Larrosa, Jorge. O Ensaio e a Escrita Acadêmica[1]
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LARROSA, Jorge. O ensaio e a escrita acadmica. Educao & Realidade, v.28, n.2, p.
101-115, 2003.
RESUMO - O ensaio e a escrita acadmica. Trata-se de problematizar a academia do ponto de
vista de suas polticas da linguagem ou, mais concretamente, do ponto de vista das modalidades
de leitura e de escrita que privilegia e que probe. Trata-se de refletir sobre a escrita e a leitura
acadmica a partir do ensaio, gnero hbrido ancorado num tempo e espao claramente subjetivo
e que parece opor-se, ponto a ponto, s regras de pureza e de objetividade que imperam na
academia. A pergunta que atravessa o texto se possvel ensaiar em educao ou, dito de outro
modo, habitar o espao educativo como ensasta.
Palavras-chave: escrita acadmica, ensaio, linguagem.
ABSTRACT - The essay and the academic writing. This article problematizes academia from
point of view of its language policies or, more concretely, from the point of view of the reading
and writing modalities that it privileges and bans. The article inquires into academic writing and
reading using, as a starting point, the essay, which is a hybrid gender anchored in a clearly
subjective notion of space and time and which seems to oppose academia's rules of purity and
objectivity. The question that cuts across the article is whether is possible "to essay" in education
or inhabit the educational space as an essayist.
Keywords: academic writing, essay, language.
[p. 102] Usarei o ensaio como pretexto para problematizar a escrita acadmica, ou melhor,
para problematizar o modo como as polticas da verdade e as imagens do pensamento e do
conhecimento, dominantes no mundo acadmico, impem determinados modos de escrita e
excluem outros, entre eles o ensaio. Um dos meus mestres, Basil Bernstein, ensinou-me que,
para saber a estrutura profunda de uma prtica institucional, temos que interrogar sobre o que
ela probe. Se quisermos compreender como funcionam as estruturas de produo, transmis so
e controle do conhecimento, melhor tentar averiguar o que probem. Somente assim
conheceremos os limites e, portanto, as regras bsicas do seu funcionamento. O que fao a
seguir refletir sobre o ensaio como uma das figuras do que excludo da academia, pelo
menos das formas de saber e de pensar que dominam no mundo acadmico.
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Advirto que, no que acabo de dizer, misturei palavras como verdade, pensamento,
conhecimento, saber e escrita. Na verdade, falo do ensaio como um "modo de escrita"
normalmente excludo de um espao de saber. Porm, os dispositivos de controle do saber so
tambm dispositivos de controle da linguagem e da nossa relao com a linguagem, quer dizer,
das nossas prticas de ler e escrever, de falar e escutar. Nosso trabalho na academia tem a ver
com o saber, basicamente um trabalho com palavras. O que fazemos a cada dia escrever e ler,
falar e escutar. A partir disto, poderamos dizer que o conformismo lingstico est na base de
todo conformismo, e que falar como Deus manda, escrever como Deus manda e ler como Deus
manda, ao mesmo tempo, pensar como Deus manda. Tambm poderamos dizer que no h
revolta intelectual que no seja tambm, de alguma forma, uma revolta lingstica, uma revolta
no modo de nos relacionarmos com a linguagem e com o que ela nomeia. Ou seja, que no h
modo de "pensar de outro modo" que no seja, tambm, "ler de outro modo" e "escrever de outro
modo".
Gostaria, aqui, de abrir uma reflexo sobre nossas prprias experincias de escrita e leitura no
mundo acadmico. Tudo o que direi nada mais que uma srie de anotaes orientadas para
provocar essa conversao. Por isso, serei exagerado, irnico, caricaturesco, violento, tosco e, s
vezes, descuidado em algumas consideraes, quer dizer, voluntariamente provocativo.
Para essa provocao, tomarei como pretexto um texto clebre que Adorno escreveu em 1954
e que se intitula O ensaio como forma. Porm, deixo claro que no se trata de uma conferncia
sobre Adorno, ou sobre esse texto de Adorno, mas sobre o ensaio e a escrita acadmica. O texto
de Adorno serve para ordenar as idias e para me dar um ponto de ancoragem. Por isso, vou
cit-lo, parafrase-lo e coment-lo de uma forma bastante livre, bastante extravagante, quase
selvagem... lendo-o numa associao livre de idias e anotando margem tudo o que ocorra em
relao ao texto, mesmo que parea impertinente ou ainda descabido.
Isso com uma inteno que est inscrita nas ltimas linhas do texto de Adorno. Essas ltimas
linhas dizem: "a lei formal mais profunda do ensaio a heresia. Apenas a infrao [p. 103]
ortodoxia do pensamento torna visvel, na coisa, aquilo que a finalidade objetiva da ortodoxia
procurava, secretamente, manter invisvel" (Adorno, 2003, p. 45). Trata-se, ento, de que a
heresia e a violncia explicitem os dispositivos lingsticos e mentais da ortodoxia, aquilo que
ela s faz ocultar. Isso o que fez Adorno ao render uma homenagem a seu amigo Walter
Benjamin, um dos grandes excludos da universidade alem. E isso o que quero que faamos
aqui.
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Porm, antes, gostaria de dizer algo sobre uma escritora espanhola, malaguenha, chamada
Maria Zambrano, outra excluda da academia. Maria Zambrano uma pensadora de difcil
classificao (como quase todos os autores interessantes, esses que no sabemos muito bem
como situar na classificao das especialidades universitrias), que dedicou parte de sua obra a
problematizar os gneros literrios e sua relao com a vida. A obra de Maria Zambrano tenta
fundar uma "razo vital", na perspectiva de Ortega (ela foi sua discpula antes da guerra civil
espanhola), porm uma razo vital que se faz pouco a pouco, e por sua prpria necessidade, uma
"razo potica". Ocorre que, enquanto razo potica, a razo zambraniana, o logos zambraniano,
problematiza constantemente as relaes com a vida, pensa seguidamente sobre o carter vital, a
vitalidade especfica dessa razo. Pois bem, num desses escritos, em que ela problematiza os
gneros literrios e sua relao com a vida, um texto intitulado La gua como forma del
pensamiento - uma espcie de nota marginal "Gua de Perplejos" de Maimnides e certamente
tambm "Gua Espiritual" de Miguel Molina , Maria Zambrano faz uma considerao
histrica que aqui pertinente e que gostaria de resumir. O que diz a escritora malaguenha que
o triunfo da filosofia sistemtica (o triunfo da forma sistemtica de fazer filosofia) e o triunfo da
razo tcnico-cientfica (o triunfo da forma tcnico-cientfica da razo) derrotam outras formas
de escrita, que tiveram grande importncia durante o Renascimento e o Barroco. Entre essas
formas de escrita derrotadas e vencidas est o ensaio, de imediato, mas tambm outros gneros
como as epstolas morais, os dilogos filosficos, os preceitos espirituais, os tratados breves, as
confisses, as consolaes, etc, todas essas dificilmente classificveis nas atuais divises do
saber. So obras e autores que por vezes se estuda na histria do pensamento, por vezes na
histria da literatura: para ns (e insisto neste "para ns"), essas formas derrotadas so formas
hbridas, impuras, ambguas e, certamente, menores do ponto de vista do que "hoje" entendemos
por "filosofia". Essas formas de escrita, ainda no dizer de Maria Zambrano, tiveram grande
importncia nos pases do sul da Europa: na Espanha, Itlia e Frana. Por isso, sua derrota
implica, tambm, a marginalizao desses pases, relegando-os periferia da cultura vencedora
e, hoje, dominante.
Poderamos dizer, simplificando muito, que a filosofia, no sentido escolar e sistemtico da
palavra, a filosofia dos professores de filosofia, a filosofia acadmica universitria, algo que
sobretudo os alemes e os franceses fazem bem. [p. 104]
Poderamos tambm dizer que a investigao emprica algo que sobretudo os "gringos"
fazem bem. E o que ns fazemos imit-los, tarde e mal e com poucos recursos. Vocs
concordaro comigo que a filosofia escolar e sistemtica se faz na Biblioteca, requer a Biblioteca
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como condio de possibilidade, e a Biblioteca com maisculo; e a Biblioteca de verdade o
resultado de sculos de erudio est na Alemanha e na Frana. Suponho que tambm
concordaro comigo que a investigao emprica se faz com dinheiro, e o dinheiro est nos
Estados Unidos. O que quero dizer que o triunfo dessas formas de conhecimento colocou os
pases latinos e latino-americanos numa situao de dependncia intelectual. Essa situao de
dependncia nos converteu ou em administradores de algum filsofo estrangeiro, ou em
seguidores do ltimo paradigma cientfico que os gringos inventaram, espoliando e
simplificando, na maioria das vezes, a cultura europia.
No sei se alguma vez vocs j se encontraram na situao de ter que escrever um artigo
encomendado por alguma revista internacional. Desses artigos que tratam sobre coisas como "a
filosofia da educao na Espanha", "a psicolingstica na Argentina" ou "os Estudos Culturais
no sei aonde". Geralmente, quando um espanhol ou um argentino convidado a escrever numa
dessas revistas internacionais (isto , "gringas"), logo se supe que nada inte ressante eles tm a
dizer, que s podem fazer um artigo intitulado "a filosofia da educao na Espanha" a fim de
contar - de forma breve e resumida - o que h em suas universidades e o que fazem. Na filosofia,
por exemplo, trata-se de um exerccio pattico em que somente se pode listar o nome de alguns
amigos e colegas como representantes de algum filsofo "de verdade". Porque na Espanha, como
suponho aqui tambm, temos de tudo: uns quantos habermasianos, uns quantos foucaultianos,
algum especialista em Rorty e no pragmatismo americano, vrios representantes de Heidegger,
um ou outro gadameriano, etc., e falta alguma especialidade, algum j deve estar aspirando
vaga. O mesmo sucede com a investigao emprica. Inclusive os temas politicamente na moda
so tratados em nossos lares, mimetizando o que vem de outro lugar. Essa situao e o fato
correspondente de que somos ns que devemos ler ingls ou alemo para poder escrever em
castelhano, e no o contrrio, somos ns que devemos ir estudar em suas universidades, para
ganharmos uma posio nas nossas, e no o contrrio tem como resultado a inteligente obser-
vao de Maria Zambrano, segundo a qual a marginalizao de certas formas de racionalidade e
de escrita supe a subordinao de certos lugares de produo intelectual.
Espanha e Amrica Latina no so terras de filsofos, ao menos no sentido da filosofia
sistemtica. Na Espanha, se chama de filsofo no a um professor de filosofia, mas a uma dessas
pessoas sbias, s vezes "sabidona", que falam devagar, pensando as frases, sentenciosamente.
Delas se diz que so "um Sneca" falando: "esta pessoa um Sneca" ou "um Unamuno". Isso
curioso [p. 105] porque nem Sneca nem Unamuno foram filsofos no sentido da filosofia
sistemtica, escolar e pura. A obra de Sneca uma obra completamente hbrida (repito, a partir
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das nossas atuais classificaes) e no se sabe se pertence filosofia ou literatura, acontecendo
o mesmo com Unamuno. Estas no so terras de filsofos nem terras de cientistas; so terras de
poetas, de novelistas, e tambm de magnficos ensastas, alm, claro, de serem terras de
militares, de padres e de revolucionrios.
De fato, uma das primeiras vezes em que a expresso "razo potica" aparece em Maria
Zambrano, no contexto da leitura que faz de Antonio Machado (Zambrano, 1987b, p. 45-50).
A diz Maria Zambrano, nesse vocabulrio dos anos 30, que a alma espanhola se expressa
poeticamente. E essa expresso potica a faz estar mais perto da vida concreta. Desde seu
vitalismo, Maria Zambrano objeta filosofia sistemtica e razo tcnico-cientfica o fato de se
apartarem da vida e depois quererem reform-la violentamente. Os programas de "reforma do
entendimento", de "reforma do pensamento" e de "reforma da razo", que atravessam a cultura
ocidental,desde o sculo XVII at o sculo XX, passam por tornar violenta a vida, por violentar a
vida, ajustando-a aos moldes da razo. Ante essa violncia, afirma Maria Zambrano, a vida fica
humilhada e se vinga rancorosamente. Para Maria Zambrano, a razo no deve dominar a vida,
deve enamor-la, e so justamente as formas de escrita com capacidade de enamorar a vida, quer
dizer, de captur-la e dirigi-la desde dentro, as que desapareceram. Maria Zambrano faz uma
reivindicao dos gneros menores, impuros e dominados justamente por isso, porque
mantinham essa relao com a vida que os gneros maiores, puros, e hoje dominantes, perderam
(Op. Cit., p. 76). Essa reivindicao tambm tem algo de reivindicao nacional. Digo em voz
baixa e entre parnteses: um dos efeitos saudveis da obra de Maria Zambrano ter reconciliado
o pensamento espanhol com sua prpria tradio. Com o pensamento espanhol ocorria uma coisa
que, provavelmente, ocorre aqui tambm, a de que h uma certa tendncia a impor bibliotecas
alheias. Por exemplo, os leitores de Foucault, quando falam de literatura, reproduzem a
biblioteca literria de Foucault (Valry, Breton, Bataille, Roussell); o mesmo fazem os leitores
de Heidegger quando lem Rilke ou Hlderin. O que Maria Zambrano fez foi o mesmo que dar
permisso aos pensadores espanhis de ocuparem-se de sua literatura.
A questo que, se dermos crdito ao diagnstico de Maria Zambrano, vivemos maus tempos
para o ensaio. Creio, porm, que, se olharmos as coisas de um outro lugar, poderemos inverter
esse diagnstico: talvez estejamos vivendo bons tempos para o ensaio, talvez j se esteja
produzindo um ambiente cultural favorvel a essa forma hbrida, impura, e sem dvida menor,
que o ensaio. Em primeiro lugar, por exemplo, pela dissoluo das fronteiras entre filosofia e
literatura ou, dizendo de forma breve e mal, entre escrita (se podemos dizer assim) pensante ou
cognoscitiva e entre imaginativa ou potica. Em [p. 106] segundo lugar, pelo esgotamento da
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razo pura moderna e suas pretenses de ser "a nica razo". Em terceiro lugar, e no menos
importante, pelo enfado. Tenho a sensao de que no mundo acadmico se est cada vez mais
enfadado de ouvir sempre as mesmas coisas ditas no mesmo registro arrogante e montono,
havendo como que uma necessidade de sair desse tdio e uma certa expectativa em relao a
qualquer registro de escrita que se apresente como diferente. Tenho a impresso de que tanto a
filosofia sistemtica como a razo tcnico-cientifica entraram em crise (ainda que sejam todavia
dominantes nas instituies) e que, por isso, voltaram os tempos do ensaio.
Porm, vamos ao texto de Adorno. O autor comea sua escrita dizendo que o ensaio um
gnero impuro e que o que se lhe reprova , justamente, sua impureza. A razo dominante
"pretende resguardar a arte como uma reserva de irracionalidade, identificando conhecimento
com cincia organizada e excluindo como impuro tudo o que no se submeta a essa anttese"
(Adorno, 2003, p. 15). O ensaio confundiria ou atravessaria a distino entre cincia,
conhecimento, objetividade e racionalidade, por um lado; e arte, imaginao, subjetividade e
irracionalidade por outro. O que o ensaio faz colocar as fronteiras em questo. E as fronteiras,
como se sabe, so gigantescos mecanismos de excluso. O pior que pode acontecer a quem tenha
pretenses de escrever filosofia que algum lhe diga: "Isso que voc escreve no filosofia".
Essa reprovao foi ouvida por Nietzsche, por Foucault, por Benjamin: "isso que voc faz est
muito bem, mas qualquer coisa menos filosofia". E o pior que pode acontecer a algum que
tenha pretenses literrias ou poticas que lhe digam: "isto no poesia, poder ser o que
queiram, mas no poesia", ou no caso de um pintor: "isto no pintura". Todos os poetas e
pintores que modificaram o que se chama "poesia" ou o que significa "pintura" escutaram
afirmaes como essas. Porque em todos esses lugares, cada vez que algum leva sua prtica a
srio, o que colocado em questo justamente a fronteira do que seria a filosofia, poesia ou
pintura. Coloca em questo justamente a definio padro do que cabe dentro da filosofia, dentro
da pintura, dentro da poesia. Por isso, so precisamente todos esses questionadores de fronteiras
os que ampliaram o mbito do visvel ao ensinar-nos a olhar de outra maneira o mbito do
pensvel, ao ensinar-nos a pensar de outro modo e o mbito do dizvel, ao ensinar-nos a falar de
outro modo. A questo que o mundo acadmico est altamente compartimentalizado e tenho a
sensao de que toda essa moda da transdisciplinaridade, da interdisciplinaridade e coisas desse
estilo, no faz outra coisa seno abrir novos compartimentos, como se no fossem suficientes os
que j temos. E como se estivssemos fabricando especialistas na relao, na sntese, no "inter" e
no "trans"; como se houvesse uma poltica acadmica da mestiagem; como se alm das raas
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puras estivssemos inventando os especialistas em impurezas, quer dizer, nas relaes entre as
raas puras.
Alm de confundir as diferenas entre cincia, arte e filosofia, o ensaio se d uma liberdade
temtica e formal que s pode incomodar num campo to [p. 107] reprimido e to regulado como
o do saber organizado. A esse respeito, Adorno assinala que o ensaio se v esmagado por uma
cincia em que todos defendem o direito de controlar a todos. A cincia organizada o lugar dos
controles, o lugar das bancas, dos tribunais, das avaliaes, das hierarquias, e exclui com o
aparente elogio de "interessante" ou "sugestivo" o que no est ajustado ao padro de consenso.
A frase de Adorno que "elogiar algum como crivain o suficiente para excluir do mbito
acadmico aquele que est sendo elogiado" (Op. Cit., p. 15). No sei se j vivenciaram algo que
me acontece com alguma freqncia, o de passar um escrito para um colega que, sem saber o que
dizer, afirma: " muito interessante, muito sugestivo!". Acho muito engraado o qualificativo
vazio de "sugestivo". Tudo aquilo que no entra no padro de alguns dos paradigmas
reconhecidos, tudo aquilo que no se ajusta s classificaes em uso, tudo aquilo que no se sabe
o que e para que serve, suprimido e ignorado pelo aparente elogio de "sugestivo". Tambm se
excludo com o aparente elogio de "est muito bem escrito", como se dissesse: "no sei o que
fazer com o que voc escreve, no sei o que pensar, at acho que no serve para nada, mas est
bem escrito".
A impureza e a liberdade do ensaio so, segundo Adorno, as principais dificuldades para a sua
aceitao. Com relao liberdade, creio que Adorno tem razo: a liberdade intelectual uma
qualidade em retrocesso, quando triunfam a cincia organizada e a filosofia sistemtica. Deleuze
dizia que tanto a Epistemologia quanto a Histria da Filosofia so grandes dispositivos de re-
presso do pensamento. Porm, em relao pureza, penso que os inimigos do ensaio no so os
filsofos puros, os cientistas puros ou os artistas puros, mas os administradores da pureza, os
especialistas da compartimentalizao, os que no sabem fazer outra coisa seno administrar e
sustentar fronteiras. O ensaio no atrapalha um filsofo, um escritor, um artista ou um cientista
"puros", mas atrapalha os administradores da pureza, os burocratas da comparti mentalizao
universitria. Adorno fala dos que santificam as prateleiras culturais, dos que idealizam a
limpeza e a pureza, dos que exigem do esprito "um certificado de competncia administrativa,
para que ele no transgrida a cultura oficial ao ultrapassar as fronteiras culturalmente
demarcadas" (Op.Cit, p. 22).
Outra caracterstica com a qual Adorno indiretamente qualifica o ensaio poderia ser a de que
o ensasta um leitor que escreve: seu meio de trabalho a leitura e a escrita. O ensasta um
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leitor que escreve e um escritor que l. George Steiner diz que um intelectual algum que l
com um lpis na mo: um leitor que escreve. Tambm me parece que se poderia dizer que o
intelectual algum que escreve sobre uma mesa repleta de livros: um escritor que l. Desse
ponto de vista, o ensasta est mais perto do antigo "homem de letras" do que do especialista ou
do professor, ainda que possa ter uma especialidade e possa se dedicar ao ensino. O "homem de
letras" muito mais o homem culto, o homem cultivado, e Adorno assinala que a no aceitao
do ensaio na Alemanha decorre de que esse pas "historicamente, mal conhece o homme de
lettres" (Op. Cit., p. 16). [p. 108]
Para o ensasta, a escrita e a leitura no so apenas a sua tarefa, o seu meio de trabalho,
mas tambm o seu problema. O ensasta problematiza a escrita cada vez que escreve, e
problematiza a leitura cada vez que l, ou melhor, algum para quem a leitura e a escrita so,
entre outras coisas, lugares de experincia, ou melhor ainda, algum que est aprendendo a
escrever cada vez que escreve, e aprendendo a ler cada vez que l: algum que ensaia a prpria
escrita cada vez que escreve e que ensaia as prprias modalidades de leitura cada vez que l.
Parece-me sintomtico que no territrio acadmico se problematize o mtodo e no a escrita.
A imagem dogmtica do conhecimento e do pensamento oculta que o que fazemos na maior
parte do tempo ler e escrever. E oculta, supondo que j sabemos ler e escrever que: ler no
seno compreender o pensamento, as idias, o contedo ou a informao que h no texto, e
escrever no seno esclarecer o que j se havia pensado ou averiguado, ou seja, o que j se
pensa e se sabe. Nas palavras de Adorno, o mundo acadmico supe que "o contedo, uma vez
fixado conforme o modelo da sentena protocolar, deveria ser indiferente sua forma de
exposio"(Op. Cit., p. 18), e nisso, por temor subjetividade, que se aproxima do
dogmatismo.
Quando Adorno diz que "a elogiosa qualificao de escritor serve, ainda hoje, para manter
excludo do mundo acadmico a quem recebe tal qualificativo" (Op. Cit., p. 18), est dizendo
tambm que, neste espao, o acadmico no um escritor. J me aconteceu algo engraado e
sintomtico: passei um ano em Londres, com bolsa de ps-doutorado, estudando num
departamento de sociologia, onde havia um curso para estudantes do Terceiro Mundo, intitulado
"Habilidades de escrita para finalidades acadmicas". A entendi por que os ingleses e os
"gringos" escrevem todos os papers da mesma forma: so socializados numa escrita acadmica
muito especfica. Um dia, ao aprendermos como se comea um captulo, a professora trouxe as
primeiras pginas de dez ou doze captulos, independentemente do tema, e tivemos de seguir o
modelo. Depois, aprendemos como se coloca um exemplo, como se interrompe a argumentao
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para elaborar um exemplo. Na seqncia, aprendemos a fazer um resumo, um abstract. E, assim,
pouco a pouco, todos aprendemos a escrever de um modo mecnico e padronizado, sem estilo
prprio.
A questo que, do ponto de vista da imagem dogmtica do pensamento, o acadmico no
um escritor. Poder-se-ia dizer tambm que o acadmico no um leitor. Talvez j se tenham
dado conta de que agora ningum estuda, ou l, mas investiga, ou seja, que a leitura acadmica
investigao. A biblioteca j no lugar de leitura ou estudo, mas de investigao. E o
investigador um tipo muito particular de leitor: o leitor da novidade, da apropriao, da rapidez.
Num determinado momento, foi moda na Espanha que nas universidades ocorressem cursos de
leitura rpida porque era preciso ler tudo em muito pouco tempo, somente para selecionar em
seguida o que era til ao trabalho do investigador. [p. 109] Nesse sentido, o leitor acadmico
aquele que sempre tem vontade de ler, porm nunca tem tempo para ler, simplesmente porque
no pode chamar de "ler" a esse deslizar apressado pelos textos obrigatrios, do ponto de vista da
apropriao. O acadmico aquele que l por obrigao e, ao mesmo tempo, aquele que l
julgando o que l, colocando-se a favor ou contra, mostrando seu acordo ou desacordo, dizendo
sim ou no. O espao acadmico esqueceu a lentido da leitura, a delicadeza da leitura, essa
forma de tratar o texto como uma fora que nos leva alm de ns mesmos, alm do que o texto
diz, do que o texto pensa ou do que o texto sabe. Esqueceu ou nunca aprendeu a arte da leitura
como a define Nietzsche, no prlogo de Aurora: "ler devagar, com profundidade, com
intensidade, portas abertas e olhos e dedos delicados"(Nietzsche, 2004 p. 14).
O ensasta est tambm ao lado da figura do livre-pensador. Adorno escreve o seguinte:
Na Alemanha, o ensaio provoca resistncia porque evoca aquela liberdade de esprito
que, aps o fracasso de um Iluminismo cada vez mais morno desde a era leibniziana, at
hoje no conseguiu se desenvolver adequadamente, nem mesmo sob as condies de uma
liberdade formal, estando sempre disposta a proclamar como sua verdadeira demanda a
subordinao a uma instncia qualquer (Adorno, 2003, p. 16).
A Alemanha diz Adorno no conhece historicamente nem o "homem de letras" e
tampouco o livre-pensador, portanto no desenvolveu um terreno cul tural favorvel ao ensaio. A
pergunta se o espao acadmico no se parece cada vez mais com a Alemanha. Talvez outro
aspecto interessante dessa citao de Adorno seja o fato de que o livre-pensador aparea ligado
liberdade formal. A liberdade de esprito no s tem a ver com a liberdade de dizer o que se
queira mas, tambm, de dizer como se queira. A liberdade de expresso tem assim um duplo
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sentido: a liberdade de expressar livremente idias e pensamentos e, tambm, a liberdade no
mbito da prpria expresso, no modo de escrita. O espao acadmico certamente o espao de
disciplina da expresso, o espao onde a disciplina do esprito o dizer o que h para dizer est
disciplinado no dizer como tem que ser dito, como Deus manda.
Outro aspecto do ensaio, segundo o texto de Adorno, que apresenta um lado ldico e de
aventura. A frase de Adorno a seguinte:
(.. )seus esforos ainda espelham a disponibilidade de quem, como uma criana, no
tem vergonha de se entusiasmar com o que os outros j fizeram. O ensaio reflete o que
amado e odiado, em vez de conceber o esprito como uma criao a partir do nada,
segundo o modelo de uma irrestrita moral do trabalho. Felicidade e jogo lhe so
essenciais. Ele no comea com Ado e Eva, mas com aquilo sobre o que se deseja falar;
diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, no onde nada
mais resta a dizer: ocupa, deste modo, um lugar entre os despropsitos (Adorno, 2003, p.
16-17). [p. 110]
A palavra "diverso" funciona aqui no sentido de divagao, de extravagncia. O ensasta
um transeunte, um passeador, um divagador, um "extravagante", porm o mundo acadmico
est ligado, como diz Adorno, moral do trabalho. J pensaram alguma vez nas conseqncias
de chamarmos de "trabalho" os nossos escritos e tambm os "trabalhos" de nossos alunos? Creio
que merece uma reflexo o fato de que chamemos de "trabalhos" os exerccios de pensamento,
de criao, de produo intelectual, tudo o que fazemos e o que pedimos que se faa. A pergunta
: o que ocorre quando a academia se organiza sob o modelo do trabalho? Nietzsche tem
palavras magistrais sobre o erudito ou o especialista como proletrio do conhecimento,
esmagado pela diviso do trabalho e pela necessidade de produzir para o mercado. O
especialista escreve Nietzsche semelhante ao trabalhador da fbrica, que durante toda a sua
vida no fez outra coisa que seno determinado parafuso para um determinado utenslio, no que
sem dvida tem uma incrvel maestria, porm j no est em condies de ler por prazer.
Creio que a organizao do espao acadmico sob o modelo do trabalho uma tendncia
crescente, incontrolvel e que ningum discute. Discute-se a forma de avaliao do trabalho
universitrio, a forma de incrementar a produtividade ou competitividade de professores, e
alunos, o que fazer para que os alunos se evadam menos, o que fazer para que as pessoas
trabalhem mais, como tomar mais rentvel o que se faz, como responder melhor s demandas do
Capital e do Estado (isso que agora se chama de "demanda social"). Porm, pensar tudo o que
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fazemos sob o modelo do trabalho, o modo de trabalho, um pressuposto no discutido, no que
coincidem a esquerda e a direita, os progressistas e os conservadores, os cientistas e os
humanistas, todos os setores universitrios.
O ensaio - escreve Adorno na citao j apresentada - reflete o amado e o odiado, em vez
de apresentar o esprito como criao a partir do nada. O ensasta no parte do nada mas de algo
pr-existente, e parte sobretudo de suas paixes, de seu amor e seu dio pelo que l. Porm, amar
e odiar no o mesmo que estar de acordo ou em desacordo, no o mesmo que a verificao ou
a refutao, nada tem a ver com a verdade e o erro. O ensasta quando l, ri ou se enfada, se
emociona ou pensa em outra coisa que a leitura lhe evoca. E seu ensaio, a sua escrita ensastica,
no apaga riso nem o enfado, nem suas emoes e evocaes. No posso deixar de trazer como
contribuio uma boutade de Deleuze: "aqueles que lem Nietzsche sem rir, e sem rir muito, sem
rir freqentemente, e s vezes sem dar gargalhadas, como se no lessem Niezsche" (Deleuze,
11985, p. 63). Poderamos dizer que quem l Nietzsche rindo talvez escreva um ensaio; quem l
Nietzsche sem rir escrever uma tese de doutorado como tambm escrever uma tese de
doutorado quem talvez ria quando l Nietzsche, mas escreve ocultando esse riso, como se no
houvesse rido. A escrita acadmica alrgica ao riso, subjetividade e paixo.
Outra caracterstica do ensaio, segundo Adorno, que est ancorado no tempo, incrustado no
tempo, e por isso aceita e assume seu carter temporrio e [p. 111] efmero, sua prpria finitude.
O ensasta no l e escreve para a eternidade, de forma atemporal, como tampouco l e escreve
para todos e para ningum, mas, sim, para um tempo e para um contexto cultural concreto e
determinado. A citao de Adorno mais ou menos a seguinte:
(..) [o ensaio] revolta-se contra essa antiga injustia cometida contra o transitrio. (...) O
ensaio recua, assustado, diante da violncia do dogma, que atribui dignidade ontolgica
ao resultado da abstrao, ao conceito invarivel no tempo, por oposio ao individual
nele subsumido. (...) No se deixa intimidar pelo depravado pensamento profundo, que
contrape verdade e histria como opostos irreconciliveis (Adorno, 2003, p. 25-26).
E um pouco mais adiante, "Nveis mais elevados de abstrao no outorgam ao pensamento
uma maior solenidade nem um teor metafsico: pelo contrrio, o pensamento toma-se voltil com
o avano da abstrao, e o ensaio se prope precisamente a reparar uma parte dessa perda" (Op.
Cit., p. 26-27).
O ensasta sabe que verdade e histria acontecem juntas, por isso escreve na histria e para
um momento concreto: no presente e para o presente. Para quem escreve o acadmico? Creio em
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duas possibilidades: em primeiro lugar, est o que escreve para a humanidade, definida como
atemporal; em segundo, o que escreve para a prpria comunidade acadmica, definida em termos
de atualidade, do presente, mas onde o carter perecvel da escrita tem um outro sentido que o do
ensaio. O ensaio aceita seu carter de "palavra no tempo", porm escrever para a comunidade
acadmica atual tem mais o sentido da obsolescncia da mercadoria, o da caducidade particular
de tudo que se d como mercadoria. No mundo acadmico, j se sabe que tudo o que se escreve
caduco, porm caduco como mercadoria, como "novidade". No efmero porque est
localizado numa temporalidade especfica e porque se funda nessa temporalidade. Falando da
minha experincia, e exagerando um pouco, poderia dizer, talvez, que o acadmico escreve para
o comit de avaliao, para a banca da tese ou para o avaliador do paper. A questo to sria
que se escreve para que ningum leia e, o que mais grave, a partir de critrios que se pressupe
sejam do avaliador. Uma pergunta poderia ser: como l o avaliador? O avaliador do paper inicia,
em geral, pelas concluses, atravessa de trs para frente as notas de rodap, para ver se as
referncias so atualizadas e tm a ver com o tema, e se continuar, se j no decidiu rejeitar o
texto, continua com as hipteses que o fundamentam, ignorando o contedo, na maioria das
vezes.
O ensaio, diz Adorno, no tem pretenso de sistema ou de totalidade e tampouco toma
totalidades como seu objeto ou sua matria. O ensaio fragmentrio, parcial e seleciona
fragmentos como sua matria. O ensasta seleciona um corpus, uma citao, um acontecimento,
uma paisagem, uma sensao, algo que lhe parece expressivo e sintomtico, e a isso d uma
grande expressividade.
Alm disso, o ensaio duvida do mtodo. No h dvida de que o mtodo [p. 112] o grande
aparelho de controle do discurso, tanto na cincia organizada como na filosofia sistemtica. E se
h lugar onde o mtodo questionado, justamente no ensaio. O ensaio converte o mtodo em
problema, por isso metodologicamente inventivo. O Discurso do mtodo de Descartes um
ensaio. Ocorre, porm, que logo que se converte em metodologia, se fossiliza. Precisamente
porque o mtodo, j est dado e j no um problema. A peculiaridade do ensaio no sua falta
de mtodo, mas a de que mantm o mtodo como problema sem nunca t-lo como suposto. Uma
vez fossilizado, o mtodo uma figura linear, retilna. O ensaio, no entanto, seria uma figura de
caminho sinuoso, um caminho que se adapta aos acidentes do terreno. O caminho linear,
retilneo o caminho daquele que sabe previamente aonde vai, e traa, entre ele e seu objeto, a
linha mais curta, mesmo que para realiz-la tenha que passar por cima de montanhas e rios. O
mtodo tem a forma de uma estrada ou via frrea que ignora a terra. Ao contrrio, o ensasta
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prefere o caminho sinuoso, o que se adapta aos acidentes do terreno. s vezes, o ensaio
tambm uma figura de desvio, de rodeio, de divagao ou de extravagncia. Por isso, seu
traado se adapta ao humor do caminhante, sua curiosidade, ao seu deixar-se levar pelo que lhe
vem ao encontro. O ensaio , tambm, sem dvida, uma figura do caminho da explorao, do
caminho que se abre ao tempo em que se caminha. Como nos versos de Antnio Machado:
"caminhante no h caminho seno estrelas no mar. Caminhante, no h caminho, o caminho se
faz ao caminhar". Digamos que o ensasta no sabe bem o que busca, o que quer, aonde vai.
Descobre tudo isso medida que anda. Por isso, o ensasta aquele que ensaia, para quem o
caminho e o mtodo so propriamente ensaio.
Outra observao de Adorno a que o ensaio no adota a lgica do princpio e do fim, nem
comea pelos princpios, pelos fundamentos, pelas hipteses, nem termina com as concluses,
ou com o final, ou com a tese, ou com a pretenso de ter esgotado o tema. O ensasta inicia no
meio e termina no meio, comea falando do que quer falar, diz o que quer e termina quando sente
que chegou ao final e no por que j nada resta a dizer, sem nenhuma pretenso de totalidade.
Recordar a citao de Adorno lida anteriormente, a de que "no comea por Ado e Eva", parece
uma bobagem, porm j me presentearam com um livro de histria da educao, que comeava
por Ado e Eva. Asseguro que o primeiro captulo era "a educao em nossos primeiros pais".
O ensaio no procede nem por induo ou deduo, nem por anlise ou sntese. Sua forma
orgnica e no mecnica ou arquitetnica, nisso se parecendo com as obras de arte,
especialmente com a msica e a pintura. O ensaio se situa, de entrada, no complexo. H uma
observao muito interessante, no texto de Adorno, sobre quando uma relao de ensino e
aprendizagem tem a forma de ensaio. Por onde comea um curso? Creio que um curso comea
pelo meio, [p. 113] sempre se comea pelo meio, sempre j se est em alguma coisa, dentro de
alguma coisa. E tambm se termina pelo meio. O texto de Adorno interessante porque est
tentando pensar o que aprender filosofia:
(...)A forma do ensaio preserva o comportamento de algum que comea a estudar
filosofia e j possui, de algum modo, uma idia do que o espera. Ele raramente iniciar
seus estudos com a leitura dos autores mais simples, cujo common sense costuma patinar
na superfcie dos problemas onde deveria se deter; em vez disso, ir preferir o confronto
com autores supostamente mais difceis, que projetam retrospectivamente sua luz sobre o
simples, iluminando o como uma 'posio do pensamento em relao objetividade'. A
ingenuidade do estudante que no se contenta seno com o difcil e o formidvel mais
sbia do que o pedantismo maduro, cujo dedo em riste adverte o pensamento de que seria
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melhor entender o mais simples antes de ousar enfrentar o mais complexo, a nica coisa
que o atrai. Essa postergao do conhecimento serve apenas para impedi-lo.
Contrapondo-se ao convenu da inteligibilidade, da representao da verdade como um
conjunto de feitos, o ensaio obriga a pensar a coisa, desde o primeiro passo, com a
complexidade que lhe prpria, tornando-se um corretivo daquele primitivismo obtuso,
que sempre acompanha a ratio corrente (Op. Cit., p. 32-33).
A passagem de Adorno, que comento a seguir, refere-se ao tratamento dos conceitos no
ensaio. A citao um pouco grande, mas vale a pena:
Assim como o ensaio renega os dados primordiais, tambm se recusa a definir os seus
conceitos. ( . . ) O ensaio, em contrapartida, incorpora o impulso anti-sistemtico em seu
prprio modo de proceder, introduzindo sem cerimnias e 'imediatamente' os conceitos,
tal como eles se apresentam. Pois mera superstio da cincia propedutica pensar os
conceitos como intrinsecamente indeterminados, como algo que precisa de definio para
ser determinado. (..,) Na verdade, todos os conceitos j esto implicitamente
concretizados pela linguagem em que se encontram. O ensaio parte dessas significaes e,
por ser ele prprio essencialmente linguagem, leva-as adiante; ele gostaria de auxiliar o
relacionamento da linguagem com os conceitos, acolhendo-os na reflexo tal como j se
encontram inconscientemente denominados na linguagem. Na fenomenologia, isso
pressentido pelo procedimento da anlise de significados, s que este se transforma em
fetiche a relao dos conceitos com a linguagem. O ensaio to ctico diante desse
procedimento quanto diante da definio.
Sem apologia, ele leva em conta a objeo de que no possvel saber com certeza os
sentidos que cada um encontrar sob os conceitos. Pois o ensaio percebe claramente que
a exigncia de definies estritas serve h muito tempo para eliminar, mediante
manipulaes que fixam os significados conceituais, aquele aspecto irritante e perigoso
das coisas, que vive nos conceitos. (...) A exposio , por isso, mais importante para o
ensaio do que para os procedimentos que, separando o mtodo do objeto, so indiferentes
exposio de seus contedos objetivados (Op. Cit., p. 28-29).
Os conceitos so uma elaborao da lngua natural. Porm a lngua natural [p. 114] vive e
sobrevive no interior do conceito. Quer dizer, o pensamento no pensa no logos, mas numa
lngua natural, relativamente elaborada. Ningum pensa em esperanto mas em espanhol, ou em
francs, ou no espanhol da Venezuela ou no espanhol de Sevilha. No h uma lngua pura e o
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pensamento no pode seno pensar numa lngua natural. Sobre a lngua natural atuam certas
operaes de controle, mas essas operaes no so capazes de eliminar de todo o que de
perigoso e irritante tem a lngua. O pensador sistemtico gostaria de pensar sem lngua ou
inventar do zero a lngua em que pensa. O ensasta, porm, no toma o conceito um fetiche, no
define conceitos, mas vai precisando-os no texto medida em que os desdobra e os relaciona.
Por isso to importante que o ensaio assuma a forma de exposio. A citao de Adorno
continua:
A exposio , por isso, mais importante para o ensaio do que para os procedimentos
que, separando o mtodo do objeto, so indiferentes exposio de seus contedos
objetivados. O "como " da expresso deve salvar a preciso sacrificada pela renncia
delimitao do objeto, sem todavia abandonar a coisa ao arbtrio de significados
conceituais decretados de maneira definitiva. (...) O ensaio exige, ainda mais do que o
procedimento definidor, a interao recproca de seus conceitos no processo da
experincia intelectual. Nessa experincia, os conceitos no formam um continuum de
operaes, o pensamento no avana em um sentido nico; em vez disso, os vrios
momentos se entrelaam como num tapete. Da densidade dessa tessitura depende a
fecundidade dos pensamentos (Op. Cit., p. 29-30).
O ensasta no define conceitos, mas desdobra e tece palavras, precisando-as nesse
desdobramento e nas relaes que estabelece com outras palavras, levando-as at o limite do que
podem dizer, deixando-as deriva. O ensaio, diz Adorno, no pretende continuidade mas se
compraz na descontinuidade, porque a vida mesmo descontnua, porque a realidade mesmo
descontnua.
O ensaio tem a forma de comentrio de texto. A citao de Adorno muito interessante, e a
mim me reconforta, e diz assim: "Astuciosamente, o ensaio apega-se aos textos como se estes
simplesmente existissem e tivessem autoridade. Assim, sem o engodo do primordial, o ensaio
garante um cho para os seus ps (...)"(Op. Cit., p. 40). O ensaio necessita de um texto
pr-existente, no para ser examinado mas para ter um solo onde correr.
Depois dessas observaes que, por uma parte, so caractersticas do ensaio e, por outra parte
da o modo um tanto brutal como as comentei pretendem ser contrrias a uma certa imagem
da cultura acadmica, gostaria de, finalmente, comentar algumas coisas que diz Adorno a
respeito de quais so os males do ensaio, quais seus perigos. Parece claro que o fracasso do
ensaio no est no erro, mas na estupidez. O pensamento metdico fracassa quando se equivoca,
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porm o ensasta fracassa quando cai na estupidez, e a estupidez a submisso opinio. O
ensaio, diz Adorno, sempre tentado a submeter-se aos ditames da moda e do mercado, a esse
outro tipo de ortodoxia que no a [p. 115] ortodoxia acadmica mas a doxa do senso comum.
Escreve que "[o ensaio] acaba se enredando com enorme zelo nos empreendimentos culturais
que promovem as celebridades, o sucesso e o prestgio de produtos adaptados ao mercado", e
mais adiante diz que "Livre da disciplina da servido acadmica, a prpria liberdade espiritual
perde a liberdade, acatando a necessidade socialmente pr-formada da clientela" (Op. Cit., p.
19).
Outro perigo que o ensaio tambm produz um novo tipo de intelectual e um novo tipo de
aristocracia intelectual. No mundo acadmico, constri-se uma certa arrogncia e uma certa
vaidade: ns os melhores, os que sempre sabemos o que pensar de verdade, o que fazer
cincia de verdade, o que escrever de verdade. Porm, essa aristocracia espiritual pode
construir-se de outro modo: ns os transgressores, ns os que transgredimos as normas. Isso
constitui um novo tipo de filistesmo igualmente repugnante, uma nova configurao da ati tude
que consiste em elevar-se diminuindo o outro. O filistesmo atua sempre que se constri qualquer
tipo de aristocracia, mediante o desprezo de tudo o que ela no . Tanto faz que seja a aristocracia
da filosofia sistemtica ou a aristocracia da transgresso. Ento, termino com uma ltima frase
do texto de Adorno que diz o seguinte: "ensaios ruins no so menos conformistas do que
dissertaes ruins"(Op. Cit., p. 20).
Referncias Bibliogrficas
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apresentao de Jorge M. B. de Oliveira. So Paulo: Duas Cidades; Editora 34,
2003, p. 15-45.
DELEUZE, Gilles. Conversaciones. Valencia: Pre-textos, 1999.
________. Pensamento nmade. In: MARTON, Scarlett (Org.). Nietzsche hoje? Colquio de
Cerisy. [1972] So Paulo: Brasiliense, 1985, p. 56-76
NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. Traduo, notas e posfcio de Paulo Csar de Souza. So
Paulo: Companhia das Letras, 2004.
ZAMBRANO, Mara. La gua como forma dei pensamiento. In: Hacia um saber sobre elalma.
Madrid: Alianza, (1987a), p. 71- 97.
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ZAMBRANO, Mara. La gua como forma dei pensamiento. In: Apuntes sobre el tiempo y la
poesia. Madrid: Alianza (1987b), p. 45-50.
Traduo de Malvina do Amaral Dorneles, do original em espanhol. Reviso de Rosa Maria
Bueno Fischer.
Jorge Larrosa professor da Universidade de Barcelona, Espanha.
Endereo para correspondncia:
E-mail: [email protected]