Laura Castro, Sobre uma obra
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Laura Castro1
Sobre uma obra
Habituámo-nos, ao longo do século XX, a olhar uma obra de arte pelos seus aspectos
intrínsecos e valores autónomos, e consolidámos essa leitura que permanece válida até aos
dias de hoje, particularmente quando se trata de expressões como o desenho ou a pintura. As
últimas décadas do século, no entanto, obrigaram a rever esse posicionamento e a alterar os
modos de ver, comentar, interpretar e elaborar o discurso sobre a obra de arte. Visão,
intenção e interpretação calibravam-se, doravante, de modo diverso daquele que no passado
ocorrera quando esta relação se regulava por maior ponderação dos primeiros termos face ao
último. Desde logo, mudanças significativas nas práticas artísticas implicaram a valorização de
elementos narrativos, de registos de comunicação, de tomadas de posição ideológicas, de
contaminações e apropriações vindas de outros campos da cultura, do conhecimento e da
vida, que impediram a mera consideração de aspectos formais, plásticos, visuais. Nestas
mudanças, algumas experiências reduziram a arte ao questionamento de si própria, tornaram-
na crítica de arte, incorporaram nela dados interpretativos, circunscreveram-na à meditação
filosófica.
A actividade de Emerenciano deve ser lida neste enquadramento e nos pressupostos de um
campo artístico de fronteiras fluidas relativamente aos domínios atrás referidos. Poder-se-ia
mesmo afirmar que os traços gerais deste panorama foram ao encontro da natureza de
Emerenciano, abrindo-lhe um terreno propício aos seus interesses e aos seus princípios. No
entanto, não foi pelo caminho de modelos conceptuais de radicalismo iconoclasta ou de
suspensão da arte, que o artista seguiu, tendo mantido aspectos da prática artística que o
vinculam, não apenas a um registo visual, mas a processos de manualidade oriundos de uma
tradição antiga, a da pintura.
Ouvir Emerenciano falar sobre a sua obra, no seu atelier, é uma experiência elucidativa de
quanto acaba de ser dito. É toda uma terminologia que está em causa e, com ela, uma
determinada conceptualização da sua prática. Não lhe ouviremos, ou muito raramente, uma
observação sobre aspectos estritamente visuais da sua pintura, um comentário em torno de
elementos plásticos, uma análise da gama cromática, enfim, uma palavra acerca das
qualidades formais e dos recursos materiais mobilizados. Dir-se-ia não estarmos em presença
de um artista e de uma obra de arte. Cito, de Emerenciano, uma frase que poderá explicar o
1 Docente na Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, Porto. Membro do Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes da mesma instituição.
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porquê desta atitude: desconfortado com o acordo estético, por se desajustar na consideração
justificada das formas e dos efeitos presentes nos desenhos e nas pinturas.
Em compensação, ouvi-lo-emos, com frequência, expor as suas preocupações como homem
no mundo, os problemas que o fazem reflectir, os acontecimentos que o levam a definir
posições e a agir. Ouvi-lo-emos certamente referir o modo como articula estas questões com
recurso aos meios que aprendeu a dominar, primeiro num quadro de formação académica,
depois num percurso artístico desenvolvido a partir dos anos 70. Haverá então condições para
rectificar a dúvida há pouco veiculada: estamos perante um artista e uma obra de arte (não
pela dimensão eminentemente artística e expressiva dos seus trabalhos, mas pela dimensão
estética que manifestam e pelo posicionamento do seu autor que deixam adivinhar).
Não sendo uma obra que recusa aspectos estéticos, ela não exige a mera apreciação
contemplativa, ainda que assuma esse cuidar de valores que são próprios da pintura, esse
elaborar muito bem o quadro, esse resguardar a composição, entre outros elementos
formalistas. Estaríamos a traí-la se nos ativéssemos simplesmente a esta dimensão, já que esta
obra sobrevive, vive, estrutura-se muito antes dela e muito para lá dela.
Desde que, nos finais do século XIX, se considerava que os quadros de ideias apenas
mascaravam insuficiências técnicas, fez-se muito caminho até ao presente e a esta prática
menos vocacionada para o olhar do que para a reflexão, menos apta à exuberância visual do
que ao debate.
Será tempo de questionar o núcleo da obra de Emerenciano, como se pudéssemos descartar a
aparência que cada trabalho apresenta, ultrapassar a dimensão visual e entrar no pensamento
do artista (passagem que, em última análise, é definidora do processo artístico).
Um dos seus aspectos mais relevantes consiste na imbricação de imagem e texto. Desde cedo
parecia evidente que Emerenciano não estava interessado na simples valorização visual da
escrita, na configuração gráfica do texto e na sua intencionalidade plástica. Desde cedo se
pressentia que o seu mundo não era o da caligrafia, o da amplitude gestual oriunda do
calígrafo artista, o da assimilação exterior de pintura e escrita, embora este mundo lhe fosse
familiar. A sua produção estruturou-se noutra direcção que o levava a ponderr tudo quanto
escrevia, ainda que o potencial visual assumido pelo texto pintado fosse incontornável. Há
portanto, um campo de tradição e de experiências que, não sendo totalmente estranho à
produção de Emerenciano, não é suficiente para a definir – a tradição dos letristas, a memória
oriental e a de todas as experiências modernistas que incorporaram texto afirmando a sua
qualidade plástica numa superfície.
As “figurações da escrita” não eram suficientes e se o gesto se conformara na criação de letras
e de signos, tornava-se necessário acrescentar significado, mensagem, comunicar, atravessar o
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intervalo que medeia entre um eu e um outro. A privação do significado era um risco e, por
isso, adivinhava-se agora uma das relações estruturantes da sua obra – aquela que procura
equilibrar o dentro e o fora, o espaço intimista (da cripta) e o espaço público (da nave), o lugar
do segredo e o da revelação. A produção de Emerenciano apoia-se nos diferentes meios que
lhe permitem afinar a relação entre o domínio do pessoal e o do social, o do indivíduo e o do
artista, o da prisão e o da libertação, o do pensamento e o da comunicação.
Neste trajecto, em que se adensa a interpelação do espectador e o confronto, a imaginação e a
criação de símbolos surgiram como uma inevitabilidade. Muitos desses símbolos abordam
precisamente o tópico do relacionamento entre o dentro e o fora. Desde logo, pela presença
dos instrumentos do pensamento e da comunicação – a cabeça, os aparelhos da fala, da
audição, do olhar; depois pelo registo gráfico dos circuitos inerentes a esse relacionamento –
espirais, novelos, labirintos, fitas de Moebius – que colocam em cena o percurso, o caminho, a
errância, a procura, os actos do ir e do vir, do ficar e do partir, do estar e do voltar; também
pela presença dos instrumentos que são susceptíveis de cortar ou curto circuitar essas
conexões – facas, tesouras e pistolas que estabelecem cortes cirúrgicos e fins abruptos; ainda
pela existência simbólica dos nódulos que se interpõem nos processos relacionais, de mistério
e secretismo – as chaves que aludem a possibilidades; finalmente, a escrita de palavras
dirigidas ao outro – convites, apelos, perguntas…
Radica a criação de símbolos na consciência do mundo presente. Não se trata, mais uma vez,
de essencialismos formais ou da redução estética de ideias, mas de simbolizar as condições da
possibilidade ou da impossibilidade da comunicação.
Sublinhei, há algum tempo atrás, a tristeza inerente ao trabalho de Emerenciano e o artista,
num encontro recente, perguntava se haveria condições para uma arte alegre, reforçando o
seu interesse em reflectir sobre o nosso tempo, em não ser indiferente ao que se passa no
mundo, em gerar símbolos que reflictam as contradições do presente. A construção de uma
identidade – de hesitações e de afirmações –, a construção de uma cultura – de silêncios e de
comunicações –, a construção da história – de personagens e de problemas –, são centrais na
obra de Emerenciano. Obra dramática e dramatúrgica que testemunha um compromisso com
o mundo e, ao fazê-lo, põe em cena diferentes interlocutores.
A pintura e o desenho são meios da sua materialização mas não são já suficientes; a escrita é
um componente vital; tal como é vital o discurso expositivo, a montagem, os diálogos e as
relações geradas em tal contexto. Estes elementos não vivem uns sem os outros, todos são
necessários e entendidos como peças de uma obra com vista à criação de significado, à
clarificação de intencionalidade, à legibilidade.
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No atelier há um caos, um volume de trabalhos que não cessa de aumentar e a exposição
organiza-os numa lógica que não é cronológica, mas que mistura tempos. Em cada exposição
Emerenciano escolhe, de um longo percurso, as obras que vai expor e experimenta relações
novas entre trabalhos criados em momentos muito diversos. O espectador sente o transporte
de elementos do passado para o presente.
Da edificação da obra faz parte o texto do artista, os momentos expositivos, o discurso crítico –
tudo isto a integra, condiciona, modela e constrói. Tudo isto é o seu rasto.
Há uma coerência de propósitos em tudo quanto Emerenciano produz, seja no domínio da
pintura sobre tela, dos desenhos, da criação de símbolos e pictogramas, dos carimbos e da arte
postal, da divulgação serigráfica, da elaboração de textos. Na configuração mais lírica de certas
criações ou na violência de outras propostas, Emerenciano é um artista de obra e não de
obras2. O trabalho criativo de qualquer artista implica estar no trabalho, estar na obra; não se
limitar a criar objectos destinados ao mercado, criar empenhadamente, comprometidamente,
sem cedências, desvios ou derivas secundárias.
Tal como podemos cometer a injustiça de apreciar o seu trabalho a partir de propriedades
visuais, também podemos cometer a injustiça de não articular cada peça desse projecto maior
que o ocupa, umas vezes por desconhecimento, outras vezes porque as circunstâncias assim o
determinam.
2 Foi Alberto Carneiro quem, com esta expressão de ressonância maior a que aqui recorro, se referiu ao seu trabalho, num colóquio sobre o Museu Internacional de Escultura de Santo Tirso, em Abril de 2011.