Latusa 12 A nobreza do sintoma final · 2011-02-04 · Jacques-Alain Miller, há vários anos, em...

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1 Latusa digital – ano 3 – N° 21 – março de 2006 A nobreza do sintoma * Leonardo Gorostiza ** Introdução É um prazer estar com vocês. Agradeço o convite da EBP-Rio, por meio de sua diretora, Mirta Zbrun, e desejo a todos uma intensa jornada de trabalho. “A nobreza do sintoma” – trata-se de uma fórmula que expressa um pequeno deslocamento em relação àquela introduzida por Jacques-Alain Miller em seu último curso, Pièces détachées, no qual ele fala da “nobreza do sinthoma”. Minha idéia é ampliar essa dimensão e falar da nobreza do sintoma em geral. Creio que essa é a melhor maneira de nomear o que quero trabalhar com vocês. Sendo uma Jornada de Cartéis, me pareceu que esse tema deveria ser trabalhado de modo aberto, não conclusivo, fazendo interrogações, arriscando algumas hipóteses, não nos contentando, enfim, com a reiteração e a segurança do já sabido. Quer dizer, nos colocando ao trabalho. De certo modo, a idéia de trabalharmos nosso tema sob o modo próprio do cartel se resume a uma variação da escrita dos discursos, proposta por Jacques-Alain Miller, há vários anos, em um famoso texto chamado “Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada” 1 . É o que ele nomeou de matema do mais-um. Ou, na minha opinião, o matema de todo cartelizante. * Conferência ministrada na Jornada de Cartéis da EBP-Rio em 26 de novembro de 2005. ** Analista Membro da Escola – AME. Membro da Escuela de la Orientación Lacaniana (EOL), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e diretor do Instituto Clínico de Buenos Aires (ICBA). 1 MILLER, J.-A. “Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada.” Em: O cartel – conceito e funcionamento na escola de Lacan. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1994, p. 6.

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Latusa digital – ano 3 – N° 21 – março de 2006

A nobreza do sintoma*

Leonardo Gorostiza**

Introdução

É um prazer estar com vocês. Agradeço o convite da EBP-Rio, por meio de sua

diretora, Mirta Zbrun, e desejo a todos uma intensa jornada de trabalho. “A

nobreza do sintoma” – trata-se de uma fórmula que expressa um pequeno

deslocamento em relação àquela introduzida por Jacques-Alain Miller em seu

último curso, Pièces détachées, no qual ele fala da “nobreza do sinthoma”.

Minha idéia é ampliar essa dimensão e falar da nobreza do sintoma em geral.

Creio que essa é a melhor maneira de nomear o que quero trabalhar com

vocês.

Sendo uma Jornada de Cartéis, me pareceu que esse tema deveria ser

trabalhado de modo aberto, não conclusivo, fazendo interrogações, arriscando

algumas hipóteses, não nos contentando, enfim, com a reiteração e a

segurança do já sabido. Quer dizer, nos colocando ao trabalho.

De certo modo, a idéia de trabalharmos nosso tema sob o modo próprio do

cartel se resume a uma variação da escrita dos discursos, proposta por

Jacques-Alain Miller, há vários anos, em um famoso texto chamado “Cinco

variações sobre o tema da elaboração provocada”1. É o que ele nomeou de

matema do mais-um. Ou, na minha opinião, o matema de todo cartelizante.

* Conferência ministrada na Jornada de Cartéis da EBP-Rio em 26 de novembro de 2005. ** Analista Membro da Escola – AME. Membro da Escuela de la Orientación Lacaniana (EOL), Membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e diretor do Instituto Clínico de Buenos Aires (ICBA). 1 MILLER, J.-A. “Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada.” Em: O cartel – conceito e funcionamento na escola de Lacan. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1994, p. 6.

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a $ S1

(x) S2

Trata-se de uma articulação entre o discurso analítico e o discurso histérico,

que resumo assim: o ideal é que cada cartelizante esteja na posição de sujeito,

causado pelo agalma implícito no saber que supomos a Freud, a Lacan, a

Jacques-Alain Miller e a outros colegas da AMP, para interrogar um aspecto de

uma questão e produzir um saber novo, ainda que seja pequeno, modesto.

Nesse sentido, minha idéia seria colocar, no lugar do S1, esta variação da

fórmula de Miller, perguntando: o que quer dizer a nobreza do sintoma? Trarei

minha resposta, uma primeira aproximação, apenas no final da conferência.

Primeiramente, retomarei com vocês algumas notas do que apresentei em

duas noites da EOL, há dois meses atrás, nas quais alguns de nós

interrogamos o que foi chamado de “Incidências do último ensino de Lacan na

prática analítica”. Eu as retomei agora pelo viés do sintoma, perguntando-me:

quais são as incidências da última noção de sintoma em Lacan na prática

analítica na atualidade? Achei interessante retomar essas notas e tentar

avançar mais um passo, fazendo o que é, propriamente falando, um trabalho

de Escola.

Talvez eu pudesse ter intitulado essa conferência de outra maneira: por

exemplo, “Panorama a partir do sintoma”, parafraseando Arthur Miller. Por

que? Ora, o plano da exposição é o seguinte: situarei primeiramente algumas

indicações de Jacques-Alain Miller em sua conferência em Comandatuba, na

qual ele falou de “inventar” a prática lacaniana de nossos dias a partir do

último ensino de Lacan e introduziu algumas indicações sobre o sintoma. A

seguir, recordarei sucintamente a noção de sintoma no último ensino de Lacan,

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que corresponde ao que chamamos de sexto paradigma do gozo. Finalmente,

situado neste ponto de perspectiva, tentarei estabelecer uma espécie de

panorama, interrogando seis incidências possíveis deste conceito de sintoma

sobre:

1. o diagnóstico

2. a entrada em análise

3. a interpretação

4. a ética

5. a política, no sentido mais amplo

6. o final de análise.

Contudo, rapidamente me dei conta de que teria sido um contra-senso chamar

essa conferência de Panorama a partir do sintoma. Por que? Porque a noção de

panorama supõe um ponto de perspectiva, aquele em que nos situamos, a

partir do qual vislumbramos todo o panorama. Ora, esta é a posição do

teórico, daquele que contempla o que ocorre no espetáculo do mundo a partir

de uma exterioridade. Existe uma relação entre a posição do teórico, que

supostamente descortina todo o panorama, e a posição do Sujeito suposto

saber. No Seminário, livro 15: o ato psicanalítico, Lacan relaciona o onividente

e o Sujeito suposto saber. Teria sido um contra-senso chamá-la assim porque

a última noção de sintoma em Lacan, na medida em que põe o acento no real,

deixa de lado o teórico, sublinhando o aspecto de uso do sintoma, sua vertente

pragmática. Miller acentua isso, dizendo: “[...] quando se assinala o que Lacan

realmente chamava de real, o teórico desvanece, dando lugar apenas a um

uso, a um certo tipo de saber fazer com”.2

Eu poderia então ter nomeado essa conferência O pragmatismo do sintoma,

título que se sustenta para pensar o sintoma no último ensino de Lacan. Mas

meu título acabou sendo A nobreza do sintoma. Como disse, ele traduz meu

desejo de avançar um pouco em relação à fórmula de Miller “a nobreza do

2 MILLER, J.-A. “El analista-síntoma”. Em: El psiconalista y sus síntomas. Buenos Aires: EOL-Paidós, Colección Orientación Lacaniana, n° 3, 1998, p. 14.

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sinthoma”. Como podem perceber, não reduzi-la ao sinthoma, que só se

produz no final da análise, mas estendê-la ao sintoma implica pensar a

importância e o valor que pode ter isolar a singularidade do sujeito desde o

início da análise, justamente dos “sujeitos contemporâneos”, tão bem

figurados na imagem escolhida para a divulgação dessas Jornadas: homens

reduzidos a corpos sem rosto, nos quais não aparece a diferença sexual ou

qualquer outra marca de sua singularidade.

Inventar a prática lacaniana

Em sua conferência intitulada “Uma fantasia” Jacques-Alain Miller usou este

termo crucial: “inventar a prática lacaniana de nossos dias”. Ele declinou três

respostas que se esboçam na psicanálise contemporânea frente ao que

chamou discurso hipermoderno, que situa o mais-de-gozar – o objeto a, objeto

gadget produzido pelo mercado – no zênite da civilização. Poderíamos dizer

que não se trata propriamente de um discurso, pois os quatro elementos estão

disjuntos.

Essas respostas são:

1. O que ele chamou de psicanálise fundamentalista ou reacionária, que

quer voltar ao tempo do S1 da tradição, ou seja, que tenta restaurar o

discurso do mestre tradicional.

2. Uma psicanálise passadista que supõe o inconsciente como um saber

eterno e que pensa que, aconteça o que for, isso vai continuar

funcionando.

3. Uma psicanálise que ele nomeou ironicamente de progressista,

orientada para um suposto futuro, que faz aliança com as ciências e as

falsas ciências, produzindo uma tradução “neurocognitivista” da

metapsicologia. Podemos dizer que o neurocognitivismo psicanalítico

não passa de uma variedade do discurso universitário, que, por sua

vez, é uma variação do discurso do mestre.

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Essas três posições, que Miller reconduz respectivamente a uma exaltação do

Simbólico (o passado), do Imaginário (o presente) e do Real científico (o

futuro), não passam afinal de práticas sugestivas. Ao me perguntar porque

Miller diz isso, a primeira resposta que me veio foi: porque elas são orientadas

por um “isso anda” (Ça marche).

Como alternativa a essas concepções da psicanálise, existe a prática lacaniana,

ou melhor, existirá – como sublinha Miller – já que se trata de inventá-la. É

claro, acrescenta ele, “que não se trata de inventar ex-nihilo. Trata-se de

inventá-la na via que, em particular, o último Lacan abriu”.

Ele indica a seguir que, para que “a prática lacaniana por vir se sustente, se

distinga das outras”, é preciso situar bem qual é seu princípio. À diferença das

outras, cujo princípio é isso anda, o princípio da prática lacaniana é isso falha,

rateia, que traduziria o Ça ne marche pas (isso não anda), e que, em francês,

traduz uma sutil equivocidade, mediante uma ligeira mudança de acento, com

Ça ne marché pas (isso mercado não).

Entramos aqui de cheio na noção de sintoma do último ensino de Lacan. Em

dois textos de 1974, “A Terceira” e “O triunfo da religião”, Lacan caracteriza o

real como “o que não anda”, enquanto que “o que anda” é o mundo, o que gira

em círculo. Por seu lado, o sintoma – embora não seja a mesma coisa que o

real, ele é o que vem do real – também se põe em cruz diante do discurso do

mestre. “O sintoma – diz Lacan – não é ainda verdadeiramente o real. É a

manifestação do real em nosso nível de seres vivos. Como seres vivos,

estamos carcomidos, mordidos pelo sintoma. Estamos doentes, é tudo. O ser

falante é um animal doente. ‘No princípio era o Verbo’ diz a mesma coisa”.3

Trata-se então da noção de sintoma como acontecimento de corpo, que está

indissoluvelmente ligada ao princípio fundamental da prática lacaniana, o

princípio do isso rateia. Quero sublinhar a extrema importância disto e o valor

3 LACAN, J. O triunfo da religião. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 76.

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de atualidade que tem. Se, como diz Lacan, é necessário que a psicanálise

fracasse para que o real continue existindo, já que, se tem êxito, a psicanálise

se extinguirá por ser um sintoma esquecido, pois este é o destino da verdade,

isso implica um desafio, que proponho como primeiro ponto para a discussão:

como articular o saber fazer dos sucessos terapêuticos, como tornar público os

resultados de uma análise mantendo, ao mesmo tempo, a dimensão do isso

falha?

Outro ponto a sublinhar é o termo inventar usado por Miller. Entendo que não

se trata de que seria preciso inventar a prática lacaniana de nossos dias, e que

ela, uma vez inventada, passaria a existir. Ou seja, estaríamos tranqüilos,

teríamos chegado ao Cristo Redentor e, lá de cima, poderíamos ver tudo. Ao

contrário, o termo invenção significa que se trata de reinventar a prática a

cada dia. Esse termo também é congruente com a última noção de sintoma.

Em O Seminário, livro 21: Os não tolos erram, Lacan faz uma declinação do

termo invenção: “[...] todos sabemos porque inventamos um truque para

encher o furo (trou) no real [...]. Ali onde não há relação sexual, há

troumatisme. Cada um inventa o que pode” 4. Inventa-se o saber, inventa-se o

masoquismo, o inconsciente inventa, o escrito é invenção, a lógica é uma

invenção, etc. Podemos dizer então que o próprio sintoma é uma invenção: a

invenção privilegiada de uma fórmula ali onde não há relação sexual.

“O sujeito”, diz Miller, “é sempre obrigado a inventar seu modo de relação com

o sexo, sem estar guiado por uma programação natural. Esse modo de relação

inventado, sempre particular e peculiar, sempre claudicante – rengo – sublinho

isso por sua relação com “o que não anda” – é o sintoma, que vem no lugar

dessa programação natural que não existe”5. O gozo, a invenção libidinal que o

sujeito inventa, jamais será a boa fórmula, sempre haverá déficit.

4 LACAN, J. Le Séminaire XXI: Les non-dupes errent. Inédito. Aula de 19 de fevereiro de 1974. 5 MILLER, J.-A. “El ruiseñor de Lacan”. Em: Del Édipo a la Sexuación. Buenos Aires: ICBA-Paidós, 2001, pp. 260-261.

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Em “Uma fantasia”, Miller dá algumas indicações preciosas sobre o sintoma e o

lugar que ele pode ter nessa nova prática lacaniana. Resumidamente, diz que a

psicanálise surgiu como uma infração ao saber científico. A ciência silenciou o

Universo, e afirmou: há um saber no real que não fala. A base da invenção

freudiana é que há algo no real, ou seja, o sintoma, que quer dizer algo, que

possui um sentido a ser decifrado. Isso foi, inclusive, a “condição de

possibilidade” da psicanálise. “O sentido no real”, diz ele, “é o suporte do ser

do sintoma, no sentido analítico”. Porém acrescenta que, após suportar por um

tempo esta transgressão ao saber da ciência, produziu-se na atualidade “uma

cisão do ser do sintoma”. Uma cisão entre o real e o sentido. Talvez se possa

pensar que Miller se refere ao ser do sintoma para separar a dimensão de

sentido do sintoma, sua dimensão de semblante, vinculada ao ser, e sua

dimensão de sinthoma, isto é, sua dimensão real, mais opaca, vinculada à

escrita. Miller afirma que, nessa cisão entre o real e o sentido, se produz uma

transformação do sintoma em transtorno, disorder em inglês. Ou seja, o

sintoma é concebido como uma desordem em relação a uma suposta ordem

existente no real. No título das Jornadas da EOL, perguntávamos: sintoma ou

transtorno? Vemos claramente que o transtorno supõe uma lei que funcionaria

no real como saber científico, uma lei já inscrita, enquanto o sintoma é uma lei

que o próprio sujeito inventa e que, portanto, não pressupõe nenhuma lei no

real. Essa é a diferença entre transtorno e sintoma.

Miller diz que existem duas respostas possíveis: tratar o real do sintoma, fora

do sentido, com a química; é o que fazem as neurociências. E, do lado do

sentido, há os tratamentos de apoio, que tomam duas formas: a escuta de

puro semblante, ou seja, as terapias charlatães, sem nenhuma conseqüência,

e as terapias autoritárias e sugestivas das TCC. Trata-se de uma refutação, de

uma recusa do sintoma em seu valor de verdade.

Qual é a resposta imaginada por Miller? Nem recusar o saber no real, nem se

alinhar a ele. Assim, a prática lacaniana a ser inventada seria definida como

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“uma renovação do sentido do sintoma”. É o que Lacan introduziu, diz Miller,

“com o nome de sinthoma”. O que é surpreendente, pois o sinthoma é o que

resta de uma análise, da decifração do sentido, o que implica que não haja

uma renovação do sentido do sintoma a partir do sinthoma.

Deixo aqui outra pergunta para a conversação: se Lacan diz, no Seminário 23:

O sinthoma, que o sintoma ou o sinthoma são o Pai – ele faz uma equivalência

dos três termos – poderíamos dizer que, tal como devemos renovar o sentido

do sintoma, deveríamos renovar também o sentido do Pai?

Na perspectiva do sinthoma, o sintoma não é em si mesmo uma mensagem,

mas “um signo da não relação sexual”, um signo de gozo, gozo que nunca é o

bom, aquele que deveria ser o da suposta relação sexual, se ela existisse.

Entendo que, ao mesmo tempo em que é uma solução, o sintoma também é

uma “claudicação”, isto é, índice do que não anda no real.

O sintoma como acontecimento de corpo

Como vocês sabem, esta definição de Lacan aparece apenas uma vez, em seu

breve escrito “Joyce, o Sintoma” 6, e foi trabalhada por Miller in extenso em

seu curso A experiência do real no tratamento psicanalítico. 7

Resumidamente, podemos dizer que o falasser não é um corpo – como ocorre

no reino animal, pois o animal está totalmente identificado a seu corpo – mas

ele tem um corpo. Ter um corpo e não ser um corpo quer dizer que ele é

também sujeito, portanto afetado pela falta-a-ser que introduz o significante

que divide seu ser e seu corpo. Insisto: para ter sintomas, é preciso ter um

corpo e não ser um corpo.

6 LACAN, J. “Joyce, o Sintoma”. Em: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 565. 7 MILLER, J.-A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2003, especialmente as aulas XXI e XXII.

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Os sintomas surgem, na última versão de Lacan, do acontecimento traumático

que implica a incidência da alíngua – desses S1 sozinhos, que não formam

sistema ou estrutura – no corpo, o que pode ser resumido na fórmula: “o

significante é causa de gozo”, ou seja, causa de efeitos que são afetos. Quer

dizer, o significante não tem somente efeitos de significado – o próprio sujeito

é um desses efeitos –, mas também efeitos de gozo num corpo. Assim, a

alíngua veicula o traumático – troumatique – da não relação sexual, deixando

efeitos duradouros, marcas desse encontro sempre traumático do qual algo

não cessará de se escrever, não cessará de se repetir. É o que diz Miller: “A

não relação sexual é o acontecimento lacaniano no sentido do trauma, esse

que deixa marcas em cada um – não como sujeito, mas como falante – no

corpo, marcas que são sintoma e afeto”.8

Pensando o final de análise, mas também a finalização de certos ciclos

terapêuticos, o fundamental é conseguir provocar um deslocamento em

relação à repetição, para que ela não seja a simples reiteração, a repetição

cega do mesmo, mas traga algo novo. Isso supõe que não há saída do

sintoma. Entramos pelo sintoma, saímos pelo sintoma, morremos com o

sintoma – esta é sua nobreza...

Como disse, essa caracterização do sintoma corresponde ao sexto paradigma

do gozo, o da “não relação”, que tem como ponto de partida O Seminário, livro

20: Mais, ainda. Trata-se da não relação sexual entre Um e o Outro, o que

implica que Há gozo de um corpo vivo em disjunção com o Outro. Neste

paradigma, todos os termos que garantiam a conjunção entre Um e o Outro –

O Outro, o Nome-do-Pai, o falo – se revelam como simples semblantes

conectores. Já não há estrutura transcendental prévia e autônoma que

determine as condições da experiência. Passamos à primazia da prática, na

qual é preciso determinar de que maneira se produz, em cada um, a suplência

da relação entre Um e o Outro. Miller diz que há duas formas de suprir o laço

sexual, frente à inexistência da relação com o Outro: segundo a rotina ou

8 Idem, ibidem, p. 386.

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segundo a invenção. A rotina é apegar-se ao Nome-do-Pai, ao universal da

cultura, enquanto a invenção é criar algo novo. Entramos aqui na temática das

psicoses não desencadeadas. Creio que estas duas formas são cruciais para

situar a incidência desta nova perspectiva do sintoma no diagnóstico.

A arte do diagnóstico

A primeira pergunta é se essa última caracterização do sintoma – que implica

uma espécie de “somos todos delirantes”, já que todos deliramos a partir de

um “não há”, todos inventamos um saber para responder ao troumatisme da

não relação sexual – invalida o diagnóstico clássico de estruturas. O próprio

Miller disse, de maneira irônica, que, desse ponto de vista, as neuroses

poderiam ser consideradas como uma variedade clínica, como um subconjunto

da psicose, o que, contudo, não autoriza a estabelecer uma continuidade entre

neurose e psicose.9

Devo lhes dizer que, da minha parte, continuo tendo muito cuidado em relação

ao diagnóstico diferencial entre neurose e psicose durante as entrevistas

preliminares. Poderíamos, inclusive, nos perguntar se, ao detectarmos que a

solução sintomática implementada por um sujeito é de rotina – o Nome-do-Pai

como sintoma –, podemos afirmar que se trata de uma neurose. O que se

torna mais obscuro é o caso em que a solução é uma invenção. Ou seja, se

nesses casos podemos afirmar que nos encontramos sempre diante de

psicoses não desencadeadas. Em outras palavras: a partir dessa perspectiva,

seria possível pensar em modos de suplência por invenção “neuróticos”?

Sabemos que isso é crucial para tomarmos a decisão de comprometer alguém

no dispositivo, no qual inicialmente “todo sem sentido se anula”.10 De qualquer

forma, fica claro que essa nova perspectiva nos obriga a prestar atenção

9 Ver Los inclassificables de la clínica psicoanalítica, Coleção ICBA n° 1. Buenos Aires: ICBA-Paidós, 1999, p. 395. 10 Idem, ibidem, p. 413.

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especial no sintoma, avaliando, em cada caso, a função que ele cumpre como

reparação da falha no real.

Se seguirmos as indicações de Miller em “El ruiseñor de Lacan”, essa nova

perspectiva nos conduz ao que ele chamou de “arte do diagnóstico”: a arte de

julgar um caso sem regra nem classe pré-estabelecida, o oposto a um

diagnóstico automático. “O ser falante – diz Miller – nunca pode subsumir-se a

si mesmo como um caso sob a regra da espécie humana. O sujeito sempre se

constitui como exceção à regra, e esta invenção ou reinvenção da regra que

lhe falta, ele a faz sob a forma do sintoma. É claro – acrescenta ele –, que há

sintomas típicos, mas, ainda que tenham a mesma forma, cada um é peculiar,

particular [...]”. Assim, o sintoma é a regra própria de um sujeito, segundo a

qual sua libido se distribui.11

Poderíamos então afirmar que o correlato da nova noção de sintoma a respeito

do diagnóstico é precisamente a própria noção de “arte do diagnóstico”.

Esta indicação, que mostra uma espécie de aprofundamento da dimensão

eminentemente singular da prática analítica, nos permite passar à segunda

incidência.

Na entrada: a singularidade do sintoma

Várias perguntas poderiam ser formuladas acerca da incidência da última

concepção de sintoma na problemática das entradas em análise.

Em primeiro lugar, se o acento posto na dimensão de gozo do sintoma e em

sua vertente “pragmática” de reparação da falha estrutural, assim como um

certo “desprezo” pela vertente do sentido – já que o real exclui o sentido –,

tornam obsoletas certas afirmações clássicas, como por exemplo, a

“formalização do sintoma”, isto é, sua articulação com o Sujeito suposto saber.

11 MILLER, J.-A. “El ruiseñor de Lacan”, op. cit., p. 261.

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Dito de modo mais simples: é necessário passar ainda pela via do sintoma

como formação do inconsciente para chegar à sua dimensão de sinthoma? É

viável pensar uma prática que intervenha, desde a entrada, sem a instalação

do Sujeito suposto saber – isto é, sem passar pelo sentido, pela decifração,

numa uma espécie de curto-circuito? No momento, me inclino a responder:

não. Sempre é necessária a produção do sujeito suposto ao sentido do

sintoma.

Em seu último curso, Miller dá algumas pistas a este respeito, que podem

parecer inicialmente contraditórias.

Na primeira aula, diz que “a definição inédita de sinthoma não deixa ilesa

nossa referência, na prática analítica, ao inconsciente”. Porque o inconsciente

já não é o dado primitivo da prática; o dado primitivo é o sintoma. A seguir,

enfatiza que “o sinthoma não é o sintoma como formação do inconsciente”. E

especialmente que o que ele chama de uso lógico do sinthoma se opõe ao uso

do decifrado. Embora remeta à verdade do sintoma, alimentando-o, o uso

lógico leva ao real do sinthoma. É muito forte! Neste ponto, ecoou em mim

outra velha indicação de Miller, no texto ∑ (x)12 – ∑, como vocês devem

lembrar, é a letra utilizada por Lacan, por volta de 1975, para nomear o

sinthoma, definido como função de uma letra, f(x), letra que não cessará de se

repetir – onde ele diz que o sonho de Lacan era poder prescindir – se o

sintoma é um traslado do simbólico ao real que não cessa de se repetir – da

mediação do sentido para ir do real ao simbólico.

No entanto, na terceira aula de Pièces détachées, Miller não hesita em dizer

que, na análise, trata-se de encontrar o que “quer dizer” um acontecimento de

corpo. Ou seja, trata-se de começar a ler esse acontecimento de corpo, de

começar a decifrá-lo, de encontrar seu sentido, até tropeçar, se a leitura for

levada aos últimos entrincheiramentos, no ilegível. Nesse ponto limite se

encontra esse traço chamado sinthoma. Essa fórmula poderia ser interessante

12 MILLER, J.-A. Matemas II. Argentina: Manantial, 1988, p. 171.

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para pensar a questão dos efeitos terapêuticos rápidos, que são atingidos sem

que se passe pela decifração.

De qualquer forma, penso que, na entrada em análise clássica, é preciso

passar necessariamente pela instalação da transferência. Miller também

afirmou isso em Comandatuba, dizendo que “o amor é condição do Sujeito

suposto saber”. É preciso isolar, inicialmente, um enunciado singular do

analisando incluído em seu sintoma – ou seja, não basta isolar um sintoma–

tipo, como por exemplo, a dúvida, a insatisfação, etc; é preciso isolar um

significante privilegiado daquele sujeito. Trata-se do significante da

transferência, que, ao se articular ao Sq encarnado pelo analista, permite que

o autismo do sintoma sem transferência se abone ao inconsciente, quer dizer,

permite que se abra a via do sentido.

Entendo que para que isso ocorra é necessário que, nas entrevistas

preliminares, a intervenção do analista – que podemos chamar de

interpretação – consiga isolar esse elemento do discurso, no qual o analisando

poderá, no final, reconhecer seu ser de gozo.13 É este S1, isolado desde o

início, que permite ao sujeito ler seu inconsciente. Aliás, desde o primeiro

Lacan, sempre foi privilegiado o traço singular, o que se torna cada vez mais

evidente na última versão do sintoma em Lacan, na qual se trata de sua

singularidade. Por exemplo, no Homem dos ratos, o importante não é o delírio

do pagamento da dívida, mas o significante rato que já aparece em seu próprio

sintoma. Hoje mais do que nunca, é preciso isolar esse significante privilegiado

desde o início. Para localizá-lo, é preciso que o analista, desde as entrevistas

preliminares, opere pela via da redução e não pela da amplificação do sentido.

Lacan fala da análise como uma operação de localização. Localizar não é

agregar sentido, mas situar. Devemos, desde a entrada, tentar localizar o

nome do sintoma daquele analisando.

13 “No final da análise se trata de outro uso de uma articulação que já existe desde do começo”. LAURENT, E. “Síntoma y nombre proprio”. Em: Síntoma y nominación. Buenos Aires: DIVA, 2002, p. 98.

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14

Isso nos permite avançar sobre a incidência da última noção de sintoma na

interpretação. Mas antes, quero marcar a importância, na época atual, – a do

discurso hipermoderno ou capitalista – de isolar o sintoma em sua maior

pureza na entrada no dispositivo numa época em que os sujeitos costumam se

apresentar sem referências identificatórias, ou seja, sem bússola. Isto abre à

honra da prática analítica e à sua articulação com a nobreza do sinthoma. Em

outras palavras, creio que é possível caracterizar a seguinte seqüência: o

“adoecer de honra” como condição de possibilidade para alcançar a “nobreza

do sinthoma”.

A interpretação homogênea ao sinthoma

Dizer que a interpretação é homogênea ao sinthoma significa que os dois

elementos são do mesmo gênero ou espécie: ambos surgem e participam da

dimensão equívoca e intraduzível da alíngua.

Uma caracterização da interpretação feita por Lacan, em seu último ensino, é a

que, a meu ver, melhor mostra esta homogeneidade. Refiro-me a esta frase da

“A Terceira” (1974): “a interpretação sempre deve ser o ready-made de Marcel

Duchamp”.

Que relação existe entre o equívoco e os ready-made de Duchamp? Duchamp

chamava seus objetos ready-made de trocadilhos em três dimensões. Sua

operação consistia em extrair um objeto de seu contexto habitual para expô-lo

de modo isolado. Ao fazê-lo, Duchamp provocava no espectador um efeito que

poderíamos chamar de “perplexidade”. Seu ready-made mais famoso, o urinol

– que ele próprio chama “Fonte” – mostra claramente o procedimento: extrair

o objeto do contexto habitual (o banheiro), onde ele tem uma função de

utilidade direta, e elevá-lo à dignidade de um objeto a-rstístico, como diz

Duchamp, que questiona as categorias do útil e do belo. A interpretação ready-

made faz algo semelhante: extrai um significante de seu contexto associativo,

separando-o de seu S2 por meio do equívoco homofônico, reduzindo-o ao seu

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caráter de letra, que, como tal, é intraduzível. É o mesmo que faz Lacan

quando, em vez de traduzir Unbewusst para o francês por l’inconscient – que

seria acrescentar o S2, ou seja, o sentido desta palavra alemã na língua

francesa – ele a intraduz, como faz Joyce em Finnegan’s Wake, isto é, a

equivoca, por sua homofonia em francês, como “Une-Bévue”, “Uma-

equivocação”.14

Por isso, entendo que esta modalidade interpretativa pode ser situada no que

Miller chamou “a via da perplexidade”, que é um aprofundamento em Lacan do

que podemos nomear de uma orientação para a “ressonância a-semântica”.

Via que implica separar, de um modo ou de outro, S1 de S2.

Além disso, penso que, desse ponto de vista, a interpretação é homogênea ao

sinthoma, porque, como ele, ela também deve ser uma “peça solta”. Em seu

curso Pièces détachées, após citar como exemplo eminente de peça solta o

urinol ready-made de Duchamp – fora-do-sentido, um objeto “de puro gozo”,

que não serve para nada –, Miller afirma que o sinthoma inventado por Lacan

é precisamente uma peça solta, peça que trava as funções do indivíduo, mas

que tem, secretamente, como Lacan mostrará, uma função eminente e que, na

análise, trata-se de encontrar a sua função.15

Tanto a interpretação como o sinthoma são peças soltas, porque separados do

S2. Eles apontam o S1 em sua unicidade como tal; não se trata, então, do S1

que representa o sujeito para S2. Lacan diz que o sinthoma não é o S1 que se

conecta ao S2. No caso, trata-se do S1 isolado, homólogo ao objeto a. A

interpretação analítica que aponta para a localização de traços significantes

isolados é homogênea ao sinthoma. Poderíamos generalizar e dizer que

sempre a interpretação é homogênea ao sintoma. No primeiro Lacan, a

14 MILLER, J.-A. “O último ensino de Lacan”. Em: Opção Lacaniana, n° 35. Rio de Janeiro: Edições Eólia, janeiro de 2003, p. 14. 15 MILLER, J.-A. Curso de Orientação Lacaniana (2004-2005). Inédito. Aula 1, de 17 de novembro de 2004.

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interpretação é metafórica e, portanto, homogênea ao sintoma, pois este é

concebido como uma metáfora.

Recordemos ainda que, em Comandatuba, Miller faz, de passagem, referência

à interpretação. Diz precisamente que a poética da interpretação não se

vincula ao belo, mas sim ao materialismo – moterialisme, o materialismo da

palavra – da interpretação. Ele dá o exemplo de uma supervisão na qual o

analista obteve um efeito inédito com uma paciente, após nove anos de

análise, simplesmente lhe dizendo Basta!, de maneira virulenta, que

contrastava com o tom doce e habitual de sua voz. E Miller acrescenta: “É

preciso por o corpo para elevar a interpretação à potência do sintoma”.16

Poderíamos então falar da interpretação “como acontecimento de corpo” no

analista? Trata-se de outro modo de “descontextualização” ou há algo mais

aqui? E ainda, essa modalidade interpretativa não seria equivalente a

“perturbar a defesa”?

Deixo esta terceira incidência. Adianto que as três últimas incidências: a

questão ética, a dimensão política em geral e o final de análise se articulam e

se superpõem. Para nós, não há política que não se sustente em uma posição

ética. A política tem a ver com o desejo do analista, que é evidentemente ético

e que, ao mesmo tempo, está ligado necessariamente ao final de análise.

Portanto, vou expô-las separadamente apenas por uma questão de clareza

expositiva e para acentuar algumas facetas.

Passemos à quarta incidência, a da última versão de sintoma em Lacan na

questão ética, que resumirei na pergunta: falasser ou sujeito?

16 MILLER, J.-A. “Uma fantasia”. Em: Opção Lacaniana, n° 42. São Paulo: Edições Eólia, fevereiro de 2005, p. 17.

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Falasser ou sujeito?

Costumamos repetir, citando Miller, que o último ensino de Lacan opera uma

“depreciação” da noção de sujeito. Efetivamente, em “O osso de uma análise”,

ele o diz claramente. Se a noção de falasser implica que este goza ao falar –

na medida em que a simbolização não só não anula o gozo, mas o sustenta –

“[...] esta perspectiva comporta um questionamento do termo sujeito”. Por

que? Porque o sujeito é um elemento sempre mortificado, definido como falta-

a-ser. Ao questionar isso, Lacan faz entrar o corpo vivente “[...] substituindo o

termo sujeito por falasser, que é o contrário da falta-a-ser. O falasser é o

sujeito mais o corpo, é o sujeito mais a substância gozante”.17

Como o termo sujeito é crucial na consideração da perspectiva ética,

deveríamos nos perguntar se esta variação que Lacan introduz com a noção de

falasser afeta a dita perspectiva e, em caso positivo, de que maneira o faz.

Em primeiro lugar, recordemos que a noção de responsabilidade está

indissoluvelmente ligada à noção de sujeito. O sujeito como efeito de

significação é resposta do real e, como tal, é em si mesmo índice de

responsabilidade, já que “responsabilidade” deriva precisamente de

“responder”. Por isso, buscamos sempre produzir, desde o início de uma

análise, esse sujeito responsável por seus ditos e por seu gozo. Miller

trabalhou bastante isso, há muito tempo, em São Paulo, em “Patologia da

ética”.18

A pergunta que me faço é: será que a promoção da noção de falasser anula a

dimensão ética constituinte da experiência analítica? Apresso-me em

responder: Não. Não apenas não anula, mas, de certo modo, a aprofunda. Em

outras palavras, entendo que para que a experiência analítica ocorra é

17 MILLER, J.-A. “O osso de uma análise”. Em: Agente, revista da EBP-BA. Salvador: EBP-BA, 1998, p 102. 18 MILLER, J.-A. “Patologia de la ética”. Em: Logicas da vida amorosa. Buenos Aires: Manantial, 1991, pp. 70-74, e 79-87.

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necessário que os dois componentes do falasser ($, a) – ou seja, o sujeito e o

gozo ou substância – se separem e emirjam em uma nova articulação, que é a

do discurso analítico. Único laço em que o objeto a pode se situar no lugar de

agente, como núcleo elaborável do gozo em uma análise. “Somente por meio

da psicanálise este objeto”, diz Lacan na “Terceira”, “constitui o núcleo

elaborável do gozo [...]”. 19

De certo modo é o mesmo que dizemos, por outro ângulo, ao afirmarmos que

“a operação própria à psicanálise consiste em um forçamento que conduz o

gozo ao sentido, para resolvê-lo e levá-lo ao ponto máximo de opacidade no

qual já se manifeste o ilegível”.20

Essa operação não pode ser realizada senão passando pela suposição de

sentido, pela crença de que o sintoma quer dizer algo. Suposição que surge

quando o próprio sujeito, como resposta do real, está realizado – o sujeito que

é suposto a um conjunto harmônico de significantes. Ou melhor, é o próprio

sujeito que introduz a dita harmonia, isto é, uma relação entre S1 e S2. E sua

condição é o amor ao inconsciente21 que faz o Outro nascer, que faz surgir o

inconsciente como semblante a partir do gozo do sujeito.22

Além disso, digo que esta nova perspectiva reforça ainda mais a dimensão

ética, porque a caracterização do sintoma como invenção frente ao furo da não

relação sexual implica a idéia de que o próprio sintoma é uma resposta. Ou

seja, é dessa fórmula singular que o falasser inventou, que ele deverá –

mediante o sujeito realizado na experiência analítica – tornar-se responsável.

19 LACAN, J. “La tercera”. Em: Intervenciones y textos 2. Buenos Aires: Manantial, 1993, p. 90. 20 MILLER, J.-A. “O último ensino de Lacan”, op. cit., p.10. 21 MILLER, J.-A. “Uma fantasia”. Em: Opção Lacaniana, nº 42. Rio de Janeiro: Edições Eólia, fevereiro de 2005. 22 MILLER, J.-A. “∑ (x)”. Em Matemas II. Argentina: Manantial, 1988, p. 172.

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Como recorda Miller, Lacan afirma, no Seminário 23: O sinthoma, que “não há

responsabilidade senão sexual”. Cada um tem que responder pelo sexo, e só é

possível, na medida em que não há relação sexual, responder “lateralmente”.

“Isso quer dizer”, assinala Miller, “que no que se pensa, responde-se sempre à

sexualidade e que a resposta dada é sempre sintomática: sempre quer dizer

que não se sai (disso)”.23 Ou seja, “disto – do sintoma – não se sai”. Já temos

aqui uma indicação sobre o final de análise como identificação ao sintoma, que

veremos adiante.

Podemos ainda sublinhar que, embora Lacan sempre tenha reservado um lugar

privilegiado para a “insondável decisão do ser” (1946)24 na determinação da

estrutura subjetiva – seja neurose ou psicose – é claro que suas formalizações

mais clássicas, baseadas na preexistência do Outro e na aceitação ou recusa

da metáfora paterna, permitem um deslizamento para uma espécie de lógica

mecanicista, que dá destaque à ação da estrutura em detrimento da invenção

do sujeito. Pelo contrário, esta última – em seu caráter de resposta

eminentemente ética – é o que o último ensino de Lacan destaca,

distanciando-se assim de toda caracterização deficitária da psicose que ainda

impregnava suas primeiras formulações25. Vemos aqui também ressaltada a

vertente pragmática do sintoma que, como tal, é ética.

Política do sentido ou Schreber contra Damásio

Penso que poderíamos interrogar várias incidências políticas da última noção

de sintoma e definir alguns eixos possíveis de debate. Por exemplo, com as

TCC, com o neopragmatismo (Rorty, Goodman), com as elaborações de alguns

pensadores contemporâneos da política (Toni Negri, Paolo Virno),

23 MILLER, J.-A. Curso de Orientação Lacaniana (2004-2005). Aula 3, p. 26. 24 LACAN, J. “Formulações sobre a causalidade psíquica”. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 179. 25 Cf. La Psicosis ordinária, Colección ICBA. Buenos Aires: ICBA-Paidós, 2003, pp. 47-61.

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especialmente com a noção de “multidão”. Certamente esta lista poderia ser

ampliada.

Mas o fundamental é que, nos três eixos, o princípio que continua nos guiando

é o sintoma, que implica, por um lado, “um funcionamento e um gozo” e, por

outro, é índice do que não anda, índice de que há uma dimensão traumática

constituinte e um núcleo de gozo impossível de ser reabsorvido, do qual o

sintoma é a testemunha e o lugar em que se situa a responsabilidade do

sujeito.

Situarei apenas as coordenadas de um possível debate com as TCC a partir da

última noção de sintoma em Lacan. Como o espectro das TCC é amplo e

difuso, localizarei três de suas variantes principais.

Podemos afirmar de modo geral que as formas chamadas do “condutismo

radical” (ao modo de Skinner), na medida em que recusam a noção de

“psíquico”, por considerá-la uma suposição metafísica, também recusam a

pergunta sobre a causalidade psíquica e, com isso, evacuam a interrogação

sobre a responsabilidade do sujeito. Trata-se apenas de condutas e de seu

reforço (positivo ou negativo), ou seja, a determinação está no entorno do

indivíduo.

Outras correntes, as cognitivo-comportamentais mais duras (Jean Cottraux) –

porém não “radicalmente condutistas” – convocam a responsabilidade do Eu

ou do indivíduo, mas somente para cumprir as tarefas propostas.

Outras, mais sutis – como, por exemplo, o “construtivismo” ou “cognitivismo

pós-racionalista” – consideram que, para que o paciente possa elaborar um

novo guia da relação com o mundo através do vínculo com o terapeuta, é

necessário que ele formule uma “atribuição interna” do mal-estar. Porém esta

espécie de retificação subjetiva, chamada “declaração do mal-estar”, que

reintroduz a causalidade psíquica, não vai muito longe. O objetivo é obter uma

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nova narração – trata-se de uma psicoterapia narrativa –, uma nova “estrutura

de significado” ou nova “construção” que permita ao paciente uma nova

adaptação funcional. Para eles, uma construção é “funcional” quando as

estruturas que a compõem são sintônicas, harmônicas e coerentes, e

asseguram o equilíbrio da identidade pessoal.26 É uma operação terapêutica

narrativa limitada ao patamar inferior do Grafo do desejo e que, portanto, é o

oposto à nossa caracterização do sinthoma como peça solta!

Nesta concepção, o sintoma é pensado como uma disfunção que é preciso

resolver, já que se supõe a idéia de que existe, para a espécie humana, uma

ordem no real.

Trata-se de uma concepção semelhante à de Antonio Damásio, que supõe a

existência de uma série de estruturas hierárquicas, cada uma se apoiando e

integrando as anteriores, tal como se observa nas estruturas sociais e

biológicas27. Em Spinoza avait raison. Joie et tristesse, le cerveau des

emotions, Antonio Damásio diz: “Spinosa e James nos convidam a uma

adaptação benéfica sob a forma da vida natural do espírito. Seu Deus é

terapêutico, no sentido de que restaura o equilíbrio hemodinâmico perdido

como conseqüência da angústia”.28

Ainda que se possa ler e questionar isso com o que Lacan diz na última aula do

Seminário 11, na qual afirma que a posição de Spinoza – de um Deus todo

significante, evacuado de gozo – é insustentável para nós, analistas, e que

nisso, Kant – lido com Sade – é mais certeiro29, ao nos situarmos na última

noção de sintoma, podemos objetá-lo a partir da experiência do Presidente

Schreber. 26 FERNÁNDEZ Álvarez, Héctor. Fundamentos de un modelo integrativo en psicoterapia. Argentina: Paidós, 1992, p. 129. 27 Idem, Ibidem, p. 190. 28 Na página 278 da versão francesa. Paris: Odile Jacob, 2003. 29 LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quarto conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 260.

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Em A experiência do real no tratamento psicanalítico, Miller recorre

precisamente às Memórias de Schreber para ilustrar o sintoma como

acontecimento de corpo. Ele se refere ao “vai-e-vem divino” entre Schreber e

Deus, por meio do qual Schreber deve pensar sem cessar para que Deus goze

e ele próprio possa obter, em compensação, um gozo a mais. Se, pelo

contrário, Schreber para de pensar, Deus se retira e ele para de gozar,

sentindo-se à deriva, o que pode levá-lo à morte.

“As Memórias”, diz Miller, “são, por excelência, o texto que evidencia que o

pensamento é condição de gozo e que o saber do significante aparece como

seu meio [...]”30. Pelo contrário – como acabo de acentuar –, ao surgir o

“pensar em nada”, Schreber verifica que Deus se retira, assim como o gozo.

Porém o central é que, desse modo – precisamente pela retirada de Deus –

Schreber pode afirmar que Deus apresenta um furo em seu conhecimento da

vida, do corpo vivo; que há algo da vida e do corpo vivo que excede à ordem

simbólica, ao significante. É porque Schreber testemunha esta falha em Deus,

que podemos dizer que ele objeta o Deus spinoziano de Damásio, que seria um

Deus terapêutico que saberia tudo sobre a vida e que serviria de base

imanente para uma espécie de “utilitarismo biológico”. Então, para Damásio,

há um saber, uma espécie de Deus terapêutico que seria o equilíbrio

homeostástico, que, ao ser abalado, precisa ser restaurado. Penso que este

“utilitarismo biológico” de Damásio se aproxima do que Miller chamou, de

modo enigmático, de “bioteologia”, ou seja, a idéia de um Deus que estaria no

vivo enquanto tal, e que toma a forma dessas supostas cientificidades.

Em oposição a esta suposição de um Outro evacuado de gozo, ou melhor, de

um Outro que poderia passar todo o gozo à contabilidade, reabsorvê-lo

30 MILLER, J..-A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica, op. cit., p. 394.

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completamente, – cito Miller – dizemos que “[...] não existe sujeito sem

sintoma, e isso até o final dos tempos”.31

Esta afirmação nos conduz à incidência sobre o final de análise.

A identificação ao sintoma

Em seu último ensino, Lacan desloca a perspectiva sobre o final de análise: se,

a partir do Seminário 11, ele o concebia em termos de “travessia da fantasia”,

passa a situar suas coordenadas em termos de “identificação ao sintoma”.

Miller caracterizou com precisão o deslocamento operado pelo último ensino de

Lacan especialmente em seu curso O lugar e o laço (2000-2001)32. Ele assinala

ali que o traço diferencial estabelecido pelo último ensino de Lacan é um

questionamento do ponto de basta. Um questionamento porque se o acento é

colocado no real como fora de sentido e o ponto de basta é precisamente o que

introduz um sentido retroativo à experiência, a própria noção de ponto de

basta deve ser reconsiderada. Em outras palavras, a noção mesma de finitude

é questionada e, com ela, a idéia de um “além”. “O ponto de basta”, diz Miller,

“é um fenômeno de sentido e é a isso que convém renunciar quando o fora de

sentido domina o assunto”.33

Desse modo, o passe como ponto de basta, o passe-relâmpago, o passe

relativo a um “além” que implicaria o atravessamento da fantasia – mais

solidário ao terceiro paradigma do gozo (do gozo impossível, alcançado por

transgressão) – fica reduzido ao que podemos chamar de uma “iluminação da

fantasia” e ligado a um efeito de verdade.

31 MILLER, J.-A. Curso de Orientação lacaniana (2004-2005). Pièces détachées. Inédito. Aula 3, p. 27. 32 Cf. Freudiana n° 32. Aulas de 10 e 17 de janeiro de 2001. 33 Idem, Ibidem.

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Pelo contrário, no último ensino de Lacan ganha relevo a instância central do

sintoma. Já não se trataria de alcançar, para além do sintoma, a fantasia e

atravessá-la, mas sim a identificação ao sintoma, pois do sintoma, dessa

instância que agora é o sinthoma (sintoma + fantasia), já não se pode sair.

Se antes havia a idéia de cura do sintoma, mas mantendo o incurável com

referência à fantasia – que não se cura, mas se atravessa –, na nova

perspectiva, o próprio incurável se situa no interior do sintoma como sinthoma.

Quer dizer, no interior do que podemos chamar de gozo opaco do sinthoma em

oposição ao gozo transparente, que é o gozo ligado ao sentido34 e que pode

ser reduzido pela operação analítica, o que comporta efeitos terapêuticos. A

redução do gozo transparente é apenas a redução do gozo fálico do sintoma

(gozo semântico), aquele que se alimenta de sentido.

Há uma indicação de Éric Laurent a este respeito que me parece especialmente

esclarecedora: “No final da análise se trata de outro uso de uma articulação

que já existe desde o começo”.35 Isto é: se há algo incurável no próprio

sintoma, trata-se de fazer um uso diferente do uso neurótico. Voltarei a isso,

mas me parece conveniente nos determos no que seria a condição de

possibilidade desse “outro uso”, quer dizer, a identificação ao sintoma.

A referência precisa de Lacan está no Seminário, livro 24: L´insu que sait de

l´une-bévue s´aile à mourre, na aula de 16 de novembro de 1976. No

contexto de uma caracterização do traço unário, Lacan pergunta a que alguém

pode se identificar no final de uma análise. Certamente ele descarta a via da

identificação ao analista e também ao próprio inconsciente, porque “o

inconsciente permanece sempre Outro”, portador dos significantes que

determinam o sujeito. E acrescenta: “Em que consiste, então, essa localização

que é a análise? Por acaso isso não seria identificar-se – tomando disso as

34 MILLER, J. -A. Curso de Orientação lacaniana (2004-2005), Pièces détachées. Inédito. Aula 6, p. 51. 35 LAURENT, E. “Síntoma y nombre proprio”, op. cit., p. 98.

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suas garantias36, uma espécie de distância – com seu sintoma?”. E, após

estabelecer uma espécie de homologia entre o sintoma e o que o homem faz

com sua imagem, conclui: “Saber fazer com – se virar – com seu sintoma,

esse é o final de análise. É preciso reconhecer que isso dura pouco.

Verdadeiramente não vai longe!”

Vou lhes dizer o que me ocorre a partir dessa frase: a identificação do final de

análise supõe uma identificação ao sintoma, cujo nome posso pronunciar, mas

o que conta não é tanto o nome que pronuncio, mas sim que este nome indica

algo impronunciável, a dimensão opaca do sinthoma. Entendo que a homologia

com a imagem indica que, como o falasser não é um corpo, mas tem um

corpo, ele também tem sintomas e, se ele os tem e carece de identidade, o

que lhe resta é identificar-se com.

O sintoma viria, como a imagem, responder ao vazio do sujeito ($), mas

jamais esta identificação poderia conformá-lo totalmente.37 Isso seria a idéia

de que entramos divididos na experiência analítica e saímos com a divisão

(castração) suturada pelo sintoma! Ora, como não é possível eliminar a

castração, trata-se de outra relação com a divisão que não a de

indeterminação.

Neste ponto me parece crucial a sutil indicação de Lacan sobre “identificar-se

tomando disso – dessa identificação – suas garantias, uma espécie de distância

[...]”. É como se ele dissesse que é uma identificação que preserva uma certa

distância em relação ao sintoma.

Isto poderia ter, pelo menos, três conseqüências:

1. Mudou a relação com a repetição. Não se trata de uma identificação

ao sintoma reduzida à cega necessidade, ao que não cessa de se

36 No original: “s’ identifier en prenant ses garanties...”. 37 TIZIO, Hebe. “El Pase n”.

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repetir do sintoma. Isso se refere mais à identificação ao sintoma

prévia à análise, que supõe um estatuto imaginário, do que ao

sujeito que se identifica sem solução de continuidade com sua

própria vida.38 A identificação do final implica, ao contrário, que se

tenha feito uma experiência do impossível, que deixou uma abertura

entre o sujeito e o sintoma como condição de possibilidade para uma

disposição à contingência. Nesse sentido, cabe lembrar que Miller

assinala que, no nível da pulsão – onde o sujeito é sempre feliz –

tudo é puro logro, ali não há um real (impossível) verificado. É isto

precisamente o que a operação analítica introduz: um limite ao gozo

da apparola, ao seu monólogo, introduzindo o impossível da relação

sexual. 39

2. Aqui se situaria também o tema da criação ou da invenção no final da

análise. Proponho apenas uma conjectura: talvez seja porque Lacan

abandona, em seu último ensino, o paradigma da travessia da

fantasia, que ele substitui o termo criação (que é sempre ex nihilo e

ligado ao terceiro paradigma) por invenção, sempre feita a partir de

algo, e não a partir de nada.

3. Se no início, o sujeito é, no nível do sintoma, poema, no final, trata-

se de que, a partir de seu sintoma, possa ser poeta40. Em outras

palavras, se no início o sujeito é usado pelo saber fazer do sintoma,

onde isso goza sem que ele saiba, no final cabe a possibilidade de

saber fazer com, ou seja, cada vez um uso diferente – uma

pragmática da contingência41, poderíamos chamá-lo – daquilo que

38 MILLER, J-A. “CTS”. Em: Clínica bajo transferencia, p. 8. 39 MILLER, J.-A. “El monólogo da apparola”. Em: Opção Lacaniana, n° 23. São Paulo: Edições Eólia, dezembro de 1998. 40 MILLER, J.-A. “Reflexiones sobre la envoltura formal del síntoma”. Em: La envoltura formal del síntoma. Buenos Aires: Manantial, 1989, p. 15. 41 LAURENT. E. “Politique de l´unaire”. Em La Cause freudienne, n° 42, “Politique lacanienne”. Paris: Seuil, 1999, p. 30.

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estava articulado desde o início. Aqui, a intervenção do analista na

entrada se torna crucial para isolar o que, no enunciado singular,

talvez possa ser reencontrado no final: algo da ordem da letra do

sintoma.

Um testemunho de um ex-AE, Vicente Palomera, publicado na Cause

freudienne n° 50, com o título “Corpo e sintoma”, ilustra muito bem essa

seqüência. Em um capítulo chamado “Dar fim à repetição”, ele relata que, no

começo da análise, se repetiam resfriados e rinites. Otites e rinites eram

sintomas que haviam se repetido amplamente em sua infância. Diz, a seguir,

que “A entrada em análise foi franqueada quando me encontrei sem palavras

logo após começar o relato, que sempre escutei, do menino que havia se

encontrado no limite da morte devido a uma provável cianose, sobrevinda nos

dias que se seguiram ao seu nascimento. O relato materno insistia unicamente

na cor arroxeada do menino que morria”.

A análise consistirá numa reprodução deste significante e do que foram suas

eflorescências. No curso desta, diz ele, “eu iria evocar amiúde uma imagem

acústica, fora de sentido, cuja emergência me turvava a razão. Trata-se do

nome de um peixe estranho, de cor arroxeada, chamado em zoologia Angelrina

Squatina. Hoje tenho dificuldade de extrair da imagem acústica do peixe o

elemento que insistia: Angelrina (do grego rinos, nariz) e seu enlaçamento

com o corpo. Esta imagem constituía uma tela em relação à descoberta da

castração. Sentado no chão com uma irmãzinha, ao olhar um álbum de

zoologia, repetíamos inúmeras vezes, caindo na gargalhada, o nome desse

estranho animal. Esse momento coincidia com o início da aprendizagem da

leitura. [...]. Este significante, Angelrina, extraído no final de análise, é o

mesmo no qual convergia a neurose, reproduzida na análise. Reproduzir este

significante era chegar a se confrontar com a estranheza radical nesse

reencontro que constitui a experiência analítica, na qual o significante se

desdobra, mostrando-se irredutível a si mesmo”.42

42 PALOMERA, V. Em: La Cause freudienne, n° 50. Paris: Seuil, fevereiro de 2002, pp. 80-85.

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Creio que se vê bem como na entrada – seguramente isolado pela intervenção

do analista – já estava localizado um significante, arroxeado (morado) que

logo se mostraria intimamente articulado a outro significante crucial e

insensato, Angelrina, verdadeiro índice da incidência da equivocidade da

alíngua no corpo.

Fica a questão de se, no final de análise, haveria um dar fim à repetição ou

uma mudança de posição em relação a ela. Talvez isso se esclareça se

lembrarmos, como faz Palomera em seu texto, que o que existe é uma

mudança do estatuto da repetição, que deixa de ser “vã”, quer dizer, deixa de

repetir sempre o mesmo. Sua referência para argumentar isso, a partir de sua

própria experiência como analisando, é uma importante indicação de Lacan em

O saber do psicanalista, na aula de 4 de maio de 1972. Lacan diz ali: “O que é

a psicanálise? É a localização do que se compreende do obscurecido, daquilo

que se obscurece na compreensão, pelo fato de que um significante marcou

um ponto no corpo. A psicanálise é o que reproduz uma produção da neurose

[...]. Todo pai traumático está definitivamente na mesma posição que a do

psicanalista. A diferença está no fato de que o psicanalista, por hipótese,

reproduz a neurose, enquanto o pai traumático a produz inocentemente. Trata-

se de reproduzir este significante a partir do que foi sua eflorescência. Fazer

um modelo da neurose é, em suma, a operação do discurso analítico. Por que?

Porque retira uma dose de gozo. O gozo exige efetivamente um privilégio:

para cada um, não há duas formas de consegui-lo. Toda reduplicação o mata.

Ele só sobrevive se a repetição for vã, quer dizer, sempre a mesma”.

A nobreza do sintoma

Tentarei situar as coordenadas do que antecipei, dizendo que na entrada em

análise caberia pensar, no tratamento dos sujeitos contemporâneos, no

“adoecer de honra” como condição de possibilidade para alcançar a “nobreza

do sinthoma”.

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Isso se esclarece se recordarmos o discurso capitalista que Lacan escreveu

apenas uma vez, em 1972, e que foi trabalhado por Miller, em seu Curso Um

esforço de poesia. Minha pergunta é porque ele passa do discurso capitalista

ao discurso hipermoderno.

Tomemos o discurso do mestre, no qual o sujeito se identifica ao S1, o

significante-mestre. Vocês sabem que as setas indicam circulação e a dupla

barra do piso inferior é “a chave da impossibilidade dos quatro discursos”,

como Lacan indica no Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise.

Que inversões são operadas no discurso capitalista? A inversão da seta entre o

lugar do agente e o da verdade, e a inversão do S1 e do $. Como não há

relação possível entre o produto e a verdade, isso indica que é obscurecida a

dimensão de castração. O discurso capitalista produz a foraclusão da dimensão

da impossibilidade estrutural, que implica a não relação sexual, o que está

indicado, nos quatro discursos, pela dupla barra oblíqua no piso inferior. Ele

não é propriamente um discurso – trata-se de um pseudodiscurso, diz Lacan –

porque não estabelece laço entre Um e o Outro, como ocorre nos quatro

discursos, mas remete o sujeito à sua solidão.

Discurso do mestre Discurso do capitalista

S1 S2 $ S2

$ / / a a S1

É que vemos na contemporaneidade, nesses sujeitos sem referências

identificatórias, que não fazem laço com o outro e que tamponam a sua divisão

com o falso mais-de-gozar implícito na mercadoria, ou seja, nos gadgets.

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Trata-se de um sujeito sem honra e sem vergonha, já que não é representado

por um traço singular com o qual possa se apresentar frente ao Outro e pelo

qual – se for o caso – possa dar a sua vida. Sua vida é ignominiosa, pois só

vale enquanto vida. Além disso, ele é sem nobreza, se entendemos por

nobreza a barra singular que marca o sujeito e que este recebe do traço

unário, a primeira identificação que traumatizou seu corpo de falasser.

Ao recebermos estes sujeitos que chegam na posição do discurso capitalista,

precisamos introduzir um ordenamento de discurso, no sentido estrito. Ou

seja, é preciso que o analista, competindo com os gadgets, consiga introduzir a

dimensão da impossibilidade estrutural, e isto, desde o início, pois é

fundamental que o sujeito localize o nome que o nomeia, seu primeiro S1, no

qual possa se reconhecer, e que lhe permitirá tornar legível a sua história e,

conforme o caso, o seu inconsciente. É justamente isso o que propiciaria a

entrada no discurso analítico.

No discurso analítico, a seta entre a e $ indica o amor, ou seja, diante do

objeto, o sujeito responde com o amor de transferência. Como o discurso

capitalista elimina essa seta, também elimina o amor. Zygmunt Bauman diz,

em “O amor líquido”, texto que é muito interessante: “Antes Mussil falava do

Homem sem qualidades; agora podemos falar de homens sem laços”. O

discurso analítico implica a reinstalação da dimensão do amor, via pela qual é

possível situar a invenção estrutural da impossibilidade da relação sexual.

A hipótese que proponho acerca da nobreza do sintoma é que, na entrada em

análise, o fundamental é instalar o amor, mas também produzir o isolamento

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do S1, o primeiro nome do sintoma daquele sujeito. Isso implica entender o

discurso analítico não meramente como uma desidentificação, como eu

pensava anteriormente. Implica pensar que na entrada em análise, produz-se

o primeiro nome do sintoma, o primeiro S1 do sujeito que lhe valerá como

carta de apresentação frente ao Outro. É essa produção que Lacan chama, no

Seminário 17, de novo estilo do significante-mestre. Não se trata do

significante da tradição que constitui o grupo, mas daquilo que constitui a

nobreza do sintoma de um sujeito, a invenção de sua máxima singularidade, o

que faz de cada um de nós incomparável a qualquer outro.

É um outro modo de ler o S1 no lugar da produção no discurso analítico: não

como queda de uma identificação, mas como primeira localização do traço

sintomático. É a sua produção no início da análise que dá a chance ao sujeito

de alcançar, no final, no limite do legível, a opacidade fundamental que o

constitui, quer dizer, alcançar a nobreza de seu sinthoma.

Para concluir, lerei a referência de Miller da qual parti e que suscitou essas

considerações que trouxe para compartilhar com vocês. Ela está na terceira

aula (01/12/2004) do seu Curso Pièces détachées:

“A psicanálise se oferece para resolver este gozo doloroso (do traumatismo da alíngua) pelo sentido. Mas ficar no gozo resolvido pelo sentido (gozo transparente) é chato, e o convite de Lacan em O sinthoma, é que é preciso deixar um relevo. É necessário que reste sempre um relevo, na medida em que cada um é inigualável, e que sua diferença reside na opacidade que sempre permanece, esse resto. Esse resto é o que constitui o valor de vocês, por pouco que saibam fazê-lo passar ao estado de obra. É sem dúvida nele que cada um peca, tropeça, claudica. Porém é também o que constitui, para cada um, sua diferença ou sua nobreza. Lacan fala do traço que barra o S de seu sujeito como um traço de nobre bastardia 43. No Seminário: O sinthoma, essa nobreza da bastardia encontra sua divisa: não há sujeito sem sintoma, e isso até o final dos tempos. Então não sonhemos, não tenhamos como ideal somente, simplesmente, curar”.

Tradução e estabelecimento do texto: Elisa Monteiro e Maria Angela Maia.

43 LACAN, J. “A direção do tratamento e os princípios do seu poder” (1958). Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 641.