Laura Mulvey

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Reflexões sobre "Prazer visual e cinema narrativo"

inspiradas por Duelo ao sol,

de King Vidor (1946) *

La ura Muhvy

Muitas vezes ao longo dos anos, desde que meu artigo "Prazer visual e

cinema narrativo" foi publicado na Serem," me perguntaram por que só utilizeia

forma maseulina da terceira pessoa do singular para me referir ao espectador. Na

época, estava interessada na relação entre a imagem da mulher na tela e a

"masculinização" da posição do espectador, sem me importar especi- ficamente

com o sexo (ou com o possível desvio sexual) desse espectador na vida real. Pad

ròes de prazer e ident ificaçào const ru idos interna mente impõem a masculinidade

como "ponto de vista"; um ponto de vista que também se manifesta no uso geral da

terceira pessoa no masculino. No entanto, a persistente pergunta "c quanto às

mulheres do público?" somada ao meu gosto pessoa! pelo melodrama holly

woodiano(assunto que também adiei em "Prazer visual e cinema narrativo") me

convenceram de que, por mais irônica que tenha sido a intenção original, a terceira

pessoa no masculino obstruía caminhos de investigação que deviam ser trilhados.

Finalmente, Duelo ao sol |Duel in the Sun, King Vidor, 1946) e a crise de identidade

sexual de sua heroina unificaram os dois temas.

Ainda sustento minha argumentação de "Prazer visual c cinema narrativo",

mas gostaria agora de seguir as outras duas linhas de pensamento. A primeira (a

questão das "mulheres do público") é se a mulher espectadora simplesmente se

deixa levar polo texto, ou se o seu prazer pode ter raízes mais profundas c

complexas. A segunda (a questão do "melodrama") é como o

Tiiuto original *A(l«fthoug}its on 'Vitual Picawrc and Karraiive Cirxtna' mtpircd by King Vido*'» DKH m Ihf Sun (1916)', cm Laura Mulv*y. VI»*«/ fid Or.V/ Plttarr* (itkvnr ington: Indiana Univcmty Pr«»». 1V89). pp MOS. Traduçlo do Silvina Vxira ” Ssrttn. 16 (3), outono d« 1975. TraduçJo <m portugufe: “Prazor vitu.il c cinoma narrativo*, «m Itrrail Xavwt, A nytrihuit d«> <irrmi (Rio dt Janeiro: Craal. 19S3) (N. dj O.

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•Wí

fio <■»/»

I texto o suas

consequentes identificações são

afetados por um personagem fe

minino que ocupa o centro da arena narrativa. No que diz respeito â primeira questão

6 sempre possível que a mulher espectadora se encontre tão fora de sintonia com o

prazer ali ofertado (com sua "masculinização"), quesequebre a magia do encanto. Por

outro lado, pôde ser que não. Pode ser que secretamente, quase inconscientemente,

ela desfrute uma liberdade de açâoe controle sobre o mundo diegético que lhe

permita a identificação com um herói. É esfa mulher espectadora que quero analisar

aqui. Quanto à segunda questão, pretendo limitar o escopo da análise de maneira

similar. Km vez de discutir o melodrama em geral, vou me concentrar nos filmes em

que uma mulher protagonista 6 retratada como incapaz de alcançar uma identidade

sexual estável, dilacerada entre o profundo mar azul da feminina passividade e o

demónio da masculinidade regressiva.

Há uma sobreposição entre as duas áreas, entreo imperccbido dilema

enfrentado pelo públicoe a dupliddade dramática na tela. Gcralmenteêarris- cado

ocultar esses dois mundos separados. Quando isso ocorre, as emoções das

mulheres que aceitam a “masculinização” ao assistirem a filmes de ação com um

herói masculino são iluminadas pelas emoções da heroina de um melodrama cuja

resistência a uma posição feminina "correta" é a questão crucial em jogo. Sua

oscilação, sua incapacidade de alcançar uma identidade sexual estável, encontra

eco no "ponto de vista" masculino da mulher espectadora. Ambas criam uma

noção da dificuldade de diferenciação sexual no cinema que falta ao espectador

indiferenciado de "Prazer visual e cinema narrativo". A diferença instável

oscilante, encontra alivio na teoria de Freud sobre a feminilidade.

Frcud e a feminilidade

Para Freud, a feminilidade c complicada porque emerge de um período

crítico de desenvolvimento paralelo entre os sexos; periodo que ele vê como

masculino, ou fálico, tanto para meninos como para meninas. Os termos que ele

utiliza para conceber a feminilidade são os mesmos que havia criado para o

masculino, o que ocasiona certos problemas de linguagem e limites á expressão.

Esses problemas refletem, de maneira bastante precisa, a real posição da? mulheres

na sociedade patriarcal (reprimidas, por exemplo, soba genera-

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RtfltjJlfr «.*»<• "Pitu, piuut r tinea ntrntítv'.-

lixada forma masculina da terceira pessoa do singular). Um termo dá origem a

um segundo como seu oposto complementar, o masculino ao feminino, nessa

ordem. Algumas citações:

mulheres, também, o esforço por ser masculino é egoss in tônico em

determinado período - a saber, na fase fálica, antes que o desenvolvimento para

a feminilidade se tenha estabelecido. Depois, porém, ele sucumbe ao

momento«» processo da repressio. cujo desfecho, como tio frequentemente foi

demonstrado, determina a sorte da feminilidade de uma mulher.'

Tomando sua pré-histôria como ponto de partida, acentuarei, aqui. que o

desenvolvimento da feminilidade permanece exposto a perturbações motivadas

petos fenômenos residuais do período masculino inicial. Muito frequentemente

ocorrem regressões ás fixações das fases pré-edipianas: no transcorrer da vida

de algumas mulheres» existe uma repetida alternância entre períodos em que

ora a masculinidade, ora a femírulidads». predominam' Denominamos » força

motriz da vida sexual de 'libido". A vida sexual é dominada pela polaridade

masculino-feminino: assim insinua-se a idéia de considerarmos a relaçio da

libido com essa antítese. Nio seria surpreendente sc se verificasse ter cada

sexualidade a sua libido especial, apropriada para si, de forma que um tipo de

libido perseguiria as finalidades de urra vida sexual masculina e um outro tipo,

as finalidades do uma vida sexual feminina. Mas nada disso procede. Existe

apenas uma libido, que tanto serve às funções sexuais muscutlnas como ás

femininas. Á l.bsdo como tal nio pode mos atribuir nenhum sexo. Se, consoante

a convencional equaçáo 'atividade e masculinidade", nos inclinamos a qualifica

la como masculina, devemos nio esquecer que ela também engloba tendências

com uma finalidade passiva. Mesmo assim, a Justaposiçio "libido feminina" nio

tem nenhuma justi- ficaçào. Ademais, temos a impressio do que maior coerçio

foi aplicada à libido quando ela é moldada para servir à funçào feminina, e de

que - falando

' Sigmund Irrxid. "Anjl)Tkls Term, nable «cd Intermuvibb*. w* Standard iJtUv. voi XXIII (Londies The llogailh Pi«-»», 196t) [edigio cm poii»iguK "Anilise ternmnivel c inl«rrmniv*P. «n iJigto rledtrd

Kaviere« dt* ctrt* pikMgiet cetpUt* dt Stgntmi Frtud. *vi. XXItl (Rio de Isneinx Imago 1977). p. ?3|

’ Sigmund fieud, "Femintlity", err SltiJtrd tdilie, vol. XXII (londrev Th* Hoganh Press. 196t) <m

foilugufn "Novas confetfneus intiodutorias de ptacsnilis« (Cortferencu XXXIII feeni- nilidade)", en Fdi(A> tUndtri KMfrfr« dt, «Kd. ptkvMgittt fmpltlt* dt Sifmtnd Fred. vol. XXIL Cil.. pp. 160-161).

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tcl«>logi<Am«tt1 - 4 X'4tuf¥24 Icm cm menor «mu 4« exig^ncíA» referente» 4

exxj tun<li>, do que ki d» nv»*culinicÍAdc. E a r.»/Ao disso pode estar

novamente pemando em termos Ideológico» - no falo de que a rcali*açio do

objetivo d* biologia foi confiada a agressividade dos Homens e «• tornou,

em certa medida, inslependentc do consentimento das mulheres.’

Um aspecto do particular interesso na terceira passagem é o fato de

Frcud substituir o uso de ativo/masculino como metáfora para a função da

libido por uma invocação da natureza e da biologia que parece abandonar o

uso metafórico. 1 lá dois problemas aqui: Freud introduz o uso da palavra

masai- lino como "convencional", simplesmente seguindo, ao que parece, uma

prática sodolingüistica estabelecida (mas que, uma vez mais, confirma o

"ponto de vista" masculino); no entanto, cm segundo lugar, e constituindo

um empecilho intelectual ainda maior, o feminino não pode ser conceituado

como diferente, mas apenas comoeposiçio (passividade), num sentido

antinômico, ou como similaridade (a fase fálica). Nào sc está sugerindo que

existe uma feminilidade oculta, ainda não descoberta (como está implícito,

talvez, no uso da palavra "natureza"), mas que sua relação estrutural com a

masculinidade, na sociedade patriarcal, não pode ser definida nem

determinada dentro dos ter mos oferecidos. Essa alternância, essa definição

em termos de oposição ou Similaridade, deixa as mulheres também

alternando entre a oposição metafórica "ativo" e "passivo". O caminho

correto, a feminilidade, leva à crescente repressão do "ativo" (a "fase fálica",

segundo Freud). Nesse sentido, os filmes de Hollywood estniturados em

tomo do prazer masculino, oferecendo uma identificação com o pontode

vista ativo, permitem que a mulher espectadora redcscubra esse aspecto

perdido de sua identidade sexual, que é a pedra angular, nunca inteiramente

reprimida, da neurose feminina.

„ Gramática narrativa e identificação transexual

O aspecto "convencional" citado por Freud ("a equação convencional de

atividade c masculinidade") estrutura a maior parto das narrativas populares

1 JW„ P 161. OL-vliiirI,v.<\ i Cc»4i*<Uc/»^ -nr *»itt >\fi. *U tlmcv

Stginund Freud. ’Cinilvi VVrttcr» »nd Day DrcarWng-, em SrroAinf MMM, vol IX (Londres; Th»

Hogarth Press. 1961) («dífio cm poetuftuH "Escritores criativo* e devaneio’, cm Fdiffc atnttrj brtukirt 4*

ebrt* ptleeUfkti tmfMêt Jt freud. sol. IX. cu., p 1S5J.

3SS

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RrfltiiVi ’Piãitf vt>u*i e «<MM ntitétav*

- sejam filmes, contos populares, sejam mitos (argumento nesse sentido

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RrfltiiVi ’Piãitf vt>u*i e «<MM ntitétav*

cm "Prazer visual c qncma narrativo") -, nas quais seu uso metafórico«.1 literal

mente encenado no enredo Andrômoda continua acorrentada ao rochedo,

como uma vitima em perigo, até que Perseu mate o monstro para salvá-la.

Não é meu objetivo, aqui, discutir o que está certo e errado nessa divisão

narrativa do trabalho, nem exigir heroinas positivas, mas antes assinalar que a

"gramática" do enredo coloca o leitor, o ouvinte ou o espectador cont o herói.

A mulher espectadora no cinema pode fazer uso de uma velha t radição

cultural que a adapta a essa convenção, o que facilita a transição de um sexo, o

dela próprio, para o outro. Em "Prazer visual e cinema narrativo", meu

argumento tomou como eixo o desejo de identificar um prazer que era

especifico do cinema, ou seja, o erotismo c as convenções culturais que cercam

o olhar. Agora, ao contrário, prefiro enfatizar como o cinema de grande

público herdou tradições decontar histórias que são comunsaoutras formas de

cultura popular e de massas, com outros tipos de fascínios que não os

doolhar.

Freud observa que a "masculinidade", em certoestágio, é egossintônica

para a mulher. Deixando de lado, por ora, os problemas suscitados pelo uso

que ele faz das palavras, seus contenta rios gerais sobre os contos e os

devaneios fornecem outro ângulo de abordagem, dessa vez oferecendo um

insight mais cultural que psicanalitico do dilema Fie enfatiza a relação entre o

ego e o conceito narrativo do herói:

(. o genuíno sentimento heróico, expresso por um de nossos melhores escri-

tores numa frase inimitivel: 'Nade pode me jconiecrr!*. Parece-me que.

atravó* desse sinal resvUdor de invulnerabilidade, podemos reconhecer de

imediato Sua Majestade o Ego. o herói de todos o» devaneios e de iodas as

histórias.*

Embora um menino saiba muito bem que é altamente improvável que ele

saia pelo mundo, faça fortuna com suas proezas ou com a ajuda de auxiliares

e se case com uma princesa, os contos descrevem a fantasia masculina da

ambição, refletindo uma certa experiência c expectativa de dominação (o ati-

vo). Para uma garota, por outro lado, a sobreposição cultural e social gera

mais confusão. O argumento de Freud de que os devaneios de uma menina se

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rw olniltMfMv

concentram no erótico, ignore sua própria tese sobre a masculinidade inicial da

mulher o os devaneios ativos necessariamente associados a essa fase. De fato. com

demasiada frequência, a função erótica da mulher é representada pelo passivo,

pela espera (Andrómeda novamente), agindo sobretudo como um desfecho formal

para a estrutura narrativa. I iá, portanto, três elementos que podem ser unificados:

o conceito de Freud sobre a "masculinidade“ nas mulheres, a identificação

desencadeada pela lógica de uma gramática narrativa, o desejo do ego de

fantasiar-se de uma certa maneira ativa. Todos os três sugerem que, quando o

desejo ganha materialidade cultural num texto, para as mulheres (a partir da

infância), a identificação transexual c um hábito que • com muita facilidade se

converte em segunda natureza. Contudo, essa natureza não se assenta facilmente c,

inquieta, vive trocando suas roupas emprestadas de travesti.

O western c as personificações edipianas

Utilizando um conceito de função do personagem baseado em Morphoiogy

of the Folktale, do Vladimir Propp/ quero colocar em evidência uma cadeia de

elos e mudanças na estrutura narrativa, mostrando a função cambiante da

"mulher". O iveslern (levando em conta, é claro, todos os desvios que se queira

enumerar) traz uma impressão residual da primitiva estrutura narrativa

analisada por Propp nos contos populares. Além disso, na invulnerabilidade

tradicional do herói, o western apresenta laços estreitos com as observações de

Freud sobre o devaneio. (Como estou basicamente interessada na função do

personagem e na estrutura narrativa, não cm definição de gênero, estão sendo

sumariamente evitadas muitas questões sobre o western como tal.) Para o

presente propósito, o gênero western fornece uma trama crucial numa série de

transformações que comentam a função da "mulher" (em oposição à do "honrem")

como significante narrativoe a diferença sexual como personificação dos

elementos "ativo" ou "passivo" numa história.

No conto proppiano, um aspecto importante do desfecho narrativo é o

"casamento", função caracterizada pela "princesa" ou equivalente, ll a única

função que é especifica do sexo e, por isso, guarda uma relação essencial com

vikdimif I'fOpp. Moi/vM.-yv tf «V f.ViM.7 (Autlm: lMlvnv.lv ut Tc*.»» 19SS) <\\ do O ).

SSó

o sexo do herói e sua nubilidade. Essa função é reproduzida com muita fre-

quência no western, em que, mais uma ve/, o "casamento" contribui decisiva-

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/’•Wyyl/iiftiMtonM

rnente para o desfecho narrativo. No entanto, no western a presença da função

passou também a permitir uma complicação na forma de seu oposto, o "não-

casamento". Assim, embora a integraçãosocial representada pdo casamento seja

um aspecto essencial do conto popular, no western ele pode ser aceito... ou não. O

herói pode ganhar estatura ao recusar a princesa e ficar sozinho (Randolph Scott,

por exemplo, na sériede filmes para a produtora independente Kanown). Do

mesmo modo que a resolução do conto proppiano pode ser vista como

representação da resolução do complexo de Édipo (integração no simbólico), a

rejeição do casamento personifica uma celebração nostálgica da onipotência

fálica, narcisista. Assim como os comentários de Freud sobre a fase "fálica" nas

meninas pareciam pertencer ao limbo, sem ter um lugar na cronologia do

desenvolvimento sexual, do mesmo modo esse fenômeno masculino parece

pertencer a uma fase lúdica e fantasiosa, difícil de integrar-se exatamente na

trajetória edipiana.

A tensão ent re os dois pontos de a tração, o simbólico (integração social e

casamento) e o narcisismo nostálgico, gera uma cisão do herói do western, algo que

o conto proppiano desconhece. Surgem duas funções, uma celebrando a

integração na sociedade através do casamento, a outra celebrando a resistência às

exigências e responsabilidades sociais, sobretudo as do casamento e da família

(esfera representada pela mulher). Uma história como O homem que matou o facínora

|The Man Who Sliot Liberty Valance, Jolui Ford, 1962) justapõe esses dois pontos

de atração, e a fantasia do espectador pode festejar e esbaldar-se. Essa tensão

particular na duplicidade do herói também expõe a signi ficação subjacente

dodrama esua relação com osimbólioo, com incomum clareza. Os contos

populares giram cm tomo do conflito entre o herói e o vilão. A narração em

flaskback de O homem que matou o facínora parece, de inicio, seguir essa mesma linha.

A narrativa é gerada por um ato de vilania (Liberty assola os campos feito um

dragão). No entanto, o desenvolvimento da trama ganha uma complicação. A

questão em jogo não é mais como o vilão será derrotado, mas como a derrota do

vilão se inscreverá na história: se o defensor da lei como sistema simbólico (Kanse)

será visto como vitorioso, ou se ficará como a personificação da lei numa

manifestação mais primitiva (Tom), mais próxima do bem ou do certo. Como o

filme utiliza uma estrutura de flashback, também expõe a pungência dessa tensão.

O argumento no "tempo

presente" è precipitado por um funeral, de modo que o enredo c permeado de

nostalgia c sentimento de perda. Ranse Stoddart lamenta a morte de Tom

Doniphon.

Essa estrutura narrativa baseia-se numa oposição entre dois irreconciliá-

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Aflfrt.V* '/Ví.vr lr-W i- ,/anej MWM«*.,

veis. Os dois caminhos não podem cruza r-so. De um lado, há uma concentração

do poder, c atributos fálicos, num indivíduo que teve de se resignar a ficar fora

do caminho da história; do outro, uma impotência individual, recompensada

pelo poder financeiro e político, que, a lott$o prazo, realmente vira história. Aqui a

função "casamento" c tão crucial como no conto popular. Desempenha o mesmo

papel no desenvolvimento da resolução narrativa, m as ainda c mais importante

porque o "casamento“ õ um atribulo integral do defensor da lei. Nesse sentido, a

escolha de 1 iallie entre os dois homens é predeterminada. Halltc ê igual á

princesa, que é igual à resolução edipiana recompensada, que é igual à repressão

da sexualidade narcisista no casamento.

A mulher como significante da sexualidade

Em um tvestem que sc desenvolva dentro dessas convenções, a função

"casamento" sublima o erótico num ritual social de encerramento e fechamento.

Esse ritual, certamente, é específico do sexo e constitui o principal fundamento

para qualquer presença feminina nessa tendência do gênero. Essa clara função

narrativa reafirma a propensão para que a "mulher" signifique "o erótico" já

conhecido, a partir da representação visual (como argumentei em "Prazer visual e

cinema narrativo"). Quero discutir agora como ê que a introdução da mulher

como elemento central de uma história alterna seus significados, produzindo

outro tipo de discurso narrativo. Duelo ao sol nos fornece a oportunidade de fazer

isso.

Embora o filme seja visivelmente um western, o espaço parece ter sido

deslocado. O cenário da ação não c o cerne dramático do enredo, mas sim o

drama interior do uma jovem presa entre dois desejos conflitantes. Fm primeiro

lugar, os desejos conflitantes têm uma estreita correspondência como citado

argumento de Freud sobre a sexualidade feminina: a oscilação entre a

feminilidade "passiva" e a masculinidade "regressiva". Assim, ainda persiste a

equação simbólica mulher “sexualidade, mas agora, em vez de sor uma imagem

ou uma função narrativa, a equação inaugura uma área narrativa anteri-

sss

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Rrt.-i.Yt *»*»<• 'PraXf rr-VMf r atxnj MMMMV*.

ormente suprimida ou reprimida. A mulher deixa de scr o significantc da

sexualidade (função "casamento") no lipo "western" de história. A presença

feminina, ocupando o centro, permite que a história seja aba lamente sobre

sexualidade, tomando-se então um melodrama. F-como se a lente da narração

fizesse um zoom e abrisse a função "casamento" ("e viveram feli/es..."),

indagando "c depois?". E, em seguida, focalizasse a figura da princesa (que

espera nos bastidores por seu único momento de importância), e perguntasse "o

que eh quer?". Encontramos aqui o terreno genérico para o melodrama, com sua

tendência voltada para a mulher. A segunda questão ("o que ela quer?") assume

uma significação maior quando a função do herói se divide, conto descrito

anteriormente no caso de O homem que matou o facínora, onde a escolha da heroina

põe o selo da graça nupcial no defensor da lei. Duelo ao sol desnuda essa questão.

Em Duelo ao sol, os atributos iconográficos dos dois personagens mas-

culinos (opostos), Levvtejcsso, se assemelham muitoaosdeTomeRanseem O

homem que matou o facínora. Agora, porém, a oposição entre Tom c Ranse (que

representa um conflito abstrato e alegórico sobre a lei e a história) ganha uma

mudança de significado completamcnte diferente. Como PearI está no centroda

trama, presa entre os dois homens, os atributos alternativos de ambos adquirem

significado a partir dela e representam diferentes lados de seu desejo c aspiração.

Personificam a cisão em PearI, não uma cisão no conceito de herói, conto foi dito

anteriormente com resj>eito a O homem que matou o facínora.

No entanto, de um ponto de vista psicanalitico, vemos surgir um padrão

notavelmente semelhante. Jesse (atributos: livros, temo escuro, formação jurídica,

gosto pela erudição e pela cultura, destinado a ser governador do estado,

dinheiro, etc.) sinaliza para PearI o caminho "correto", no sentido de aprender

uma sexualidade passiva, de aprender a "ser uma dama", sobretudo a

sublimação num conceito do feminino que é socialmente viável. Lewt (atributos:

armas, cavalos, habilidade com cavalos, trajes de rancheiro, desprezo pela

cultura, destinado a morrer como uma fora-da-lei, força pessoal c poder pessoal)

oferece paixão sexual, baseada não na maturidade, mas numa mistura regressiva,

menino/menina, de rivalidade e brincadeiras. Com Lewt, PearI pode ser uma

moleca (cavalgar, nadar, atirar). Assim, a dimensão edipiana persiste, mas agora

ilumina a ambivalência sexual que ela representa para a feminilidade.

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MriiV. - Hf ‘Pr*:tt i-r.W t I'<VM

No fim das contas, Pcarl encontra tão pouco espaço para si no mundo

machista c misógino de Levvt quanto para seus desejos como possível noiva do

Jesse. O filme consiste numa série de oscilações em sua identidade sexual, entre

caminhos alternativos de desenvolvimento e diferentes desesperos. Enquanto o

herói masculino fálico e regressivo (Tom em O homem que matou o facínora) tinha

um lugar (ainda que destinado) estável e significativo. Pearl é incapaz de

estabelecer uma "feminilidade" na qual ela e o mundo masculino possam se

encontrar. Nesse sentido, embora os personagens masculinos personifiquem o

dilema de Pearl, sâoas condições que eles impõem que a criam e finalmente a

destrociYi. Mais uma vez, porém, o drama narrativo condena a resistência fálica,

regressiva, ao simbólico, levvt, o lado masculino de Pearl, renega a ordem social.

A masculinidade de Pearl dá a ela os "meios" para atingir o heroísmo e matar o

viUo. Os amantes se matam e morrem nos braços um do outro. A relação erótica

entre Pearl e Levvt cm Duelo ao sol revela também a interdependência diádica

entre o herói e o vilão no conto primitivo, agora ameaçada pela cisão do herói

com a chegada da lei.

Em Duelo ao sol, a incapacidade de Pearl de tomar-se uma "dama" é

ressaltada pelo fato de entrar em cena a dama perfeita, que, como uma

fantasmagoria da aspiração frustrada de Pearl, aparece como a futura esposa

perfeita de Jesse. Pcarl a reconhece e reconhece também seus direitos sobre Jesse,

percebendo que ela representa o caminho "correto". Num filme anterior de King

Vidor, Stella Dallas, mãe redentora (Stella Dallas, 1937), estruturas narrativas c

iconográficas semelhantes às citadas compõem o significado dramático do filme,

embora nào seja um western. Como personagem central, Stella é cercada por

personificações masculinas de sua instabilidade: de um lado, está sua

incapacidade de aceitar a "feminilidade" correta e nupcial e, de outro, sua

incapacidade de encontrar lugar num mundo machista. Seu marido, Stephen,

demonstra todos os atributos associados com Jesse, sem nenhum problema de

transformação geral. Ed Munn, representando o lado "masculino" regressivo de

Stella, é considerável mente emaseulado pela desaparição dos a petrechos do

Oeste e pela ausência do cenário violento. (O fatode Stella ser mãe c de sua

relação com o filho constituir o drama central do filme arruina a possibilidade de

uma relação sexual com Ed.) Ed conserva traços residuais da iconografia do

western. Seus atributos são delineados por meio de associações com cavalos e

apostas, a cena da coi rida. No entanto, um aspecto nvais importante é que sua

relação com Stella é regressiva, baseada cm "divertir-

S90

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R^símlwjtN»'

so~, oque fico mais explicito no episódio em que espalham, entre os ocupantes de

um vagão de trem, um pó que produz coceira. Também em StcUa Dallas uma

esposa perfeita aparece para Stephen, representando a feminilidade "correta" que

Stella rejeita (muito semelhante a Helen, noiva de Jesse em Duelo ao sol).

Tentei aqui sugerir uma série de transformações no padrão narrativo que

elucidam a nostalgia edipiana, mas também revelam mudanças nela. As

"personificações" e seus atributos iconográficos não se relacionam com as figuras

parentais nem reativam um real momento edipiano. Ao contrário, representam

uma oscilação interna do desejo que permanece dormente, ã espera de ser

"satisfeito" em histórias desse tipo. O fascínio exercido pelo western clássico, em

particular, talvez resida no fato de tocar a fundo nesse ponto nevrálgico. Contudo,

para a mulher espectadora, a situação é mais complicada e vai além do simples

luto por uma fantasia de onipotência perdida. A identificação masculina, em seu

aspecto fálico, reativa para ela uma fantasia de "ação" que a feminilidade correta

exige que seja reprimida. A "ação" fantasiosa encontra expressão por meio de uma

metáfora de masculinidade. Tanto na linguagem usada por Freud, como nas

personificações masculinas do desejo que ladeiam a protagonista feminina no

melodrama, essa metáfora atua como uma camisa-de-força, tomando-se ela

própria um indicador dos problemas inevitavelmente ativados por qualquer

tentativa de representar o feminino na sociedade patriarcal. A memória da fase

"masculina" tem seu próprio atrativo romântico, uma resistência desesperada na

qual o poder da masculinidade pode ser usado como um adiamento contra o poder

patriarcal. Assim, os comentários de Freud esclarecem tanto a posição da mulher

espectadora como a imagem da oscilação representada por 1’earl e Stella:

(...) no iranscorrcr da vida <lc alguma» mulheres, existe uma repelida altemlncia

entre períodos em <jue ora a masculinidade, ora a feminilidade, predominam.

|..,| a fase í.ílica (...) sucumbe ao momentoso processo da repressão, cujo

desfecho, como tão frequentemente foi demonstrado, determina a sorte da

feminilidade de uma mulher.

Argumentei que a posição de Pearl em Duelo ao sol c similar à da mulher

espectadora quando ela temporariamente

aceita a "masculinização" em

S9l

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memória de sua fase "ativa". Em vez de dramatizar o sucesso da identificação

masculina. Pear! expõe sua tristeza. Seus prazeres de "molcea", sua sexualida de,

não são plenamcnteaceitos por Leivt, exceto na morte. Assim também õ a fantasia

de masailinizaçâo da mulher espectadora na encruzilhada de seus próprios

propósitos, inquieta em suas roupas de travesti.