LAJOLO, M. Monteiro Lobato e Mário de Andrade

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Literatura. História Literária. Modernismo. Monteiro Lobato. Mário de Andrade.

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  • 1 Meusdocumentos/lobatogeral/papersmeus/2007ML&MA

    Mrio de Andrade e Monteiro Lobato: um dilogo

    modernista em trs tempos 1

    Marisa Lajolo Universidade Presbiteriana Mackenzie

    Unicamp Pesquisadora CNPq.

    Monteiro Lobato ( c. 1939) :

    Mrio um grande crtico. Mrio notabilssimo.Mrio, pelo seu talento sem par (...) tem direito a tudo, at de meter o pau (...) em mim. 2

    Mrio de Andrade (1940):

    Nada me impede que eu guarde do sr. Monteiro Lobato uma ternura imensa. Soube ser superior aos meus despeitos e me deu o Prefcio Interessantssimo 3

    1 No jornal O Estado de So Paulo de 20 de dezembro de 1917, Monteiro

    Lobato- ento com 35 anos de idade- publicou matria sobre a exposio de uma

    jovem pintora, recm chegada da Alemanha: Anita Malfatti .Com o ttulo Parania

    ou mistificao ? o artigo fez histria: a histria que todos conhecemos registrada

    1 Verso anterior deste trabalho foi apresentada no Department of Spanish and Portuguese Languages and Cultures da Universidade de Princeton em 11.10.2006 no Seminrio de Literatura Brasileira coordenado pelo prof. Dr. Pedro Meira Monteiro, a quem a autora agradece o convite para a apresentao . A pesquisa da qual resulta o presente ensaio, bem como os fundos para sua apresentao em Princeton vieram da Fapesp, do CNPq e da Universidade de Prnceton.

    2 Nunes, Cassiano (sel. E org. ). Monteiro Lobato vivo MPM propaganda. Record. SP. 1986

    3 Dirio de Notcias.26.05.1940 In Andrade, Mrio de. Vida Literria. . Pesquisa, estabelecimento de Texto , introduo e notas por Sonia Sachs So Paulo: Edusp/ Hucitec 1993. p. 197/198)

  • 2 hoje em livros e sites de literatura , onde Monteiro Lobato figura como

    conservador empedernido, insensvel vanguarda 4.

    Com efeito, neste artigo, o criador do Jeca assume sem rebuos o

    desacordo que manter por toda vida- com algumas vertentes do que vai ser

    considerado o modernismo :

    (...) Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti no passam de outros tantos ramos da arte caricatural. a extenso da caricatura a regies onde no havia at agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma caricatura que no visa, como a primitiva, ressaltar uma idia, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador 5

    4 Na mais recentemente (re) lanada histria panormica da literatura brasileira a Histria da literatura brasileira de Luciana Stegagno-Picchio (RJ: Nova Aguilar (Lacerda Editores/ Academia Brasileira de Letras) 2004 ; 2. Ed. Revista e ampliada) o autor de Urups apresentado como (...) inimigo dos ismos, no qual (sic) fareja o decadentismo burgus, romntico a seu modo em seu programtico anti-romantismo, na defesa da boa causa, quando em 1922 estoura em So Paulo a revoluo modernista (que, no entanto, muito lhe deve, ainda que apenas no plano da destruio) est entre os opositores: em nome do bom senso e do bom gosto burgus . (p.397) . Sites de literatura, voltados para estudantes do ensino fundamental e mdio reproduzem o mesmo juzo crtico: Lobato fora, desde o incio de sua carreira, um pr-modernista. Irritado com os padres oficiais de educao e cultura, desvinculou-se das normas padronizadas da literatura, criando um estilo livre, avanado, valorizando a cultura nacional e discutindo temas voltados internamente para os problemas brasileiros. Ao contrrio do que se imagina, Monteiro Lobato sequer foi exposio de Anita Malfatti. No viu nada e no gostou do que no viu. Mas, em artigo virulento, publicado no jornal O Estado de So Paulo, depois de criticar as extravagncias de Picasso & Cia., o escritor assestou as baterias contra Anita, esperando que as balas ricocheteassem, atingindo seu alvo principal, que eram os modernistas, companheiros da pintora http://www.pitoresco.com.br/brasil/anita/anita.htm (consulta em 26.02.2007 . Ou ento, (...) o prprio Lobato assumiu uma postura anti-moderna ao criticar, com o artigo "Parania ou Mistificao?", a exposio de Anita Malfatti, realizada em 1917. Alm disso, Lobato fez questo de no participar da Semana de Arte Moderna de 1922. http://www.mundocultural.com.br/index.asp?url=http://www.mundocultural.com.br/literatura1/pre-modernismo/lobato.htm (consultado em 26.02.2007)

    5 Apud Mrio da Silva Brito Histria do modernismo brasileiro (I) Antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira. P.52-56 . 1964. 2a. ed. revista

  • 3 O artigo tornou-se famoso, sacramentado pela histria literria

    como ponto de partida dos desentendimentos entre Monteiro Lobato e o grupo de

    jovens artistas e intelectuais que, cinco anos depois, em 1922, vo protagonizar a

    paulistana Semana de Arte Moderna. Com Parania ou mistificao ?, Monteiro

    Lobato entrou na contramo de uma vanguarda ruidosa, que tinha a seu dispor um

    bom poder de fogo. Ligados a uma vertente esclarecida da burguesia paulista, os

    protagonistas da clebre Semana desfrutam de capital simblico crescente, que

    lhes rende juros considerveis. E por longos anos, seu projeto esttico ser

    identificado pela crtica e pela histria literria como o projeto paradigmtico do

    Modernista brasileiro.

    Monteiro Lobato, no entanto, ao publicar o artigo sobre Anita Malfatti num

    jornal com o prestgio de O Estado de So Paulo tambm se revela detentor de

    um cacife bastante razovel para a cidade das letras brasileira 6 do ano de 1917.

    Vem da, talvez, o carter emblemtico do artigo e da discusso que ele

    gerou, tendo-se construdo sobre o affair um captulo importante da histria da

    literatura brasileira. Hoje, quase um sculo depois do bate-boca, estando j o

    Modernismo corrodo pelos ps e outros tantos ismos que se lhe seguiram, talvez

    seja tempo de observar que divergncias de pressupostos estticos e diferentes

    credos artsticos no impediram que alguns dos protagonistas da polmica

    continuassem a se relacionar, esbarrando-se volta e meia pelas esquinas da

    cidade letrada.

    de um desses esbarres que trata este texto.

    Se em 1917 as obras da exposio de Malfatti so consideradas pelo crtico

    Monteiro Lobato como fruto de sugesto estrbica de escolas rebeldes (...) frutos

    de fim de estao bichados no nascedouro ( op.cit. p.52) a esta mesma artista

    que, em 1922, o editor Lobato encomenda capa para Os condenados, e O

    homem e a morte livros, respectivamente de Oswald de Andrade e de Menotti Del

    Picchia. As duas obras foram lanadas no mesmo ano da ruidosa Semana de Arte

    6 Rama, Angel: A cidade das letras. So Paulo: editora Brasiliense 1982

  • 4 Moderna de So Paulo , pela Monteiro Lobato & Cia ,editora de

    propriedade de Monteiro Lobato .

    O episdio merece ateno e sugere re-exame da hiptese corrente na

    histria literria oficial- de uma ruptura radical entre Monteiro Lobato e os

    modernistas. Da perspectiva da histria da pintura e das exposies paulistanas

    tal re-exame foi levado a cabo de forma convincente e competente pelo excelente

    Um Jeca nos vernissages paulistas de Tadeu Chiarelli 7 .

    Aos tpicos que fundamentam a discusso proposta por ele para as artes

    visuais, pode-se talvez apenas acrescentar uma outra e minscula observao:

    para desqualificar a linguagem pictrica de Malfatti, Monteiro Lobato acaba

    valorizando a linguagem da caricatura, denominando-a arte: arte caricatural. Seu

    fascnio e respeito por esta linguagem j se manifestara em artigo escrito para a

    Revista do Brasil em 1918. Em 1932, em seu livro Amrica , Lobato no apenas

    menciona com admirao a presena da caricatura na imprensa norte-americana

    como reproduz caricaturas em seu livro, o que sugere que se preocupou em

    recort-las, guard-las e traz-las de Nova Iorque.

    Mas, de qualquer forma, ao ler na exposio de Malfatti uma transposio

    desta linguagem caricatural para outro cdigo, ele l, igualmente, como efeito de

    sentido desta transposio desnortear e aparvalhar o espectador. Com tais

    leituras, Monteiro Lobato passa recibo do efeito da obra de arte moderna

    conseguido pela exposio da jovem artista. Desnorteio e aparvalhamento dos

    espectadores cumpre o desiderato modernista to bem expresso por Manuel

    Bandeira em Nova Potica, poema datado de maio de 1949.

    (...) Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na

    primeira esquina passa um caminho, salpica-lhe o palet ou a cala com uma ndoa de lama:

    a vida. O poema deve ser como a ndoa no brim:

    7 Chiarelli, Tadeu Um jeca nos vernissages paulistas .So Paulo: Edusp. 1995

  • 5 Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.(...) 8

    2

    , ento, cheio de arroubos o encontro, em 1917, entre Monteiro Lobato e

    os futuros modernistas9 . Mas a relao prossegue e alguns de seus lances

    podem cartografarum sistema literrio 10 bem mais complexo do que uma

    oposio binria de dois campos em que se confrontam de um lado-

    modernistas e de outro- pr modernistas. Talvez seja hora de multiplicar

    categorias e falar de modernismos e modernistas. Em todas as fraes, como

    disse Manuel Bandeira das virgens do carnaval carioca.

    A multiplicao exige um cenrio mais amplo.

    Enquanto sistema, a literatura brasileira j estava definitivamente

    consolidada ao final do sculo XIX: o surgimento de editoras, de instituies

    letradas e, sobretudo, o aumento do nmero de brasileiros alfabetizados capazes

    de configurar um pblico leitor, do literatura o estatuto que cada vez mais ela

    ter- uma mercadoria procura de seu mercado.

    a alterao de modos e bases tcnicas de produo que se delineiam

    outros modenismos, outras manifestaes de modernidade que podem tirar do

    grupo paulista reunido em torno SAM de 22 a grife de exclusividade com que o

    8 Bandeira, Manuel. Estrela da vida inteira.(Belo belo) Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio Editora. p.201

    9 O Fundo Monteiro Lobato do Centro de Documentao Alexandre Eullio do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp constitudo por documentos do escritor l depositados pelos herdeiros. O site http//:www.unicamp.br/iel/monteirolobato disponibiliza alguns destes documentos bem como a listagem completa deles. Sob o cdigo MLb 3.2.00206 cx4 o CEDAE guarda uma carta de Oswald de Andrade para Monteiro Lobato datada de 12 de janeiro de 1916 .

    10 Antonio Cndido. Formao da literatura brasileira ( momentos decisivos) So Paulo: Livraria Martins Editora. 1o. vol. 2a. ed. revista .

  • 6 vem distinguindo a histria literria cannica, projeto ambicioso que se

    inicia contemporaneamente prpria Semana e se realiza por diferentes

    formaes discursivas, de livros didticos crtica militante.

    Em 1933, Estevo Cruz, em sua Antologia da Lngua Portuguesa puxa a

    fila. Seu livro (para uso dos alunos das cinco sries do curso de Portugus)

    transcreve trechos de Macunama e de Cl do Jabuti , numa admirvel e rara no

    discurso didtico- ateno literatura contempornea sua:

    No tivemos o propsito quando tratamos o movimento Modernistade historiar todos os fatos que o traduzem: apenas nos foi possvel apresentar as figuras que se nos apresentam mais representativas (...) 11

    Esta escolarizao do modernismo paulista apenas onze anos depois da

    Semana de Arte Moderna, seis depois de Cl do Jabuti e cinco de Macunama

    sugere que a idia de movimento j havia ganhado fora, habilitando-se, portanto

    o modernismo, a constituir matria de um livro escolar, espao por definio dos

    clssicos.

    Tambm na crtica militante, o modernismo cedo se consagra como

    movimento.

    No dia seguinte ao encerramento da Semana de Arte Moderna, Oswald de

    Andrade, pelas pginas do Jornal do Commercio proclamava que

    (...)o movimento no pode mais ser chamado futurista nem paulista. Trata-se de um movimento nacional, violento e triunfante e no qual se empenham reputaes formidveis. 12

    Para o Mrio de Andrade de 1939 - (em artigo de primeiro de outubro em O

    Estado de So Paulo), embora a literatura paulista tivesse mirrado no day after da

    grande conquista modernista esta conquista se estabilizara em movimento:

    11 Cruz,Estevo Antologia da Lngua Portuguesa (para uso dos alunos das cinco sries do curso de Portugus) Porto Alegre: Editora Livraria do Globo. 1933. p. 14

    12 Andrade, Oswald apud Maria Eugnia Boaventura (org) . 22 por 22: A Semana de Arte Moderna vista pelos seus contemporneos. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo. 2000. p.108

  • 7 Porque esta me parece a verdade mais estimulante, que convm afirmar. Os paulistas, que deram o primeiro e principal brado de alarme na renovao das artes nacionais, depois de generalizado o movimento dessa renovao, se concentram outra vez na sua bisonhice, digamos, trabalhadeira 13.

    Coincidem, pois, na apresentao do Modernismo paulista como paradigma

    de renovao da arte nacional tanto o gacho autor de manuais escolares, quanto

    a crtica (paulista) militante.

    Neste cenrio de um modernismo hegemnico, cartas trocadas entre

    diferentes remetentes e destinatrios podem matizar um pouco uma histria

    cultural monoltica que l a produo literria das primeiras dcadas do sculo XX

    ou como marcha triunfal em direo ao modelo de modernismo proposto e

    praticado nos entornos da SAM, ou como decorrncia dele.

    A primeira destas cartas vem dos Estados Unidos, de onde, em 1930,

    Monteiro Lobato se dirige a Mrio de Andrade 14:

    New York, 6 agosto, 930

    Meu caro Mrio de Andrade,

    Muito h de voc de espantar-se com esta, vinda dalm tmulo, dum morto que voc matou h trs anos atrs. Mas h de tudo na vida, at mortos que escrevem cartas aos matadores.

    O que me traz um livro seu Macunama. Tenho c um editor que deseja conhec-lo, com palpite que coisa editvel em ingls. Se voc est por isso, mande-me um exemplar e se achar que um morto pode representar um vivssimo, mande tambm autorizao para eu tratar com o homem.

    incrvel como d voltas o mundo! Vou eu ajudar o Mrio a publicar-se neste pas e ajudar na traduo. Vou sair da cova s para isso. Depois recolherei de novo, porque no existir a delcia das delcias, meu caro Mrio.

    Hurry up. Manda logo dois exemplares e depressa.

    13 . In Andrade, Mrio de. Vida Literria . Pesquisa, estabelecimento de texto , introduo e notas por Sonia Sachs So Paulo: Edusp/ Hucitec 1993 p. 110

    14 A carta faz parte do Fundo Monteiro Lobato do Centro de Documentao Alexandre Eullio do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, e tem o codigo MLb 3.1.00169 cx3constitudo pelos documentos do escritor l depositada pelos herdeiros do escritor. O site http//:www.unicamp.br/iel/monteirolobato disponibiliza alguns destes documentos.

  • 8 Do seu matado

    M. Lobato

    Monteiro Lobato 3505 Broadway, New York City

    A carta, modernosamente datilografada,sugere uma cartografia alternativa

    para a cidade das letras.

    Em seu primeiro pargrafo, o signatrio se apresenta, semelhana de

    defunto autor Brs Cubas, como correspondente pstumo. As aluses morturias (

    alm tmulo , morto, matou h trs anos atrs ) referem-se a um curioso captulo

    das relaes de Monteiro Lobato com o modernismo paulista. Em 13 de maio de

    1926 , Mrio de Andrade, no jornal carioca A manh escreve um artigo no qual,

    com ironia fina e ferina mata Monteiro Lobato, ento vivendo no Rio de Janeiro,

    para onde se mudara na esteira de uma dolorosa falncia comercial15 .

    (...) O telgrafo implacvel nos traz a notcia do falecimento de Monteiro Lobato, o conhecido autor de Urups. Uma das fatalidades de que sofre a literatura nacional essa das Parcas impacientes abandonarem no comeo o tecido de certas vidas brasileiras que se anunciavam belas e teis. Muitos literatos tm desta maneira partido pro esquecimento em plena juventude mal deram com a obra primeiro vislumbre gentil de seu talento e possibilidades futuras 16.

    A ironia comea por inventar uma suposta notcia da morte de Monteiro

    Lobato e prossegue referindo-se ao escritor como um iniciante que apenas deu

    vislumbre gentil de seu talento e possibilidades futuras. E a ironia cresce ao limitar

    a bibliografia lobatiana a seu ttulo de estria quando, na realidade, entre a

    publicao de Urups (1918) e a publicao do artigo (1926), os ttulos lobatianos

    j haviam vendido mais de cem mil exemplares, como mostra a tabela abaixo: .

    15 Cf. Bignotto, Cilza C Novas perspectivas sobre as prticas editoriais de Monteiro Lobato ( 1918-1925) Tese de Doutorado . Instituto de Estudos da Linguagem. Unicamp. 2007

    16 Passsiani, E. Na trilha do Jeca (Monteiro Lobato e a formao do campo literrio no Brasil) .So Paulo: Anpocs/EDUSC .2003. p.31

  • 9 TABELA 1 TIRAGEM E VALOR GLOBAL DAS OBRAS DE

    MONTEIRO LOBATO EDITADAS ENTRE 1918-1925 17

    17 Esta tabela foi construda a partir de dados constantes de carta de Octales Marcondes Ferreira a Monteiro Lobato, em 1941, sob guarda do Cedae / IEL/ Unicamp sob cdigo MLb 3.2.00407 cx9

    OBRA TIRAGEM TOTAL BRUTO

    Urups (1. Ed 1918) 30.000 120:000,00

    Cidades Mortas (1. Ed 1919) 23.000 92:000,00

    Idias de Jeca Tatu (1. Ed 1919) 12.000 48:000,00

    Negrinha (1. Ed 1920 ) 25.000 100:000.000

    Onda verde (1. Ed 1921 ) 12.000 48:000.000

    Problema Vital (1. Ed 1918) 2.000 4:000.000

    TOTAL 104.000 412:000,00

  • 10 Em belo e penetrante estudo, Enio Passiani analisa o artigo de

    Mrio de uma perspectiva bourdieusiana , lendo-o, pois, no como documento de

    uma polmica esttica, porm como pea de artilharia na luta pelo hegemonia no

    campo das letras. Esta abordagem ganha mais sentido se lembrarmos que em

    1926 a Semana de Arte Moderna paulista tinha quatro anos e Mrio de Andrade

    trinta e trs. E, como bem aponta Passiani, o artigo de Mrio de Andrade foi

    escrito num momento de extrema fragilidade de Lobato: com quarenta e quatro

    anos, falido e desempregado no RJ , ele era, em 1926, ex-proprietrio e ex-editor

    da ex-poderosa editora paulista Cia. Graphico-Editora Monteiro Lobato.

    na esteira desta falncia que Monteiro Lobato nomeado adido comercial

    da representao diplomtica brasileira nos Estados Unidos e se muda para Nova

    Iorque, de onde envia a Mrio de Andrade a carta transcrita.

    A carta de Lobato curta, divertida e objetiva: informa Mrio de Andrade do

    interesse de um editor norte-americano em publicar Macunama, obra sada no

    Brasil em 1928, em edio de 800 exemplares financiados pelo autor, que os

    imprimiu na tipografia de Eugnio Cupolo 18. A carta anuncia ainda a

    disponibilidade de Monteiro Lobato para intermediar a transao e inclusive

    ajudar na traduo .

    As maltraadas lobatianas soam generosas.

    Mas nelas tambm ressoa um eco malicioso se se imaginar o hipottico

    prazer que pode ter dado a Monteiro Lobato fazer um favor a um colega de ofcio

    com quem tivera um esbarro mal resolvido. A oferta de intermediao para

    traduo de um livro de Mrio e a conseqente chance de circulao deste em

    outro mercado / leitorado se acompanha digamos, estilsticamente- da retomada

    do artigo de 26. O anglicismo do hurry up do pargrafo final repete-se em outras

    18 Andrade, Mrio de. Macunama ( o heri sem nenhum carter) Edio crtica de Tel Porto Ancona Lopez. RJ: LTC Livros Tcnicos e Cientficos Editora); So Paulo :Secretaria da Cultura, Cincia e Tecnologia. 1978

  • 11 cartas lobatianas escritas nos Estados Unidos e d um toque

    cosmopolita ao texto, cosmopolitismo de resto referendado pelo endereo que

    fecha a carta .

    Chegada a seu destino, a carta parece ter gerado desdobramentos muito

    interessantes alguns dos quais, por enquanto, podem apenas ser presumidos. A

    imaginao presume desencontradas reaes de Mrio a esta oferta de Lobato.

    Lobato falava srio ? Se podia confiar nele ?Deveria o criador de Macunama

    acreditar na proposta e aproveitar a chance ?

    Parece que Mrio discutiu a proposta com a famlia e com amigos, entre os

    quais Manuel Bandeira. Carta deste, datada de agosto de 1930 permite uma

    reconstruo bastante verossmil da recepo da oferta lobatiana pelo autor de

    Macunama :

    Rio de Janeiro, 28 de agosto de 1930

    Mano Mrio.

    () desde sada tive boa impresso do caso Monteiro Lobato. E quando vi o seu irmo botando gua na fervura no duvidei mais do meu juzo. Voc deve topar com o Lobato, mas garantindo-se mediante contrato em regra. Ateno : no fazer contrato epistolar que o safado foi assim que me roeu a corda. O Lobato j conhece o meio editorial norte americano onde publicou o choque das raas; funcionrio consular; controlar a traduo; tudo vantagens sobre a tal proposta de Margaret Richardson que, de resto, no deu mais sinal de vida ( alis, nada prendia voc a ela).

    (...)

    Mas falta falar sobre o caso Lobato propriamente. O que ele fez comigo e que creio foi o mesmo que fez com voc, no coisa que impea reatamento de relaes no ntimas como esta, proposta agora, de interesses comerciais envolvendo um servio bem relevante, no s para o Brasil como para a cincia folclrica em geral. No haver quebra nenhuma de orgulho em aceitar entendimento com ele. Creio que estou falando com iseno, quer dizer, pondo de parte a torcida alvoroada do amigo que deseja uma reparao sob a forma de sucesso no estrangeiro do livro que a burrice nacional no levou na merecida conta (...) Moraes, Marcos Antonio de (org)Correspondncia Mrio de Andrade & Manuel Bandeira IEB/EDUSP. 2000 p.459-460 19

    19 Moraes, Marcos Antonio de (org) Correspondncia Mrio de Andrade & Manuel Bandeira IEB/EDUSP. 2000 p.459-460

  • 12 A carta de Bandeira transborda de afetividade, a comear pela

    intimidade do vocativo mano Mrio, espcie de contracanto ritmado e musical do

    afetivo Manu com que Mrio trata o amigo poeta. Bandeira francamente

    favorvel a que Mrio aceite a mediao de Lobato sem deixar, no entanto, de

    lembrar a ele a necessidade de salvaguardar seus interesses autorais mediante

    contrato em regra, desaconselhando contrato epistolar.

    Numa ainda to pouco conhecida histria da profissionalizao do escritor

    brasileiro 20, as consideraes de Manuel Bandeira ganham grande importncia

    pelo que sugerem das formas de contrato editorial vigentes na poca, bem como

    de algumas das figuraes que compunham, na imaginao dos que circulavam

    pela cidade das letras, a identidade de autor e editor. Monteiro Lobato safado

    por ter rodo a corda.

    Ainda magoado por Monteiro Lobato no lhe ter publicado um livro como

    havia sido acordado entre ambos 21.- Manuel Bandeira d instrues detalhadas a

    Mrio sobre como prevenir-se para no ser ludibriado como julga ter sido.

    Aconselha o amigo a garanti(r)-se mediante contrato em regra, a no fazer

    contrato epistolar e v em Monteiro Lobato alguns atributos que podem trabalhar

    a favor de uma bem vinda publicao de Macunama nos Estados Unidos.

    Ao discutir o capital simblico de que dispe Monteiro Lobato para facilitar

    uma publicao norte-americana de Macunama, Bandeira menciona a

    familiaridade de Lobato com o meio editorial norte-americano, alude

    (equivocadamente, porm num equvoco talvez induzido pelo prprio Lobato)

    publicao norte-americana de O presidente negro (obra que Monteiro Lobato

    publicou no Brasil em 1926 e tentou em vo lanar nos Estados Unidos), sugere o

    peso da posio diplomtica ocupada por Lobato em New York22 e avalia

    20 Cf. Cilza Carla Bignotto, op.cit..

    21 Catlogo de 1923 da Monteiro Lobato & Cia inclui, entre as obras "a sair" um livro de Manuel Bandeira: Poesias de Manuel Bandeira

    22 Cf. Lajolo, Marisa Monteiro Lobatos New York. Ensaio aceito para publicao. Revista Brazil/Brasil. Brown University/ PUCRS.

  • 13 positivamente um possvel controle de Monteiro Lobato sobre a

    traduo do livro de Mrio.

    Com este ltimo argumento, o poeta de Pasrgada parece depositar uma

    inesperada confiana em Monteiro Lobato, o que no deixa de ser curioso: como

    pode o mesmo Monteiro Lobato que no entendera a pintura modernista de Anita

    Malfatti e que tinha sido incapaz, como editor, de investir em autores modernistas

    como o prprio Bandeira e Mrio de Andrade ser visto como fiador da qualidade

    de uma traduo de Macunama para o ingls ?

    Mais para frente, a carta discute diferentes tipos de relaes que se

    estabelecem na cidade das letras. Ao falar de relaes no ntimas porque

    comerciais Manuel Bandeira traa um crculo amplo de sociabilidade no qual

    valores estticos no contam. Ou no contam muito. A meno a interesses

    comerciais nas vizinhanas do que Bandeira diz constituir um servio bem

    relevante no s para o Brasil como para a cincia folclrica em geral sugestiva:

    argumentar com patriotismo para que Mrio de Andrade aceite a proposta de

    Monteiro Lobato dissolve, na atribuda motivao patritica, o que quer que

    pudesse haver de desabonador nos interesses comerciais ou na vaidade pessoal

    envolvidos no projeto de traduo.

    Ou seja: para Manuel Bandeira, em agosto de 1930, tratar com Monteiro

    Lobato no s no desabonaria Mrio de Andrade, como, ao contrrio,

    representaria um servio Ptria. Mas as vantagens da proposta tm ainda uma

    face pessoal: o poeta pernambucano sanciona completamente o entendimento de

    Mrio de Andrade com Monteiro Lobato, avaliando que aceitar a intermediao de

    Monteiro Lobato para a traduo de Macunama no representaria quebra de

    orgulho, com o que ficamos sabendo que tambm este sentimento faz parte da

    argamassa que facilita ou dificulta as relaes que se travam na cidade das letras 23.

    23 Em Literatura e cordialidade ( o pblico e o privado na Cultura Brasileira) Joo Cezar de Castro Rocha , ao analisar a polmica de Jos de Alencar com Gonalves de Magalhes a propsito de A confederao dos Tamoios

  • 14 O mesmo pargrafo contribui com pelo menos mais dois

    elementos para uma compreenso maior da complexidade dos bastidores do que

    vir a ser mais tarde a histria literria e a fortuna crtica de Macunama 24 . Ao

    considerar a rapsdia do heri sem nenhum carter pea importante para a

    cincia folclrica em geral o poeta pernambucano faz uma leitura correta da obra ?

    Talvez no, se o padro de leitura for o canonizado pela histria literria . Tambm

    no se se levarem em conta os esforos de Mrio de Andrade para gerenciamento

    da recepo de sua obra: o autor da rapsdia abandona nota ( originalmente

    prevista para definir a obra ?) que registraria que este livro no passa de uma

    antologia do folclore brasileiro , bem como desistiu da denominao romance

    folclrico que dava nome ao captulo que como amostra da obra, foi publicado no

    segundo nmero da Revista de Antropofagia 25 .

    Pode tambm causar espcie a reverncia que Manuel Bandeira parece

    alimentar pelo sucesso no estrangeiro, considerado por ele uma possvel

    reparao para o fracasso de pblico da obra de Mrio de Andrade. A posio no

    soa curiosa num momento em que a tnica nacionalista do modernismo poderia

    criar expectativas de uma compreenso menos ingnua dos horizontes de

    expectativas do leitorado brasileiro ?

    Mas vamos carta com que Mrio de Andrade responde a Monteiro Lobato:

    S.Paulo, 31-VIII-1930

    Monteiro Lobato,

    Recebi sua carta e aqui lhe mando os dois exemplares pedidos de "Macunama". Est claro que uma proposta de traduo pro ingls s pode ser agradvel pra um literato do Brasil. E no sou diferente dos outros, apesar de ser uma espcie de edio especial, irredutivelmente

    estabelece categorias de leitura para o discurso cultural brasileiro extremamente instigantes, e que tambm so produtivas para olhar as relaes entre Monteiro Lobato e o Modernismo paulista.

    24 Cf. Jos de Paula Ramos Jr. A fortuna crtica de Macunama Primeira onda . 1928-1936 ( doutorado, USP) 2006

    25 Andrade, Mrio de. Macunama ( o heri sem nenhum carter) Edio crtica de Tel Porto Ancona Lopez. RJ: LTC Livros Tcnicos e Cientficos Editora); So Paulo :Secretaria da Cultura, Cincia e Tecnologia. 1978 P. XVI e XIX.

  • 15 fora de mercado. Mas devo lhe confessar que vejo muito dificilmente um "Macunama" em ingls, ou outra lngua qualquer. Careceria tirar muita coisa, e mais transportar que traduzir. Isso mesmo j falei ao pai de uma senhorita Margaret Richardson que se props a traduzir o livro. Talvez voc a conhea pois ela a vive (The Barbizon, 63rd Lexington Ave. New York City) pensando em traduzir obras brasileiras. Nunca mais recebi notcia nem dela nem do pai e creio que ela desistiu. No competia a mim insistir, tanto mais que as propostas de contrato eram por tal forma angustiosas que me deixavam muito frio. Desse jeito prefiro ficar no Brasil que mais quentinho. No tenho ambies de ganhar de dinheiro com literatura ou literatice, mas sempre desagradvel a gente se sentir bobizado pelos outros. Caso o editor a que voc se refere se confirme em traduzir o livro, voc me far o favor de comunicar a proposta dele. Se ele quiser, que me faa tambm de bobo, no me importo, porm que trate de salvar as aparncias, to suavizantes e satisfatrias pra quem, como eu, vive sonhando com uma civilizao que acabasse de novo com o conceito de dinheiro.

    No mais, seu vingado morto-vivo, viva feliz a no comercinho de Nova York, como e quanto quiser. Porm nada neste mundo me impede de desejar voc morrendo de fome nestes brasis, vivendo de expedientes, xingando de canalha e pra baixo o Washington e o Prestes, e dando pro Brasil uns novos "Urups". Cordialmente o

    Mario de Andrade Rua Lopes Chaves, 108 S.Paulo 26

    Trata-se de um texto primoroso e, como o de Lobato datilografado..

    Sem adjetivos no vocativo, a carta acusa recebimento da carta de Lobato e

    comunica o envio dos exemplares de Macunama solicitados. Nesta abertura, um

    estilo quase comercial. Que, no entanto, se desmancha na frase seguinte, que

    documenta as reaes de um literato do Brasil como se define Mrio - face a

    uma proposta de traduo para o ingls de sua obra.

    Mrio negaceia: ele e no como os outros ( escritores). Interessa-lhe a

    traduo, mas duvida da traduzibilidade da obra. Aos negaceios seguem-se

    instigantes e muito atuais reflexes sobre a natureza da tarefa tradutria e

    informaes sobre uma anterior proposta de traduo que ele teria recebido da

    mesma Margaret Richardson mencionada por Manuel Bandeira. Mas o autor de

    Macunama no parece nada entusiasmado com a oferta, considerando as

    condies (...)angustiosas. Mrio diz a Lobato que os termos do contrato

    deixaram-no muito frio, revelando-se com esta observao- atento a questes

    26 Carta depositada no Fundo Monteiro Lobato do Cedae/IEL Unicamp sob o cdigo MLb 3.2.00364 cx8

  • 16 de direitos autorais e consciente da assimetria que rege as relaes

    escritor/editor 27, assimetria que talvez seja maior quando um da Amrica do Sul

    e outro da do Norte 28.

    Ao declarar seu desinteresse por aspectos econmicos da traduo e talvez

    da produo de livros (no tenho ambies de ganhar dinheiro com literatura ou

    literatice) , Mrio fere uma tecla sensvel da modernidade: a transformao do

    autor em fornecedor de uma das matrias primas envolvidas na produo de um

    livro, a transformao da cultura em mercadoria e de leitores em consumidores.

    De novo expressa-se conscincia da assimetria da relao editor/editado, na

    confisso de que sempre desagradvel a gente se sentir bobizado pelos outros.

    Melancolicamente, Mrio parece conformar-se em salvar as aparncias e faz uma

    ingnua profisso de f em uma civilizao que acabasse de novo com o conceito

    de dinheiro.

    O pargrafo final da carta obra de fino mestre: nele Mrio de Andrade

    retoma, de forma elegantssima, o artigo em que matara Lobato, envelopando, no

    vocativo afetuoso seu vingado morto-vivo- a designao que Monteiro Lobato

    se atribura na carta de agosto. Os votos que encerram a carta em redao

    informal - parecem diluir de vez, qualquer crispao na relao intelectual e

    afetiva de ambos. Mrio indiretamente elogia a obra de Lobato ( dando ao Brasil

    novos Urups) e aplaude sua atuao como cidado (xingando de canalha para

    baixo o Washington e o Prestes).

    Como quatro meses depois da carta em dezembro de 1930- um decreto

    de Getlio Vargas remove Monteiro Lobato junto com outros funcionrios- do

    quadro do consulado brasileiro de Nova Iorque e abrevia a estada do escritor

    naquele pas 29, morre antes de comear a eventual parceira Mrio de Andrade

    27 Cf. em Lajolo,M e Zilberman, R A formao da leitura no Brasil ( S.P: tica), particularmente no captulo O mercado das letras discusso sobre posies assumidas por Mrio face a produo de livros .

    28 Cf. em Lajolo,M e Zilberman, R O preo da leitura S.P: Editora tica, 2001 29 Cf. linha do tempo rigorosa da biografia de Monteiro Lobato em

    http://lobato.globo.com/

  • 17 /Monteiro Lobato. Mas no morrem com isso as relaes entre ambos 30. Elas voltam a expressar-se epistolarmente quase dez anos depois, em outra

    carta, ainda de Monteiro Lobato, mas para outro destinatrio: o escritor paulista

    Flvio de Campos( 1903-1947) que, em 1939 publica o romance Planalto 31 do

    qual Mrio de Andrade se ocupa em 17 de dezembro do mesmo ano no Dirio de

    Notcias do Rio de Janeiro.

    O artigo em que Mrio de Andrade menciona Planalto um balano de final

    de ano, que comenta diversos escritores estreantes, entre os quais Flvio de

    Campos, cujo livro Mrio diz que exige um comentrio cheio de simpatia 32.

    Com tal prembulo, o leitor de Mrio de Andrade aguarda um julgamento

    favorvel do livro, e por isso talvez fique perplexo ao ser surpreendido pela

    avaliao do crtico, para quem o desencanto do autor [ de Planalto] dos homens e

    das idias o seno principal de seu livro 33. A esta observao, que no soa

    cheia de simpatia ( como o crtico anunciara que seria sua leitura) , seguem-se

    dez linhas que apontam outros senes do livro, restando apenas uma para os

    acertos .

    Estabelecendo categorias pelas quais distribui os escritores de que se

    ocupa, Mrio de Andrade inscreve Flvio de Campos na categoria dos definitivos,

    categoria com a qual etiqueta autores que se apresentam com uma firmeza, com

    uma autoridade um bocado desesperadora, o que aflige o crtico, para quem

    muitos deles so excelentes e sabemos que continuaro nos dando obras

    30 Em carta de 12 de dezembro de 1930 a Manuel Bandeira, a propsito da (nunca publicada, porm discutida pelo autor com a tradutora ) verso norte americana de Macunama Mrio de Andrade comenta, agora de forma desconfiada, o papel de Lobato na oferta da traduo de Macunama.

    31 Campos, Flvio de. Planalto. Livraria Jos Olympio editora. 1939

    32 Andrade, Mrio de. Vida Literria . Pesquisa, estabelecimento de Texto , introduo e notas por Sonia Sachs So Paulo: Edusp/ Hucitec 1993 p. 131

    33 Andrade, Mrio de. Op.cit. p. 131/132

  • 18 excelentes. Mas no nos do esperanas essa esperana feliz que a

    gente depe nos que ningum sabe onde podero chegar 34 .

    Esta crtica to labirntica parece ter desagradado o jovem escritor que,

    provavelmente, queixou-se de Mrio a Monteiro , certamente espera de

    simpatia e solidariedade .

    Solidariedade e simpatia que no vieram.

    Em carta ao jovem escritor, Monteiro Lobato defendeu vigorosamente o

    direito do crtico sua opinio, elogiando a divergncia no que tange a gosto

    esttico

    Tu es um monstro de orgulho, Flvio.Pois queres atacar ao Mrio s porque ele exerceu o seu natural direito de crtica ? (...) Se tiras ao crtico a liberdade de criticar, matas a crtica. ( ...) Mrio um grande crtico. Mrio notabilssimo.Mrio, pelo seu talento sem par no analismo criticista, tem direito a tudo, at de meter o pau em voc e em mim. Eu tenho levado pancadinhas dele. Certa feita chegou a publicar o meu necrolgio. Matou-me e enterrou-me. Em vez de revidar, conformei-me, e sem mudar minha opinio sobre ele. Ainda esta semana cortei um pedao de artigo dele sobre a nossa lngua, timo. Mrio grande. Tem direito at de nos matar moda dele 35

    Como o artigo em que Mrio de Andrade se ocupa de Flvio de Campos

    de 19 de dezembro de 1939 , a carta de Lobato deve ser posterior a esta data.

    Como nela se l, Lobato expressa profundo respeito crtica e ao crtico,

    exemplificando tal respeito com sua prpria histria de criticado por Mrio de

    Andrade .

    Como se v, nestas mal traadas de 39, um Monteiro Lobato de j quase

    sessenta anos prega a soberania da crtica e declara profundo respeito pelo

    pensamento crtico Mrio de Andrade, que ele avalia como grande crtico,

    notabilssimo, talento sem par.

    Mudou o Natal, ou mudaram eles ?

    34 Andrade, Mrio de. Op.cit. p. 130

    35 Nunes, Cassiano ( org) Monteiro Lobato vivo. Rio de Janeiro : MPM Propaganda. Record. 1986 p. 75

  • 19

    3

    O que mudou com certeza que em 1939, ao contrrio do que sucedia em

    1926 tanto Monteiro Lobato quanto Mrio de Andrade j tinham suas posies

    consolidadas no cenrio cultural brasileiro, o que no ocorria (nem jamais veio a

    ocorrer com Flvio de Campos), ento com 35 anos. Talvez por isso se possa ler,

    nesta defesa de Mrio de Andrade por Monteiro Lobato a solidariedade que, na

    cidade das letras, preside s relaes inter pares , sempre que posies de poder

    no estejam ameaadas.

    um apaziguamento similar que ressalta do ltimo texto a ser citado nesta

    reflexes, artigo de 26 de maio de 1940 no Dirio de Notcias, no qual Mrio de

    Andrade, revirando o ba das lembranas, sumariza a seu modo as idas e vindas

    de suas relaes com Monteiro Lobato

    (...) certo que o artista dos Urups foi o editor cauteloso e hbil, a

    que deve bastante a literatura brasileira. Eu mesmo lhe devo um favor que precisa ser proclamado. O Sr. Monteiro Lobato, a pedido de um amigo comum daqueles tempos, prontificou-se a editar Paulicia desvairada depois do merecido escndalo que causou a publicao de apenas um dos hrridos poemas desse livro. Mas o Sr. Lobato hesitava muito. No queria, naturalmente, prestar um desservio a nossas letras , nem a mim, vago professorzinho de piano, que fazia versos malucos na minhas horas de iluminao. E com isso os originais modorraram meses e meses a fio nas gavetas do grande editor De vez em quando ele retirava o manuscrito do esconderijo , percorria-lhe as pginas e sacudia a cabea pensativo . Enfim, mandou me chamar, me acolheu muito bem , e disse franco o seu pensamento sobre o livro, ou melhor, o seu no pensamento, pois confessou no compreender neres daquilo tudo. E me disse: Voc no poderia escrever um prefcio, uma explicao dos seus versos e da sua potica ? A idia era esplndida e foi a pedido do Sr. Lobato que escrevi o prefcio interessantssimo, a melhor parte do livro , na opinio dos que perdem tempo e verdade gostando um bocado de mim. certo que os originais acrescentados continuaram dormindo sobre a justa inquietao do editor , at que depois de mais de ano de amadurecimento , ele os devolveu intactos. Ainda no rompi com o Sr. Monteiro Lobato . Rompi depois,quando ele fez a mesma coisa com um livro de poesias do sr. Manuel Bandeira.

  • 20 Na primeira ocasio, matei por escrito o sr. Monteiro Lobato . Mas o sr. Monteiro Lobato, que a bondade em pessoa, no brigou comigo no. Quando estava morando em Nova York, um dia me mandou uma carta de pazes, na qual, imaginando a possibilidade de serem vertidos para o ingls certos livros meus, me propunha enviasse uma procurao que lhe permitisse cuidar de meus interesses l na terra grande. Infelizmente, no pude aceitar a generosidade porque, por estranha coincidncia, por esse mesmo tempo, a sra. Margaret Hollingsworth, que conhecera os meus livros, e vivia tambm em Nova York, j estava se dando ao trabalho de me traduzir. E seria uma indelicadeza de minha parte no tratar dos meus negcios diretamente com ela. Nada me imopede que eu guarde do sr. Monteiro Lobato uma ternura imensa. Soube ser superior aos meus despeitos e me deu o prefcio Interessantssimo. 36

    A leitura seqenciada dos textos aqui reunidos sugere pelo menos duas

    coisas: a primeira que a senhorita Margaret, que se propunha traduzir

    Macunama casou e mudou de nome, acrescentando Hollingsworth a Richardson:

    com esse nome que ela assina a traduo de Amar, verbo intransitivo, que lana

    em 1933 pela Macaulay Company, sob o ttulo de Fraulein .

    E a segunda que Mrio, trado pela memria, se esquece de que havia,

    sim aceito a proposta de Monteiro Lobato de intermediar uma traduo norte-

    americana de Macunama.

    Mas a traio da memria perde qualquer importncia face ternura

    imensa que Mrio de Andrade diz guardar de Monteiro Lobato. Pois, ao fim e ao

    cabo, ternura, despeito e superioridade tambm tm peso numa concepo de

    histria literria que faa da noo de sistema literrio e dos rituais a pactuados,

    os andaimes a partir dos quais se investigam as nunca lineares relaes entre

    autores, obras e pblicos.

    Assim, no que as cartas documentam desta complexa e sutil relao entre

    Monterio Lobato e Mrio de Andrade , v-se como a pesquisa com a

    36 In Dirio de Notcias.26.05.1940 In Andrade, Mrio de. Vida Literria. . Pesquisa, estabelecimento de Texto , introduo e notas por Sonia Sachs So Paulo: Edusp/ Hucitec 1993. p. 197/198)

  • 21 epistolografia abre um feixe de caminhos para os estudos literrios 37.

    Permite, por exemplo, sair-se do campo de uma histria literria restrita, imantada

    quer pelo fait divers da vida privada, quer por relaes sociais definidas por

    convenes, quer ainda pela discusso esttica. Pode-se, talvez, pensar na

    epistolografia sobretudo na correspondncia entre escritores como porta

    generosa para uma perspectiva de histria literria articulada noo de

    Antonio Candido- de sistema literrio.

    Representando por excelncia forma de comunicao , cartas trocadas

    entre cidados da cidade das letras tm grande chance de esclarecer os pactos e

    as mediaes pelos quais autores obras e pblicos gravitam em torno uns dos

    outros.

    No caso especfico da correspondncia entre Mrio de Andrade e Monteiro

    Lobato aqui comentada, a consagrada incompatibilidade de posies estticas

    torna-se menos linear no cenrio mais complexo de um sistema literrio no qual

    um escritor qualquer escritor- um ponto articulado de um sistema que

    transcende a ele.

    Pois a histria literria uma formao discursiva. E, enquanto discurso,

    no (apenas) um conjunto de indivduos menos ou mais dotados, nem um

    punhado de idias menos ou mais originais e nem tampouco um repertrio de

    procedimentos formais. Livros

    um pouco de cada uma destas coisas, mas bem mais do que a soma

    delas.

    OBRAS CONSULTADAS

    37 Devo a Emerson Tin e Raquel Afonso da Silva, que trabalham a correspondncia lobatiana em seus respectivos doutorados,discusses extremamente fecundas sobre o papel da epistolografia nos estudos literrios .

  • 22 Andrade, Mrio de. Macunama ( o heri sem nenhum carter) Edio

    crtica de Tel Porto Ancona Lopez. RJ: LTC Livros Tcnicos e Cientficos Editora); So Paulo :Secretaria da Cultura, Cincia e Tecnologia. 1978

    Andrade, Mrio de. Vida Literria. . Pesquisa, estabelecimento de Texto , introduo e notas por Sonia Sachs So Paulo: Edusp/ Hucitec 1993.

    Antonio Cndido. Formao da literatura brasileira ( momentos decisivos) So Paulo: Livraria Martins Editora. 1o. vol. 2a. ed. revista .

    Azevedo, C.L., Camargos, M; Sacchetta, V. Monteiro Lobato: Furaco na Botucndia . SP: Editora Senac. 1997.

    Bandeira, Manuel. Estrela da vida inteira.(Belo belo) Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio Editora.

    Bignotto, Cilza C Novas perspectivas sobre as prticas editoriais de Monteiro Lobato ( 1918-1925) Tese de Doutorado . Instituto de Estudos da Linguagem. Unicamp. 2007

    Brito, Mrio da Silva Histria do modernismo brasileiro (I) Antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira. P.52-56 . 1964. 2a. ed. revista

    Campos, Flvio de. Planalto. Livraria Jos Olympio editora. 1939

    Catlogo de 1923 da Monteiro Lobato & Cia

    Chiarelli, Tadeu Um jeca nos vernissages paulistas .So Paulo: Edusp. 1995

    Cruz,Estevo Antologia da Lngua Portuguesa (para uso dos alunos das cinco sries do curso de Portugus) Porto Alegre: Editora Livraria do Globo. 1933.

    http//:www.unicamp.br/iel/monteirolobato

    http://lobato.globo.com/ http://www.mundocultural.com.br/index.asp?url=http://www.mundocultural.com.br/li

    teratura1/pre-modernismo/lobato.htm (consultado em 26.02.2007) http://www.pitoresco.com.br/brasil/anita/anita.htm (consulta em 26.02.2007 . Lajolo, Marisa Monteiro Lobatos New York. Ensaio aceito para publicao.

    Revista Brazil/Brasil. Brown University/ PUCRS.

    Lajolo,M e Zilberman, R A formao da leitura no Brasil So Paulo: editora tica, 1996.

    Lajolo,M e Zilberman, R O preo da leitura S.P: Editora tica, 2001

  • 23 Maria Eugnia Boaventura (org) . 22 por 22: A Semana de Arte Moderna

    vista pelos seus contemporneos. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo. 2000.

    MLb 3.1.00169 cx3 Fundo Monteiro Lobato, Centro de Documentao Alexandre Eullio, Instituto de Estudos da Linguagem :Unicamp

    MLb 3.2.00206 cx4 Fundo Monteiro Lobato, Centro de Documentao Alexandre Eullio, Instituto de Estudos da Linguagem :Unicamp .

    MLb 3.2.00364 cx8 Fundo Monteiro Lobato, Centro de Documentao Alexandre Eullio, Instituto de Estudos da Linguagem :Unicamp

    MLb 3.2.00407 cx9 Fundo Monteiro Lobato, Centro de Documentao Alexandre Eullio, Instituto de Estudos da Linguagem :Unicamp

    Moraes, Marcos Antonio de (org) Correspondncia Mrio de Andrade & Manuel Bandeira IEB/EDUSP. 2000

    Nunes, Cassiano ( org) Monteiro Lobato vivo. Rio de Janeiro : MPM Propaganda. Record. 1986

    Passsiani, E. Na trilha do Jeca (Monteiro Lobato e a formao do campo literrio no Brasil) .So Paulo: Anpocs/EDUSC .2003.

    Rama, Angel: A cidade das letras. So Paulo: editora Brasiliense 1982 Ramos Jr, Jos de Paula Ramos Jr. A fortuna crtica de Macunama Primeira

    onda . 1928-1936 ( doutorado, USP) 2006 Rocha, Joo Cezar de Castro:Literatura e cordialidade ( o pblico e o privado na

    Cultura Brasileira) . Rio de Janeiro: EDUERJ. 1998 Stegagno-Piccio , Luciana:Histria da literatura brasileira RJ: Nova Aguilar;

    Lacerda Editores/ Academia Brasileira de Letras; 2004 ; 2. Ed. revista e ampliada

    Mrio de Andrade e Monteiro Lobato: um dilogo modernista em trs tempos 0Fhttp//:www.unicamp.br/iel/monteirolobatoMLb 3.2.00206 cx4 Fundo Monteiro Lobato, Centro de Documentao Alexandre Eullio, Instituto de Estudos da Linguagem :Unicamp .