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Neste texto Landowski analisa a Semiótica com as práticas dos indivíduos e suas relações, o que é chamado de Sociossemiótica.

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  • 10 LANDOWSKI, E. Sociossemitica: uma teoria geral do sentido. Galaxia (So Paulo, Online), n. 27, p. 10-20, jun. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/1982-25542014119609.

    Sociossemitica: uma teoria geral do sentido1

    Eric Landowski

    Resumo: Fora do texto, a semitica continua! De fato, alm e aqum da anlise da significao investida nos textos e nos discursos, a semitica (especialmente a de origem greimasiana) pretende hoje dar conta de como o sentido emerge tambm das prticas mais diversas, de nossas relaes vividas com os objetos que nos circundam ou dos quais fazemos uso, numa palavra, da vida cotidiana nas suas mltiplas dimenses, inclusive a do sensvel. Para isso, a disciplina teve que se desenvolver como uma teoria geral da gerao do sentido na interao. O artigo seguinte apresenta sucintamente os princpios dessa abordagem renovada sob o nome de sociossemitica .

    Palavras-chave: sociossemitica; regimes de sentido e interao; juno; unio.

    Abstract: Sociosemiotics: a general theory of meaning Today, besides the analysis of meaning invested in texts and discourses, semiotics (and especially its version originating in Greimas works) claims to account for the way how sense emerges from daily life and lived experience with its many dimensions, from our sensitive relations with the world around and with the objects we use, in a word, from all kinds of human practices. During the last two decades, in order to reach this scope,the discipline developped as a general theory of sense production through interaction. The following article presents the basic principles of this renewed sociosemiotic approach.

    Keywords: sociosemiotics; regimes of meaning and interaction; junction; union.

    No escopo da semitica de inspirao saussuro-hjelmsleviana, a etiqueta

    sociossemitica se emprega para designar, segundo os contextos, seja um dos ramos

    especializados da disciplina aquele que toma especificamente por objeto o social ,

    seja uma das principais correntes tericas que se oferecem atualmente para renovar a anlise

    dos fatos de significao em geral, qualquer que seja o tipo de domnio emprico considerado.

    1 Esse texto foi adaptado por E. Landowski em dezembro de 2013 a partir de uma verso anterior publicada em francs em D. Ablali et al., Vocabulaire des tudes smiotiques et smiologiques, Paris-Besanon, Honor Champion-Presses universitaires de Franche-Comt, 2009.

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    Um terreno especfico, uma teoria geral

    Entendida segundo a primeira acepo, a sociossemitica desenvolve-se, desde

    a metade dos anos 1970, sobretudo na Frana, na Itlia e na Amrica Latina, sob a forma

    de um nmero continuadamente crescente de pesquisas sobre domnios to variados

    que sua enumerao pode parecer heterclita. anlise crtica das mdias seguiu-se

    a dos discursos e das prticas da poltica e do direito, depois a das situaes e dos espaos

    no interior dos quais os atores sociais comunicam-se, construindo e trocando entre

    eles formas carregadas de sentido e de valor, at chegar ao estudo das modalidades da

    interface entre os objetos e seus utilizadores. Deste modo, passo a passo, delineou-se uma

    problemtica abrangente, englobando o conjunto das prticas da cotidianidade (GREIMAS

    1976; FLOCH 1995; LANDOWSKI 1997; MARRONE 2001; MARSCIANI 2007).

    Segundo a outra perspectiva, entretanto, a sociossemitica no pode mais ser definida

    pelo carter social dos objetos que ela estuda. De fato, seu objeto o sentido enquanto

    tal, e o papel que ela assume construir a teoria geral desse objeto. Deixando de constituir

    uma aplicao da disciplina a um campo particular, ela se apresenta do mesmo

    modo que a sua concorrente (e cmplice), a semitica tensiva como uma das formas

    atuais da semitica geral. O que faz a sua especificidade uma opo terica da qual ela

    no tem o monoplio, mas da qual ela procura extrair todas as consequncias, a saber

    a ideia de uma relao necessria, constitutiva, ligando sentido e interao (LANDOWSKI

    2004, 2005: 30-31).

    Todavia, essas duas acepes, uma mais especializada, outra mais geral, longe de

    se exclurem, conjugam-se. E precisamente a noo de interao que lhes serve de

    articulao. Ao mesmo tempo que essa noo permite fundar uma teoria sociossemitica

    sobre o plano mais geral, ela tambm garante, sobre o plano analtico, a unidade do campo

    sociossemitico, ou, ao menos, a possibilidade de projetar sobre ele um olhar constante

    e coerente a despeito da diversidade dos objetos empricos tomados em considerao.

    Em uma palavra, pensar sociossemioticamente a questo geral do sentido, ou analisar

    sociossemioticamente objetos de ordens diversas, , em todos os casos, colocar a noo

    de interao no corao da problemtica da significao.

    Aqum dos signos e alm dos cdigos

    Um sobrevoo histrico far compreender como esta concepo foi pouco a pouco

    se desenhando. Em um primeiro momento, em torno do final dos anos 1960, a ideia de

    sociossemitica era ligada, no esprito de seu promotor na poca, A. J. Greimas, quela de

    sistema das conotaes sociais. Considerando que as prticas semiticas, verbais, gestuais

    ou outras constituem manifestaes por meio das quais se exprimem conotativamente

    as posies sociais dos agentes, propunha-se inventariar as correspondncias entre

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    tipos de comportamentos (em primeiro lugar lingusticos) e tipos de papis sociais

    (definidos a partir de variveis tais como a idade, o sexo, o estatuto profissional, etc.).

    Prxima da sociolingistica norte-americana ento em voga, essa problemtica apresentava

    um inconveniente maior: aquele de reduzir o sentido a uma funo de expresso segunda, subordinada primazia das estruturas sociais e, desse modo, de excluir toda autonomia do semitico. Compreende-se que nessas condies, apesar de uma certa insistncia da parte de seu promotor, ela no tenha feito adeptos e tenha sido praticamente rejeitada. De fato, o que se designa hoje pelo nome de sociossemitica s comeou a tomar corpo

    a partir do dia em que um certo nmero de investigadores tiveram a iniciativa de propor

    uma pesquisa direcionada exatamente na contramo dessa tica. Podem-se resumir

    os seus princpios em trs pontos (LANDOWSKI 1989; 2004: 18-37).

    O projeto sociossemitico sob sua forma atualmente efetiva assume como hiptese primeira que as produes de sentido no devem ser tomadas como representaes do social considerado enquanto referencial ou realidade primeira. So, ao contrrio,

    as prticas de construo, negociao, intercmbio de sentido que vm construindo

    o social enquanto universo de sentido. Do mesmo modo vm sendo delimitados

    os campos do poltico, do jurdico, do literrio etc. Paralelamente, esse projeto nasce da deciso de deixar de uma vez por todas aos semiologistas as noes de cdigo e de signo. Por oposio, a (socio) semitica pretende construir uma problemtica mais abrangente da significao concebida ao mesmo tempo como uma totalidade dependente

    da articulao estrutural imanente a cada discurso ou prtica (e no de uma simples

    justaposio de elementos combinatrios) e como o resultado de uma construo negociada entre os actantes (e no como o produto de um simples reconhecimento de unidades pr-codificadas). Correlativamente, o projeto sociossemitico procede de uma ltima escolha decisiva: a de privilegiar no a descrio de sistemas que determinariam a produo e a recepo das manifestaes significantes (o que acabaria por encerrar as prticas de sentido numa funo de perptua reproduo do mesmo), mas a anlise dos processos, ou seja, justamente, das interaes (entre sujeitos ou entre o mundo e os sujeitos) que presidem a construo mesma do sentido e tornam em consequncia possvel a emergncia de configuraes inditas. Menos que uma anlise do sentido realizado, investido nos objetos nos enunciados, nos textos, nas coisas que nos circundam ou nos comportamentos que ns observamos , a sociossemitica se prope

    como uma teoria da produo e da apreenso do sentido em ato.

    Da juno unio

    Concentrando assim a ateno sobre o ato e mais especificamente sobre a dimenso

    interacional dos processos, a sociossemitica inscreve-se no prolongamento da semitica

    standard, frequentemente considerada ela mesma como uma semitica da ao

    (em papel). Mas se uma retoma da outra suas principais aquisies, a saber

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    a problemtica actancial e modal conhecida enquanto gramtica narrativa, somente com

    certas reservas. Pois a forma que a teoria sociossemitica acaba por tomar resulta de uma

    crtica metdica do modelo standard (LANDOWSKI 2004: 39-49). Ao procurar superar

    as pressuposies filosficas e antropolgicas desse modelo e completar suas lacunas,

    a sociossemitica foi levada a adicionar conceituao semio-narrativa clssica um certo

    nmero de complementos que tomam finalmente lugar num modelo novo, ao mesmo

    tempo integrador e inovador (LANDOWSKI 2005: 71-92).

    Na base quase filosfica da gramtica narrativa clssica, encontra-se o postulado

    segundo o qual todas as flutuaes que afetam a condio material e moral dos sujeitos

    dependem de operaes de juno que alternativamente os pem ou de posse dos objetos

    que valorizam (conjuno), ou em estado de privao (disjuno) (GREIMAS & COURTS

    1979). Ora, tal modelizao permite dar conta somente de um aspecto, muito parcial, de

    nossas relaes com o mundo de seu aspecto econmico. E alm dessa dimenso

    da vida, existe, enquanto positividades tambm semioticamente analisveis, interaes

    independentes de qualquer transferncia de objetos entre sujeitos. De fato, antes de

    se decompor em unidades discretas oferecidas a nossa curiosidade, nossa cobia ou

    nossa apreenso, o mundo nos presente enquanto totalidade fazendo sentido. assim

    que, numa perspectiva em parte inspirada nos trabalhos de Sartre e de Merleau-Ponty,

    foi-se levado a postular, paralelamente lgica da juno, a pertinncia semitica de

    uma outra lgica do sentido, fundada sobre a co-presena sensvel dos actantes o que

    foi convencionado chamar de lgica da unio (LANDOWSKI 2004: 62-66, 136-137).

    Segundo a lgica da juno, a compreenso do mundo passa pelo deciframento

    de formas que, verbais ou no, so consideradas como equivalentes a outros tantos

    textos que, supostamente, quereriam dizer-nos qualquer coisa. Ao contrrio,

    segundo a lgica da unio, ns no olhamos mais, ou no ainda, o mundo como uma

    rede de significantes a decifrar. Entretanto, apesar disso, j existem sentido e valor.

    que, no havendo como localizar na superfcie das coisas as marcas de discursos

    inteligveis que nos seriam direcionados, ns nos deixamos ento impregnar pelas

    qualidades sensveis inerentes s coisas mesmas. , portanto, necessrio distinguir dois

    tipos de processos de significncia: a leitura, decifrao das significaes, fundada

    sobre o reconhecimento de formas figurativas, e a captura, apreenso do sentido que

    emana das qualidades sensveis plsticas, rtmicas, estsicas imanentes aos objetos.

    Sublinhamos que nem um nem o outro desses regimes se define por referncia a uma

    classe determinada de elementos qual ele se aplicaria especificamente, mas que aquilo

    que os separa deve-se diferenca dos tipos de olhar que eles implicam respectivamente,

    sobre o mundo, qualquer que seja o elemento visado. Mais ainda, leitura ou captura,

    cada uma implica na realidade, da parte do sujeito, uma modalidade diferente de

    ser no mundo e, por esta razo mesmo, entra em correlao com os modelos

    praxiolgicos oriundos da gramtica narrativa enquanto problemtica da interao.

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    Assim deve-se esperar que aos distintos modos de significncia, uns da ordem da leitura,

    outros da captura, correspondam, em termos de narratividade, regimes de interao

    tambm distintos (LANDOWSKI 2007).

    Para mostrar isso, vamos recorrer a dois exemplos literrios. Primeiro, o heri de

    O Vermelho e o Negro, de Stendhal, Julien Sorel. Da parte dele, a decifrao das significaes

    efetuada por meio de uma meticulosa leitura do mundo (e, mais tecnicamente,

    da leitura de suas figuras de superfcie), que acompanhada pelo comportamento social

    caracterstico de algum que se valia de intrigas: Julien um sujeito programado para

    manipular. No extremo oposto, Goliadkine, personagem central do conto de Dostoevski,

    O Duplo, apresenta-se como absolutamente incapaz de retirar alguma significao clara

    das intrigas que, ele cr, so tramadas ao seu redor: uma linguagem que ele no sabe

    ler. Inversamente, a cada instante, prolifera a seus olhos, sobre o modo da captura

    isto , no contato com as qualidades plsticas do mundo que o circunda (ou estsicas

    dos corpos que ele margeia) , uma multiplicidade de tropismos que, na medida em

    que, em si mesmos, fazem sentido para ele, comandam inteiramente sua maneira de agir

    em sociedade e o que se pode chamar sua praxis existencial: longe de programar o que

    quer que seja, ele procura entrar em sintonia com o outro, no instante; longe de manipular quem quer que seja, ele se entrega ao puro acaso do que advir, colocando assim em ao (sem sucesso) dois regimes de sentido e de interao diametralmente opostos queles que privilegiava (alis em seu prprio detrimento) o heri de Stendhal: o regime do ajustamento

    ao outro e aquele do assentimento aos decretos da sorte.

    Regimes de sentido e regimes de interao

    Entre esses diversos regimes, a semitica narrativa standard reconhecia somente dois: a operao, ou ao programada sobre as coisas, e sobretudo a manipulao, entre sujeitos. O que os distingue sociossemioticamente so os princpios sobre os quais eles se fundam respectivamente: de um lado um princpio geral de regularidade que, congelando os papis dos protagonistas da ao, garante (em princpio) a eficcia de nossas intervenes sobre o mundo; de outro, um princpio de intencionalidade cujo funcionamento supe o reconhecimento recproco dos parceiros da ao enquanto sujeitos dotados de competncias modais (do tipo querer, saber, etc.) (LANDOWSKI 2005:17-20, 34-39). Foi assim que a gramtica narrativa colocou em relevo a figura do manipulador e, em menor grau, a do programador. Ao contrrio, nem o sujeito confiante na sua capacidade de sentir ao vivo as potencialidades de uma situao, de tirar vantagem da propenso das coisas ou das pessoas, de apreender e de explorar de improviso o kairos o batizamos de oportunista , nem o fatalista decidido a entregar-se sorte, encontravam lugar nesse quadro. Tanto a observao da interao, quanto a prpria experincia que temos, nos obrigam a reconhecer-lhes um lugar no modelo. Da a necessidade de introduzir

    ao lado dos regimes precedentes que, ao perder seu monoplio, no perdem nada

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    de sua pertinncia dois regimes complementares, respectivamente fundados sobre um princpio de sensibilidade e um princpio de aleatoriedade: aqueles do ajustamento e do assentimento (LANDOWSKI 2005: 43-47, 64-71).

    Uma vez superados os limites do modelo juntivo, v-se assim que novas possibilidades se abrem para dar conta da diversidade de modos de apreenso do sentido na interao e tentar construir uma teoria geral. Pode-se resumi-la sob a forma esquemtica seguinte (LANDOWSKI 2005: 72):

    Formando sistema e tendo por conseguinte a vocao de se articular e de se combinar entre si, as quatro frmulas s quais se chega permitem dar conta da variedade e do carter geralmente compsito, hbrido ou polivalente das prticas interacionais observveis sobre os terrenos os mais diversos, inclusive aquele da construo do objeto de conhecimento nas nossas disciplinas com vocao cientfica. Fortemente integrador, uma vez que ele visa a dar conta no somente das regularidades mas tambm dos acidentes da construo do sentido, esse modelo implica uma moral da interao, ou uma tica do sentido. Nessa medida, ele convida a uma reflexo nova sobre o papel, o estatuto e a vocao de nossa disciplina, a meio caminho entre descries antropolgicas e reflexo filosfica.

    Seguem algumas definies de base relativas principalmente aos dois regimes introduzidos mais recentemente no quadro da gramtica da interao.

    I. O regime do assentimento (ou lea)

    Acidente

    Ver lea, Assentimento, Papel

    Fazer ser

    Fazer fazer

    Fazer querer

    Fazer advir Fazer sobrevir

    Fazer sentir

    Regime de interaofundado sobrea regularidade :a programao.(Estratgias do

    programador.)

    Regime de interaofundado sobre

    a intencionalidade:a manipulao.(Estratgias do

    manipulador.)

    Regime de interaofundado sobre

    o aleatrio:o assentimento.(Estratgias do

    fatalista.)

    Regime de interaofundado sobrea sensibilidade:o ajustamento.(Estratgias do oportunista.)

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    lea

    Do mesmo modo que a regularidade constitui o princpio pressuposto por toda

    programao, que a intencionalidade a base necessria para toda manipulao

    estratgica e que a sensibilidade a condio de toda interao em forma de ajustamento,

    o lea (ou melhor, a aleatoriedade) constitui, do ponto de vista de uma sociossemitica

    da interao, o princpio fundador de um regime de sentido e de interao especfico, o regime

    do acidente ou, mais precisamente, do assentimento ao imprevisvel. Capaz, sob a figura do

    azar, de fazer fracassar ou vencer qualquer programa em curso, qualquer manipulao,

    qualquer ajustamento, o lea faz funo de actante joker e apresenta o estatuto de

    um auto-destinador paradoxal. Por definio, ele no depende de nenhuma instncia que

    lhe seja exterior. Mas tampouco pode-se dizer que ele dependa de si mesmo como seria

    o caso de um ator que instauraria seu prprio dever-fazer. Ao contrrio, somente em

    sua manifestao mesma (por exemplo, numa sequncia de nmeros tirados ao azar),

    que ele se autoinstitui, em ato, como sua prpria lei (LANDOWSKI 2005: 65-70).

    Assentimento

    Fundado sobre o princpio do lea, o que se denomina regime do assentimento

    equivale ao que na terminologia sociossemitica se chama tambm regime de acidente.

    A escolha entre essas duas denominaes depende da perspectiva que se adote:

    seja uma perspectiva objetivante que sublinha o carter imprevisvel, aleatrio,

    acidental do que advm, seja uma perspectiva em conformidade com o ponto de vista

    do sujeito que aceita a incerteza da sorte, a possibilidade do acidente, o risco do nonsense.

    Ao contrrio, passa-se para o regime da manipulao quando o sujeito, transformando

    o lea em uma espcie de destinador, tenta conjurar a sorte e orientar o azar a seu favor.

    Deixa-se igualmente o regime do assentimento, mas para se orientar rumo ao da programao

    quando se procura capturar, atrs da aparncia aleatria do curso das coisas, as regularidades

    estatsticas que permitem clculos de probabilidade (LANDOWSKI 2005: 62-65).

    Coincidncia

    No quadro da problemtica geral da interao, distinguem-se na sociossemitica dois modos de encontro entre actantes. Quando se trata de pr em relao as intencionalidades (como ocorre no regime da manipulao) ou de pr em contato as sensibilidades (como ocorre no ajustamento), fala-se de interao propriamente dita. Ao contrrio, fala-se em coincidncia quando o encontro o simples cruzamento de dois percursos independentes postos em relao por uma instncia terceira, operador (no caso do regime de programao) ou azar (sob o regime do acidente). Nos dois primeiros casos, o resultado da interao (stricto sensu) negociado mediante um processo dinmico de coordenao entre

    as competncias (modais ou estsicas) dos participantes; nos outros dois, o resultado final

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    da coincidncia predeterminado pela definio dos papis temticos prprios a cada

    um dos atores que as circunstncias fazem entrar em conjuno (na programao) ou

    em coliso (sob o efeito do azar) (LANDOWSKI 2005: 86-91).

    II. O regime do ajustamento

    Ajustamento

    O termo ajustamento designa um dos quatro regimes interacionais definidos pela

    teoria sociossemitica. Ajustamento no deve ser confundido com a ideia de adaptao,

    que remete ao regime da programao (onde um actante pode agir sobre um outro

    apenas sob a condio de respeitar as regularidades que regem seu comportamento).

    No consiste, tampouco, em fazer de modo que um dos actantes se dobre vontade do outro,

    como na manipulao. Trata-se de um regime entre iguais, onde os actantes coordenam

    suas dinmicas respectivas em funo de um princpio de sensibilidade. Ele pe em jogo

    o processo de contgio fundado sobre as qualidades sensveis dos parceiros da interao,

    isto , de um lado, a consistncia estsica (plstica e rtmica) dos objetos, e, de outro,

    a competncia estsica dos sujeitos (LANDOWSKI 2005: 39-52).

    Competncia estsica

    Diferindo da competncia modal que remete lgica da juno, a competncia

    estsica remete, em sociossemitica, lgica da unio. Seu exerccio supe, da parte

    do sujeito, a superao do modo de leitura do mundo definido pelo reconhecimento

    de unidades figurativas pontuais, e uma disposio para capturar efeitos de sentido oriundos

    das qualidades plsticas prprias aos objetos apreendidos em sua presena imediata,

    qualquer que seja seu estatuto actorial (parceiros humanos, obras ou objetos do mundo

    natural). Obedecendo ao princpio de sensibilidade (e, portanto, independentemente

    de qualquer intencionalidade orientada por objetivos do tipo liquidao da falta),

    essa competncia permite o desenvolvimento do processo de ajustamento recproco,

    at o accomplissement (desabrochamento) mtuo dos participantes. Expandindo-se

    maneira de uma finalidade sem fim sem alvo preestabelecido , a competncia

    estsica se constitui na medida mesma em que ela se exerce (LANDOWSKI 2004: 96-99).

    Contgio

    Em termos epidemiolgicos, o contgio define-se como uma transformao de

    estado provocada pela transferncia de um objeto (o vrus) entre sujeitos: ele obedece

    lgica da juno. O conceito sociossemitico de contgio depende, ao contrrio,

    da lgica da unio. Se o rir, o bocejar ou o desejo so ditos contagiosos, porque,

    para provoc-los, no sempre necessrio conjugar o interlocutor a algum

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    objeto especialmente risvel, aborrecido ou desejvel. Ao deixar to somente transparecer o seu prprio estado hilrio, de fastio ou de desejo, um sujeito pode acender (como diz Rousseau) o mesmo fogo no corao dos que o olham. Sentir o sentir do outro , em muitos casos, j prov-lo por sua prpria conta, como se, por uma espcie de performatividade da copresensa sensvel, a percepo das manifestaes somticas de certos estados vividos por outros tenha o poder de nos fazer experiment-los. O contgio assim entendido como relao entre sensibilidades, intervindo, portanto, no plano estsico, no se confunde com a imitao intencional, nem com a empatia, situada no plano cognitivo (LANDOWSKI 2004).

    Estesia

    Introduzida por A. J. Greimas, em Da Imperfeio, a partir de uma reflexo sobre a experincia do acidente esttico, a noo de estesia, uma vez separada daquela de acidente, serve de base, em sociosssemitica, definio de um regime de interao especfico, aquele chamado de ajustamento. Os processos de ajustamento encontram seu motor na captura, pelos interactantes, dos efeitos de sentido provenientes das qualidades estsicas da organizao plstica e do andamento rtmico imanentes ao discurso sensvel que cada um dos parceiros enderea ao outro atravs da dinmica de sua presena em movimento (GENINASCA 1984; GREIMAS 1987; FLOCH 1997).

    Sensibilidade

    O princpio de sensibilidade funda o que se denomina em sociossemitica o regime de ajustamento. Nesse quadro, se levado a reconhecer, ao lado da sensibilidade perceptiva (interoceptiva, proprioceptiva, exteroceptiva) prpria aos sujeitos, uma sensibilidade dita reativa, atribuda aos objetos inanimados, sem a qual no se poderia dar conta das dinmicas interativas entre homens e mquinas ou entre o homem e seus parceiros do mundo natural, como a neve para o esquiador (LANDOWSKI 2004).

    Unio

    Por oposio lgica da juno que condiciona os estados (inclusive passionais) dos sujeitos com as suas relaes de conjuno ou de disjuno com objetos autnomos, aptos a circular entre eles , a lgica da unio d conta de processos de emergncia do sentido e do valor que resultam diretamente das relaes de copresena sensvel, face a face ou corpo a corpo, entre actantes dotados de uma competncia estsica. O termo unio designa, pois, no um estado (nem de conjuno nem de fuso) mas uma dinmica interacional. Nesse quadro, as relaes de interao tomam a forma de ajustamentos recprocos e tendem para formas de realizao mtua nas quais se desenvolve o potencial especfico prprio a cada um dos interagentes (GREIMAS & COURTS 1979: 201, 318-319; LANDOWSKI 2004: 58-66).

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    III. O regime da programao

    Programao

    Ver Regularidade, Papel.

    Regularidade

    A condio para a existncia do regime de interao denominado em sociossemitica programao o princpio fundado na regularidade. Tal regularidade remete constncia das relaes entre os efeitos (as aes, os comportamentos) e seus determinantes. Ela pode ser garantida, como em fsica, por relaes de causalidade ou por coeres sociais traduzidas sob a forma de regras, de hbitos, de rituais que, uns e outros, acabam definindo papis temticos por definio fixos. Fundado sobre esse princpio que constitui a condio de possiilidade de toda previso, o regime da programao aquele da repetio do mesmo, da rotina e do risco mnimo, mas ao mesmo tempo tambm aquele do maior fechamento do sentido, podendo mesmo chegar insignificncia (LANDOWSKI 2005: 17-20, 31-34).

    Papel

    Ao passo que a noo de papel temtico corresponde a percursos de vida estveis (por exemplo, um pescador pesca), a de papel actancial reenvia a competncias modais mutantes (querer, e depois, renunciar). Em outros termos, um papel temtico traduz, pela sua estabilidade, o princpio de regularidade prprio ao regime da programao, enquanto que um papel actancial permite, por sua maleabilidade, dar conta dos confrontos entre intencionalidades sob o regime de manipulao. No regime de ajustamento fundado sobre o princpio de sensibilidade, os sujeitos, dotados de competncia estsica exercem papis existenciais. Sobre o acaso: ainda que desprovido de competncia modal ou estsica (nenhuma intencionalidade, nenhuma sensibilidade pode fundar suas decises), ele tambm tem um papel: produzir acidentes. Mas a maneira aleatria pela qual o regime do assentimento opera contradiz a ideia mesma de papel temtico (que implica a regularidade) e impe aquela, antittica, de papel estocstico (no regularidade e imprevisibilidade). Ademais, verdadeiro actante joker, o acaso preenche tambm um papel crtico (ele pode decidir o resultado de todo e qualquer processo interacional, qualquer que seja o regime) e um papel cataltico (ele fica isento de qualquer repercusso atada aos efeitos que ele produz). (GREIMAS & COURTS 1979: 52-54, 318-319; LANDOWSKI 2005: 65-71).

    IV. O regime da manipulao

    Manipulao

    Ver A.J. Greimas e J. Courts, Smiotique. Dictionnaire raisonn de la thorie du

    langage, Paris, Hachette, 1979 (Trad. port. Dicionrio de Semitica. So Paulo. Ed. Contexto,

    2004) e E. Landowski, Les interactions risques, Limoges, Pulim, 2005.

  • LANDOWSKI, E. Sociossemitica: uma teoria geral do sentido. Galaxia (So Paulo, Online), n. 27, p. 10-20, jun. 2014.20

    Eric Landowski, director de pesquisa associado ao Cevipof

    (Paris, CNRS-Sciences Po) e ao CeReS (Universidade de

    Limoges), codiretor da revista Actes Smiotiques, codiretor

    do Centro de Pesquisas Sociossemitica de So Paulo e

    professor convidado da Universidade de Vilnius. Entre

    suas principais publicaes esto: A sociedade refletida

    (Educ-Pontes,1991); Presenas do outro (Perspectiva,

    2002); Passions sans nom (P.U.F., 2004) e Les interactions

    risques (PULIM, 2005).

    [email protected]

    Referncias

    FLOCH, J.-M. 1995: Identits visuelles, Paris, PUF.

    ______. 1997: Lecture de Tintin au Tibet, Paris, PUF.

    GENINASCA, J. 1984: Le regard esthtique , Actes Smiotiques-Documents, VI, 58 (rd. in La parole littraire, Paris, PUF, 1997).

    GREIMAS, A.J. 1976: Smiotique et sciences sociales, Paris, Seuil.

    ______. 1987: De lImperfection, Prigueux, Fanlac.

    ______. et J. COURTS 1979: Smiotique. Dictionnaire raisonn de la thorie du langage, Paris, Hachette (rd.1993).

    LANDOWSKI, E. 1989: La socit rflchie. Essais de socio-smiotique, Paris, Seuil.

    ______. 1997: Prsences de lAutre. Essais de socio-smiotique II, Paris, PUF.

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    MARRONE, G. 2001: Corpi sociali, Turin, Einaudi.

    MARSCIANI, F. 2007: Tracciati di etnosemiotica, Milan, Angeli.

    Este texto foi recebido em fevereiro e aprovado em maro de 2014.