos da mesma forma, obedecendo s mesmas normas e lutando contra os mesmos inimigos. O catolicismo o cimento que une a nao, o lao que prende a todos, o local de reunio e confraternizao entre as raas as mais diversas que compem a nacionalidade: afirmaes como essas se repetem de gerao em gerao, embora elas paream bastante levianas para quem sentiu o clima de medo e de represso existente na colnia [...] (HOORNAERT,1991,p.14).

    O clima de medo criado pelas denunciaes, visitaes , deportaes,

    represses e confiscos, teria levado os brasileiros a reagir de maneira inteligente,

    criando o que Hoornaert chama de catolicismo ostensivo, praticado em lugares

    pblicos, bem pronunciado e cheio de invocaes ortodoxas a Deus, Nossa

    Senhora, os santos: Todos tinham que ser muito catlicos para garantir a sua

    posio na sociedade, e no cair na suspeita de heresia

    (HOORNAERT,1991,p.16).

  • 26

    Assim havia uma frmula adequada para se referir ao sagrado: ao falar da

    Igreja, dizia-se a Santa Madre Igreja, ao se referir a f devia-se dizer: A Santa

    F, ao falar na missa era preciso dizer O Santo Sacrifcio da Missa:

    Todos se esforavam a pronunciar de maneira certa as expresses recomendadas, e finalmente acreditaram em tudo o que cr a Santa Madre Igreja. Era o jeito.[...] Originou-se desta maneira o formalismo tpico do catolicismo brasileiro: as formas tinham que ser catlicas, a todo o custo. (HOORNAERT,1991,p.16-17).

    Percebe-se ento que, se houve muito cuidado com a forma, o contedo

    escapou ao controle do Santo Ofcio. Este fato permitiu a sobrevivncia de

    expresses religiosas tpicas do Brasil amerndio e afro-brasileiro atravs do

    sincretismo religioso. Logo, se a representao do catolicismo aparecia como algo

    formalmente unificado, a sua prtica cotidiana aparece em uma verso

    multifacetada que permite que se veja a diversidade do ser catlico no Brasil.

    Boa parte do que se convencionou chamar de Igreja se integrou na famlia

    e no cl patriarcal ou tornou-se parte da famlia rural como o caso do segundo

    filho que era designado para ser padre. Nas reas rurais as missas eram

    celebradas ou na capela da casa-grande ou na Igreja da comunidade que havia

    sido construda com o financiamento desta.

    O padre era pago pela famlia patriarcal e dela recebia o seu sistema de

    valores. Eni de Mesquita Samara (1991,p.11-12) expressa bem o nvel de

    importncia da famlia patriarcal na sociedade brasileira:

    O controle exercido por esses grupos (familiares) sobre a vida econmica e poltica de muitas vilas brasileiras refora a idia de que a famlia do tipo patriarcal da forma como descrita na literatura podia ser considerada como uma instituio monoltica possuindo fins comuns. Segundo essa concepo, a Igreja, o Estado e as Instituies econmicas e sociais eram afetados e at muitas vezes controlados pela influncia de certas famlias ao nvel local.

    Partindo do quadro descrito acima, um dos problemas comuns encontrados

    no clero era a sua imoralidade (relatada por viajantes estrangeiros, presente nas

    crticas de bispos, ou dos jesutas).Thomas Bruneau, argumenta que vivendo com

  • 27

    a famlia patriarcal e recebendo dela os seus valores, que no lhe negavam a

    companhia feminina (concubinas, comadres ou primas), esses padres no

    poderiam ter um comportamento diferente. Citando Caio Prado, Bruneau pergunta:

    Estava a sociedade colonial equipada para produzir um clero eficiente, de altos padres morais, capaz de satisfazer as sublimes exigncias de sua formao? E ele mesmo responde que isso seria possvel [...] se o clero tivesse uma organizao que o controlasse e o sustentasse (BRUNEAU,1974, p.40).

    Assim, na falta dessa organizao o padre aceitou a sociedade e viveu nela

    ou foi expulso dela (quando, por exemplo: criticou as suas irregularidades

    sexuais).

    As relaes da sociedade com a Igreja e a religio nas cidades no

    reduziram a influncia da famlia rural, nem ajudaram a desenvolver a autoridade

    central da Igreja. Assim, se no campo era a famlia rural que influenciava a Igreja,

    nas cidades essa funo era desempenhada pelas irmandades.

    As irmandades eram associaes civis-religiosas de leigos, que se

    organizavam voluntariamente para fins piedosos ou caridosos. Algumas tinham

    finalidade puramente religiosa, como a celebrao da festa do santo padroeiro.

    Outras tinham um carter corporativo reunindo pescadores, sapateiros, militares.

    E ainda havia aquelas que tinham uma configurao racial reunindo apenas

    negros, outras existiam principalmente para construir igrejas. Ainda podemos

    destacar aquelas que se dedicavam a uma obra social (ex: as Santas Casas de

    Misericrdia, que serviam como hospitais. construdas e administradas por

    irmandades). Assim, as irmandades eram organizaes da sociedade civil, que

    no apenas apresentavam um carter religioso, expandiam a sua prtica para

    uma ao social que hoje o Estado entende ser sua funo.

    Atravs dos conventos, das parquias, das irmandades e confrarias formou-se uma sociedade na qual ningum escapava necessidade de apelar para instituies religiosas: para conseguir emprego, emprestar dinheiro, garantir sepultura, providenciar dote para a filha que queria casar-se, comprar casa, arranjar remdio. (HOORNAERT,1991,p.18).

  • 28

    Por causa do padroado10, a Igreja dependia dos dzimos e da cooperao

    do Estado para construir suas edificaes, necessitava tambm das famlias (nas

    zonas rurais) que construam as suas capelas ou a Igreja da comunidade; ainda

    carecia das irmandades (nas cidades) que construam as Igrejas e pagavam o

    salrio do padre.

    O padre poderia ser empregado da irmandade, um funcionrio pblico,

    recebendo a sua cngrua do Estado11, um membro da famlia fazendeira ou um

    padre encomendado, que era sustentado pelo bispo.

    As irmandades adotavam um estilo prprio, estavam sempre preocupadas

    com procisses, Igrejas ricas e cerimnias elaboradas. O foco de sua ao era a

    celebrao da festa do padroeiro. Como havia muitas irmandades praticamente

    todo dia do ano era dia de festa para alguma delas. Elas competiam entre si

    acerca de quem faria a melhor festa (lugar de suntuosas manifestaes externas,

    grandes festividades, barulho e fogos de artifcio), em que o sagrado12 se

    encontrava com o profano13.

    As diverses populares eram poucas, e as procisses religiosas com vestimentas alegres e ricas decoraes, com seus mascarados, msicos e danarinos, satisfaziam a necessidades sociais que hoje so supridas pelos sales de dana, teatros e cinemas. (BRUNEAU,1974,p.41).

    Da mesma maneira que a Igreja foi integrada na famlia nas zonas rurais e

    afetada por seus valores, ela foi influenciada nas cidades pelas irmandades. Fica 10 O PADROADO um conjunto de direitos e privilgios concedidos pela Santa S aos reis de Portugal. Atravs dele os reis receberam o direito de:a)nomear bispos, conferir benefcios eclesistico;b)conceder ou recusar o Placet (consentimento de publicidade) aos decretos dos conclios, cartas apostlicas e qualquer outro documento eclesistico;c)receber os dzimos das Igrejas pertencentes Ordem de Cristo (Santiago , Aviz e a maioria das igrejas do Brasil. Em 1550 o papa Jlio III uniu in perpetuum os mestrados das Ordens de Cristo, Santiago e Aviz Coroa portuguesa, passando o Padroado do Ultramar e do Continente aos reis de Portugal (Cf.AZEVEDO.2007). Artigo cedido pelo prof. Ferdinand Azevedo, ainda est no prelo. 11 PADRE COLADO era aquele que recebia a cngrua do Estado 12 SAGRADO- aquilo que transcende a razo humana e resiste a qualquer reduo racional.O sagrado apresenta-se como o inteiramente Outro: o mistrio que fascina o homo religiosus.(Cf.BIRCK.1993). 13 PROFANO- aquilo que comum, corriqueiro; tudo o que no est associado ao divino profano.(Cf.ELIADE.1995.)

  • 29

    evidente assim que o poder que aparentemente se concentrava na Igreja Catlica

    no Brasil, nesse perodo, circulava em outras esferas da sociedade civil, que se

    relacionavam com ela. Por isso no havia um corpo de doutrina e crena puro e

    preso, afirmou Bruneau (1974). Logo , o que foi decretado no Conclio de Trento,

    tinha pouca importncia para o Brasil.

    Em relao disciplina, as ordens religiosas (clero regular) devido ao

    controle de suas lideranas eclesisticas, viviam mais prximo dos padres morais

    da Igreja, do que o clero secular. E aqui se confirma a afirmao de Bruneau,

    sobre a frouxido moral do clero. Seguindo as constituies de suas ordens e

    vivendo sobre os limites traados por elas (beneditinos, franciscanos, carmelitas,

    capuchinhos, oratorianos, e principalmente , os jesutas), foram realizando a sua

    misso.

    Por sua importncia destacaremos os jesutas: fundaram escolas,

    catequizaram os ndios, desenvolveram novos mtodos de ensino, reformaram

    outros membros do clero e no se integraram sociedade, mas faziam a sua

    crtica ao relaxamento moral dos padres seculares e condenavam a explorao

    dos ndios. Os jesutas [...], compromissados com o Papa, mergulhados na disciplina e na obedincia, imbudos da pureza doutrinria que faltava a maioria dos seculares, que no caiu nas malhas do modelo de Cristandade (por eles suplantada) e que no sofreu falta de organizao central e de coordenao (BRUNEAU,1974, p.43).

    Os jesutas estavam diretamente ligados Roma, sendo orientados por ela.

    A Companhia de Jesus como as outras ordens religiosas, tinham uma fraca

    relao com a coroa (mas era uma relao de cooperao). A sua maneira de

    atuar no campo poltico lhe trouxe muitos inimigos. Foram expulsos do Brasil e

    Portugal em 1759, com a mudana dos objetivos da Coroa portuguesa, que sob o

    governo de Pombal colocou-se em oposio Igreja (instituio centralizada em

    Roma). Os jesutas eram o clero mais eficiente e a ordem mais numerosa.

    Com a sua expulso (dos jesutas), os projetos relativos aos ndios fracassaram, escolas se fecharam e a Igreja perdeu o que tinha de mais

  • 30

    valioso na poca. No apenas a Igreja no Brasil perdeu o maior e o melhor contingente de pessoal e de projetos, como tambm no o substituiu por outro clero. Em resumo, uma Igreja fraca, com pouca influncia, se tornou ainda mais fraca. (BRUNEAU,1974, p.44).

    O Marqus de Pombal, Sebastio de Carvalho e Melo, ministro do rei de

    Portugal, queria formar um Portugal moderno. Para realizar o seu objetivo teve

    que tomar para o Estado, o controle mantido pelos nobres, pelo papado, pela

    Igreja nacional, e pela Companhia de Jesus: Sob Pombal, a Igreja em todos os

    nveis foi mantida inteiramente sob controle e dominada pelo Estado

    (BRUNEAU,1974, p.45). Para justificar as suas aes, Pombal formulou uma

    combinao de Regalismo14-Jansenismo15, atravs dos quais ele atacava a Igreja:

    aps 1760 ele cortou as relaes com o Vaticano e expulsou o nncio apostlico.

    Atravs do regalismo o Estado passou a ter todo o poder sobre a Igreja.

    Leonard,( 2002, p.44), afirma que:

    o jansenismo impediu que o catolicismo brasileiro se transformasse rapidamente em romanismo16.Assim a sua influncia reforou o realismo oficial e a poltica anti-pontificial, atitude que foi comum tanto no reinado de D.Pedro I como no de D. Pedro II...

    A ruptura entre Lisboa e Roma, levou as Ss episcopais no Brasil, a ficarem

    vagas por muitos anos. O impasse era que Roma s podia nomear bispos com a

    indicao do Estado, e sendo assim, uma Igreja nacional no Brasil com bispos

    designado pelo poder civil seria impossvel.

    Em 1772, Pombal reorganizou a Universidade de Coimbra, acabando com a

    influncia da escolstica jesuta, e introduzindo uma teologia e uma srie de leis 14 REGALISMO doutrina que conferia aos reis o direito de interferncia em questes religiosas.(HOUAISS,2001) 15JANSENISMO- Cornlio Jansen (1585-138), era doutor da Universidade de Louvain e bispo de Yprs. Jansen, um agostiniano estabeleceu os jesutas como seus opositores e passou a ataca-los. Para ele as formas de devoes jesutas eram vazias e as suas interpretaes em rtelao ao pecado e a graa eram semipelagianas (RIBEIRO JUNIOR,1989,p.100). A importncia do jansenismo est no fato de que a teoria difundida em Portugal atacava a primazia do Papa e queria autonomia para a Igreja de Portugal. 16 ROMANISMO- foi o esforo de algumas lideranas da Igreja no sculo XIX, para centralizar de maneira definitiva o poder religioso em Roma. Houve a resistncia galicana em diversos lugares, pois esses queriam fortalecer a Igreja nacional.No caso do Brasil isso se observou durante a regncia e no Segundo Reinado (Cf.MENDONA.2002.)

  • 31

    cannicas influenciadas em grande medida pelo Regalismo e pelo Jansenismo.

    Coimbra era o centro para o qual convergiam os estudantes de nvel superior

    brasileiros (tanto leigos como clrigos). Assim houve uma pombalizao do clero,

    como afirma Bruneau :

    uma doutrinao sistemtica dos estudantes clericais, com idias liberais e falsas doutrinas que fizeram de alguns padres cmplices dceis do esquema pombalino de estabelecer em Portugal e nas suas colnias um catolicismo liberal, inimigo do Papado (BRUNEAU,1974, p.47).

    Essa influncia chegou ao Brasil, pois os bispos s eram escolhidos entre

    aqueles que estudaram em Coimbra.

    No comeo do sc. XIX, a influncia poltica da Igreja no Brasil era

    insignificante. Desde o tempo de Pombal o seu poder poltico era pequeno e os

    padres eram formados em doutrinas que o levavam a se opor a qualquer tentativa

    de aumentar o poder poltico da Igreja.

    Com a independncia do Brasil, o quadro que descrevemos no mudou. A

    Constituio de 1824 declarava que a religio catlica continuaria a ser a religio

    do Imprio. O Imperador era a primeira autoridade eclesistica do pas. Assim

    estavam sob a sua alada: a escolha do pessoal, a formao da hierarquia da

    Igreja, bem como, o julgamento supremo de todas as leis e decretos dos papas e

    seus conclios. Faziam parte da soberania o recurso e o placet.

    Neste momento ns temos tambm a elaborao do modelo ultramontano.

    Historicamente a expresso ultramontanismo foi usada no sculo XIII para se

    referir aos papas escolhidos no norte dos Alpes. No sculo XVI essa expresso

    passou a nomear as pessoas ou partidos que seguiam a liderana poltica e a

    orientao espiritual dos papas, na luta contra o nacionalismo e o liberalismo. No

    sculo XIX, os ultramontanos eram aqueles religiosos que estavam alinhados com

    o pensamento do papa Pio IX, que queria uma centralizao da poltica

    eclesistica (Cf.AZEVEDO.2007).

    A situao da Igreja no era confortvel, os pases do Antigo Regime

    tentavam controla-la. Muitos ministros dos dspotas esclarecidos seguiram o

    pensamento iluminista. Por outro lado, a Revoluo Francesa destruiu o Antigo

  • 32

    Regime francs e quase destruiu a Igreja na Frana. Ren Remnd (1990,p.169)

    disse: Na falta de poder revolucionar a antiga religio catlica, criar-se- uma religio revolucionria. O insucesso de todas as tentativas para substituir o catolicismo por novos cultos levar os poderes pblicos a entrar em entendimentos com a Igreja. nica inovao: o reconhecimento da liberdade de crer, ou de no crer, e a igualdade concedida s outras confisses e materializada pelos Artigos Orgnicos (1802).

    Se a liberdade religiosa aparece como uma nica inovao para Remnd,

    ela no pode ser menosprezada por representar uma fissura considervel no

    poder da Igreja. Se todos os fiis eram naturalmente filhos da Igreja, e essa Igreja

    era a nica, agora todos eram potencialmente livres para buscar outras

    orientaes religiosas ou para no crer. Alm do mais o exemplo francs, junta-se

    a outras situaes em que a Frana j havia se tornado modelo para o mundo. E

    portanto tornou-se uma nova referncia para o tratamento que o Estado poderia

    dar as questes da f.

    Entretanto se os Estados disputavam o poder com a Igreja. Esta com o

    modelo ultramontano ia lutando para se fortalecer. Dois fatores foram

    preponderantes para o ultramontanismo. O primeiro foi a declarao do dogma da

    Imaculada Conceio (1854) e o outro foi o estabelecimento da infalibilidade papal

    (1870). Esses dois dogmas no poderiam ter se institucionalizado de maneira to

    eficiente sem o apoio dos bispos. Foi nesse contexto que foi sendo criada a

    representao do papa, que temos hoje: uma figura como o chefe supremo da

    Igreja e representante da sua unidade. Antes o papa era apenas o bispo de Roma,

    e gozava do privilgio de governar o ncleo da Igreja no mundo. Azevedo

    (2007.p.18) afirmou:

    O ultramontanismo no foi programado em Roma. Uma srie de eventos, vinha se aglutinando de tal maneira que no fim da dcada de 1870, o seu perfil estava formado. Com a autoridade espiritual mais centralizada, o Papado que recebeu as simpatias dos catlicos do mundo inteiro, enfrentava naes fortes, liberais, nacionalistas e, s vezes, anti-crists... Com o fim do Conclio Vaticano I, a poltica ultramontanista estava formada e deu ao Papado, com o respaldo da maioria dos Bispos na Europa, o meio para defender e socorrer catlicos sofrendo de polticas repressivas por governos na Europa e nas Amricas. Nesse sentido, Pio IX ir contrabalanar a fora poltica regalista de D. Pedro II.

  • 33

    No Brasil o confronto entre regalistas e ultramontanistas foi inevitvel e foi

    resultado de uma ironia da nossa histria do perodo monrquico. Querendo

    melhorar a qualidade do clero, D. Pedro II enviou alguns seminaristas para estudar

    na Europa, mas estes sofreram a influncia ultramontana que se construa em

    alguns seminrios europeus:

    Agora, os Bispos brasileiros, principalmente os mais recentes indicados por D. Pedro II, e mesmo sendo poucos, viram que o ultramontanismo, assumido pela maioria dos Bispos no Vaticano I, e incentivado por Pio IX, consideraram que esse era o instrumento vivel para lidar com o governo imperial (AZEVEDO,2007,p.18)

    O governo brasileiro sendo regalista e os novos bispos sendo ultramontanos, j seria motivo suficiente para surgirem conflitos. Mas aqui entrou um outro elemento, a maonaria. A maonaria no Brasil inspirada por suas co-irms na Europa, em especial a francesa, criticar fortemente as posies dos bispos ultramontanos. D-se um embate onde as armas so os discursos, articulados em jornais liberais de um lado e jornais catlicos de outro, ou jornais conservadores. nesse contexto em que se insere a figura de D. Vital. No Brasil por causa da poltica regalista, nenhum dos documentos da Igreja contra a maonaria recebeu o beneplcito imperial. Logo no tinham valor em nosso territrio. Afinal o governo tinha relaes muito ntimas com a maonaria:ministros, polticos do imprio, eram maons. Os problemas comearam quando a loja Grande Oriente do Lavradio (Rio de Janeiro) quis homenagear o visconde de Rio Branco, um de seus membros, pela sua participao na lei do ventre livre (1871). Entre os oradores que fariam homenagens estava o Pe. Almeida Martins, membro efetivo da Grande Loja do Vale dos Beneditinos, as palestras foram publicadas:

    As palavras do Pe. Martins criaram escndalo na comunidade catlica, Dom Pedro Lacerda, Bispo do Rio de Janeiro, chamou o Pe. Martins, pedindo que ele se afastasse da Loja. Lembrou ao Padre a legislao eclesistica existente e que sendo membro da Maonaria estaria sujeito excomunho. O Pe. Martins tinha opinio diferente e recusou a orientao de D. Pedro Lacerda que o puniu com a suspenso das funes eclesisticas.(AZEVEDO,2007,p.20)

    J demonstramos que no havia cobertura legal para os atos do Bispo, ele agia com base em um novo sentimento que surgia dentro da Igreja no Brasil. Entretanto, a sua ao provocou o incio de uma campanha jornalstica contra a Igreja. Ferdinand Azevedo afirma que o visconde de Rio Branco liderou e inspirou os maons para que coordenassem melhor o ataque pelos jornais (Cf.AZEVEDO.2007).

  • 34

    A condecorao do filsofo francs Ernst Renan, por D. Pedro II, tambm causou mal estar na Igreja. Em seu livro a vida de Jesus, Renan mostrava um cristianismo em que a salvao seria alcanada atravs da beleza e no atravs da f ou das boas obras, como a Igreja pregava. D. Macedo Costa, visitou o Imperador solicitando que este no condecorasse um inimigo da Igreja, mas no foi atendido. Quando D. Vital chegou ao Recife em 1872, como bispo, encontrou uma situao de conflito entre os maons e os ultramontanos da provncia de Pernambuco. J havia sido deflagrado um embate entre os jesutas do Colgio de So Francisco Xavier, que foram articulados pelo seu antecessor no bispado de D. Cardoso Ayres contra os liberais e maons da cidade. Os jesutas colaboravam com um jornal da diocese (O Cathlico). D. Vital quis ampliar o jornal O Cathlico, mas foi aconselhado pelos jesutas a criar um novo jornal. Assim surgiu o jornal A Unio, sob a direo de Jos Soriano de Sousa. Os ataques a D. Vital foram mais intensos do que os foram feitos contra o bispo D. Cardoso Ayres que embora sendo um ultramontano, era tratado pelos liberais do Recife como se no o fosse: segundo Ferdinand Azevedo (2007,p.22): Talvez por causa do seu interesse pelo pensamento rosmiano e por ser membro do Instituto de Caridade, Ayres no apresentou a imagem estereotipada de um ultramontanista. O estopim dos conflitos entre D. Vital e os maons, foi a publicao de artigos no jornal A Verdade (da maonaria) que atacavam a virgindade perptua de Maria. Segundo esses artigos o nascimento de Cristo foi virginal, mas depois disso, Maria tinha dado a luz a outros filhos, cujo pai foi Jos, e que eram irmos e irms de Jesus. D. Vital, em 27 de novembro de 1871, pediu que os Vigrios aconselhassem os fiis que eram maons para deixar as Irmandades. A partir daqui esse posicionamento gerou a questo religiosa, que estremeceu o Imprio. Assim, a consolidao do catolicismo ultramontano levou a ciso entre o Estado e a Igreja.

  • 35

    2.1 Sob a Marca da Diversidade: O Protestantismo no Brasil

    No nvel externo, h indcios de que o protestantismo, no momento de seu estabelecimento no Brasil, se apresentava como uma fora renovadora. No pretendia um simples ajustamento s condies scio-econmicas dominantes. A organizao democrtica de suas Igrejas, seu esforo educacional liberal, sua vocao secularizante de separao entre Igreja e Estado, sua denncia das conseqncias economicamente retrgradas e politicamente totalitrias do domnio catlico no Brasil, so evidncias de que, naquele momento, o protestantismo desejava profundas transformaes polticas, sociais e econmicas no pas. A situao da Igreja catlica era exatamente oposta. Temerosa de rupturas, colocava-se ao lado do tradicionalismo. Comprometida como passado, inimiga da modernidade[...](ALVES.2005,p.12)

    Quando falamos do protestantismo no Brasil, nos referimos a um

    protestantismo mas na prtica colocamos sob um mesmo guarda-chuva vrios

    protestantismos. Se a Igreja catlica aparece-nos sob a forma da unidade

    (institucionalmente ela nica), o protestantismo nasceu sob a marca da

    diversidade, h uma inequvoca incapacidade do protestantismo de se manter

    unido, pois nele h a celebrao do indivduo, isto , embora a experincia

    religiosa ocorra no ambiente coletivo no seio da Igreja, ela uma experincia

    pessoal, mediada pela racionalidade. O indivduo precisa conhecer a mensagem,

    entende-la, recebe-la e aps conhecer os rudimentos da doutrina, decidir

    participar do corpo da Igreja atravs do batismo aps manifestar uma profisso de

    f diante da congregao.

    A tradio protestante que se inseriu no Brasil no comeo do sculo XIX, foi

    movida por trs impulsos: o primeiro foi de natureza imigratria e teve como

    resultado a abertura dos portos, ocorrida em 1808 e o Tratado de Navegao

    (1810):

    Como nao protestante, a Inglaterra garantiu para os seus sditos privilgios de carter religioso sem precedentes, que se opunham frontalmente, aqui, ao monoplio da Igreja Catlica. O Tratado de

  • 36

    Navegao e Comrcio declarava, no seu artigo 12,que os vassalos de S.M. Britnica residentes nos territrios e domnios portugueses no seriam perturbados, inquietados, perseguidos ou molestados por causa de sua religio, e teriam perfeita liberdade de conscincia, bem como licena para assistirem e celebrarem o servio em honra do Todo-Poderoso Deus, quer dentro de suas casas particulares,quer nas suas particulares igrejas e capelas...( SILVA.2006.p.15)

    E o segundo impulso foi o incentivo realizado pelo imprio brasileiro

    estimulando a imigrao europia, em especial alem, dentro da poltica do

    branqueamento da raa:

    Por outro lado, era dos paises protestantes que ele (D.Pedro II) esperava a imigrao, grandemente necessria ao Brasil na realizao do magnfico programa de civilizao, do seu primeiro ministrio, o do marqus de Paran (1854).Meu governo, dizia ele no discurso do trono de 3 de maio de 1855, empenha-se com particular interesse na tarefa de promover a colonizao, da qual depende essencialmente o futuro do pas.(LONARD,2002,p.54)

    Nos limites da tolerncia aos cultos acatlicos, estabelecida pela

    Constituio de 1824, instalaram-se no Brasil: anglicanos, episcopais (anglicanos

    norte-americanos) e os luteranos em maior nmero. A presena dessa populao

    protestante no Brasil, no afetou a populao brasileira ou luso-brasileira. Pois

    esses europeus formaram suas colnias e se isolaram do resto do pas, mantendo

    inclusive a sua lngua e importando lderes religiosos:

    Inicialmente, as comunidades evanglicas ficaram praticamente desassistidas, contando com pastores leigos escolhidos entre os prprios colonos, e sem formao teolgica. Somente a partir de 1886, a Igreja Luterana da Alemanha comeou a enviar pastores para o pas, fundando-se ento a Igreja Evanglica Alem do Brasil e o Snodo Rio-grandense. Posteriormente, foram criados snodos em outras provncias. (idem,p.16)

    A partir de 1850, com a chegada dos primeiros missionrios norte-

    americanos,ocorreu o terceiro impulso, o protestantismo missionrio. Exatamente

    a partir desse momento os protestantes comearam a incomodar. importante

    destacar tambm que o protestantismo foi recebido como a vanguarda do

    progresso e da modernidade (Cf.MENDONA,2002,p.13). Esse fato

  • 37

    significativo, porque a elite liberal brasileira, recebeu os missionrios como

    arautos do liberalismo e do progresso. Uma das formas de inseres do

    protestantismo no Brasil foi atravs de suas escolas, que passaram a ser

    freqentadas pelos filhos da elite liberal brasileira. No Recife, os colgios:

    Americano Batista e Agnes Erskine ganharam rapidamente a confiana dos

    liberais e o respeito de toda a sociedade, disputando em p de igualdade com os

    melhores colgios catlicos.

    Atravs dos missionrios se instalaram no Brasil as Igrejas: Metodista,

    Congregacional, Presbiteriana e Batista. Uma caracterstica do protestantismo

    brasileiro que ele uma projeo do protestantismo norte-americano, que por

    sua vez resultou da emigrao de europeus para a Amrica do Norte. Assim:

    os protestantismos europeus passaram por um sem-nmero de transformaes institucionais, teolgicas e culturais que fizeram deles um fenmeno religioso virtualmente distinto de suas origens histricas mais prximas.[...] Direta ou indiretamente, as Igrejas brasileiras, ao menos as de origem missionria, alimentam-se do iderio da religio civil norte-americana (MENDONA,2002,p.12-13).

    Se o jansenismo se apresentou como um grande problema para o

    fortalecimento da Igreja Catlica no Brasil, ele se apresentava como uma porta

    aberta para o protestantismo. Esta a tese levantada por mile G. Leonard,

    historiador protestante francs que se dedicou a estudar o protestantismo no

    Brasil, de forma pioneira:

    falta-nos um estudo mais aprofundado do jansenismo brasileiro, para podermos calcular com exatido a influncia que essa corrente desempenhou no Brasil, na poca que estudamos. A importncia dessa influncia revela-se, entretanto, em trs pontos: fomentao de uma piedade austera, culto das Sagradas Escrituras e independncia em relao a Roma. (LEONARD, 2002,p.43).

    Alm do mais como nos referimos antes, o jansenismo serviu de obstculo

    para que o catolicismo brasileiro se transformasse em romanismo. Essa influncia

    evitou que os missionrios protestantes no Brasil enfrentassem o mesmo tipo de

  • 38

    oposio sofrida na Europa em relao ao protestantismo a partir da Contra-

    Reforma catlica.

    O pastor Daniel P. Kidder, que visitou o Brasil durante o perodo regencial,

    distribuindo Bblias e reunindo documentos para o seu livro (Sketches of residence

    and travels in Brasil), observou os problemas do clero brasileiro, da falta de

    padres, da baixa remunerao que recebiam. Leonard (2002, p.32), afirmou:

    As profundas necessidades religiosas da poca deveriam, portanto, em muitos casos, satisfeitas sem a assistncia sacerdotal, espontaneamente, atravs de devoes, livros de oraes, que haviam sido colocados disposio dos fiis, principalmente dos pais de famlia, mas em cujo controle esses sacerdotes no intervinham suficientemente. Formava-se , assim, uma piedade individualista e leiga, que se entretinha nos cultos domsticos alimentando-se da Bblia, ou pelo menos em fragmentos bblicos constituindo pura lenda o fato de que a igreja tenha constantemente mantido os seus fiis afastados das Sagradas Escrituras.(LEONARD, 2002,p.32)

    De acordo com Leonard, esse clima espiritual tornou-se favorvel aos

    missionrios protestantes quando eles aqui chegaram e foi responsvel pelo

    sucesso que tiveram. Cabe destacar tambm o declnio do esprito apostlico

    entre os sacerdotes seculares, que:

    por muitas razes j no acreditavam muito em sua misso. Durante uma visita de Daniel Kidder( missionrio protestante) a Feij em 1839, ainda em So Paulo, o antigo regente lhe disse que em toda a provncia dificilmente encontraramos um sacerdote que cumprisse com seus deveres como a igreja (sic) ordena, principalmente no que diz respeito instruo das crianas no dia do Senhor. (LEONARD, 2002,p.36).

    Em sua anlise Leonard (2002, p.38) tem uma viso otimista das festas

    religiosas afirmando que equivaliam a bblia idiotorum, ou seja, a Bblia dos

    iletrados e at no culto dos santos:

    E sobretudo, insistindo no aspecto supersticioso do culto dos santos , negligencia-se o elemento positivo dessas prticas piedosas: a apreenso se bem que estranha e algumas vezes idlatra de verdades espirituais, e os exemplos que mostram essas verdades mescladas vida de todos os dias.

  • 39

    O esprito liberal do clero catlico resultado do novo tipo de educao

    ministrado em Coimbra, tambm foi outro elemento favorvel penetrao da

    propaganda evanglica:

    O clero tolerante revela-se, muitas vezes, amigo da Bblia. Kidder, cuja misso consistia em distribuir a Escritura Sagrada, notou algumas vezes a oposio de alguns padres, mas em regra geral estes o encorajavam, principalmente um padre de Pernambuco e um cura de Iguassu, que o auxiliava, como dissemos, na distribuio( LEONARD, 2002,p.41).

    Falando sobre o jansenismo dos sacerdotes brasileiros, Leonard, afirmou:

    Um clero sul- americano jansenista! Eis o que nos afasta bem longe da concepo tradicional do sacerdote de costumes corruptos, ou de um misticismo excessivo, sensual e colonial. ...Entretanto, lidas com cuidado, as Reminiscncias (um livro ) de Kidder nos colocam nesse rumo. Planejando distribuir, nas escolas da provncia de So Paulo, livros religiosos que servissem para leitura (estes deixavam muito a desejar) ele acrescenta: O catecismo de Montpellier, seria mais apropriado que qualquer outro livro, para esse fim (LEONARD,2002,p.42) .

    Kidder pensou em divulgar esse catecismo, uma vez que j era

    largamente utilizado pelo clero no apenas em So Paulo, mas era tambm na

    Amaznia por volta da segunda metade do sc. XVIII, e inspirou toda a atividade

    do bispo de Belm. Frei Miguel de Bulhes e Souza, na primeira metade do sc.

    XIX.

    Vale salientar outro livro jansenista que foi muito mais divulgado no Brasil,

    a Teologia de Lio: Se bem que posta no Index, por decreto de 17 de setembro

    de 1792, constitua a base do ensino teolgico nos seminrios de Olinda e do Rio,

    assim como nos de Portugal (LEONARD, 2002,p.43).

    Antes da presena dos missionrios protestantes no Brasil, cabe destacar

    aqui a ao das sociedades bblicas:

    Desde a Independncia eram distribudas Bblias primeiro pela Sociedade Bblica Britnica, e depois pela Sociedade Bblica Americana, que se valiam especialmente dos bons ofcios de comerciantes em viagem que colocavam caixas das Escrituras Sagradas disposio de

  • 40

    quem as desejasse (deixando-as mesmo, algumas vezes, pura e simplesmente abertas nas alfndegas) (LEONARD, 2002, p.48).

    As sociedades bblicas enviaram tambm para as principais cidades, a

    partir de suas agncias na corte, colportores (homens simples, que se dedicavam

    a venda de literatura (inclusive de porta em porta), alguns desenvolviam tambm

    outras atividades como sapateiros e mascates. Outros eram apenas empregados

    das sociedades bblicas. Esses homens enquanto vendiam suas literaturas ou

    desempenhavam outras funes iam evangelizando, ou seja tambm faziam a sua

    ao missionria. E alguns deles passaram pelo Recife. Every-Clayton

    (2004,p.447), afirma:

    Bblias chegavam em grandes quantidades... . No perodo 1825-1830 Edmund Temple distribuiu muitos exemplares das Escrituras em suas viagens. ... Em 1822, 1400 Testamentos e 676 Bblias em portugus chegaram em Pernambuco. [...] Em Pernambuco as Bblias foram admitidas isentas de tarifas na alfndega e distribudas a multides de pretendentes.

    Destacamos um colportor chamado Schroeder17 que afirmou que esteve

    em Pernambuco em 1839. Aqui ele trabalhou como sapateiro durante trs anos,

    virou marinheiro. Ele era um colportor pobre e devido ao ofcio de sapateiro, que

    era o que lhe dava sustento, deve ter evangelizado nas ruas do Recife pessoas

    simples como ele. O trabalho desses colportores foi enorme e muito difcil

    mensurar o seu alcance: A circulao das Escrituras ... no perodo 1865-1869

    chegou a 18.893 exemplares, e aumentou para 53.755 exemplares no perodo

    1870-1875 (EVERY-CLAYTON ,2004,p.448). Eles foram os precursores dos

    missionrios .

    Vejamos este caso pesquisado por Marcus J.M. de Carvalho (2002, p.112):

    Em 1846, as autoridades policiais do Recife prenderam o negro livre Agostinho Jos dos Santos, junto com outros seis negros, (...) Todos se referiam a Agostinho por Divino Mestre . De acordo com o chefe da

    17 A nossa fonte no indicou o nome completo do colportor

  • 41

    Polcia da Provncia, fazia cinco anos que Agostinho pregava na cidade, tentando converter mais pessoas sua crena religiosa.

    Este caso nos chama a ateno porque de acordo com os fiis, j fazia

    cinco anos que a esposa de Agostinho estava grvida, mas a criana s nasceria

    quando o Messias tivesse chegado. Os sete negros e sete negras interrogados no

    Tribunal da Relao sabiam ler e escrever e foram ensinados por Agostinho. Esse

    fato aberrante para uma sociedade em que uma parte da elite proprietria de

    terras analfabeta. Ele admitiu ensinar as Escrituras aos seus seguidores, por

    isso alfabetizara vrias pessoas. Agostinho considerava os santos simples

    esttuas, sem nenhum valor espiritual. Ele s atribua valor a Palavra do Senhor,

    que disse ter conhecido por inspirao divina durante uma viso que tivera.

    Agostinho admitiu ensinar as escrituras aos seus seguidores, por isso alfabetizara vrias pessoas. Reconheceu que considerava os santos meras esttuas, sem nenhum valor espiritual, opondo-se assim aos rituais catlicos e s religies afro-brasileiras que haviam reinterpretado os signos do catolicismo sua maneira.( CARVALHO,2002,p.112)

    A seita de Agostinho estava encaixada na viso de mundo protestante, a

    preocupao com o ensino das Escrituras, a atividade missionria (os jornais da

    cidade falavam em 300 seguidores, a maioria mulheres), a rejeio das esttuas

    como objeto de adorao, a preocupao em que os fiis lessem para que

    pudessem conhecer a Palavra de Deus:

    Do princpio da livre interpretao das escrituras tambm resultava um outro perigo ordem escravista. A rigor ele s pode se efetivar quando o cristo aprende a ler a bblia. Ao ensinar os seus seguidores a ler, Agostinho dava-lhes um instrumento extra de luta de enormes repercusses (CARVALHO,1998,p.206).

    Embora Agostinho tenha afirmado que conheceu a Palavra de Deus atravs

    de uma viso; mais provvel que ele tivesse recebido as Escrituras da mo de

    algum colportor e talvez at tivesse conhecido Schroeder, que trabalhava na

    cidade como sapateiro e portanto estava muito prximo de seu mundo. Ambos

  • 42

    foram contemporneos. Schroeder esteve no Recife at 1842. Agostinho comeou

    a sua pregao em 1841.

    Outro fato que merece destaque : em que lugar os seguidores do Divino

    Mestre encontrariam as Bblias para ler a no ser atravs dos colportores que

    estavam divulgando-a, dando-a, ou vendendo-a por um preo muito baixo, apenas

    para que as pessoas valorizassem o livro? Assim antes que o protestantismo de

    misso comeasse a atuar em Pernambuco, um homem do povo, negro cismtico,

    criou sua prpria comunidade religiosa, que era de fato uma seita protestante.

    Mas o que o Divino Mestre fazia no se encaixava nos rituais tolerados. Sua pregao fugia dos parmetros aos quais as autoridades estavam acostumadas. Com um detalhe extremamente problemtico:ele dizia-se cristo. E ortodoxo! Incomodava a opinio pblica branca a existncia de um negro a propagar uma outra forma de cristianismo, num pas cuja religio oficial era o catolicismo.(CARVALHO,2002,p.113)

    Considerando que o protestantismo de misso, realizado por missionrios

    americanos s comeou depois de 1850, podemos afirmar que a seita de

    Agostinho foi a precursora do protestantismo no Brasil. Tomando por fundamento

    que os seguidores de Agostinho eram negros, podemos afirmar que a seita de

    Agostinho fez surgir um protestantismo negro em Pernambuco, radicalmente

    diferente das Igrejas que se instalaram posteriormente, apresentava-se como uma

    proposta religiosa e poltica que trazia em seu bojo o mesmo potencial subversivo

    dos mals da Bahia e dessa forma foi encarada pelas elites governantes da

    provncia.

    A primeira Igreja protestante organizada no Recife, foi resultado da

    evangelizao de um colportor da Sociedade Bblica de Londres, Manoel da Silva,

    membro da Igreja Evanglica Fluminense. Tendo feito o seu trabalho em Recife,

    estimulou sua Igreja a abrir uma congregao na cidade. Com a vinda do pastor e

    mdico escocs Dr. Robert Reid Kalley, foi organizada a Igreja Evanglica

    Pernambucana em 21 de outubro de 1873. O missionrio presbiteriano John

    Smith, que esteve presente a alguns cultos descreveu o grupo: eram 30 pessoas:

    brasileiros, mulatos, mestios, ndios e negros. Enquanto nas Igrejas catlicas da

    cidade no havia lugar para os negros, exceto no fundo da capela, as Igrejas

  • 43

    protestantes comearam incluindo o povo, tratando-os como iguais. John Rockwell

    Smith comeou as suas reunies em 30 de agosto de 1873 , como congregao.

    A Igreja Presbiteriana foi fundada em 11 de agosto de 1878:

    Finalmente, no dia 11 de agosto de 1878 uns cinco anos aps seu primeiro sermo Smith,pastor do grupo, disse: Declaro arrolados como membros fundadores os seguintes irmos:Francisco Joaquim Pereira Pinto, Jos Incio de Arajo Pereira, [...] (EVERY-CLAYTON ,2004,p.460)

    A postura da Igreja Protestante era tpica de uma seita. Ernst Troeltsch

    (1960,p.331) afirmou que as seitas so:

    Comparatively small groups; they aspire after personal inward perfection, and they aim at a direct personal fellowship between the members of each groups. From the very beginning, therefore, they are forced to organize themselves in small group, and to renounce the idea of dominating the world18.

    As Igrejas Protestantes estavam organizadas em pequenos grupos; por isso

    havia uma maior proximidade entre as pessoas, dando origem a uma sociabilidade

    pessoal, que era muito importante para uma comunidade que conseguia os seus

    membros entre as classes subalternas, da a presena marcante de

    mulatos,mestios, ndios e negros.

    O primeiro grupo de batistas pernambucanos foi batizado pelo missionrio

    Charles D. Daniel em 4 de abril de 1886. O reverendo Charles atuava na Bahia,

    passou trs meses aqui e deixou os novos convertidos sob os cuidados de Melo e

    Lins at 1889. Salomo Ginsburg, chegou ao Recife como obreiro

    congregacionalista. Ele morou em um quarto prximo ao salo de cultos da

    comunidade religiosa de Kalley e ajudava o grupo em seu trabalho de

    evangelizao. Depois de uma visita do ministro batista Prineus Blatcher, que lhe

    explicou sobre o batismo por imerso, ele se converteu aos batistas, sendo depois 18 Comparativamente pequenos grupos; elas almejam uma perfeio pessoal interior, e seu propsito uma sociabilidade pessoal entre os membros de cada grupo. Desde o comeo, portanto, eles (os participantes da seita) so forados a organizar a si mesmos em pequenos grupos, e a renunciar a idia de dominar o mundo. (Traduo nossa)

  • 44

    disso rebatizado na Bahia pelo missionrio Zachary Clay Taylor . Ginsburg,

    comeou assim sua longa carreira de missionrio batista e ficou conhecido pela

    alcunha de judeu errante.

    Entre as trs denominaes citadas (congregacionais, presbiterianos e

    batistas), os batistas foram os mais destacados em seu trabalho missionrio. Os

    presbiterianos devido a doutrina da predestinao no so conversionistas, pois

    acreditam que os predestinados chegaro naturalmente a salvao. Por isso, no

    fazem apelo salvao. Simplesmente pregam a Palavra e esperam que os

    salvos cheguem at eles.

    Os batistas afirmam que Deus oferece a salvao a todos atravs de Jesus

    Cristo, mas a pessoa precisa querer ser salvo, se arrepender dos seus pecados e

    integrar uma comunidade que pregue essa mensagem. Por isso, fazem apelo para

    que os ouvintes recebam a Jesus em seu corao. Tiveram a preocupao de

    expandir a sua presena na maior parte possvel do Brasil, atravs de campanhas

    sistemticas de misses. Prtica mantida at os dias de hoje (durante o ano fazem

    campanha para arrecadar fundos para misses estaduais, nacional e mundial).

    Outra grande preocupao protestante foi com o ensino de sua doutrina:

    Deve ser levado em conta, por fim, o papel decisivo cumprido pela escola dominical, o instrumento por excelncia de iniciao religiosa e doutrinao das Igrejas protestantes missionrias. Aqui, uma vez mais, a transferncia de conhecimento religioso tarefa primordial de leigos [...] (VELASQUES FILHO.2002.p.206)

    Todas as denominaes citadas tm uma preocupao com o ensino de

    sua doutrina nas Escolas Bblicas Dominicais. Faz parte desse ensino conhecer as

    Escrituras Sagradas e saber manusear a Bblia. Esse fato significativo porque

    conhecer as Escrituras e saber manuse-la do ao fiel argumentos para defender

    a sua f quando ela for questionada e, ao mesmo tempo, lhe d segurana para

    sua atividade evangelstica.

    O catolicismo e o protestantismo viviam situaes bem diferentes no sculo

    XIX. A Igreja Catlica efetivamente a Igreja segundo o conceito de Troeltsch, isto

    , uma organizao conservadora, que de certa forma aceita a ordem secular,

  • 45

    domina as massas e universal, porque deseja cobrir e de fato cobre a totalidade

    da vida do povo brasileiro.

    As Igrejas Protestantes representam o novo, so a mudana; e chegam

    com a sua diversidade (episcopais,congregacionais, presbiterianos e batistas).

    Elas trazem uma proposta de cristianismo diferente e assim deflagraram um

    embate com a Igreja Catlica no Brasil.

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    3 SER CATLICO E SER PROTESTANTE NO SC. XIX : A EXPERINCIA

    RELIGIOSA

    No captulo anterior, tratamos do catolicismo e do protestantismo nos

    sculos XVIII e XIX. Discorremos sobre as bases polticas e religiosas do

    catolicismo no Brasil e em seguida, tratamos da presena protestante no pas.

    Quando o ser humano pensa a sua experincia religiosa a partir do seu

    tempo, ele imagina que ela igual experincia de seus antepassados. Dessa

    maneira, ser catlico hoje seria igual a ser catlico no passado; ou ser protestante

    hoje seria igual a ser protestante no sculo XIX, quando os pioneiros chegaram ao

    nosso pas. Entendemos que a nossa prtica religiosa tambm histrica e est

    susceptvel as mesmas mudanas pelas quais passa a nossa sociedade.

    O nosso objetivo procurar aproximar-nos dessa experincia do passado,

    de maneira que possamos traar um perfil das diferenas, isto , o quo diferente

    ser catlico ou protestante no sculo XIX.

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    3.1 A Experincia Religiosa Catlica

    No sculo XIX, ser catlico no Brasil no era uma opo religiosa, mas

    uma condio civil:

    O catolicismo brasileiro assumiu nos primeiros sculos de sua formao histrica um carter obrigatrio. Era praticamente impossvel viver integrado no Brasil sem seguir ou pelo menos respeitar a religio catlica (MENDONA. 2002.p.15)

    Para que algum fosse reconhecido como pessoa precisava ser batizado,

    para ter direito a casar precisava fazer parte da Igreja, e na hora da morte se ele

    no tivesse sido catlico, lhe seria negado o enterro nos cemitrios de nossas

    provncias, todos controlados pela Igreja oficial. Em relao ao Brasil do sculo

    XIX, a Igreja Catlica se encaixa ao conceito de Ernst Troeltsch. Ela de fato e

    juridicamente, a Igreja. Presente desde o incio da colonizao, ela se confunde

    com a prpria colonizao, que ajudou a realizar, servindo inclusive para justifica-

    la, enquanto um processo de cristianizao dos nativos do Brasil, que sem a sua

    atuao estariam perdidos.

    A concepo que condiciona a experincia religiosa do catlico no sculo

    XIX, que ser catlico no era uma experincia religiosa individual, no havia um

    padro de comportamento que ele deveria apresentar para ser considerado um

    fiel. Se ele foi batizado na Igreja, catlico, da mesma forma que ao nascer no

    Brasil, brasileiro. Assim viver a experincia religiosa catlica no depende de

    uma tomada de deciso do indivduo. Ser catlico uma experincia que vem da sociedade, a famlia que

    introduz o recm-nascido no mundo da f. Dessa forma, ser catlico faz parte de

    uma tradio. Ele no precisa de uma fundamentao teolgica para afirmar a sua

    identidade religiosa. Basta que aponte para uma tradio: os meus avs foram

    catlicos, os meus pais so catlicos e eu sou catlico. Para fazer parte do

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    catolicismo, no precisa de uma converso individual, pois o indivduo torna-se

    catlico sem ter nenhuma conscincia disso: ele no escolhe ser da mesma forma

    como no escolhe a famlia em que nasceu.

    Para Alves, a doutrina secundria na viso de mundo catlica, o que est

    em jogo a participao no corpo mstico de Cristo: o fundamental a

    participao mstica, emocional, no mistrio sacramental. O sacramento tem

    prioridade sobre a doutrina. Os sacramentos so meios