Larrosa, Jorge. O Ensaio e a Escrita Acadêmica[1]

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5/25/2018 Larrosa,Jorge.OEnsaioeaEscritaAcadmica[1]-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/larrosa-jorge-o-ensaio-e-a-escrita-academica1 1/17 1 LARROSA, Jorge. O ensaio e a escrita acadêmica. Educação & Realidade, v.28, n.2, p. 101-115, 2003. RESUMO - O ensaio e a escrita acadêmica.  Trata-se de problematizar a academia do ponto de vista de suas políticas da linguagem ou, mais concretamente, do ponto de vista das modalidades de leitura e de escrita que privilegia e que proíbe. Trata-se de refletir sobre a escrita e a leitura acadêmica a partir do ensaio, gênero híbrido ancorado num tempo e espaço claramente subjetivo e que parece opor-se, ponto a ponto, às regras de pureza e de objetividade que imperam na academia. A pergunta que atravessa o texto é se é possível ensaiar em educação ou, dito de outro modo, habitar o espaço educativo como ensaísta. Palavras-chave:  escrita acadêmica, ensaio, linguagem. ABSTRACT - The essay and the academi c writing.  This article problematizes academia from  point of view of its language policies or, more concretely, from the point of view of the reading and writing modalities that it privileges and bans. The article inquires into academic writing and reading using, as a starting point, the essay, which is a hybrid gender anchored in a clearly subjective notion of space and time and which seems to oppose academia's rules of purity and objectivity. The question that cuts across the article is whether is possible "to essay" in education or inhabit the educational space as an essayist. Keywords:  academic writing, essay, language. [p. 102] Usarei o ensaio como pretexto para problematizar a escrita acadêmica, ou melhor,  para problematizar o modo como as políticas da verdade e as imagens do pensamento e do conhecimento, dominantes no mundo acadêmico, impõem determinados modos de escrita e excluem outros, entre eles o ensaio. Um dos meus mestres, Basil Bernstein, ensinou-me que,  para saber a estrutura profunda de uma prática institucional, temos que interrogar sobre o que ela proíbe. Se quisermos compreender como funcionam as estruturas de produção, transmis são e controle do conhecimento, é melhor tentar averiguar o que proíbem. Somente assim conheceremos os limites e, portanto, as regras básicas do seu funcionamento. O que faço a seguir é refletir sobre o ensaio como uma das figuras do que é excluído da academia, pelo menos das formas de saber e de pensar que dominam no mundo acadêmico.

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    LARROSA, Jorge. O ensaio e a escrita acadmica. Educao & Realidade, v.28, n.2, p.

    101-115, 2003.

    RESUMO - O ensaio e a escrita acadmica. Trata-se de problematizar a academia do ponto de

    vista de suas polticas da linguagem ou, mais concretamente, do ponto de vista das modalidades

    de leitura e de escrita que privilegia e que probe. Trata-se de refletir sobre a escrita e a leitura

    acadmica a partir do ensaio, gnero hbrido ancorado num tempo e espao claramente subjetivo

    e que parece opor-se, ponto a ponto, s regras de pureza e de objetividade que imperam na

    academia. A pergunta que atravessa o texto se possvel ensaiar em educao ou, dito de outro

    modo, habitar o espao educativo como ensasta.

    Palavras-chave: escrita acadmica, ensaio, linguagem.

    ABSTRACT - The essay and the academic writing. This article problematizes academia from

    point of view of its language policies or, more concretely, from the point of view of the reading

    and writing modalities that it privileges and bans. The article inquires into academic writing and

    reading using, as a starting point, the essay, which is a hybrid gender anchored in a clearly

    subjective notion of space and time and which seems to oppose academia's rules of purity and

    objectivity. The question that cuts across the article is whether is possible "to essay" in education

    or inhabit the educational space as an essayist.

    Keywords: academic writing, essay, language.

    [p. 102] Usarei o ensaio como pretexto para problematizar a escrita acadmica, ou melhor,

    para problematizar o modo como as polticas da verdade e as imagens do pensamento e do

    conhecimento, dominantes no mundo acadmico, impem determinados modos de escrita e

    excluem outros, entre eles o ensaio. Um dos meus mestres, Basil Bernstein, ensinou-me que,

    para saber a estrutura profunda de uma prtica institucional, temos que interrogar sobre o que

    ela probe. Se quisermos compreender como funcionam as estruturas de produo, transmis so

    e controle do conhecimento, melhor tentar averiguar o que probem. Somente assim

    conheceremos os limites e, portanto, as regras bsicas do seu funcionamento. O que fao a

    seguir refletir sobre o ensaio como uma das figuras do que excludo da academia, pelo

    menos das formas de saber e de pensar que dominam no mundo acadmico.

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    Advirto que, no que acabo de dizer, misturei palavras como verdade, pensamento,

    conhecimento, saber e escrita. Na verdade, falo do ensaio como um "modo de escrita"

    normalmente excludo de um espao de saber. Porm, os dispositivos de controle do saber so

    tambm dispositivos de controle da linguagem e da nossa relao com a linguagem, quer dizer,

    das nossas prticas de ler e escrever, de falar e escutar. Nosso trabalho na academia tem a ver

    com o saber, basicamente um trabalho com palavras. O que fazemos a cada dia escrever e ler,

    falar e escutar. A partir disto, poderamos dizer que o conformismo lingstico est na base de

    todo conformismo, e que falar como Deus manda, escrever como Deus manda e ler como Deus

    manda, ao mesmo tempo, pensar como Deus manda. Tambm poderamos dizer que no h

    revolta intelectual que no seja tambm, de alguma forma, uma revolta lingstica, uma revolta

    no modo de nos relacionarmos com a linguagem e com o que ela nomeia. Ou seja, que no h

    modo de "pensar de outro modo" que no seja, tambm, "ler de outro modo" e "escrever de outro

    modo".

    Gostaria, aqui, de abrir uma reflexo sobre nossas prprias experincias de escrita e leitura no

    mundo acadmico. Tudo o que direi nada mais que uma srie de anotaes orientadas para

    provocar essa conversao. Por isso, serei exagerado, irnico, caricaturesco, violento, tosco e, s

    vezes, descuidado em algumas consideraes, quer dizer, voluntariamente provocativo.

    Para essa provocao, tomarei como pretexto um texto clebre que Adorno escreveu em 1954

    e que se intitula O ensaio como forma. Porm, deixo claro que no se trata de uma conferncia

    sobre Adorno, ou sobre esse texto de Adorno, mas sobre o ensaio e a escrita acadmica. O texto

    de Adorno serve para ordenar as idias e para me dar um ponto de ancoragem. Por isso, vou

    cit-lo, parafrase-lo e coment-lo de uma forma bastante livre, bastante extravagante, quase

    selvagem... lendo-o numa associao livre de idias e anotando margem tudo o que ocorra em

    relao ao texto, mesmo que parea impertinente ou ainda descabido.

    Isso com uma inteno que est inscrita nas ltimas linhas do texto de Adorno. Essas ltimas

    linhas dizem: "a lei formal mais profunda do ensaio a heresia. Apenas a infrao [p. 103]

    ortodoxia do pensamento torna visvel, na coisa, aquilo que a finalidade objetiva da ortodoxia

    procurava, secretamente, manter invisvel" (Adorno, 2003, p. 45). Trata-se, ento, de que a

    heresia e a violncia explicitem os dispositivos lingsticos e mentais da ortodoxia, aquilo que

    ela s faz ocultar. Isso o que fez Adorno ao render uma homenagem a seu amigo Walter

    Benjamin, um dos grandes excludos da universidade alem. E isso o que quero que faamos

    aqui.

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    Porm, antes, gostaria de dizer algo sobre uma escritora espanhola, malaguenha, chamada

    Maria Zambrano, outra excluda da academia. Maria Zambrano uma pensadora de difcil

    classificao (como quase todos os autores interessantes, esses que no sabemos muito bem

    como situar na classificao das especialidades universitrias), que dedicou parte de sua obra a

    problematizar os gneros literrios e sua relao com a vida. A obra de Maria Zambrano tenta

    fundar uma "razo vital", na perspectiva de Ortega (ela foi sua discpula antes da guerra civil

    espanhola), porm uma razo vital que se faz pouco a pouco, e por sua prpria necessidade, uma

    "razo potica". Ocorre que, enquanto razo potica, a razo zambraniana, o logos zambraniano,

    problematiza constantemente as relaes com a vida, pensa seguidamente sobre o carter vital, a

    vitalidade especfica dessa razo. Pois bem, num desses escritos, em que ela problematiza os

    gneros literrios e sua relao com a vida, um texto intitulado La gua como forma del

    pensamiento - uma espcie de nota marginal "Gua de Perplejos" de Maimnides e certamente

    tambm "Gua Espiritual" de Miguel Molina , Maria Zambrano faz uma considerao

    histrica que aqui pertinente e que gostaria de resumir. O que diz a escritora malaguenha que

    o triunfo da filosofia sistemtica (o triunfo da forma sistemtica de fazer filosofia) e o triunfo da

    razo tcnico-cientfica (o triunfo da forma tcnico-cientfica da razo) derrotam outras formas

    de escrita, que tiveram grande importncia durante o Renascimento e o Barroco. Entre essas

    formas de escrita derrotadas e vencidas est o ensaio, de imediato, mas tambm outros gneros

    como as epstolas morais, os dilogos filosficos, os preceitos espirituais, os tratados breves, as

    confisses, as consolaes, etc, todas essas dificilmente classificveis nas atuais divises do

    saber. So obras e autores que por vezes se estuda na histria do pensamento, por vezes na

    histria da literatura: para ns (e insisto neste "para ns"), essas formas derrotadas so formas

    hbridas, impuras, ambguas e, certamente, menores do ponto de vista do que "hoje" entendemos

    por "filosofia". Essas formas de escrita, ainda no dizer de Maria Zambrano, tiveram grande

    importncia nos pases do sul da Europa: na Espanha, Itlia e Frana. Por isso, sua derrota

    implica, tambm, a marginalizao desses pases, relegando-os periferia da cultura vencedora

    e, hoje, dominante.

    Poderamos dizer, simplificando muito, que a filosofia, no sentido escolar e sistemtico da

    palavra, a filosofia dos professores de filosofia, a filosofia acadmica universitria, algo que

    sobretudo os alemes e os franceses fazem bem. [p. 104]

    Poderamos tambm dizer que a investigao emprica algo que sobretudo os "gringos"

    fazem bem. E o que ns fazemos imit-los, tarde e mal e com poucos recursos. Vocs

    concordaro comigo que a filosofia escolar e sistemtica se faz na Biblioteca, requer a Biblioteca

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    como condio de possibilidade, e a Biblioteca com maisculo; e a Biblioteca de verdade o

    resultado de sculos de erudio est na Alemanha e na Frana. Suponho que tambm

    concordaro comigo que a investigao emprica se faz com dinheiro, e o dinheiro est nos

    Estados Unidos. O que quero dizer que o triunfo dessas formas de conhecimento colocou os

    pases latinos e latino-americanos numa situao de dependncia intelectual. Essa situao de

    dependncia nos converteu ou em administradores de algum filsofo estrangeiro, ou em

    seguidores do ltimo paradigma cientfico que os gringos inventaram, espoliando e

    simplificando, na maioria das vezes, a cultura europia.

    No sei se alguma vez vocs j se encontraram na situao de ter que escrever um artigo

    encomendado por alguma revista internacional. Desses artigos que tratam sobre coisas como "a

    filosofia da educao na Espanha", "a psicolingstica na Argentina" ou "os Estudos Culturais

    no sei aonde". Geralmente, quando um espanhol ou um argentino convidado a escrever numa

    dessas revistas internacionais (isto , "gringas"), logo se supe que nada inte ressante eles tm a

    dizer, que s podem fazer um artigo intitulado "a filosofia da educao na Espanha" a fim de

    contar - de forma breve e resumida - o que h em suas universidades e o que fazem. Na filosofia,

    por exemplo, trata-se de um exerccio pattico em que somente se pode listar o nome de alguns

    amigos e colegas como representantes de algum filsofo "de verdade". Porque na Espanha, como

    suponho aqui tambm, temos de tudo: uns quantos habermasianos, uns quantos foucaultianos,

    algum especialista em Rorty e no pragmatismo americano, vrios representantes de Heidegger,

    um ou outro gadameriano, etc., e falta alguma especialidade, algum j deve estar aspirando

    vaga. O mesmo sucede com a investigao emprica. Inclusive os temas politicamente na moda

    so tratados em nossos lares, mimetizando o que vem de outro lugar. Essa situao e o fato

    correspondente de que somos ns que devemos ler ingls ou alemo para poder escrever em

    castelhano, e no o contrrio, somos ns que devemos ir estudar em suas universidades, para

    ganharmos uma posio nas nossas, e no o contrrio tem como resultado a inteligente obser-

    vao de Maria Zambrano, segundo a qual a marginalizao de certas formas de racionalidade e

    de escrita supe a subordinao de certos lugares de produo intelectual.

    Espanha e Amrica Latina no so terras de filsofos, ao menos no sentido da filosofia

    sistemtica. Na Espanha, se chama de filsofo no a um professor de filosofia, mas a uma dessas

    pessoas sbias, s vezes "sabidona", que falam devagar, pensando as frases, sentenciosamente.

    Delas se diz que so "um Sneca" falando: "esta pessoa um Sneca" ou "um Unamuno". Isso

    curioso [p. 105] porque nem Sneca nem Unamuno foram filsofos no sentido da filosofia

    sistemtica, escolar e pura. A obra de Sneca uma obra completamente hbrida (repito, a partir

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    das nossas atuais classificaes) e no se sabe se pertence filosofia ou literatura, acontecendo

    o mesmo com Unamuno. Estas no so terras de filsofos nem terras de cientistas; so terras de

    poetas, de novelistas, e tambm de magnficos ensastas, alm, claro, de serem terras de

    militares, de padres e de revolucionrios.

    De fato, uma das primeiras vezes em que a expresso "razo potica" aparece em Maria

    Zambrano, no contexto da leitura que faz de Antonio Machado (Zambrano, 1987b, p. 45-50).

    A diz Maria Zambrano, nesse vocabulrio dos anos 30, que a alma espanhola se expressa

    poeticamente. E essa expresso potica a faz estar mais perto da vida concreta. Desde seu

    vitalismo, Maria Zambrano objeta filosofia sistemtica e razo tcnico-cientfica o fato de se

    apartarem da vida e depois quererem reform-la violentamente. Os programas de "reforma do

    entendimento", de "reforma do pensamento" e de "reforma da razo", que atravessam a cultura

    ocidental,desde o sculo XVII at o sculo XX, passam por tornar violenta a vida, por violentar a

    vida, ajustando-a aos moldes da razo. Ante essa violncia, afirma Maria Zambrano, a vida fica

    humilhada e se vinga rancorosamente. Para Maria Zambrano, a razo no deve dominar a vida,

    deve enamor-la, e so justamente as formas de escrita com capacidade de enamorar a vida, quer

    dizer, de captur-la e dirigi-la desde dentro, as que desapareceram. Maria Zambrano faz uma

    reivindicao dos gneros menores, impuros e dominados justamente por isso, porque

    mantinham essa relao com a vida que os gneros maiores, puros, e hoje dominantes, perderam

    (Op. Cit., p. 76). Essa reivindicao tambm tem algo de reivindicao nacional. Digo em voz

    baixa e entre parnteses: um dos efeitos saudveis da obra de Maria Zambrano ter reconciliado

    o pensamento espanhol com sua prpria tradio. Com o pensamento espanhol ocorria uma coisa

    que, provavelmente, ocorre aqui tambm, a de que h uma certa tendncia a impor bibliotecas

    alheias. Por exemplo, os leitores de Foucault, quando falam de literatura, reproduzem a

    biblioteca literria de Foucault (Valry, Breton, Bataille, Roussell); o mesmo fazem os leitores

    de Heidegger quando lem Rilke ou Hlderin. O que Maria Zambrano fez foi o mesmo que dar

    permisso aos pensadores espanhis de ocuparem-se de sua literatura.

    A questo que, se dermos crdito ao diagnstico de Maria Zambrano, vivemos maus tempos

    para o ensaio. Creio, porm, que, se olharmos as coisas de um outro lugar, poderemos inverter

    esse diagnstico: talvez estejamos vivendo bons tempos para o ensaio, talvez j se esteja

    produzindo um ambiente cultural favorvel a essa forma hbrida, impura, e sem dvida menor,

    que o ensaio. Em primeiro lugar, por exemplo, pela dissoluo das fronteiras entre filosofia e

    literatura ou, dizendo de forma breve e mal, entre escrita (se podemos dizer assim) pensante ou

    cognoscitiva e entre imaginativa ou potica. Em [p. 106] segundo lugar, pelo esgotamento da

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    razo pura moderna e suas pretenses de ser "a nica razo". Em terceiro lugar, e no menos

    importante, pelo enfado. Tenho a sensao de que no mundo acadmico se est cada vez mais

    enfadado de ouvir sempre as mesmas coisas ditas no mesmo registro arrogante e montono,

    havendo como que uma necessidade de sair desse tdio e uma certa expectativa em relao a

    qualquer registro de escrita que se apresente como diferente. Tenho a impresso de que tanto a

    filosofia sistemtica como a razo tcnico-cientifica entraram em crise (ainda que sejam todavia

    dominantes nas instituies) e que, por isso, voltaram os tempos do ensaio.

    Porm, vamos ao texto de Adorno. O autor comea sua escrita dizendo que o ensaio um

    gnero impuro e que o que se lhe reprova , justamente, sua impureza. A razo dominante

    "pretende resguardar a arte como uma reserva de irracionalidade, identificando conhecimento

    com cincia organizada e excluindo como impuro tudo o que no se submeta a essa anttese"

    (Adorno, 2003, p. 15). O ensaio confundiria ou atravessaria a distino entre cincia,

    conhecimento, objetividade e racionalidade, por um lado; e arte, imaginao, subjetividade e

    irracionalidade por outro. O que o ensaio faz colocar as fronteiras em questo. E as fronteiras,

    como se sabe, so gigantescos mecanismos de excluso. O pior que pode acontecer a quem tenha

    pretenses de escrever filosofia que algum lhe diga: "Isso que voc escreve no filosofia".

    Essa reprovao foi ouvida por Nietzsche, por Foucault, por Benjamin: "isso que voc faz est

    muito bem, mas qualquer coisa menos filosofia". E o pior que pode acontecer a algum que

    tenha pretenses literrias ou poticas que lhe digam: "isto no poesia, poder ser o que

    queiram, mas no poesia", ou no caso de um pintor: "isto no pintura". Todos os poetas e

    pintores que modificaram o que se chama "poesia" ou o que significa "pintura" escutaram

    afirmaes como essas. Porque em todos esses lugares, cada vez que algum leva sua prtica a

    srio, o que colocado em questo justamente a fronteira do que seria a filosofia, poesia ou

    pintura. Coloca em questo justamente a definio padro do que cabe dentro da filosofia, dentro

    da pintura, dentro da poesia. Por isso, so precisamente todos esses questionadores de fronteiras

    os que ampliaram o mbito do visvel ao ensinar-nos a olhar de outra maneira o mbito do

    pensvel, ao ensinar-nos a pensar de outro modo e o mbito do dizvel, ao ensinar-nos a falar de

    outro modo. A questo que o mundo acadmico est altamente compartimentalizado e tenho a

    sensao de que toda essa moda da transdisciplinaridade, da interdisciplinaridade e coisas desse

    estilo, no faz outra coisa seno abrir novos compartimentos, como se no fossem suficientes os

    que j temos. E como se estivssemos fabricando especialistas na relao, na sntese, no "inter" e

    no "trans"; como se houvesse uma poltica acadmica da mestiagem; como se alm das raas

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    puras estivssemos inventando os especialistas em impurezas, quer dizer, nas relaes entre as

    raas puras.

    Alm de confundir as diferenas entre cincia, arte e filosofia, o ensaio se d uma liberdade

    temtica e formal que s pode incomodar num campo to [p. 107] reprimido e to regulado como

    o do saber organizado. A esse respeito, Adorno assinala que o ensaio se v esmagado por uma

    cincia em que todos defendem o direito de controlar a todos. A cincia organizada o lugar dos

    controles, o lugar das bancas, dos tribunais, das avaliaes, das hierarquias, e exclui com o

    aparente elogio de "interessante" ou "sugestivo" o que no est ajustado ao padro de consenso.

    A frase de Adorno que "elogiar algum como crivain o suficiente para excluir do mbito

    acadmico aquele que est sendo elogiado" (Op. Cit., p. 15). No sei se j vivenciaram algo que

    me acontece com alguma freqncia, o de passar um escrito para um colega que, sem saber o que

    dizer, afirma: " muito interessante, muito sugestivo!". Acho muito engraado o qualificativo

    vazio de "sugestivo". Tudo aquilo que no entra no padro de alguns dos paradigmas

    reconhecidos, tudo aquilo que no se ajusta s classificaes em uso, tudo aquilo que no se sabe

    o que e para que serve, suprimido e ignorado pelo aparente elogio de "sugestivo". Tambm se

    excludo com o aparente elogio de "est muito bem escrito", como se dissesse: "no sei o que

    fazer com o que voc escreve, no sei o que pensar, at acho que no serve para nada, mas est

    bem escrito".

    A impureza e a liberdade do ensaio so, segundo Adorno, as principais dificuldades para a sua

    aceitao. Com relao liberdade, creio que Adorno tem razo: a liberdade intelectual uma

    qualidade em retrocesso, quando triunfam a cincia organizada e a filosofia sistemtica. Deleuze

    dizia que tanto a Epistemologia quanto a Histria da Filosofia so grandes dispositivos de re-

    presso do pensamento. Porm, em relao pureza, penso que os inimigos do ensaio no so os

    filsofos puros, os cientistas puros ou os artistas puros, mas os administradores da pureza, os

    especialistas da compartimentalizao, os que no sabem fazer outra coisa seno administrar e

    sustentar fronteiras. O ensaio no atrapalha um filsofo, um escritor, um artista ou um cientista

    "puros", mas atrapalha os administradores da pureza, os burocratas da comparti mentalizao

    universitria. Adorno fala dos que santificam as prateleiras culturais, dos que idealizam a

    limpeza e a pureza, dos que exigem do esprito "um certificado de competncia administrativa,

    para que ele no transgrida a cultura oficial ao ultrapassar as fronteiras culturalmente

    demarcadas" (Op.Cit, p. 22).

    Outra caracterstica com a qual Adorno indiretamente qualifica o ensaio poderia ser a de que

    o ensasta um leitor que escreve: seu meio de trabalho a leitura e a escrita. O ensasta um

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    leitor que escreve e um escritor que l. George Steiner diz que um intelectual algum que l

    com um lpis na mo: um leitor que escreve. Tambm me parece que se poderia dizer que o

    intelectual algum que escreve sobre uma mesa repleta de livros: um escritor que l. Desse

    ponto de vista, o ensasta est mais perto do antigo "homem de letras" do que do especialista ou

    do professor, ainda que possa ter uma especialidade e possa se dedicar ao ensino. O "homem de

    letras" muito mais o homem culto, o homem cultivado, e Adorno assinala que a no aceitao

    do ensaio na Alemanha decorre de que esse pas "historicamente, mal conhece o homme de

    lettres" (Op. Cit., p. 16). [p. 108]

    Para o ensasta, a escrita e a leitura no so apenas a sua tarefa, o seu meio de trabalho,

    mas tambm o seu problema. O ensasta problematiza a escrita cada vez que escreve, e

    problematiza a leitura cada vez que l, ou melhor, algum para quem a leitura e a escrita so,

    entre outras coisas, lugares de experincia, ou melhor ainda, algum que est aprendendo a

    escrever cada vez que escreve, e aprendendo a ler cada vez que l: algum que ensaia a prpria

    escrita cada vez que escreve e que ensaia as prprias modalidades de leitura cada vez que l.

    Parece-me sintomtico que no territrio acadmico se problematize o mtodo e no a escrita.

    A imagem dogmtica do conhecimento e do pensamento oculta que o que fazemos na maior

    parte do tempo ler e escrever. E oculta, supondo que j sabemos ler e escrever que: ler no

    seno compreender o pensamento, as idias, o contedo ou a informao que h no texto, e

    escrever no seno esclarecer o que j se havia pensado ou averiguado, ou seja, o que j se

    pensa e se sabe. Nas palavras de Adorno, o mundo acadmico supe que "o contedo, uma vez

    fixado conforme o modelo da sentena protocolar, deveria ser indiferente sua forma de

    exposio"(Op. Cit., p. 18), e nisso, por temor subjetividade, que se aproxima do

    dogmatismo.

    Quando Adorno diz que "a elogiosa qualificao de escritor serve, ainda hoje, para manter

    excludo do mundo acadmico a quem recebe tal qualificativo" (Op. Cit., p. 18), est dizendo

    tambm que, neste espao, o acadmico no um escritor. J me aconteceu algo engraado e

    sintomtico: passei um ano em Londres, com bolsa de ps-doutorado, estudando num

    departamento de sociologia, onde havia um curso para estudantes do Terceiro Mundo, intitulado

    "Habilidades de escrita para finalidades acadmicas". A entendi por que os ingleses e os

    "gringos" escrevem todos os papers da mesma forma: so socializados numa escrita acadmica

    muito especfica. Um dia, ao aprendermos como se comea um captulo, a professora trouxe as

    primeiras pginas de dez ou doze captulos, independentemente do tema, e tivemos de seguir o

    modelo. Depois, aprendemos como se coloca um exemplo, como se interrompe a argumentao

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    para elaborar um exemplo. Na seqncia, aprendemos a fazer um resumo, um abstract. E, assim,

    pouco a pouco, todos aprendemos a escrever de um modo mecnico e padronizado, sem estilo

    prprio.

    A questo que, do ponto de vista da imagem dogmtica do pensamento, o acadmico no

    um escritor. Poder-se-ia dizer tambm que o acadmico no um leitor. Talvez j se tenham

    dado conta de que agora ningum estuda, ou l, mas investiga, ou seja, que a leitura acadmica

    investigao. A biblioteca j no lugar de leitura ou estudo, mas de investigao. E o

    investigador um tipo muito particular de leitor: o leitor da novidade, da apropriao, da rapidez.

    Num determinado momento, foi moda na Espanha que nas universidades ocorressem cursos de

    leitura rpida porque era preciso ler tudo em muito pouco tempo, somente para selecionar em

    seguida o que era til ao trabalho do investigador. [p. 109] Nesse sentido, o leitor acadmico

    aquele que sempre tem vontade de ler, porm nunca tem tempo para ler, simplesmente porque

    no pode chamar de "ler" a esse deslizar apressado pelos textos obrigatrios, do ponto de vista da

    apropriao. O acadmico aquele que l por obrigao e, ao mesmo tempo, aquele que l

    julgando o que l, colocando-se a favor ou contra, mostrando seu acordo ou desacordo, dizendo

    sim ou no. O espao acadmico esqueceu a lentido da leitura, a delicadeza da leitura, essa

    forma de tratar o texto como uma fora que nos leva alm de ns mesmos, alm do que o texto

    diz, do que o texto pensa ou do que o texto sabe. Esqueceu ou nunca aprendeu a arte da leitura

    como a define Nietzsche, no prlogo de Aurora: "ler devagar, com profundidade, com

    intensidade, portas abertas e olhos e dedos delicados"(Nietzsche, 2004 p. 14).

    O ensasta est tambm ao lado da figura do livre-pensador. Adorno escreve o seguinte:

    Na Alemanha, o ensaio provoca resistncia porque evoca aquela liberdade de esprito

    que, aps o fracasso de um Iluminismo cada vez mais morno desde a era leibniziana, at

    hoje no conseguiu se desenvolver adequadamente, nem mesmo sob as condies de uma

    liberdade formal, estando sempre disposta a proclamar como sua verdadeira demanda a

    subordinao a uma instncia qualquer (Adorno, 2003, p. 16).

    A Alemanha diz Adorno no conhece historicamente nem o "homem de letras" e

    tampouco o livre-pensador, portanto no desenvolveu um terreno cul tural favorvel ao ensaio. A

    pergunta se o espao acadmico no se parece cada vez mais com a Alemanha. Talvez outro

    aspecto interessante dessa citao de Adorno seja o fato de que o livre-pensador aparea ligado

    liberdade formal. A liberdade de esprito no s tem a ver com a liberdade de dizer o que se

    queira mas, tambm, de dizer como se queira. A liberdade de expresso tem assim um duplo

  • 10

    sentido: a liberdade de expressar livremente idias e pensamentos e, tambm, a liberdade no

    mbito da prpria expresso, no modo de escrita. O espao acadmico certamente o espao de

    disciplina da expresso, o espao onde a disciplina do esprito o dizer o que h para dizer est

    disciplinado no dizer como tem que ser dito, como Deus manda.

    Outro aspecto do ensaio, segundo o texto de Adorno, que apresenta um lado ldico e de

    aventura. A frase de Adorno a seguinte:

    (.. )seus esforos ainda espelham a disponibilidade de quem, como uma criana, no

    tem vergonha de se entusiasmar com o que os outros j fizeram. O ensaio reflete o que

    amado e odiado, em vez de conceber o esprito como uma criao a partir do nada,

    segundo o modelo de uma irrestrita moral do trabalho. Felicidade e jogo lhe so

    essenciais. Ele no comea com Ado e Eva, mas com aquilo sobre o que se deseja falar;

    diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, no onde nada

    mais resta a dizer: ocupa, deste modo, um lugar entre os despropsitos (Adorno, 2003, p.

    16-17). [p. 110]

    A palavra "diverso" funciona aqui no sentido de divagao, de extravagncia. O ensasta

    um transeunte, um passeador, um divagador, um "extravagante", porm o mundo acadmico

    est ligado, como diz Adorno, moral do trabalho. J pensaram alguma vez nas conseqncias

    de chamarmos de "trabalho" os nossos escritos e tambm os "trabalhos" de nossos alunos? Creio

    que merece uma reflexo o fato de que chamemos de "trabalhos" os exerccios de pensamento,

    de criao, de produo intelectual, tudo o que fazemos e o que pedimos que se faa. A pergunta

    : o que ocorre quando a academia se organiza sob o modelo do trabalho? Nietzsche tem

    palavras magistrais sobre o erudito ou o especialista como proletrio do conhecimento,

    esmagado pela diviso do trabalho e pela necessidade de produzir para o mercado. O

    especialista escreve Nietzsche semelhante ao trabalhador da fbrica, que durante toda a sua

    vida no fez outra coisa que seno determinado parafuso para um determinado utenslio, no que

    sem dvida tem uma incrvel maestria, porm j no est em condies de ler por prazer.

    Creio que a organizao do espao acadmico sob o modelo do trabalho uma tendncia

    crescente, incontrolvel e que ningum discute. Discute-se a forma de avaliao do trabalho

    universitrio, a forma de incrementar a produtividade ou competitividade de professores, e

    alunos, o que fazer para que os alunos se evadam menos, o que fazer para que as pessoas

    trabalhem mais, como tomar mais rentvel o que se faz, como responder melhor s demandas do

    Capital e do Estado (isso que agora se chama de "demanda social"). Porm, pensar tudo o que

  • 11

    fazemos sob o modelo do trabalho, o modo de trabalho, um pressuposto no discutido, no que

    coincidem a esquerda e a direita, os progressistas e os conservadores, os cientistas e os

    humanistas, todos os setores universitrios.

    O ensaio - escreve Adorno na citao j apresentada - reflete o amado e o odiado, em vez

    de apresentar o esprito como criao a partir do nada. O ensasta no parte do nada mas de algo

    pr-existente, e parte sobretudo de suas paixes, de seu amor e seu dio pelo que l. Porm, amar

    e odiar no o mesmo que estar de acordo ou em desacordo, no o mesmo que a verificao ou

    a refutao, nada tem a ver com a verdade e o erro. O ensasta quando l, ri ou se enfada, se

    emociona ou pensa em outra coisa que a leitura lhe evoca. E seu ensaio, a sua escrita ensastica,

    no apaga riso nem o enfado, nem suas emoes e evocaes. No posso deixar de trazer como

    contribuio uma boutade de Deleuze: "aqueles que lem Nietzsche sem rir, e sem rir muito, sem

    rir freqentemente, e s vezes sem dar gargalhadas, como se no lessem Niezsche" (Deleuze,

    11985, p. 63). Poderamos dizer que quem l Nietzsche rindo talvez escreva um ensaio; quem l

    Nietzsche sem rir escrever uma tese de doutorado como tambm escrever uma tese de

    doutorado quem talvez ria quando l Nietzsche, mas escreve ocultando esse riso, como se no

    houvesse rido. A escrita acadmica alrgica ao riso, subjetividade e paixo.

    Outra caracterstica do ensaio, segundo Adorno, que est ancorado no tempo, incrustado no

    tempo, e por isso aceita e assume seu carter temporrio e [p. 111] efmero, sua prpria finitude.

    O ensasta no l e escreve para a eternidade, de forma atemporal, como tampouco l e escreve

    para todos e para ningum, mas, sim, para um tempo e para um contexto cultural concreto e

    determinado. A citao de Adorno mais ou menos a seguinte:

    (..) [o ensaio] revolta-se contra essa antiga injustia cometida contra o transitrio. (...) O

    ensaio recua, assustado, diante da violncia do dogma, que atribui dignidade ontolgica

    ao resultado da abstrao, ao conceito invarivel no tempo, por oposio ao individual

    nele subsumido. (...) No se deixa intimidar pelo depravado pensamento profundo, que

    contrape verdade e histria como opostos irreconciliveis (Adorno, 2003, p. 25-26).

    E um pouco mais adiante, "Nveis mais elevados de abstrao no outorgam ao pensamento

    uma maior solenidade nem um teor metafsico: pelo contrrio, o pensamento toma-se voltil com

    o avano da abstrao, e o ensaio se prope precisamente a reparar uma parte dessa perda" (Op.

    Cit., p. 26-27).

    O ensasta sabe que verdade e histria acontecem juntas, por isso escreve na histria e para

    um momento concreto: no presente e para o presente. Para quem escreve o acadmico? Creio em

  • 12

    duas possibilidades: em primeiro lugar, est o que escreve para a humanidade, definida como

    atemporal; em segundo, o que escreve para a prpria comunidade acadmica, definida em termos

    de atualidade, do presente, mas onde o carter perecvel da escrita tem um outro sentido que o do

    ensaio. O ensaio aceita seu carter de "palavra no tempo", porm escrever para a comunidade

    acadmica atual tem mais o sentido da obsolescncia da mercadoria, o da caducidade particular

    de tudo que se d como mercadoria. No mundo acadmico, j se sabe que tudo o que se escreve

    caduco, porm caduco como mercadoria, como "novidade". No efmero porque est

    localizado numa temporalidade especfica e porque se funda nessa temporalidade. Falando da

    minha experincia, e exagerando um pouco, poderia dizer, talvez, que o acadmico escreve para

    o comit de avaliao, para a banca da tese ou para o avaliador do paper. A questo to sria

    que se escreve para que ningum leia e, o que mais grave, a partir de critrios que se pressupe

    sejam do avaliador. Uma pergunta poderia ser: como l o avaliador? O avaliador do paper inicia,

    em geral, pelas concluses, atravessa de trs para frente as notas de rodap, para ver se as

    referncias so atualizadas e tm a ver com o tema, e se continuar, se j no decidiu rejeitar o

    texto, continua com as hipteses que o fundamentam, ignorando o contedo, na maioria das

    vezes.

    O ensaio, diz Adorno, no tem pretenso de sistema ou de totalidade e tampouco toma

    totalidades como seu objeto ou sua matria. O ensaio fragmentrio, parcial e seleciona

    fragmentos como sua matria. O ensasta seleciona um corpus, uma citao, um acontecimento,

    uma paisagem, uma sensao, algo que lhe parece expressivo e sintomtico, e a isso d uma

    grande expressividade.

    Alm disso, o ensaio duvida do mtodo. No h dvida de que o mtodo [p. 112] o grande

    aparelho de controle do discurso, tanto na cincia organizada como na filosofia sistemtica. E se

    h lugar onde o mtodo questionado, justamente no ensaio. O ensaio converte o mtodo em

    problema, por isso metodologicamente inventivo. O Discurso do mtodo de Descartes um

    ensaio. Ocorre, porm, que logo que se converte em metodologia, se fossiliza. Precisamente

    porque o mtodo, j est dado e j no um problema. A peculiaridade do ensaio no sua falta

    de mtodo, mas a de que mantm o mtodo como problema sem nunca t-lo como suposto. Uma

    vez fossilizado, o mtodo uma figura linear, retilna. O ensaio, no entanto, seria uma figura de

    caminho sinuoso, um caminho que se adapta aos acidentes do terreno. O caminho linear,

    retilneo o caminho daquele que sabe previamente aonde vai, e traa, entre ele e seu objeto, a

    linha mais curta, mesmo que para realiz-la tenha que passar por cima de montanhas e rios. O

    mtodo tem a forma de uma estrada ou via frrea que ignora a terra. Ao contrrio, o ensasta

  • 13

    prefere o caminho sinuoso, o que se adapta aos acidentes do terreno. s vezes, o ensaio

    tambm uma figura de desvio, de rodeio, de divagao ou de extravagncia. Por isso, seu

    traado se adapta ao humor do caminhante, sua curiosidade, ao seu deixar-se levar pelo que lhe

    vem ao encontro. O ensaio , tambm, sem dvida, uma figura do caminho da explorao, do

    caminho que se abre ao tempo em que se caminha. Como nos versos de Antnio Machado:

    "caminhante no h caminho seno estrelas no mar. Caminhante, no h caminho, o caminho se

    faz ao caminhar". Digamos que o ensasta no sabe bem o que busca, o que quer, aonde vai.

    Descobre tudo isso medida que anda. Por isso, o ensasta aquele que ensaia, para quem o

    caminho e o mtodo so propriamente ensaio.

    Outra observao de Adorno a que o ensaio no adota a lgica do princpio e do fim, nem

    comea pelos princpios, pelos fundamentos, pelas hipteses, nem termina com as concluses,

    ou com o final, ou com a tese, ou com a pretenso de ter esgotado o tema. O ensasta inicia no

    meio e termina no meio, comea falando do que quer falar, diz o que quer e termina quando sente

    que chegou ao final e no por que j nada resta a dizer, sem nenhuma pretenso de totalidade.

    Recordar a citao de Adorno lida anteriormente, a de que "no comea por Ado e Eva", parece

    uma bobagem, porm j me presentearam com um livro de histria da educao, que comeava

    por Ado e Eva. Asseguro que o primeiro captulo era "a educao em nossos primeiros pais".

    O ensaio no procede nem por induo ou deduo, nem por anlise ou sntese. Sua forma

    orgnica e no mecnica ou arquitetnica, nisso se parecendo com as obras de arte,

    especialmente com a msica e a pintura. O ensaio se situa, de entrada, no complexo. H uma

    observao muito interessante, no texto de Adorno, sobre quando uma relao de ensino e

    aprendizagem tem a forma de ensaio. Por onde comea um curso? Creio que um curso comea

    pelo meio, [p. 113] sempre se comea pelo meio, sempre j se est em alguma coisa, dentro de

    alguma coisa. E tambm se termina pelo meio. O texto de Adorno interessante porque est

    tentando pensar o que aprender filosofia:

    (...)A forma do ensaio preserva o comportamento de algum que comea a estudar

    filosofia e j possui, de algum modo, uma idia do que o espera. Ele raramente iniciar

    seus estudos com a leitura dos autores mais simples, cujo common sense costuma patinar

    na superfcie dos problemas onde deveria se deter; em vez disso, ir preferir o confronto

    com autores supostamente mais difceis, que projetam retrospectivamente sua luz sobre o

    simples, iluminando o como uma 'posio do pensamento em relao objetividade'. A

    ingenuidade do estudante que no se contenta seno com o difcil e o formidvel mais

    sbia do que o pedantismo maduro, cujo dedo em riste adverte o pensamento de que seria

  • 14

    melhor entender o mais simples antes de ousar enfrentar o mais complexo, a nica coisa

    que o atrai. Essa postergao do conhecimento serve apenas para impedi-lo.

    Contrapondo-se ao convenu da inteligibilidade, da representao da verdade como um

    conjunto de feitos, o ensaio obriga a pensar a coisa, desde o primeiro passo, com a

    complexidade que lhe prpria, tornando-se um corretivo daquele primitivismo obtuso,

    que sempre acompanha a ratio corrente (Op. Cit., p. 32-33).

    A passagem de Adorno, que comento a seguir, refere-se ao tratamento dos conceitos no

    ensaio. A citao um pouco grande, mas vale a pena:

    Assim como o ensaio renega os dados primordiais, tambm se recusa a definir os seus

    conceitos. ( . . ) O ensaio, em contrapartida, incorpora o impulso anti-sistemtico em seu

    prprio modo de proceder, introduzindo sem cerimnias e 'imediatamente' os conceitos,

    tal como eles se apresentam. Pois mera superstio da cincia propedutica pensar os

    conceitos como intrinsecamente indeterminados, como algo que precisa de definio para

    ser determinado. (..,) Na verdade, todos os conceitos j esto implicitamente

    concretizados pela linguagem em que se encontram. O ensaio parte dessas significaes e,

    por ser ele prprio essencialmente linguagem, leva-as adiante; ele gostaria de auxiliar o

    relacionamento da linguagem com os conceitos, acolhendo-os na reflexo tal como j se

    encontram inconscientemente denominados na linguagem. Na fenomenologia, isso

    pressentido pelo procedimento da anlise de significados, s que este se transforma em

    fetiche a relao dos conceitos com a linguagem. O ensaio to ctico diante desse

    procedimento quanto diante da definio.

    Sem apologia, ele leva em conta a objeo de que no possvel saber com certeza os

    sentidos que cada um encontrar sob os conceitos. Pois o ensaio percebe claramente que

    a exigncia de definies estritas serve h muito tempo para eliminar, mediante

    manipulaes que fixam os significados conceituais, aquele aspecto irritante e perigoso

    das coisas, que vive nos conceitos. (...) A exposio , por isso, mais importante para o

    ensaio do que para os procedimentos que, separando o mtodo do objeto, so indiferentes

    exposio de seus contedos objetivados (Op. Cit., p. 28-29).

    Os conceitos so uma elaborao da lngua natural. Porm a lngua natural [p. 114] vive e

    sobrevive no interior do conceito. Quer dizer, o pensamento no pensa no logos, mas numa

    lngua natural, relativamente elaborada. Ningum pensa em esperanto mas em espanhol, ou em

    francs, ou no espanhol da Venezuela ou no espanhol de Sevilha. No h uma lngua pura e o

  • 15

    pensamento no pode seno pensar numa lngua natural. Sobre a lngua natural atuam certas

    operaes de controle, mas essas operaes no so capazes de eliminar de todo o que de

    perigoso e irritante tem a lngua. O pensador sistemtico gostaria de pensar sem lngua ou

    inventar do zero a lngua em que pensa. O ensasta, porm, no toma o conceito um fetiche, no

    define conceitos, mas vai precisando-os no texto medida em que os desdobra e os relaciona.

    Por isso to importante que o ensaio assuma a forma de exposio. A citao de Adorno

    continua:

    A exposio , por isso, mais importante para o ensaio do que para os procedimentos

    que, separando o mtodo do objeto, so indiferentes exposio de seus contedos

    objetivados. O "como " da expresso deve salvar a preciso sacrificada pela renncia

    delimitao do objeto, sem todavia abandonar a coisa ao arbtrio de significados

    conceituais decretados de maneira definitiva. (...) O ensaio exige, ainda mais do que o

    procedimento definidor, a interao recproca de seus conceitos no processo da

    experincia intelectual. Nessa experincia, os conceitos no formam um continuum de

    operaes, o pensamento no avana em um sentido nico; em vez disso, os vrios

    momentos se entrelaam como num tapete. Da densidade dessa tessitura depende a

    fecundidade dos pensamentos (Op. Cit., p. 29-30).

    O ensasta no define conceitos, mas desdobra e tece palavras, precisando-as nesse

    desdobramento e nas relaes que estabelece com outras palavras, levando-as at o limite do que

    podem dizer, deixando-as deriva. O ensaio, diz Adorno, no pretende continuidade mas se

    compraz na descontinuidade, porque a vida mesmo descontnua, porque a realidade mesmo

    descontnua.

    O ensaio tem a forma de comentrio de texto. A citao de Adorno muito interessante, e a

    mim me reconforta, e diz assim: "Astuciosamente, o ensaio apega-se aos textos como se estes

    simplesmente existissem e tivessem autoridade. Assim, sem o engodo do primordial, o ensaio

    garante um cho para os seus ps (...)"(Op. Cit., p. 40). O ensaio necessita de um texto

    pr-existente, no para ser examinado mas para ter um solo onde correr.

    Depois dessas observaes que, por uma parte, so caractersticas do ensaio e, por outra parte

    da o modo um tanto brutal como as comentei pretendem ser contrrias a uma certa imagem

    da cultura acadmica, gostaria de, finalmente, comentar algumas coisas que diz Adorno a

    respeito de quais so os males do ensaio, quais seus perigos. Parece claro que o fracasso do

    ensaio no est no erro, mas na estupidez. O pensamento metdico fracassa quando se equivoca,

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    porm o ensasta fracassa quando cai na estupidez, e a estupidez a submisso opinio. O

    ensaio, diz Adorno, sempre tentado a submeter-se aos ditames da moda e do mercado, a esse

    outro tipo de ortodoxia que no a [p. 115] ortodoxia acadmica mas a doxa do senso comum.

    Escreve que "[o ensaio] acaba se enredando com enorme zelo nos empreendimentos culturais

    que promovem as celebridades, o sucesso e o prestgio de produtos adaptados ao mercado", e

    mais adiante diz que "Livre da disciplina da servido acadmica, a prpria liberdade espiritual

    perde a liberdade, acatando a necessidade socialmente pr-formada da clientela" (Op. Cit., p.

    19).

    Outro perigo que o ensaio tambm produz um novo tipo de intelectual e um novo tipo de

    aristocracia intelectual. No mundo acadmico, constri-se uma certa arrogncia e uma certa

    vaidade: ns os melhores, os que sempre sabemos o que pensar de verdade, o que fazer

    cincia de verdade, o que escrever de verdade. Porm, essa aristocracia espiritual pode

    construir-se de outro modo: ns os transgressores, ns os que transgredimos as normas. Isso

    constitui um novo tipo de filistesmo igualmente repugnante, uma nova configurao da ati tude

    que consiste em elevar-se diminuindo o outro. O filistesmo atua sempre que se constri qualquer

    tipo de aristocracia, mediante o desprezo de tudo o que ela no . Tanto faz que seja a aristocracia

    da filosofia sistemtica ou a aristocracia da transgresso. Ento, termino com uma ltima frase

    do texto de Adorno que diz o seguinte: "ensaios ruins no so menos conformistas do que

    dissertaes ruins"(Op. Cit., p. 20).

    Referncias Bibliogrficas

    ADORNO, Theodor W. O ensaio como forma. In:_______. Notas de literatura I. Traduo e

    apresentao de Jorge M. B. de Oliveira. So Paulo: Duas Cidades; Editora 34,

    2003, p. 15-45.

    DELEUZE, Gilles. Conversaciones. Valencia: Pre-textos, 1999.

    ________. Pensamento nmade. In: MARTON, Scarlett (Org.). Nietzsche hoje? Colquio de

    Cerisy. [1972] So Paulo: Brasiliense, 1985, p. 56-76

    NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. Traduo, notas e posfcio de Paulo Csar de Souza. So

    Paulo: Companhia das Letras, 2004.

    ZAMBRANO, Mara. La gua como forma dei pensamiento. In: Hacia um saber sobre elalma.

    Madrid: Alianza, (1987a), p. 71- 97.

  • 17

    ZAMBRANO, Mara. La gua como forma dei pensamiento. In: Apuntes sobre el tiempo y la

    poesia. Madrid: Alianza (1987b), p. 45-50.

    Traduo de Malvina do Amaral Dorneles, do original em espanhol. Reviso de Rosa Maria

    Bueno Fischer.

    Jorge Larrosa professor da Universidade de Barcelona, Espanha.

    Endereo para correspondncia:

    E-mail: [email protected]