Lautréamont Press
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Tadeu
Sarmento
Lautréamont Press
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São Paulo, dez de abril de 1998.
É sempre assim: quando se busca sossego e silêncio sempre aparece um ou outro alguém
para incomodar. Aconteceu comigo hoje pela parte da tarde. Aliás, um fato muito estranho.
Resolvi sair do hotel para dar uma volta. Não estava conseguindo escrever com todo aquele
barulho. Estavam fazendo reforma em um dos apartamentos, e o ruído de uma furadeira me
incomodava. Larguei o parágrafo bem no meio de uma sentença, assim: mas o que ela disse
descendo as escadas com um bloco de notas debaixo do braço e um lápis dentro do bolso,
para concatenar melhor as idéias em um lugar mais calmo. Claro. Há uma praça próxima
daqui. Sim, uma praça. Posso me sentar em um dos seus inúmeros bancos e continuar a
escrever em paz.
Da escada, pude ouvir que meu estranho vizinho também escritor continuava a trabalhar:
tectectec-tectec-tec. Filho da pu...
Ele é inabalável. O ruído de sua máquina de escrever me seguiu até chegar à rua. Inabalável,
como disse.
Chegando à rua, aconteceu o fato denominado por mim como sendo estranho. Estranho? A
rua estava deserta. Deserta? Completamente deserta. Vazia. Não havia uma viva alma
caminhando, nenhum carro, nenhuma bicicleta, sequer um maldito cachorro. Nada. E veja
bem: em se tratando de uma cidade com tantos milhões de habitantes, isso é um fato para se
estranhar, ou não é? Talvez. Mesmo sendo hoje domingo. E não havia nada. Nada mesmo.
Nem pássaros no céu. Um vazio completo, pulmonar.
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Não que esteja reclamando, afinal, que dia perfeito para escrever. Além do mais, não gosto
de pessoas. De gente. Prefiro a companhia dos mortos. Dos mortos? E esse, foi o segundo
fato estranho que me aconteceu hoje.
Cheguei à praça ainda sem avistar nada nem ninguém. Um silêncio feito de prata. Acima de
mim, apenas o dossel das nuvens. Perfeito, pensei, enquanto me sentava no banco. Eu
pensava pelo menos, no instante em que vi aquele velho se aproximando de mim, eu já
estando devidamente acomodado e pronto para escrever.
Ele caminhava lento em minha direção. Uma lentidão de lepra. Nas mãos, portava um
guarda-chuva, destes pequenos, sob os quais mal se dá para esconder uma amante em um dia
nublado.
“De onde você veio?”. Perguntei, quando finalmente chegou ao seu destino. Engraçado é que
ele me parecia familiar, os cabelos brancos cobertos por uma serragem fina, os olhos
melancólicos, de focas com coriza.
“Posso me sentar ao seu lado?” Ele perguntou – os lábios um pouco azuis, os olhos vazios.
Era só o que me faltava, pensei, mas, respondi:
“Fique à vontade”. E ele ficou.
“Estranho dia o de hoje não é? Você é a primeira pessoa que encontro depois de caminhar
cinco quarteirões”.
“E de onde o senhor vem?”. Eu lhe perguntei, notando as mãos calosas repousando sobre as
coxas flácidas (pareciam flácidas daqui).
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“De onde venho não é o mais importante. O danado é para aonde estou indo”. Ele me
respondeu – a voz um timbre metálico.
“E para aonde o senhor está indo?”.
“Ah, para a escuridão eterna”. Ele me respondeu. Deve estar louco, pensei comigo mesmo,
era só o que me faltava, um velho louco. Assim, não vou conseguir escrever nada por aqui
também.
“Olha vovô, eu...”.
“Walter, me chame assim, pois esse é o meu nome”. Ele disse, e o nome dele estalou em
minha memória como uma trincada de dentes do siso.
“Walter? O senhor por acaso não é o...”.
“Sou sim, ao seu inteiro dispor”.
“Olha, meu Deus, nem acredito, eu tenho todos os seus livros sabia?”. Eu disse – estupefato
por estar sentado ao seu lado, depois da revelação de quem ele era.
“Tem mesmo? E o que acha deles?”. Ele me perguntou – na voz um tom de ironia e
amargura.
“Adoro todos, sem restrição”.
“Fico feliz”. Resumiu-se a dizer.
“E o que o senhor faz por aqui?”. Perguntei.
“O enterro estava demorando muito, então resolvi não esperar mais”.
“O enterro?”.
“Sim, há tão pouca gente por lá que não tiveram nem como carregar o caixão. Resolveram ir
pedir a ajuda de mais dois coveiros, sendo um deles, alcóolatra. Então decidi ir andando eu
mesmo”.
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“Alcóolatra? Claro. Não é um emprego dos mais fáceis. É até bem compreensível que ele
seja... E de quem é o enterro?”.
“É meu”. Ele me respondeu, calmamente.
“Do senhor... Mas como?”.
“Às vezes, quando essas coisas demoram, o Diabo se adianta por impaciência e resolve Ele
mesmo dar conta do morto”.
“Mas...”.
“E veja bem: quatro livros geniais escritos e justo agora no dia em que mais preciso de uma
mãozinha, quase ninguém aparece para me conduzir de volta à escuridão eterna”.
“Realmente”. Eu respondi, e continuei:
“O senhor me desculpe, eu sinto muito. Eu não sabia que você, digo, o senhor...”.
“Tudo bem meu filho”. Ele disse e, lançando um olhar elástico sobre meu bloco de notas
aberto, perguntou:
“Você escreve também?”.
“Escrevo”. Respondi secamente, de tão surpreso que estava.
“Ofício desafortunado esse”.
“E o que o senhor está fazendo por aqui?”. Perguntei.
“Gosto dessa praça. Quando o Diabo veio me buscar pedi que me concedesse quinze
minutinhos para me despedir dela”.
“Nossa...”.
“De modo que meu tempo está terminando, e acho que tenho que ir andando”.
“Olha, foi um prazer conversar com o senhor”. Disse a ele, e completei:
“Sou um grande fã seu”.
“Obrigado... Sobre o que você escreve?”.
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“Ah, nada que se compare com sua obra. Aliás, ando meio sem temas para escrever”.
Respondi.
“Quer um tema então?”. Ele me perguntou, me pegando de surpresa.
“Como assim?”.
“Antes de morrer, eu escrevia um novo romance”.
“O senhor?”.
“Quem mais? Ele iria se chamar: Servindo de assento à bunda da imaginação”.
“Um belo título”.
“Obrigado... Você não gostaria de terminá-lo para mim?”.
“Eu? Mas como...”.
“Gostaria que você o terminasse”.
“É uma honra, mas não sei se...”.
“Tudo acertado então. Escute: o negócio do enterro ainda vai demorar. Eu te dou o meu
endereço e você vai até lá em casa buscar os originais. Estão sobre a mesa do meu escritório.
Pode ir, é seguro, e nós sempre deixamos a porta aberta”.
“Nós? Quem são nós?”.
“Muita gente”.
“Tanta assim? Bom, não importa, afinal, se é o senhor quem me pede...”.
Despedimo-nos no momento em que anotava seu endereço no meu bloco de notas. “Fique
com Deus”. Ele me falou. “Já que para mim isso não será mais possível”. Completou, no
instante em que desapareceu dentro de uma nuvem vermelha, de mercúrio. Servindo de
assento à bunda da imaginação. Eu pensei.
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Por que não pensei nisso antes?
Por que não pensei nisso antes?
Por que não pensei nisso antes?
Por que não pensei nisso antes?
Por que não pensei nisso antes?
Por que não pensei nisso antes?
Por que não pensei nisso antes?
Por que não pensei nisso antes?
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Recife, dez de abril de 1998.
Só hoje pude notar que ele não se importa. Não mesmo. Hoje foi a primeira vez em que
notei, espelhado em seus olhos, o orgulho por estar morrendo. Um orgulho implacável, mas,
ao mesmo tempo, doce. Uma espécie de crueldade adocicada. A bacia de alumínio repleta de
pequenas poças de sangue pende na beirada esquerda da cama, dando a impressão de que
cairá a qualquer momento.
É nela que cospe regularmente um sonoro e uníssono ruído de chuva dedilhando os telhados
de zinco, aliviando um pouco com isso o pânico dos seus pulmões. Só hoje percebi, quando
sorriu para mim e disse (a voz cansada, áspera pelo catarro): não se incomode filho, não sou
só eu que estou morrendo, mas tudo ao meu redor também está.
E é verdade.
Os objetos ao seu redor parecem partilhar com ele a mesma franca e veloz decomposição.
Mesas, cadeiras, bacias, pessoas. A decomposição do tempo notada em cada objeto, em cada
um deles esse estranhamento de só quem sabe do seu próprio fim. Mas apenas ele mantém
esse orgulho cruel, implacável, doce, nos olhos. Meu avô, e seus terríveis olhos castanhos,
afogados em mercúrio.
Minha mãe o chama de mouro. Quando o chama. Sua voz estala desde a cozinha até aqui.
Sentado em cima da cama, fazendo inalação, a garganta do seu pai afunda como fosse
murchar, extinguir-se. Todos eles esperam que morra logo, realmente, para acabar de vez
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com essa agonia. Todos menos eu. Por isso sou o único a quem permite ficar mais um pouco
no quarto. Ele gosta que leia para ele. Então leio. Hoje vieram mais netos visitá-lo. Mas ele
expulsou a todos. Apenas eu fiquei. Estou e permaneci intacto assim como ele, assim como
me pediu, eu também, agora de fato, decompondo-me.
O ruído dos relógios, o ranger dentado das molas enferrujadas, o aborrecem. Ele manda que
retire todos os relógios da casa. Manda naquela voz dele, áspera, rouca, cansada, cuspindo
sangue. Meu avô gosta de silêncios. Silêncios para mastigar em paz seu próprio sangue, um
coágulo debaixo da língua.
O sangue tem gosto de moedas esquecidas dentro do bolso, ele diz. Trate de dar logo um fim
a esses relógios.
Então obedeço. Tiro todos os relógios (três em seu total) e os atiro no lixo. Depois, ele me
manda desenhar um relógio na parede. Apenas para me lembrar do tempo, ele diz. E assim o
faço. Um desenho perfeito, ponteiros grande e pequeno desenhados com perfeição. Em que
hora ele deve estar, vô? Não importa, ele responde, os pulmões como se com chumbo dentro,
engrossando os alvéolos.
O silêncio. Sem relógios ou netos. Os netos foram expulsos do quarto como caspas. Apenas
eu fiquei, porque sou silencioso, e desenho bem.
Sei ficar invisível. Sou silencioso como uma caspa. A que não foi expulsa.
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Por que ele precisa lembrar-se do tempo? Ele que, sempre prefere que leia para ele mais
poesia que prosa. A poesia estala melhor na língua, ele disse. É para isso que serve, é para
isso que foi escrita: para estalar na língua ao ser recitada. A poesia é a linguagem dos mortos
ressuscitada na língua dos que ainda vivem. Ressuscite-o, ele diz.
Mas como está magro e ossudo. Ossos e melancolia orgulhosa de si mesma. As mãos com
falanges nítidas estendidas. Ele não se incomoda que escreva aqui, ao seu lado. Não se
aborrece com o barulho do lápis rangendo na página. Um barulho pequeno, soluçado, como o
vento da asma tocando folhas secas.
Um sussurro. Mas prefere que leia para ele. Então leio: Recife. Ponte Buarque de Macedo...
E continuo lendo até que adormeça.
Gosto quando ele dorme, porque posso contar suas costelas, agora tão visíveis. Ele respira
melhor no sono, mais suave, menos pesado. Então volto a escrever, mas com a música
daqueles versos tão sombrios ainda dentro de minha cabeça. São os versos preferidos do meu
avô:
Recife. Ponte Buarque de Macedo...
Melancolia. Quando escrevo, é como se recriasse todos os objetos do quarto. Eu os recrio,
embora dê para eles o mesmo nome. Só que nas páginas desse caderno (sim: é um caderno
escolar) eles se tornam vivos novamente, e vivos porque não mais sob o olhar e a influência
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do meu avô, mas sob meus olhares e minha influência. Eles passam a girar em torno da
minha órbita, só assim consigo novamente torná-los invioláveis. Mesa, cadeira, bacia,
pessoas.
Minha mãe entra no quarto entre aflita e assustada e diz baixinho: larga isso aí que vai
terminar acordando teu avô. Mas ele não acorda, sei disso. Acho que até dorme melhor e
mais embalado pela música do lápis rangendo sobre a página. Música de riso sem dentes,
sem arcada. Riso solto no ar como um desenho em acrílico.
Dorme como se morto, como se já morto. Como se despencasse. Então não obedeço à minha
mãe. Mães não entendem nada sobre a morte. Sobre a melancolia. Sobre renomear o mundo.
Não.
“As cismas do destino” é o nome do poema que meu avô mais gosta que leia para ele. E ele
começa assim:
Recife. Ponte Buarque de Macedo...
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Recife, dois de fevereiro de 1911.
Nasceu quase morto. Ao sair do ventre da mãe seus pulmões recusaram-se a respirar. Logo
voltou pelo mesmo canal noturno pelo qual acabara de chegar, embora ainda tenha durado
por sete meses no mundo. Ironia de Deus. Seria ironia também se me atirasse daqui dessa
ponte? Minha ou Dele? Não importa. Talvez morrer afogado, as narinas cheias de água e
sangue, água e sangue...
Música das palavras. Há uma música nas palavras. Uma que, através do seu ritmo, é capaz de
transmitir o verdadeiro nome de tudo, o nome de todos os objetos do mundo. O nome oculto
neles. Secreto. Que escorre entre o chorume das significações. A melodia líquida. A sintaxe
primeira.
Será que alguém irá entender-me? Meu livro com certeza é demasiado mórbido para a época.
E que época é essa? Olavo, o ourives... Esse Bilac e seus versos assépticos. Parecem tratados
de um sanitarista. Bilac, o médico-legista da poesia. No mais, um péssimo gosto para
mustaches. Talvez eu devesse pular realmente.
Será que não existe no mundo nenhuma alma literária gêmea à minha?
Meu filho deve ter herdado os meus pulmões frágeis. Essa a única herança que lhe dei. A
herança que o matou. Seu rosto estava azul, imóvel, os olhos asfixiados... Será que ele
conseguiu ao menos distinguir o mundo antes de morrer? E isso interessa? Para ele, pelo
menos?
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Recife. Ponte Buarque de Macedo... Ninguém entenderá esse poema.
E será que quero ser entendido? Testemunhas não serão nunca entendidas. Eu não quero ser
entendido. Não preciso disso. Aliás, o entendimento pleno só se dará com a chegada da
morte. Nisso o meu filho teve sorte. Com certeza, ele será o único que, ironicamente,
entenderá aquilo que eu escrevi. Se pelo menos eu tivesse nascido na Alemanha. Lá me
entenderiam, com certeza. Mas não aqui, nem no Rio de Janeiro. Na Alemanha sim,
sobretudo na da época de Goethe.
Cheguei ontem ao Recife. É preciso sublinhar isso aqui: ontem. Sim, porque ontem mesmo,
soube pelos jornais a notícia do nascimento de um carneiro com rosto de gato, com feições
felinas, no município de Jaboatão dos Guararapes. Não me parece estranho. Dia fatídico esse,
o da minha chegada.
No Recife, também não me entenderão.
Mas volto ao gato-carneiro, ou carneiro-gato, não importa: o dono expôs o bicho à visitação
pública. Está ganhando dinheiro vendendo ingressos, pagos pela curiosidade alheia. Uma
aberração. Todos querem ver a grande piada de mal-gosto de Deus. Mais uma. O hibridismo
dos seres vivos é o primeiro sinal do nascimento da Besta no mundo. Meu filho, pelo menos,
nasceu parecido comigo.
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Tinha meu queixo anguloso, e todo o resto: nariz, boca, lábios. Só os olhos eram da mãe. Os
pulmões eram semelhantes aos meus também, com certeza. Pulmões com sina de asas, mas,
ancorados.
Ponte Buarque de Macedo... Hora do crepúsculo. O céu tinge-se de vermelho como uma
imensa poça de sangue. De sangue. A imagem do sangue não me sai da memória. É uma
obsessão:
Essa obsessão cromática me abate. Não sei por que me vêm sempre à lembrança
O estômago esfaqueado de uma criança
E um pedaço de víscera escarlate.
E o carneiro-gato, ou gato-carneiro, não foi o primeiro sinal da Besta aparecido por aqui. Não
senhor. Lembro exatamente do dia quatro de março de mil novecentos e nove. Eu estava aqui
mesmo, nessa ponte, quando ele passou por mim. Passou atrás de mim, na verdade, me
arrepiando a nuca. Movia-se como um fantasma. Parecia um homem, mas não era um de
fato. Talvez fosse. Mas era bem baixinho: as orelhas grandes, as omoplatas... Pude vê-las
mexendo-se embaixo do sobretudo que vestia. Um tipo estranho. Omoplatas semelhantes a
asas. Era um morcego. Sim. Uma espécie de homem mixado com morcego. Uma asma negra.
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Petrópolis, vinte e oito de setembro de 1998.
Acordou nesse dia com uma sensação estranha, muito estranha.
Gostava de acordar cedo, junto com o sol ainda insone, para alimentar Lolita e Gaia Maria de
Moura Brizola ainda bem de manhãzinha. Fazia isso com regularidade, pois sabia que elas
despertavam sempre famintas, sempre com uma pressa imediata de comer, as línguas úmidas.
Mas, estranho, acordou justo nesse dia, justo no dia do seu aniversário, com uma memória
esquisita ou, como direi, com um estranhamento mnemônico inadequado.
Primeiro que despertou estranhando os próprios lençóis onde dormiu na noite anterior e,
pasmem, até a sua mulher lhe causou uma sensação desconfortável. Era como se não a
reconhecesse ali ao seu lado, respirando, embora soubesse seu nome e o que ela significava
para ele, afinal, eles eram casados há exatos trinta e dois anos. Não, não se tratava de
esquecimento. Ele sabia que aquela ali dormindo era sua esposa. Ele sabia disso, reconhecia-
lhe os cheiros e os contornos, inclusive aquela marca de nascença à altura do meio da parte
de trás do seu pescoço. Um sinal de carne na nuca.
O fato, para ele novo e desconfortável, foi o de ter se espantado com sua presença, não sei ao
certo, se espantado como se fosse uma novidade para ele ela estar ali, dormindo ao seu lado,
todos os vestígios apontando que sim, era realmente ela quem estava ali. Bom, ele pensou,
deve ser ressaca.
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Levantou-se da cama e era como se por um segundo tivesse também estranhado o próprio
corpo atabalhoado que possuía. Admirou-se das próprias mãos grandes e grossas, cabeludas,
dos dedos curtos e ossudos. Pareceram-lhe pouco familiares os pés, as pernas, as coxas
flácidas, os pelos crespos do peito e, ao passar instintivamente a mão sobre o rosto, até
mesmo a barba, a longa e densa barba que possuía e, da qual nunca se desfez, causou-lhe não
apenas estranhamento, mas também repulsa.
Devo estar ficando louco, ele disse, e repetiu para si: louco. Como posso? Minha linda barba,
que eu nunca cortei porque gosto dela assim, e que apenas a aparo semanalmente... Mas
como?
Percebam como ele reconheceu sua própria barba, demonstrando até certo sentimento terno
em relação a ela. Não, sua memória está intacta, mas é como se acompanhada dela viesse
nessa manhã de seu aniversário esse novo sentimento de inadequação, de estranhamento que
passou a sentir em relação a todas as coisas que o cercavam e que lhe diziam respeito
anteriormente.
Devo estar louco, voltou a repetir. É como se uma segunda memória acordasse hoje junto
comigo.
Já no corredor, enfiado em um pijama com estampas florais que desconhecia, assistiu à
cotidiana corrida de Lolita e Gaia Maria de Moura Brizola, que viam estabanadas e com as
respectivas línguas para fora apontadas em sua direção. Isso lhe causou o mesmo
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estranhamento. Essa atitude mecânica e diária, rotineira, das duas, lhe causou um
estranhamento inesperado.
Sou eu mesmo que estou aqui, ele se perguntou, enquanto as duas cachorrinhas pulavam ao
redor dele, serelepes, famintas, ora agarrando-se em suas pernas, ora lambendo-lhe as canelas
com suas línguas ásperas. Até mesmo os dois nomes que surgiram de sua mente quando as
avistou não lhe pareceram familiares, embora lembrasse nitidamente deles.
É claro. Brizolista roxo e leitor obcecado de Vladimir Nabokov, ele havia resolvido
homenagear os dois, ao batizar suas cadelas com esses nomes. Mas até sua paixão, até
mesmo a sua paixão por essas duas personalidades, uma do mundo literário, a outra do
mundo político, lhe causou estranhamento. Era como se suas lembranças ainda existissem,
sem, no entanto, lhe causar mais nenhuma sensação de familiaridade.
Não tenho mais idade para estar bebendo tanto, ele pensou. Nem posso fazer mais isso.
Eli estava certa, ele disse para si, assustando-se um pouco com o modo espantado que o
próprio nome de sua esposa surgiu de seu pensamento. Sim, Eli, porque Eli é o nome dela,
repetiu, como se para certificar-se de que era realmente, as mãos agora segurando o saco de
ração com o qual alimentará suas cadelinhas. Eli, ele repetiu, as mãos agora despejando a
ração nas duas tigelas de plástico dispostas sobre o chão da cozinha. Eli.
As tigelas, uma azul, a outra vermelha, traziam escritas em suas respectivas bordas exteriores
o nome de suas respectivas donas. À Lolita pertencia a tigela azul, à Gaia Maria de Moura
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Brizola a vermelha. Lolita e Gaia Maria de Moura Brizola, ele leu novamente. Eli, ele
pensou. Engraçado: é como se as duas cachorrinhas soubessem ler, pois sempre vão certeiras
para comer, cada uma em sua tigela.
Você vai terminar ficando louco, Jaime, escrevendo esses romances escabrosos, disse sua
esposa. Era 1978, ele lembra, ele recorda a data. Jaime, Jaime é meu nome, diz para si
baixinho, como se sussurrasse uma clave de sol. Eli e Jaime. Sou um escritor? Sim, ele
mesmo responde, vendo-se sentado em seu escritório, diante de uma mesa repleta de páginas
escritas e de folhas em branco. Cinzeiros. Cadernos. Cinzeiros que esvaziava no lixo com
frequência, sendo ele, um obcecado por limpeza.
A gramática perfeita, nenhum erro será detectado em seus originais. Jaime e Eli. Phutatorius.
Phutatorius?
Agora, ele está em 1979. 1979, ele diz. Há quase um ano, ele foi laureado com o “II Prêmio
Érico Veríssimo” de literatura. Estranho, um romance estranho, diz Eli, mas que está sendo
publicado pelo menos, como premiação pelo primeiro lugar no concurso. Suas lembranças
multiplicam-se dentro de sua cabeça. Sim, minhas lembranças, ele repete. Só que, em vez de
identificar-se com elas, parece-lhe mais estar assistindo a um filme de sua memória. Um
filme já visto por ele várias vezes, é fato. Afinal, sou apaixonado por cinema, ele diz.
O estranho é que suas lembranças agora lhe pareçam um filme, um filme que sabe de trás
para frente, de cor e salteado, mas, que não lhe diz muito mais a respeito de nada.
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Eli. Lolita e Gaia Maria de Moura Brizola. Phutatorius. Jaime Rodrigues.
Será que estou sofrendo do mesmo mal de Kafka, ele subitamente se perguntou.
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Praga, dezessete de novembro de 1912.
Em carta endereçada a Felice, ele escreveu: “raro é que consiga descansar. Meus sonhos são
minha pior vigília. Eles são tão nítidos, tão reais, tão sonoros, que acordo em toda manhã
com a sensação de que não consegui dormir nada. Às vezes tenho a impressão que durmo
quando estou acordado, e acordo quando estou dormindo. Não sei se me fiz entender”.
Ele observa as orelhas pontudas refletidas no espelho. Feio, muito feio, ele diz para si ali
sozinho.
“Sinto-me como uma alma penada, mas só às vezes”.
As janelas embaçam de frio. Uma manhã cinzenta e gelada precipita-se sobre as sujas
chaminés perfiladas das casas marrons e monocromáticas da linda cidade fantasma de Praga.
Sim.
“Eu que não vou casar com esse maluco” Diz senhorita Bauer, a carta do noivo entre os
dedos nervosos.
Acordou essa manhã sentindo-se ainda mais estranho. Se é que isso é possível. Um
desassossego incomum, mais incomum do que todos os outros de todas as manhãs em que
acorda e desde que se entende por gente. O mundo ostenta diante dele a beleza que o esmaga.
Ele e esse seu talento especial de martirizar a si mesmo. Mas essa manhã... Algo de estranho
aconteceu. Algo que o arruinaria.
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“Hoje fiquei um bom tempo na cama, já que era domingo, único dia em que posso me
estender um pouco mais entre meus ossos e os lençóis macios que me cobrem. Mas não foi
só por isso que fiquei deitado. Acordei com uma sensação estranha. Abri os olhos, mas,
estranho, não consegui me mover. Eu olhava o teto, e era o mesmo teto do meu sonho. Por
que não me movia, você poderá perguntar, minha doce e querida senhora. Ao que já me
adianto em responder: acordei com a nítida sensação de que eu era uma cadeira. Por isso, não
me movi por um bom tempo. E até conseguir tirar essa impressão da minha cabeça deu um
trabalho danado”.
Claro e escuro. O quarto consagrado à recuperação das sombras. Penumbroso. Assediado por
memórias melancólicas, esquecidas. A umidade interrogando todos os espaços. Frio. Muito
frio. E nenhuma vontade de se livrar do frio.
Ele finalmente levanta-se e é como se levitasse, flutuasse dentro de recordações terríveis. As
orelhas pontudas debatendo-se, como se estivessem aplaudindo a ópera.
“Você acha que eu devo casar-me com esse doido? Que tipo de homem escreveria esses
despautérios para a noiva?” Perguntou Felice, ao mostrar a carta a uma amiga.
“Deus a livre. Já pensou se um dia ele acorda ao seu lado pensando que é uma lareira? Vai
tocar fogo na casa toda”.
Ele observa as orelhas pontudas refletidas no espelho um pouco embaçado. E não só as
orelhas, mas também o cabelo fuinho, os olhos arregalados, o nariz achatado, a boca miúda e
sem cor, a pele pálida e cadavérica. Pareço um rato molhado, ele diz, um maldito rato com
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lepra. E quando ponho capa e chapéu então, fico como se fosse parente consanguíneo de um
morcego. Sangue, me falta sangue, ele diz.
Gostaria de ser como meu pai: alto, forte, corado, saudável, decidido, as mãos ásperas, a voz
grossa. Mas, ao contrário dele, sou miúdo, fraco, anêmico, indeciso, as mãos enervadas, e
veja só essa voz: parece o som de uma brisa sibilando dentro de uma garrafa de vidro vazia.
Uma asma canina. Culpa de meus pulmões tuberculosos, ele pensa. Esses pulmões aqui não
servem nem para enfeite de candelabro.
“E o que pode ser pior do que acordar pensando ser uma lareira?” A amiga pergunta, os olhos
espantados.
“Só se um dia acordasse pensando ser um cocô” Felice responde – a voz apreensiva.
De súbito, agora sentado sobre uma cadeira de frente para as janelas embaçadas, ele começa
a pensar, a mastigar uma ideia para escrever. A ideia de um homem que acorda
metamorfoseado em uma cadeira. Em uma cadeira? Sim, por que não, ele responde para si e,
ele mesmo, ali sentado em uma. Uma cadeira como essa aqui, ele diz, tocando levemente
com as costas o espaldar de madeira do móvel.
Em carta a Felice Bauer, ele registraria essa sua intenção: “uma cadeira minha senhora, já
imaginou isso? Um homem acorda de sonos intranquilos e vê a si mesmo metamorfoseado
em uma cadeira”.
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O dia começa a mover-se lentamente. Ele anda para lá e para cá, pensativo, dentro do
pequeno quarto. Suas mãos suam. Sua testa franze como se se arrepiando. Esse será um ano
milagroso, ele diz para si, cada vez mais confiante na sua, antes entendida por ele como
precária, vocação para a escrita.
“Um homem acorda metamorfoseado em uma cadeira? E isso lá é estória para um livro?”.
“Sei lá, deve ser coisa de índole não é?”.
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São Paulo, dezessete de agosto de 1995.
J.R. Terron observa, atrás do vidro da janela fechada do seu quarto de hotel, as pessoas
movimentando-se lá embaixo, nas ruas do centro da cidade. Elas vêm e vão constantemente,
como sépalas soltas no ar arrancadas à força do cálice de suas flores.
Só que, apesar de todo o movimento aparentemente natural com que caminham, todas as
pessoas que ele vê nas ruas lhe são desconhecidas. Assim como ele também é desconhecido
para elas. Uma partilha mútua de desconhecimento recíproco é enfim instalada sem o
consentimento de nenhuma das partes. Uma partilha de silêncio. De frases que nunca serão
ditas, escritas, pois são frases que morrem antes mesmo de ser concebidas, isso mesmo, como
óvulos infecundos.
Mas há uma diferença entre eles. Sim, J.R. Terron pensa sobre essa diferença enquanto passa
a mão direita nos longos e delgados cabelos. Os cabelos sedosos brincando entre seus dedos,
ele nem imagina que dentro em breve todos eles cairão, e um a um, e mecha por mecha,
como um desquite capilar entre suas raízes e os poros por onde brotam. Mas isso sequer terá
importância para o ilustre e voyeur escritor desconhecido que chegou hoje a São Paulo
decidido a fazer história, a sua história.
Mas por que apenas ele é apresentado aqui como sendo um escritor? Por quê? Dentre as
pessoas que caminham lá embaixo não poderá haver, também, um ou mais escritores? Afinal
de contas, elas também não são desconhecidas para ele?
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Para ele sim. Mas não para mim.
Ah.
Livros. O quarto repleto de livros. Nos corredores ermos do hotel, apenas uma ou outra
risada, um ou outro passo apressado, uma ou outra chave rangendo lenta na fechadura.
Depois, o silêncio. A arquitetura das frases que não disseram. O invisível dos objetos que
compõem uma cenografia extinta.
Verde, o carpete do corredor do hotel é verde, ele pensa. Que mau gosto do caralho.
Livros. Esta é outra diferença entre eles: J.R. Terron possui livros. Dezenas, centenas,
milhares deles. Um escritor com livros, afinal de contas. Até que enfim, um escritor que
também lê. E poderia ser pior ainda: o carpete poderia ser roxo.
J.R. Terron leu todos os livros do mundo, curioso e veloz, seus óculos um par de patins
achados na ciclovia. Façanha conseguida por ter começado cedo sua incursão rápida pelas
páginas. Aos sete anos de idade um acidente grave: ele brincando de esconde-esconde, algo
entre o impacto de sua cabeça e uma coluna de cimento. Depois, o coma. Do coma, a leitura,
o desenvolvimento de uma visão noturna, e de uma capacidade peculiar para enxergar
fantasmas literários.
Fantasmas... Quantos deles podem estar ali entre a multidão que caminha? Misturados às
outras pessoas, todas desconhecidas para ele e, os fantasmas também, de fato, desconhecidos
até para si mesmos? Não importa, ele diz para si, os olhos terríveis e frios, uma geada sobre
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as folhas. Prefiro a companhia dos mortos, ele diz novamente para si, pelo menos esses não
me enchem o saco.
Livros. Centenas deles, milhares. Juntos, vão formando aos poucos as pilhas que logo
minarão todo o carpete da sala minúscula, na medida em que forem sendo retirados das
caixas de papelão. O carpete? Não, o da sala é cinza, mas isso pouco importa. J.R. Terron é
daltônico. Ali com ele, apenas seus mortos. E não preciso de mais nada, ele grita, as mãos
enfiadas dentro dos bolsos vazios. Não. É para aquecê-las que ele as enfia. Afinal, ele sabe
muito bem que não tem um puto qualquer no bolso.
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Nova Iorque, onze de setembro de 1929.
Naquela tarde, o poeta espanhol Federico Garcia Lorca caminha pelas ruas da metrópole.
Caminha em direção à Universidade de Columbia, onde estuda. Seus olhos abismados
correm a avistar o céu acima deles. Um céu de prata cinza, rasgado por imensos prédios, que
despontam do concreto como ossos quebrando. Sim, os ossos quebram, e os prédios, todos
ameaçadores, parecem sugerir a impressão da queda.
Seu pescoço chega a doer de tanto que olha para cima, abestalhado. Por conta disso, sem
perceber, termina esbarrando em um jovem que se encontra parado a poucos metros de
distância.
“Desculpe; senhor...”.
“Karl Rossmann”. Responde o jovem, nas mãos um guarda-chuva. Uma resposta automática,
já que o jovem em questão não entende uma palavra sequer de espanhol. Não tendo também
entendido o que quis dizer naquela língua estranha, Federico se afasta do jovem. Talvez seja
alemão, pensa Garcia Lorca, continuando seu caminho sem compromisso com a realidade.
Assim são as bicicletas.
Ao se afastar, o poeta espanhol não vê o pequeno e estranho homem apontando seus dedos
magros em direção a uma das poucas lacunas vazias que sobraram no céu. Não há nada lá
por enquanto, pensa Rossmann.
Mas logo haverá, conclui o taciturno estrangeiro.
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Recife, onze de abril de 1998.
O relógio desenhado na parede badala anunciando a hora cheia. Meio dia em ponto. É meu
aniversário, mas o dia não mudou em nada por conta disso. É o mesmo dia de ontem, de
anteontem, com a diferença de que hoje fico um pouco mais velho. Como disse antes:
decompondo-me.
Nasci na hora do almoço e, convenhamos, um péssimo horário para os bebês nascerem.
Minha mãe está na cozinha martelando um bolo na panela. O avental sujo de margarina. Ela
sua. O médico teve que sair às pressas, bem no meio de uma refeição. Para fazer o parto do
meu nascimento.
“Como o senhor está hoje vô?”.
“Feliz”. Ele responde.
“E como é estar feliz?”.
“É como estar atrasado para um encontro com a tristeza”.
Esta mão que escreve este diário é a mesma que dentro em breve roubará um cigarro para ele.
Eu não me importo.
“Só um filho, arranja só um pro teu vô”.
A mesma mão que move meus cabelos, e que empurra a nascente dos versos nas páginas do
livro. Do livro preferido dele.
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“Por que o senhor prefere sempre esse livro vô? E fuma logo antes que a mãe chegue”.
Anos atrás começava o tempo para mim. Pausado, lento, tortuoso, assim como a voz de meu
avô:
“Augusto dos Anjos. Poeta da morte e da melancolia”. Ele disse para mim, e estendeu o livro
em minha direção.
“É seu”. Ele disse. “Ou você acha que esqueci o seu aniversário?”.
“Mas esse é o que o senhor mais gosta...”.
“Não importa. Logo nada disso importará mais”.
As palavras que escrevo correm entre as linhas da página. Tento registrar as coisas no mesmo
instante em que elas acontecem. Mas é difícil. A velocidade do mundo é maior do que a
rapidez das minhas mãos, com o agravante de que minhas próprias mãos estejam (elas
também) dentro do tempo que move o mundo. A mão que traz o cigarro é a mesma que
escreve a página.
Agora, ela acaricia a cabeça calva dele. Desse quase morto e orgulhoso homem.
“Gosto do Augusto porque ele também sabia, assim como eu, que o mundo todo não passa de
um grande cemitério”.
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho. Meu Deus! E este morcego! E agora, vede:
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“É verdade que vocês se conheceram?”. Perguntei subitamente.
“É verdade. Ele era conhecido do meu pai, teu bisa. Me pegou no colo sim, quando eu ainda
era bem pequeno”.
As mãos magras, de falanges visíveis, moviam-se lentas e dolorosas no ar. É como se
estivesse vendo um pássaro voar. Um pássaro não. Apenas o esqueleto dele.
Lentidão. Vapor.
O avental gorduroso atirado na cadeira.
“Meu filho” Diz minha mãe. Meu avô golfa sangue. Mas sorri enquanto isso. Riso asfixiado,
entristecido.
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho. Meu Deus! E este morcego! E agora, vede:
“Lembro-me dos seus braços ossudos me envolvendo. Isso em 1911. Eu tinha um ano de
idade. Ele, junto com teu bisa, me levando para ver o carneiro com cara de gato”.
“Carneiro com cara de gato?”.
“Sim, e cochichava no meu ouvido: cuidado com o homem morcego”.
“Homem morcego?”.
“Sim”.
“E quem era o homem morcego?”.
“Não sei. Mas o poema que você acabou de ler foi escrito para ele”.
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A lâmpada fraca abre gradualmente seu leque de luzes. O quarto é aceso, como olhos
espantados, ou uma plantação subitamente incendiada.
“Todas essas coisas bonitas que o senhor me diz vô. Nunca pensou em escrever não?”.
“Prefiro ser personagem”. Ele respondeu.
A mão que escreve a página é a mesma que acaricia o crânio calvo do homem que eu amo.
Mas que está partindo. Assim como partem e partirão todas as coisas vivas sobre o mundo.
Riscadas da memória do mundo como o bolor amarelando as folhas de um livro. E o tempo
do relógio desenhado na parede continua.
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho. Meu Deus! E este morcego! E agora, vede:
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Recife, quatro de março de 1909.
A noite está clara hoje. Meu soneto “Versos Íntimos” publicado há três anos no jornal O
Comércio está na boca do povo. Os leitores do periódico receberam com entusiasmo minha
estranha música. Clara e calma, esta noite. A lua baça derrama nos espelhos do Capibaribe
sua luz espessa. Poeta da morte e da melancolia? E por que não? E o que nessa vida já não
está morto, ou melancólico?
A crítica recebeu com repulsa o meu soneto. Bilac lá do Rio chamou-me de coveiro. Pensou
que iria me ofender.
Mas magro? Sempre fui, e estou de fato agora, mais magro ainda.
Hoje pela manhã fui à padaria. Essa nota que escrevi, tomei-a lá. Um senhor que servia no
balcão deixou escapar entre os lábios: a mão que afaga é a mesma que apedreja. Não entendi
no início, até que, à saída do estabelecimento, ouvi dois amigos comentando baixinho que o
atendente do balcão havia sido traído pela mulher. Anotei isso? Uma que sempre cuidou dele,
mas que agora... Esse meu verso terminará como ditado popular.
Mas isso basta?
Lembro-me do engenho do Pau D’arco. Paraíba. O sol crestando lâminas nas pedras, afiando
fagulhas em promessas de incêndio. Quanto calor.
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Nessa época, meu primeiro contato com a morte: o cadáver de um boi, sua ossada grudando
no solo como quisesse confundir-se com a paisagem árida à sua volta.
O beijo, amigo, é a véspera do escarro!
Mas Recife é uma cidade absolutamente literária. Sobretudo à noite. Por isso quis vir para cá.
E aqui estou. Caminhando nas ruas onde antes de mim caminharam tantos outros. Tantos
outros mortos e escritores. João Urbano, Tobias Barreto, Pessoa de Vasconcelos, Epitácio
Borba.
Querem outros? Ponte Buarque de Macedo cortando os veios do ar, Recife exala o perfume
de todos esses mortos. Do sortilégio desses escritores. A cidade não existiria de fato não
tivesse havido eles. Recife é a soma de todas essas memórias, de toda essa literatura negra.
Isso para não falar aqui dos esquecidos, dos não consagrados, dos que caminharam
incólumes, marginais. De resto, as árvores do centro recifense fedem à urina.
E o que dizer dos autores desconhecidos? Dos invisíveis, dos fantasmas das praças públicas.
Neurastenia. Neurastenia.
Escritores desconhecidos são sempre os melhores. Aqueles que não publicaram nada e que
morreram silenciosos. São os melhores. Pois são testemunhas. Atrás do vidro de uma janela
qualquer, sempre haverá um deles. Um que esteja louco para escrever, para testemunhar. A
doença da escrita, da narração.
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Nenhum monumento será erguido em sua homenagem. Nenhuma carta. Nenhum leitor.
Ontem mesmo, na Rua da Moeda, morreu um que, creio, talvez seja um deles. Três dias
dentro de um quarto, só deram conta quando começou a feder Acostuma-te à lama que te
espera Só então o retiraram de lá. Estava podre, amarelo. Ao seu redor, páginas e mais
páginas preenchidas com caligrafia nervosa. Anotei isso? Caligrafia nervosa. Ninguém
reclamou o corpo. Nenhuma mulher. Nenhum parente. Foi enterrado na cova da indigência,
para ser engolido.
E quem escreve em busca de fama? Eu que não.
A noite recifense tem realmente dessas figuras estranhas. Olhem para essa agora: parece um
morcego. Capa guarda-chuva e chapéu. Nenhum sangue no rosto. O sangue, essa minha
obsessão. Mas nele, parece lhe fugir. O homem é pálido, enquanto escrevo, daqui pude notá-
lo ali parado, olhando o rio. É como se nunca tivesse visto um rio antes.
Estou com um olho na página, o outro na estranha aparição desse híbrido. Agora está de
costas. Suas omoplatas movem-se rangendo debaixo do tecido da capa um ruído de voo
invisível.
É bastante pequeno. As mãos assustadoramente pequenas. Mas é tumultuado. Os bracinhos
curtos, digo. Eles se mexem debaixo da capa. Um mover crivado de folhas, de folhagem
varrida pelo vento.
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É como se não existisse. Será que respira?
Se o faz, não consigo ouvir daqui.
A luz da lua queima seus mercúrios na água. Decido me aproximar do morcego homem. Mas
espere... É ele quem se aproxima de mim. Ele está vindo, a passos lentos, morosos, como se
pesasse muito. Só que no máximo deve ter uns quarenta quilos. O quê então? Acho que a
quatro metros de distância de mim... Agora três... Agora dois... Agora um... Ele estende sua
pequena mão em direção da minha. Acho que quer me cumprimentar.
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Petrópolis, vinte e oito de setembro de 1998.
A memória deve estar me pregando uma peça, ele pensa, enquanto observa a imensa
biblioteca de seu escritório. São todos meus, ele diz, todos esses cinco mil livros me
pertencem. Suas sobrancelhas franzem assustadas com o número astronômico dos livros.
Cinco mil, ele repete para si.
Uma mesa, e sobre ela uma máquina de escrever. Ah sim, escritor. De frente para a mesa,
uma janela. A belíssima e privilegiada vista da serra fluminense. Sim, gosto de escrever
olhando para a paisagem. Tudo limpo e organizado.
De fato, sou um obcecado por limpeza, por organização. Até a bolsa de minha mulher gosto
de arrumar todos os dias. Eli. Eli é seu nome. Preciso sempre verificar se ela sairá com
dinheiro, ou as chaves de casa.
Kafka também sofria esses estranhamentos sempre que acordava. Mas comigo nunca
aconteceu. Kafka era louco. Eu... Penso que não sou. Mas publiquei pouco como ele. Há
quase vinte anos, um livro apenas. Um romance. Agora, a serra fluminense, esse silêncio.
Sim, tenho outros livros escritos, ele diz para si. Todos inéditos.
É como se tivesse acordado hoje com outra memória, uma que fosse vazia, rasa. Uma onde
estivesse sendo despejadas nesse exato instante todas as lembranças de sua vida. Por isso a
sensação de estranhamento, ele sente como se revivesse suas reminiscências no mesmo
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minuto da queda vertiginosa que descrevem para dentro de sua cabeça. Uma sensação
desconfortável. A sensação desconfortável da queda.
Em “Speak, memory” Vladimir Nabokov afirma: a imaginação é uma forma de memória. Ele
possui esse livro. Enfiado entre os seus cinco mil títulos, esse livro. Ele sabe onde o livro
está. Sabe a localização exata de sua prateleira. Sua mão segue certeira até ele. Talvez no
livro haja uma resposta para o que estou passando, ele pensa.
Sim, o livro agora aberto em suas mãos. Uma viagem à Dublin em 1976. Ele está ao lado da
estátua de James Joyce. Uma estátua de bronze, belíssima. Há um homem vendendo livros na
rua. Um irlandês beberrão de nariz vermelho. Jaime Rodrigues (esse é meu nome, reafirma
ele) corre os dedos ávidos, nervosos, entre os exemplares dispostos sobre um pano vermelho
estendido em uma mesa de madeira. Seus dedos param sobre um. Depois de correr por
tantos, sobre um apenas.
Ele abre o livro, cheira suas páginas, lê o título enquanto retira o dinheiro do bolso. Speak,
memory, de Vladimir Nabokov, agora lhe pertence.
Mas talvez eu esteja imaginando tudo isso, ele pensa. Segundo Nabokov, isso é possível.
Extremamente possível. Dublin. São Petersburgo. Petrópolis. Speak memory. Phutatorius.
Eli.
Ela para em frente à porta do escritório. “Bebeu ontem de novo não foi, Jaime?”. Sua voz é
doce, um timbre aveludado, claro, mavioso. Ele reconhece a voz, embora ela, a voz, não
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tenha lhe parecido íntima ou soado familiar. Ele não responde, mas sabe o porquê da
pergunta. Sabe que não pode beber. Tem consciência de seu problema. Mas bebe assim
mesmo. De vez em quando, pelo menos. Câncer no intestino. E quer o quê? Que compre uma
bicicleta ergométrica? A vida já é bastante chata sem elas.
Ela anda em direção à cozinha. Ele ouve seus passos pouco familiares. A cozinha, a
lembrança de sua cozinha, de seu câncer diagnosticado um ano atrás. Ela move-se agora na
cozinha, apanha xícaras, abre gavetas, fala com Lolita e Gaia Maria de Moura Brizola.
É como se ele fosse qualquer outro ali, ouvindo os sons daquelas lembranças. É como se não
fosse ele o Jaime Rodrigues, o desconhecido autor do Phutatorius. Sente-se como sendo
qualquer outro homem, um estranho, um usurpador de sua memória.
“Quer ajuda na cozinha Eli?” Ele subitamente pergunta – as vírgulas engolidas mais uma vez
entre os dentes, perdidas no emaranhado espesso de sua barba. Ela não responde. Eli é seu
nome. Ele a chamou assim. Está certo. Tem certeza disso, mas ela não responde, então
continua ouvindo seus movimentos na cozinha.
Ela é a fonte de todos os ruídos da cozinha, para onde convergem todos os seus utensílios:
xícaras, pires, talheres. Ele a escuta, em silêncio. Escuta o som dos seus passos. Dos seus
passos trinta anos atrás no apartamento do Catete, situado no bairro do Flamengo. O som dos
seus passos, o som das botas dos soldados da ditadura militar trotando no calçamento. Há
cavalos também, os cascos sapateando sobre o concreto. Ele os observa da janela, observa a
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confusão lá embaixo. A perseguição aos estudantes. As bombas de gás lacrimogênio. Toda a
gritaria.
Não vai se meter nisso, Jaime, ela diz. Quer café, Jaime, ela pergunta, observando o livro do
Nabokov ainda em suas mãos, aberto. Ficou bonito, Jaime, mas por que você não escreve
coisas mais claras, para que as pessoas entendam, ela pergunta, depois de ler parte dos
originais do seu primeiro romance. Não faço pão de padaria, faço biscoito fino, foi o que
resmungou em resposta. Quero café sim obrigado, ele responde. Ele gosta do café que ela
faz, mesmo que não possa mais fumar depois de tomá-lo.
As árvores da serra fluminense... Parecem cabeças transplantadas. Cabeças erguidas do
remoinho da selva, da selva de um mundo impensável, fechado, uma festa de animais e de
insetos lá dentro. Festa movida à lepra verde. Uma manhã bonita, de clima ameno, com
linhos de luz clara costurando o céu sem nuvens. Um belo dia para se morrer, ele diz.
A autobiografia de Nabokov fechada em uma de suas mãos. Na outra, a xícara com café
quente. O que você disse, Eli pergunta. Eli, porque esse é seu nome.
“Nada. Estava pensando alto comigo mesmo”.
Ela se afasta dele novamente, agora em outro ritmo, um ritmo diferente dos seus
pensamentos, dos pensamentos que ele pensa sobre ela. O café espuma, esfriando aos poucos
dentro da xícara. Ele toma um gole, reconhece o gosto dele, diz: delícia, e seus bigodes
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sujam. Jaime Rodrigues, autor do Phutatorius, pensa com seus bigodes sujos: que belo dia
para se morrer.
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Praga, dezessete de novembro de 1912.
Em carta endereçada a Felice, ele escreve: “não sei ao certo se minha personagem acordará
metamorfoseado em uma cadeira. A idéia é esdrúxula demais até para alguém como eu.
Talvez consiga pensar em outro objeto”. Escreve apenas esse parágrafo e para. Não há
pressa, afinal de contas, hoje é domingo e os correios estão fechados. Ele ri um riso aflitivo
de serrilha, sozinho ali, pensando na ideia da cadeira. Aflitivo para quem porventura o
escutasse, ouvisse aquela mistura de riso sem mandíbula com farfalhar de folhas na brisa.
Amanhã, só amanhã poderei colocar a carta, ele pensa. Não há pressa.
Decide corrigir novamente os originais de “O Veredicto”. Está agitado. Os dedos ágeis e
franzinos seguram o lápis não sem certa dificuldade. Um frio negro o perpassa os nervos. O
frio implacável da correção, da palavra exata. Suas mãos tremem. Por isso a dificuldade em
segurar o lápis.
Escrever é doloroso para ele, mais doloroso ainda é corrigir o que escreveu. Essa sua vontade
implacável de destruir tudo, todas as páginas escritas por ele. Uma vontade de destruição
imediata ao fim do processo criativo. Sim, como uma serpente engolindo a própria cauda.
Sem engasgar.
O ar preso na traqueia, um sussurro de folhagens dentro dos pulmões. Dois meses segurando
essa vontade irremediável de dar fim a essas páginas.
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“É como se um terror súbito me paralisasse. Fico pálido, mais pálido do que ainda sou. É
como se o sangue me sumisse das veias. Sofro vertigens, ânsias de vômito, desejo de destruir
tudo e desistir de escrever”.
“É louco ou não é?” Pergunta Felice à amiga.
“Nunca vi um negócio desses. Ele nunca te escreveu para falar de coisas bonitas não?” – mas
isto era belo para ele.
Sonâmbulo. Sou um sonâmbulo solto na própria vida, ele pensa, abrindo a janela do quarto
na intenção de arejá-lo. As ruas de Praga infestadas de gente. A velocidade dos objetos
comprados e vendidos, a ressonância dos passos apressados, o fumegar quente das narinas
dos cavalos, das crianças soltas como demônios, a tudo isso observa de sua janela, ancorado
em uma sombra que lhe faz o armário à esquerda da cama.
Observa e fica tonto diante de tantas paisagens móveis, em espiral. Então fecha a janela
novamente. “Já arejou” ele diz.
“Acho que a coisa mais bonita que ele já me disse foi apenas uma vez”.
“E qual foi?”. Pergunta a amiga.
“Assim são os pulmões”.
“Assim são os pulmões?”.
“Isso”.
“Felice, desista enquanto ainda há tempo”.
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O centro do mundo. O centro do mundo é insuportável para mim, ele pensa. Não aguento
viver no centro do mundo, prefiro os seus baixios, as suas margens, suas sombras. É aqui o
meu lugar. Aqui o único lugar ao qual pertenço.
Quero viver nas frestas, nas solas, no pó dos livros. Assim como os insetos, assim como as...
“Felice, minha senhora, acho que achei a veia principal da minha pequena história repulsiva”.
Ele escreve, dando sequência à carta: “não será um objeto, mas um ser vivo, e não um ser
vivo qualquer, mas um inseto, um insignificante inseto”.
Nervoso, exaltado, quase dançarino, os bracinhos soltos no ar como cortinas, ele caminha de
lá para cá do quarto.
“Uma barata, senhora minha querida... O que me diz? Há algo que lhe causa mais repulsa no
mundo do que uma barata?”.
“Você”. Felice dirá para si depois de ler a carta.
Os olhos acendem de felicidade como dois peidinhos dados dentro d’água. Duas estrelas
cintilantes, duas lâmpadas, dois fósforos efêmeros sendo riscados.
“Max, meu querido, escrevo esta como se avançasse o lápis sobre a face da própria água. Eu
deslizo. Eu flutuo. Hoje pela manhã, tive uma idéia ridícula para um relato, mas, do ridículo
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passei para o genial, e aqui estou, te escrevendo, dentro desse segundo estágio em que me
encontro. Ui”.
“Folgo em saber, querido amigo” Escreveria Max em resposta “mas a curiosidade me leva a
perguntá-lo: e quanto ao Veredicto? Conseguiste terminá-lo?”.
“Ainda o estou corrigindo. Isso é necessário, porque o relato surgiu de mim como um
verdadeiro parto, coberto de sujeira e barro. E somente minha mão é capaz de alcançar o
corpo, e nisso ela se compraz”.
O dia avança veloz, como se montado em uma bicicleta. A luz já martela de leve o vidro da
janela fechada. Mas ele não a abre. Quer permanecer intacto e em silêncio, apartado da
felicidade higiênica com que caminha o mundo lá fora. Só na penumbra, só nas sombras
abafadas, é que consegue escrever.
Voraz. Voraz ele já é, ainda que tímido. Voraz para dentro dele, de sua escrita, de suas dores
de cabeça. A página em branco há meia hora estacionada à sua frente. Ele rilha os caninos,
um tique que tem.
“Começar é sempre difícil, querida Felice, mas estou com a impressão de que acabarei o
relato de um só fôlego”.
“Fôlego? Ele fala de fôlego?”.
“Está louco”.
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A página em branco. A dificuldade em se começar. As sombras em que se enfia. Os caninos
rilhando. Uma existência inteira apagada, devotada ao mínimo oferecido pelo mundo.
Passional como uma vítima, ele está preste a avançar sobre ela, sobre a página, avançar
sempre, com a ruína atrás de si.
Na vida? Estacionar feito um porco gordo.
“Ás vezes, amigo Max, quando estou diante da página em branco, sinto-me como se fosse
inacabado, como se existisse em estado de névoa”.
“Estado de névoa?”. Pergunta a amiga.
“Mas isso ele não escreveu para mim não”.
“De qualquer forma: termina com esse leproso Felice”.
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São Paulo, dezessete de agosto de 1996.
J.R. Terron observa, refletido no vidro da janela fechada do seu quarto de hotel, seu rosto
grave e entristecido. As pessoas continuam movimentando-se lá embaixo, nas ruas do centro
da cidade, indo e vindo sem parar como células ao sabor da corrente sanguínea.
Seus cabelos caíram todos. Assim como eu disse que aconteceria. É sobre isso que pensa o
escritor agora, ainda dentro da partilha mútua de desconhecimento recíproco instaurada entre
ele e as células que vagam lá embaixo. Partilha de silêncio, pensa o escritor entristecido,
grave, e, agora, careca.
Livros. A sala agora repleta de livros. A minúscula sala. Todos empilhados uns sobre os
outros. Pilhas e mais pilhas de obras formando um imenso L ladeando o carpete cinza da
sala. Nos corredores vazios do hotel, ainda uma ou outra risada, ainda um ou outro passo
apressado, uma ou outra chave rangendo na fechadura. Depois, não o silêncio, mas o ruído de
uma máquina de escrever onde J.R. Terron trabalha seu primeiro romance.
Livros. Tantos livros. Dezenas deles, centenas, milhares. Um escritor com livros, afinal de
contas e, ainda com a pachorra de querer escrever mais um. Como se achasse pouco todos os
que têm, todos os que já existem.
E poderia ser pior: no lugar de careca, o escritor poderia estar broxa. Mas, graças a Deus,
não.
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J.R. Terron leu todos os livros do mundo. Agora, quer escrever o seu.
Fantasmas... Quantos deles o acompanham nessa empreitada? Dezenas deles, milhares
talvez. Juntos, vão formando aos poucos as vozes sussurradas baixinho, o coro formado por
elas vindo em ondas de TVs fora do ar até que escute, como se lhe tocando uma língua de
gelo na orelha se arrepiasse de tanto ouvi-las.
São essas as mesmas vozes que o autor escuta desde criança, mas que agora surgem
vagamente, misturadas às batidas incessantes de sua Olivetti 1986: tectectec-tectec-tec.
Recortes de anúncios de emprego seguem grudados na porta da geladeira. O lixo da pequena
cozinha entupido de pentes, escovas, e frascos cheios de xampu. Não preciso mais deles, diz
para si mesmo o escritor, o que é uma verdade. Como não pude perceber que estavam
caindo? Tão entretido que está; não é Sr. Terron, com esse seu primeiro livro?
Como? Ele repete – agora um pouco mais exaltado.
É essa sua capacidade em manter-se submerso no mundo das páginas. Uma capacidade quase
autista, quase um pouco daquilo que escreveu Herberto Helder na Lisboa de 1963: o mal é
bastar-se a si mesmo. J.R. Terron se basta a si mesmo – ele e suas pilhas de livros, ele e sua
visão noturna, seus fantasmas, suas páginas, sua máquina de escrever.
Tectectec-tectec-tec.
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Tanto que mesmo agora, os dedos parados para estralarem, ele continua a escutando
trabalhar: tectectec-tectec-tec-tec.
Mas espere...
Observem. Esse não é o ruído de sua Olivetti. Há um tec a mais na escala desse piano. Ou
algo desafinou ou alguém, além dele, está compondo uma sinfonia. Algum outro morador
desse hotel, talvez um vizinho seu.
Escute, o som das teclas vibrando exatamente como vibram as suas... Quase igual, na
verdade, pois há esse tec a mais.
Tectectec-tectec-tec.
Então, temos outro escritor desconhecido nesse hotel?
J.R. Terron permanece em silêncio, os dedos levantados no ar como fossem executar uma
sentença. Ele escuta o ruído da máquina com atenção, tentando identificar de que quarto do
corredor ele viria. Tectectec-tectec-tec. Apartamento 602, ele diz para si. Tenho certeza
disso. Ou quase.
Sua careca lisa mina-se de suor, gotas nascendo dela como a respiração da água no solo de
um pântano. 602, ele repete novamente. Sim, sua audição aguçada lhe assegura disso.
Durante todos esses meses de solidão, ele esmerilhou seus ouvidos da melhor forma que
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pôde. Ao menor barulho vindo de fora, seus lóbulos se movem como antenas de captação.
Antenas de uma barata? Talvez.
J.R. Terron tornou-se capaz de distinguir e perceber qualquer barulho surgido dos corredores
vazios do hotel. Uma ou outra risada, um ou outro passo apressado, uma ou outra chave
rangendo na fechadura e, agora, esse: Tectectec-tectec-tec.
Uma espécie de voyeur auditivo foi no que se transformou. Os demais inquilinos do hotel
sequer imaginam que haja um homem como ele hospedado ali. Um tipo de agressor
silencioso, usurpador da memória alheia que, ao pescar esses ruídos cotidianos com seus
tímpanos treinados, termina roubando-lhes as lembranças, as histórias, que com o auxílio de
sua imaginação exacerbada acabam transformando-se em matéria-prima para suas narrativas.
Mas agora, há outro como ele nesse mesmo hotel. Um inimigo em seu território. Um igual,
talvez.
Será que é ele, J.R. Terron se pergunta. Mas ele quem?
Ontem pela manhã, pensou tê-lo visto no corredor do hotel. Cruzado com ele. Terron havia
catado os centavos para comer uma média na padaria lá embaixo. Quarenta minutos
buscando moedinhas de dez, de cinco, até de um. Angariada a soma, atravessou faminto o
corredor com uma única ideia na cabeça: tomar seu café da manhã.
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Porém, antes de descer as escadas sem corrimão que o levariam até lá embaixo, deparou-se
com a estranha figura. Barbudo, um metro e setenta; óculos escuros: é ele pensou J.R.
Terron.
Bom, pelo menos é parecidíssimo com ele. A estranha figura trancava a porta do 602 no
instante em que seu Terron ia às escadas. O susto foi tão grande, que o escritor deu meia
volta e retornou ao seu apartamento, mastigando entre os dentes a insatisfação por não ter
tido a coragem necessária para inquiri-lo. Talvez seja um desses fantasmas que me
acompanham – ele pensou, no instante em que abria a porta.
Antes de entrar, voltou a cabeça por cima dos ombros e verificou que ele não estava mais no
corredor. Um fantasma – repetiu para si.
Livros. Dezenas, centenas, milhares deles e, no entanto, a mão do escritor desconhecido se
enfia certeira na exata pilha onde deverá estar aquele que procura. De fato, ele encontra o
romance. 1979. Primeira e única edição, as páginas já um pouco amarelecidas pelo tempo.
É ele, repete para si mesmo J.R. Terron, o dedo indicador apontado para a foto de Jaime
Rodrigues, impressa na orelha do Phutatorius.
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Nova Iorque, onze de setembro de 1929.
Um jovem de quinze anos acaba de sair de um bar onde tomava café. Ele puxa do bolso o
maço de cigarros pela metade. Acende um, centelha de fôlego curto, e segue.
As pessoas caminham apressadas ao seu lado. Esbarram nele como se não existisse. Correm
como sangue, como célula, porque começa a chover agora. Guarda-chuvas são abertos.
Guarda-chuvas colidindo uns nos outros.
O jovem ri daquela velocidade toda, daquele trânsito, e continua a caminhar, lento como um
pato com cólicas. O supremo pato bizarro com cólicas. Mas a chuva engrossa, então decide
proteger-se sob uma das inúmeras marquises existentes na avenida.
Parado ali, ele avista um jovem que parece não se importar com a chuva que cai, o guarda-
chuva aberto, bem no meio da calçada. Karl Rossmann, pensa subitamente William Seward
Burroughs.
Sim, William Seward Burroughs é como se chama. E Karl Rossmann é o nome do estranho
jovem que se encontra parado no meio da chuva, apontando para duas lacunas vazias no céu.
Anos mais tarde, Burroughs se interessaria pelo estudo dos fenômenos telepáticos, por causa
dessa sua experiência.
Sim, William Burroughs leu na mente do insólito estrangeiro que seu nome é Karl
Rossmann. Soube ainda através da telepatia que era um estrangeiro, e que estava apontando
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para as duas lacunas vazias no céu porque preconizava que ali seriam erguidas duas torres.
Duas imensas torres. Dois símbolos que teriam vida curta. Símbolos do capitalismo que
seriam derrubados em breve.
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Recife, três de fevereiro de 1911.
O vento laminando minhas orelhas levantadas. A pequena cabeça, também ela, soerguida. As
orelhas trepidando como bandeiras, lâmpada a gás, saias gesticulando na brisa, roupas
tocando sonata secando no varal. Era ele quem me erguia – os braços magros e longos, os
dedos ossudos.
Depois, meu pai me disse que aquilo dele era tristeza. Tristeza pelo filho que acabara de
morrer.
“Poeta?”. Disse meu pai.
Agregado infeliz de sangue e cal, fruto rubro de carne agonizante...
“Poeta?”. Repetiu meu pai.
“É um belo menino”. Ele disse, me pegando no colo novamente. Mas só para tomar fôlego e
reerguer-me novamente no ar, assim como fazem com os balões.
“Não sacuda tanto o menino. Ele pode vomitar”. Disse meu pai.
Porção de minha plásmica substância...
“Ele vai enjoar, poeta”.
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Mas enjoado fiquei quando em seu colo, senti o hálito azedo que tinha. Preferia continuar
sendo balançado e solto no ar, as orelhas laminando ao vento.
“Vamos Augusto”. Disse meu pai. E fomos.
Estávamos em Jaboatão dos Guararapes. Próximos ao sítio do dono do carneiro-gato. A
estrada molhada grudava a terra nos pés de quem caminhava. Menos nos meus pés, estando
eu ainda suspenso nos braços de Augusto dos Anjos, poeta da morte e da melancolia. Havia
chovido.
“Choveu Eugênio. Esse é o primeiro sinal”. Disse o poeta, chamando meu pai pelo nome.
“Que sinal?”.
“O mesmo sinal que veio anunciar a Besta que estamos indo ver”.
“E que sinal é esse, diabo?”.
“Exatamente esse: o da passagem do Diabo por aqui”. Ele disse, e em seguida cochichou no
meu ouvido: cuidado com o homem morcego.
Lama. Lama grudando nas solas dos pés. Havia chovido. Sim. Um sapo vomitava espuma,
esparramado em uma pedra de argila. O chão encordoado de veias úmidas. Poças d’água.
Espelhos de céu no chão.
Ah, possas tu dormir, feto esquecido, panteisticamente dissolvido, na noumenalidade do
NÃO SER.
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Uma multidão de curiosos fazia fila para comprar os ingressos. Um conto por pessoa, para
ajudar o dono do carneiro-gato a abrir um poço artesiano em seu sítio seco. Um conto de rés
apenas, para ver a maior aberração já vista por aqui. Uma pechincha. “O Diabo dá a seca,
mas também os meios”. Disse meu pai, entre os lábios.
Entre os curiosos: gente do povo, mas também jornalistas de jornais do Recife e do Rio de
Janeiro, além de artistas de todas as cidades, músicos, beatos, cantadores de viola, religiosos,
políticos fazendo campanha antecipada. Profetas. Vaqueiros.
Dentre os vaqueiros, havia um a quem todos os outros tiravam o chapéu em sinal de
cumprimento e deferência. Esse um trazia a tiracolo, segurando-lhe forte na mão, um menino
de cerca de três anos de idade. Esse um era alto, portentoso, o gibão lustrando no sol seu
melhor couro. De longe, lembrava uma enorme estátua de mármore sendo cingida pela luz.
Mas, posso estar exagerando.
“Quem é esse um aí?”. Perguntou Augusto dos Anjos a um dos vaqueiros que acabava de
tirar o chapéu para cumprimentar o gigante, a fila do ingresso tendo andado um pouco.
“Esse aí é o Manuelzão, grande vaqueiro lá das Minas Gerais. Contador de causo e pegador
de boi dos brabos”. Ele respondeu.
“E o menino, é filho dele?”. Perguntou meu pai, na sequência.
“Não, é filho do patrão dele. Mas o menino adora andar com Manuelzão. É um pra lá e pra cá
com ele da gota. Diz Manuelzão que o menino vai ser artista. Diz que vê isso nos olhos dele.
Menino curioso esse João Rosa”. Disse o vaqueiro, e completou:
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“Vieram os dois a cavalo lá das Minas Gerais só pra ver o carneiro-gato. A notícia se espalha
rápido no sertão”.
“E esse aqui, o que vai ser quando crescer?”. Disse o poeta, novamente me erguendo no ar.
“Vai vomitar Augusto, o menino vai vomitar”. Resmungou meu pai.
“No sertão, senhores, fala-se a língua de Goethe”. Disse o poeta.
Compramos o ingresso.
O sítio era pequeno. Entramos por uma estradinha de barro encordoada. Nas margens dela,
ossos de boi ladeavam todo o percurso. Atravessamos uma porteira, que rangeu ao abrir, feito
praguejo de velho. Lá na frente, uma pequena multidão se fazia sob a árvore de uma
mangueira. Ao lado da árvore, foi possível para nós avistar Tobias Barreto montado na
corcunda coberta de lantejoulas de um elefante.
“Não me admiro mais de nada”. Disse Augusto dos Anjos.
Ao nosso lado, caminhava Manuelzão, trazendo o menino Rosa pelo braço. As pedras
quebravam nas solas dos passantes. Chegamos ao pequeno círculo de pessoas debaixo da
árvore. Meu coração acelerou feito um tiro de espingarda. Tobias Barreto, do alto do seu
elefante, discursava: venham ver todos a estranha aparição. Em Jaboatão dos Guararapes,
nasceu um carneiro com cara de gato. Sinal dos tempos. Ninguém nunca mais dormirá
tranquilo, sabendo que coisas impossíveis de acontecer, realmente podem terminar
acontecendo.
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Cuidado com o morcego homem sussurrou Augusto dos Anjos em meu ouvido.
O círculo foi desfeito. As pessoas que faziam parte dele foram dispersas para que um novo
círculo se instaurasse. Cinco minutos apenas, bradou Tobias Barreto. Mulheres saíram
rezando. Um sapo vomitava espuma lá trás, quando pudemos finalmente avistar a besta. O
animal estava amarrado pelo pescoço por uma corda presa ao tronco da árvore. Os olhos
eram chorosos. “Meu Deus” sussurrou o poeta. “Nossa mãe” disse meu pai. Eu não disse
nada por não saber falar ainda. Mas pensava: isso aí não é um carneiro. Nem mesmo cara de
gato ele tem.
Foi quando o menino Rosa largou subitamente da mão do seu vaqueiro para apontar os dedos
miudinhos em direção da besta. Os olhos assustados e vivos, o dedo em riste, ele disse: isso
não é um carneiro, é um bezerro. E não tem cara de gato, mas cara do Cão. Povo prascóvio,
ele concluiu.
“Não disse que esse vai ser artista?”. Falou Manuelzão, em um misto de orgulho e surpresa.
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Recife, quatro de março de 1909.
Estendeu a mão magra em minha direção. Uma mão mirrada, quase invisível.
Na ponte, apenas eu e ele.
De primeira, pareceu-me ser um estrangeiro. Na certa um europeu. Depois, foi que pensei: na
verdade, não me parece com nada esse estranho. Sim, escrevi estrangeiro aqui por ser a única
definição aproximada de sua estranheza, afinal de contas, eu nunca vi um estrangeiro em toda
a minha vida.
Talvez todos sejam como ele. Sim, como esse pequeno homem morcego vestindo capa,
guarda-chuva e chapéu.
“Bela noite para se passear não é?”.
Ele falou alguma coisa em sua língua estranha. Um estrangeiro então, eu pensei. De perto,
assustei-me ainda mais com a sua palidez cadavérica, parando de escrever em meu diário
para melhor analisá-lo.
“Augusto dos Anjos, o prazer é todo meu”. Eu disse, tendo na minha mão ainda a dele
entrelaçada. Uma mão pequena, mas ossuda, que apertava fraco. Tanto a dele quanto a
minha.
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“Karl Rossmann, muito prazer”.
Ele ria um sorriso aguado. Quase um ataque de asma seu riso. Sua língua alienígena estalava
no ar uma música áspera.
“Você fala a minha língua? O que o traz aqui?”. Perguntei.
“Rossmann... Estou escrevendo um livro nesse momento”.
Apesar da incomunicabilidade existente entre nós, senti, não sei explicar por que, que aquele
estranho homem me dizia muito a respeito de tudo. Uma sensação de familiaridade e paz foi
o que senti diante dele. Como fosse ele uma espécie de irmão, de mesma alma atormentada
que a minha.
“Bonito o seu chapéu”. Eu disse, vendo que a todo o instante o pequeno e mórbido homem o
segurava para que não voasse junto com o vento. Ventava forte na ponte.
“Nesse mesmo instante, estou escrevendo um livro”. Ele me disse, na certa agradecendo meu
elogio. Então resolvi ignorar o fato de nossas línguas serem diferentes, e segui conversando
com ele.
“Já esteve aqui no Recife antes?”. Perguntei.
“Talvez isso aqui seja um sonho que eu esteja tendo nesse exato momento”. Ele me
respondeu.
“É bonito não é, concordo com você”. Eu disse.
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“A qualquer momento posso acordar dele”. Respondeu.
“Ah, mas espere só você ver toda a cidade... Já visitou outros lugares?”. Eu perguntei.
Mas dessa vez não me respondeu. Apenas sorriu novamente. Pelo jeito, parecia também não
se importar com o fato de que nós talvez não estivéssemos nos entendendo muito bem. Um
homem de imaginação, disse para mim. Assim como eu.
Incompreensíveis? Talvez. Mas totalmente reais um para o outro? Sim.
“Gosto do clima daqui, bastante quente e arejado”. Ele me disse.
“Ah, é aí que você está hospedado então? É um bom hotel”. Devolvi-lhe.
O estranho respirava devagar e pausado, como se o ar fosse lhe faltar a qualquer momento.
Exatamente assim como eu. O ar não era possível para nós dois. Todas as outras coisas sim.
Como disse antes: um irmão, uma alma gêmea da minha.
Eu, filho do carbono e do amoníaco, monstro de escuridão e rutilância...
Sem mais nem menos, comecei a lhe recitar uns versos meus. Não sei por que me veio essa
ideia na cabeça, mas foi bem-vinda. Bem-vinda porque o estranho pareceu ter gostado dos
meus versos. Assim que comecei a recitá-los, ele levantou os olhos miúdos em minha direção
e, abrindo um sorriso grande (ainda que aguado) no rosto, começou a dançar.
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De início, confesso ter me assustado um pouco com sua estranha reação. Mas logo achei
graça naquilo, e continuei: pronfundíssimamente hipocondríaco, este ambiente me causa
repugnância...
E ele continuou a dançar. Parecia um carretel de linha desconjuntando-se. Os bracinhos
esquisitos balançavam para lá e para cá, soltos como bandeiras. As perninhas sapateando
como dois pescoços moles.
Odradek, Odradek, Odradek...
De súbito, começou a cantar um mantra demoníaco: Odradek, Odradek, Odradek... E
continuou a dançar, agora já nem se importando mais se seu chapéu caísse ou não no chão da
ponte. Como vi que se alegrava, continuei meu tímido sarau: Já o verme – esse operário das
ruínas – que o sangue podre das carnificinas...
Odradek, Odradek, Odradek...
Não sei como tinha fôlego para dançar e cantar ao mesmo tempo. Se passasse alguém àquela
hora na ponte Buarque de Macedo, na certa se assustaria com a cena insólita.
Odradek, Odradek, Odradek...
O bichinho parecia incansável. Dançava serelepe como um pequeno tumor latejando. Eu, por
outro lado, continuava o ritmo furioso dos meus versos, feliz que estava pelo fato de que,
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finalmente, alguém os tinha compreendido. Mesmo que fosse um estrangeiro que não
entendesse sequer uma vírgula de português. Não importa. O que me alegrou foi ver o
pequeno demônio dançando, mostrando com sua dança alegre ter compreendido que meus
versos são música, música, música, e apenas música.
Odradek, Odradek, Odra...
De repente, parou de dançar e cantar. Pareceu ter se engasgado. Com as mãos apoiadas em
uma das colunas de ferro da ponte, puxou com todas as forças o ar que lhe sobrava na
atmosfera e escarrou no chão. Era sangue.
“Desculpe-me, eu...”. Parecia estar se desculpando comigo, no instante em que o peguei em
meus braços e o apertei forte.
“Você está bem, irmão de infortúnio?”. Perguntei a ele.
“Acho que...”. Ele ia me responder algo, mas, sua voz lhe faltou. Então se virou de costas
para mim e apontando para seus pulmões, disse:
“Assim são os pulmões”.
Aquilo foi lindo. Então me virei também de costas para ele, e disse:
“Os meus também são doentes”.
E ele sorriu.
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Depois, um pequeno silêncio se fez entre nós. Ele observava o rio, como se espantado com a
costura cirúrgica de suas águas, com seu espelho calcário refletindo o sangue baço da lua.
Também me fiz na mesma posição que ele, como se querendo entender tudo o que se passava
em sua cabeça. Talvez não seja um estrangeiro, eu pensei. Talvez seja um demônio. Ou um
húngaro.
“Obrigado Augusto”. Ele me disse, depois do breve estio do silêncio. “Fazia tempo não me
divertia tanto”. Completou.
“De nada Rossmann”. Eu lhe respondi. “Para mim foi um prazer”. Completei.
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Petrópolis, vinte e oito de setembro de 1998.
Deitado sobre uma boia gigantesca em forma de casco de tartaruga, Jaime desliza na
superfície calma e espelhada de sua piscina. Ele sabe que sempre apreciou ficar horas ali, um
livro aberto na mão, ouvindo óperas, embora nessa manhã já adiantada esse tipo de lazer lhe
parecesse ridículo, burguês.
Eli está em algum lugar da casa, percorrendo em silêncio todos os seus cômodos, talvez
falando ao telefone. Ele sabe dela por ali, e a certeza com que sente sua presença rodeando a
casa o deixa agora um pouco mais confortável, um pouco mais seguro, ainda que estranhando
todas essas lembranças, todas essas sensações, a bóia deslizando lenta como uma gota de
lágrima no espelho.
“A maçã no escuro” está aberto em suas mãos. Ele se lembra deste livro. Sabe e sente que é
um profundo admirador dessa escritora: Clarice Lispector. Sim, ele repete para si mesmo,
Clarice Lispector é o seu nome. Um belo nome, sonoro, contundente.
Um belíssimo título também esse que deu para o livro: “A maçã no escuro”. Poético.
Imaginativo. Cheguei a redigir um roteiro certa vez, ele diz para si, recordando. Um roteiro
adaptado de vários textos dessa autora (ucraniana, veio para o Brasil muito nova, primeiro
Recife, depois, Rio de Janeiro). Um roteiro? Sim, o cinema é uma de minhas paixões.
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Huston. Coppola. Fellini. Polanski. Eli. Lolita & Gaia Maria de Moura Brizola. Phutatorius.
Noel Rosa. Charlie Parker. Coltrane. Miles Davis. Clarice Lispector. Ezra Pound. James
Joyce. Nabokov. Lewis Carrol...
A boia gira levemente como uma bússola a favor do vento. O movimento lhe retira de suas
recordações pessoais, da lembrança de suas predileções musicais, literárias,
cinematográficas.
O movimento o recoloca novamente no tempo, como o badalar de um relógio. No tempo, a
ópera reflui no ar como uma torção nos músculos, um tornassol desbotando seu corante azul,
correndo para trás como um líquido colorido. No tempo, a boia gira, ainda que levemente,
sobre a plataforma calma da água.
“Jaime, o que vai querer almoçar hoje?”.
Eli, ele pensa. Ali está ela, parada em frente à porta. O que vou querer comer hoje, ele se
pergunta. Não sei. Talvez ela. Talvez queira comê-la. Comê-la ali. Ela Eli. Ela ali, Eli. Sim,
isso dá música. Dá ópera.
“O que você quiser querida”. Ele responde.
A maçã no escuro, o livro. É um exemplar autografado pela autora o que traz aberto nas
mãos. Ele lembra. Recorda tê-la ido visitar no hospital. 14 de setembro de 1966. Clarice
havia cochilado com um cigarro entre os lábios. O cigarro cai na cama. O cigarro ainda pela
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metade. O cigarro queima aceso entre os lençóis. A cama pega fogo. O fogo se alastra entre
os nós de linho da colcha. Clarice se queima. Curta ou média metragem?
A partir desse dia, Lispector usaria luvas para o resto da vida. A maçã no escuro. A cama
incendiada. As mãos e o corpo com queimaduras de segundo e terceiro grau.
A escritora ucraniana agradece a visita inesperada do leitor lhe dando de presente um
exemplar autografado do livro, esse que ele traz agora aberto nas mãos.
O céu pendendo acima do escritor fabrica seus estios. Da piscina, não é possível para
Rodrigues vislumbrar a beleza da serra fluminense. Mas ele a imagina. O que para o autor de
“Phutatorius” dá na mesma. O céu com seus estios, o dia adiantado quase pronto para entrar
na tarde. Um belo dia para morrer, ele pensa novamente.
Em que lugar da cidade de São Paulo eu teria uma vista como essas, ele se pergunta. Que
cidade horrível, detestável, barulhenta, ele diz. Sim, eu já estive lá. Na verdade, residi lá
durante um ano, e por força do trabalho.
1977-1978. Ele recorda. Um apartamento no bairro dos Jardins, zona sul, Rua José Maria
Lisboa. Eli sentada no sofá traga com gosto seu cigarro enquanto escuta o marido resmungar:
não vou conseguir viver aqui, não aguento mais essa cidade. É barulhenta demais. E como se
não bastasse todo o ruído do trânsito, há esse vizinho que me enlouquece com o ruído de sua
máquina de escrever. Deve ser escritor, o filho da mãe.
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Tectectec-tectec-tec.
1978. Sentado de frente a uma janela com vista para uma parede de concreto cinza, Jaime
Rodrigues resolve também aporrinhar seu vizinho escritor. Assim começa a redação de
“Phutatorius”. De uma briga entre vizinhos. Do mal-estar que sentia o escritor em relação à
metrópole paulista.
“Merda negra. Essa poluição desgraçada é uma merda negra”. Disse várias vezes à esposa.
Eli. Eli é o nome dela.
Eli. Huston. Coppola. Fellini. Polanski. Lolita & Gaia Maria de Moura Brizola. Phutatorius.
Noel Rosa. Charlie Parker. Coltrane. Miles Davis. Clarice Lispector. Ezra Pound. James
Joyce. Nabokov. Lewis Carrol. São Paulo.
A thing of beauty is a joy for ever...
Disse o poeta, fechando o livro “A maçã no escuro” com feminino cuidado e solene desdém.
68
Praga, vinte e quatro de dezembro de 1912.
A pequena reunião que começara à tarde entrava agora pela noite, de tão divertida que
estava. Também, não era para menos: Kafka estava entre os presentes à casa de Max Brod
àquele divertido colóquio literário. Os amigos sempre o acharam uma ótima companhia.
Divertido, bem-humorado, inteligente, espirituoso, um homem agradável para todos, enfim,
menos para sua ex-noiva, Felice Bauer.
“Sinto muito pelo que aconteceu meu amigo”. Disse Brod dirigindo-se ao querido amigo
Franz Kafka.
“A que você se refere Max?”. Kafka perguntou. A roupa impecável de funcionário modelo.
Debaixo do braço, uma pasta de couro com seus originais mais recentes.
“O rompimento do noivado Kafka. É a isso que me refiro”.
“Não precisa se incomodar com isso. Estou bem”. Respondeu Kafka. Nas mãos, seus objetos
inseparáveis: capa, guarda-chuva e chapéu.
“Deixe-me guardá-los”. Solicitou Brod, e continuou: “É que vocês dois se conheceram aqui
em minha casa, não é Franz, de modo que...”.
“Mas isso não tem importância”. Kafka adiantou-se em dizer.
“Tudo bem. Mudemos de assunto então: e a novela?”.
“Está aqui, a primeira parte pelo menos. É o que vou ler hoje”.
“Ótimo”.
A temperatura da noite recém-chegada estava amena. Nenhuma ameaça de chuva desde o
início do dia. Um céu limpo e claro. Céu de mármore.
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“Você não se separa desse guarda-chuva por nada desse mundo não é Kafka?”. Perguntou
Kurt Wolff. “Não percebeu que não choverá hoje?”.
“Um erro terrível foi cometido”. Disse Kafka em resposta ao deboche. “E esse erro será
nossa ruína”. Gargalhadas ecoaram soltas pela sala. Metálicas.
“Por isso que sempre levo meu guarda-chuva para aonde quer que vá”. Acrescentou Kafka, e
mais gargalhadas ecoaram.
Como se disse aqui: uma ótima companhia. Para os amigos, pelo menos.
Lá fora, a belíssima noite da cidade de Praga. A noite um lençol negro cravado de estrelas,
com uma lua servindo de pingente sanguíneo. O vento sussurrando notas musicais entre os
telhados de barro das casas.
“O que vai ler hoje Kafka?”. Perguntou o poeta Franz Werfel.
“A primeira parte de uma novela grotesca que acabei de escrever”.
“Ótimo”. Disse Steglitz, extasiado. E completou: “Adoro coisas grotescas”.
Uma bandeja repleta de taças com licor bailava entre as mãos dos convidados. Robert
Walser, que já havia tomado seis delas, jazia desacordado em um sofá próximo à janela. Os
pés do escritor, virados para cima, vez ou outra se moviam, como se patinassem, ou Walser
patinasse dentro de um sonho.
“Começamos então?”. Disse o anfitrião Max Brod.
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Kafka acomodou-se no sofá ao centro da sala. Velas acesas iluminavam o ambiente. Todos
os presentes fizeram o possível para ficar próximos a ele. Suas mãos quase invisíveis,
mirradas, retiraram da pasta de couro com zíper de ferro dentado um maço de páginas
escritas.
“Incompreensível”. Resmungou o poeta Franz Werfel, ao avistar os garranchos caligráficos
de Kafka.
“Muito bem senhores, devo começar então”. Disse Franz Kafka aos presentes, não sem antes
pigarrear um pouco, talvez a sua maneira de parecer solene.
“Isso aí de pigarro é charme”. Disse para si mesmo o escritor René Schickele.
Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua
cama metamorfoseado num inseto monstruoso...
Leu essa parte e parou. Era como se estivesse tomando fôlego, ou segurando algo. Um breve
silêncio abriu-se no meio de todos, como uma toalha úmida. O que terá acontecido? Está
passando mal, alguém poderia ter dito. Os olhos de Kafka marejaram água. Suas bochechas
coraram. As veias da garganta pulsando. Vai morrer, pensou Max Brod. As sobrancelhas
grossas de Kafka enrugaram até quase lhe tocarem o nariz adunco no instante em que
respirou fundo e continuou:
Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu
seu ventre abaulado, ma...
71
E parou novamente, só que dessa vez não conseguiu segurar-se: terminou irrompendo do seu
silêncio em uma estranhíssima e aguda gargalhada. Demorou meia fração de segundo até que
todos os presentes percebessem que ele estava rindo. Então todos riram com ele também, na
sequência.
“Sua risada parece a asma de um gato siamês Kafka”. Gritou Oskam Baum, amigo de longa
data do escritor tcheco. “Ainda não me acostumei com ela”. Completou.
E as gargalhadas continuariam a ecoar até o fim da leitura da primeira parte da novela “A
Metamorfose”.
Luzes de velas bruxuleando resvalavam na parede branca da sala, produzindo sombras de
curto fôlego: um enforcado, um pássaro, um pinico, três cavalos mancos, um carneiro com
cara de gato. Walser desperta assustado com o barulho das gargalhadas. Ele esfrega o sono
dos olhos enquanto pergunta (está com um estranhíssimo par de patins): do que vocês estão
rindo?
De nada Walser, de nada, responde um estranho coro. “Pegou o trem no caminho e quer
sentar na janela?”. Pergunta um Kafka jocoso. Mais gargalhadas. Engasgos.
“Quando ouviremos o final da novela, Franz”. Pergunta Brod ao amigo.
“Não sei. Talvez em março do ano que vem eu decida pelo final dela. Ainda não estou
contente com ele. O final me pareceu ilegível”.
“Ilegível?”.
72
“Sim. Para a época, pelo menos”.
“E O Ajudante, Walser?”. Pergunta Oskam Baum, referindo-se ao terceiro romance do
escritor suíço que acabava de acordar.
“É tedioso de ler. A crítica disse bem sobre isso”. Responde Walser.
“Pois eu não acho. Aliás, adoro esse seu livro”. Kafka diz.
“Que bom que gostou Franz, fico feliz, embora compartilhe da opinião da crítica”. Sussurra
Walser.
“Pouco importa”. Resmunga Kafka. “Aliás, gostei tanto desse seu romance que comecei a
escrever outro há dias e a cada linha dele percebo uma influência sua. Especificamente uma
influência desse seu terceiro romance”.
“É? E como se chama esse seu novo trabalho?”. Perguntou Walser, puxando o vinco da calça
para coçar a canela.
“O título é provisório. Chama-se O Desaparecido”.
“Belíssimo nome”. Concluiu Walser.
“Também gostei”. Disse Max Brod. “Em que pé está o romance?”.
“Já escrevi seis capítulos”. Responde Kafka.
O friso dedilhado de estrelas do céu da noite de Praga. A lua um pêndulo gotejando sangue
nos telhados. O telhado das casas servindo como teclas de piano ao vento. As luzes das velas
acesas ainda produzindo imagens nas sombras: um diamante enterrado, um vestido
arquejando fogo, uma serpente com quadris largos, um pássaro debruçado sobre ossos.
A reunião alegre ainda continuaria por bastante tempo, entrando pela madrugada. Max Brod
se encarregaria de manter as taças sempre cheias. E a bandeja sempre circulando. Walser, de
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patins, se encarregaria de beber sozinho pelo menos metade das taças servidas pelo anfitrião.
Kurt Wolff acenderia um charuto que manteria fixo entre os dedos durante o resto da noite. O
poeta Franz Werfel leria ainda um de seus mais novos poemas. O escritor René Schickele se
arvoraria também em ler algumas páginas suas. E assim tantos outros ainda: Oskam Baum
cofiando seu bigode, Walser novamente, verificando o quanto as solas do seu (agora parece
um) sapato estavam gastas. E Kafka no centro das atenções. Um homem comum, divertido,
bem-humorado, inteligente, espirituoso, uma companhia agradável para todos, enfim.
74
São Paulo, dez de abril de 1998.
Morreu hoje o grande escritor uberabense Walter Campos de Carvalho. Coincidência ou não,
tive o privilégio de conversar com ele agora há pouco tempo, enquanto seu corpo estava
sendo enterrado.
Em vida, gostava de passear e de tomar sorvete. Agora, morto, e mesmo depois de escrito
quatro livros geniais, chegou ao fim da linha com apenas quatro pessoas comparecendo ao
seu enterro. Quatro pessoas apenas. Uma para cada livro.
Tiveram dificuldades em carregar seu caixão. Chamaram reforços. Dois coveiros magrinhos,
que suaram para conduzir seu corpo de volta à escuridão eterna. Um deles era alcoólatra,
segundo registro histórico e policial.
J.R. Terron acaba de chegar da casa de Campos de Carvalho, onde, a pedido do autor, foi
buscar os originais do romance em que trabalhava pouco antes de morrer. Servindo de
assento à bunda da imaginação. Um belo título, sem dúvida, ele diz para si, notando o
silêncio que se fez no seu retorno. Nenhuma furadeira funcionando. Nenhuma reforma sendo
feita em nenhum apartamento. Nada.
Imerso em seus pensamentos, ele observa o calhamaço inédito disposto sobre sua mesa. J.R.
Terron acabou de folheá-lo, lendo suas primeiras páginas para verificar do que trata a obra
interrompida. Um romance digno de um autor como Walter Campos de Carvalho, ele pensa.
Sim, Servindo de assento à bunda da imaginação é um romance originalíssimo, embebido na
75
fonte da melhor literatura de imaginação. Uma tentativa de reescrever o “Dom Quixote” de
Cervantes.
Caso fosse terminado, Servindo de assento à bunda da imaginação seria uma espécie de
renovador das formas clássicas, um livro sem precedentes na literatura brasileira, conclui um
J.R. Terron sorumbático. Misterioso até.
E a ideia é fantástica: reescrever o “Dom Quixote”. E não sob a ótica da personagem
homônima ao clássico de Cervantes, mas de outra. Não, também não sob a ótica de Sancho
Pança. A idéia de Campos de Carvalho era a de escrever um “Quixote” partindo do ponto de
vista de Rocinante. Sim, Rocinante, o fiel e incansável pangaré que, segundo a sugestão do
título, serviu durante todos esses séculos, de assento à bunda da imaginação quixotesca.
Olha só quanta responsabilidade, suspirou J.R. Terron, lembrando que Campos de Carvalho o
incumbiu da tarefa de concluir o romance que deixou inacabado. Isso é o que mais o
preocupa no momento, o que mais faz suar sua careca lustrosa, úmida, oval, lisa e espelhada,
como o dorso de uma água-viva.
O fato de ter falado há poucas horas com um homem morto é coisa que já nem lhe aflige
mais. Ele não se espanta mais com isso. Seus fantasmas... Até que já se acostumou com eles.
Passou a enxergá-los depois do acidente que o conduziu ao coma.
Recorda com satisfação do primeiro que viu. Lembra-se de estar, aos oito anos de idade,
sentado no pufe azul que ficava bem no centro do seu quarto quando o escritor russo Mikhail
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Bulgakov lhe apareceu, vestido de Carmen Miranda e vendendo acarajés, posto à frente dele
um tabuleiro de baiana forrado por uma toalha de crepom prata. Quer um? Bulgakov lhe
pergunta. Lembra-se de ter se assustado, chamando sua mãe pelo nome. O que houve
menino? Ela diz. Bulgakov mãe, está aqui. Quem menino? Esqueceu-se de tomar seu
Gardenal hoje não foi? Não mãe, é ele. Mas a mãe nada via, e o pequeno J.R. Terron se
desesperava, desatando a chorar.
Não há nada lá meu filho, dizia sua mãe, compadecida pelo choro do filho. Não há nada lá,
ela repetia, até que se acalmasse.
A Bulgakov seguiram-se outros: William Seward Burroughs trajando roupas de astronauta.
Kafka portando um guarda-chuva. Certa vez, Raymond Roussel vestindo uma cinta-liga rosa
logo pela manhã. No natal, o poeta Augusto dos Anjos lhe apareceu fantasiado de Papai
Pernalonga. Na semana santa, foi a vez do escritor norte-americano Richard Brautigan ir ter
com ele, trajando uma ridícula camisa quadriculada de lenhador. Mais algumas visitas
inoportunas como essas e J.R. Terron não se espantava mais com nada. Nem mesmo com a
presença do poeta Fernando Pessoa, sentado nesse exato instante sobre uma das inúmeras
pilhas de livros espalhadas pela sala, observando J.R. Terron tartamudear sozinho. Ou nem
tão sozinho assim.
Bom, meu primeiro passo será cortar todos os excessos verbais do livro, começando por
todos estes advérbios de tempo. O que me diz, ele pergunta a Fernando Pessoa, que, fumando
de um narguilé, assente com um movimento de cabeça. Depois, retirar todas as exclamações
do romance, certo? Em seguida, ajeitar as vírgulas e...
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Durante o resto do dia, J.R. Terron manteve-se ocupado trabalhando nos originais do escritor
Campos de Carvalho. Lá fora, nas ruas do centro da cidade, as pessoas voltaram a ir e vir a
todo o momento, como se sopradas. Um movimento súbito de sangue e sopro, sem que elas
conseguissem imaginar o grande livro que estava sendo urdido bem debaixo de seus narizes.
Ou acima deles, tanto faz.
O que tenho em mãos é um trabalho tão ambicioso, tão genial, pensava J.R. Terron, que vou
me dedicar exclusivamente a ele. Vou melhorá-lo, reescrevê-lo, e depois, publicá-lo, para
colher posteriormente todos os seus louros, concluiu.
Dentro desse pensamento, J.R. Terron decide largar mão do romance que andava escrevendo,
e dirigir todos os seus esforços para fazer o que lhe havia pedido o fantasma do escritor
uberabense morto: conclua o livro para mim, ele disse, sentado no banco da praça. Concluí-
lo? Sim. Porque não?
Quatro pessoas apenas compareceram ao seu enterro... Um escritor tão genial quanto
negligenciado. O Diabo o carregou, enfim, agora Campos de Carvalho deve estar no Inferno
tomando sorvete de morango, sabor que mais gostava, disse para si J. R. Terron. De certo
modo, terminar seu romance inacabado será uma forma de homenageá-lo, não estou certo?
Campos de Carvalho... Um caso quase isolado na literatura brasileira. Ao lado dele, talvez
apenas Zé Agripino de Paula e Jaime Rodrigues para lhe fazer companhia. Três geniais
autores brasileiros que, logo após terem lançado suas principais obras, caíram no
esquecimento do público, da mídia, e da crítica em geral. Três monstros memoráveis, três
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monumentos à literatura de imaginação. Três grandes artistas, criadores de obras literárias
basilares e estranhas, obscuras, essenciais. Um deles agora morto. O outro, Zé Agripino,
louco e afastado do mundo para sempre, desde que diagnosticada em 1980, sua
esquizofrenia. O último deles, Jaime Rodrigues, desaparecido desde o lançamento do
Phutatorius... Bom, desaparecido para a maioria, pois para mim ele é o meu vizinho, aquele
que mora no apartamento 602.
Tectectec-tectec-tec.
E que pelo visto, se encontra em plena atividade de seus ofícios, conclui J.R. Terron, ao ouvir
novamente os ruídos de uma máquina de escrever trabalhando próxima dali.
Livros. Pilhas de livros formando um imenso L pela sala. Dezenas deles, centenas, milhares
talvez. E agora mais esse. Esse sobre o qual J.R. Terron vara a noite debruçado, podando
vírgulas e exclamações na tentativa de concluí-lo. Um livro cuja existência ninguém sabe.
Ninguém além dele, o crânio calvo minado de suor, os olhos obsessivos. Ele, o escritor
desconhecido, agora com mais esse segredo, o qual não será compartilhado com ninguém.
Com ninguém, ele repete para si...
Com ninguém além de você Fernando, ele diz, dirigindo-se à Pessoa, que assente com um
movimento da cabeça – silencioso como uma lagartixa de pele de mescal.
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Recife, vinte e oito de setembro de 1998.
O relógio desenhado na parede ainda marca as horas do tempo, embora o mesmo tempo
marcado por ele o esteja apagando aos poucos. Apagando seus contornos, suas fibras tensas e
azuis, seus ponteiros. Ainda é possível vê-lo, enxergar suas linhas perfeitas, ao menos
imaginá-lo ainda ali. O ruído dactílico de suas engrenagens, como a música de um verso
longo estreitando-se.
É possível ainda ouvi-lo funcionar, pelo menos para mim, que o desenhou.
As varizes de cal da parede dando nós entrelaçam-se aos seus fios tensos, apagando-o do
próprio tempo que ele conta.
O quarto está vazio. Hoje pela manhã levaram meu avô ao hospital. O mouro. O quase negro
e terrível homenzarrão que cuspia sangue. O mesmo que mandou desenhar esse relógio agora
quase morto. O enfisema complicou-se. Ouvi minha mãe sussurrar ao telefone algo sobre
alvéolos rompidos. Imperfeição da atividade cardíaca. Respiração penosa. Distensão. Perda
progressiva da elasticidade. Palavras sonoras e belas as quais escrevo aqui como se através
de sua música pudesse entendê-las melhor.
O quarto vazio. A cama desarrumada onde me sento para respirar o cheiro dele. O cheiro dele
deitado aqui, como quem respira rosas.
Leia o Augusto para mim.
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Posso escutá-lo pedir isso, o “Eu” aberto sobre minhas coxas. Um exemplar autografado pelo
poeta, oferecido ao meu bisavô, em dedicatória:
Para Eugênio Pereira de Melo, com afeto e cumprimentos do seu,
Augusto dos Anjos.
O quarto vazio, inviolável. Todos os objetos que o compõe estão consagrados à morte. O
lençol da cama caminha para trás como uma asma, um rastilho de pólvora salpicada sobre um
palíndromo. Os travesseiros rasos, a colcha amarelada, a bacia de alumínio minada de
sangue. E o relógio, rangendo os dentes um ruído cada vez menos nítido.
Sentado na cama, acho que o estou esperando retornar. Aplainando meu silêncio à mudez de
toda a mobília. A penteadeira, o espelho, o guarda-roupa com sua translação interna de
camisas de seda. Seda e sangue. Linhos rompidos como rins. Cabides onde se penduram
ossaturas costuradas. Uma gaveta para a garganta das gravatas. Outra, apenas para as meias
brancas.
A violência desse quarto me envenena. Uma semidéia para sua elegância ferida. Semidéia...
Não disse bem? Alguém lendo esse diário verá que sei escrever.
Enquanto espero, passeio meus dedos pelas páginas do “Eu”. Uma raríssima e bela edição. A
primeira edição, lançada em 1912, com tiragem de mil exemplares. Pensar que esse exemplar
passou pelas mãos magras do poeta... A idéia chega a me assustar um pouco. Eu abro o livro.
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Cheiro suas páginas, lambo sua tipografia com os olhos. Poeta da morte e da melancolia...
Um homem excessivamente nervoso, neurastênico, mórbido. Leitor de Shakespeare, de
Edgar Alan Poe. Dizem que quando estava escrevendo, chorava. Mas chorava mesmo.
Copiosamente.
Cuidado com o homem morcego.
O quarto vazio. Eu indo em direção à casa do Agra. Eu filho do carbono e do amoníaco. Eu
como um fantasma que se refugia. Eu. Eu.
Augusto dos Anjos morreu aos vinte e nove anos. O magro esquálido, de rosto reentrante, as
olheiras como covas, a boca uma catadura repleta de miasmas. Os cabelos negros e lisos. A
vértebra movendo-se. A negra insônia. A respiração líquida. Os pulmões destinados a
morrerem cedo.
As noites insones? Varava-as em penitência entre os livros. Devorou Darwin. Haeckel.
Spencer. Schopenhauer: a vida é um contínuo apodrecer.
É a morte – esta carnívora assanhada –
Minha mãe acaba de voltar do hospital. Sussurra algo ao telefone sobre transfusão de sangue.
Doador compatível. Hemorragia interna. Espera.
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Porque não recolhem todo esse sangue da bacia e o colocam novamente nele? Ele é
compatível consigo mesmo não é?
O quarto vazio. Tudo aquilo que vivo nele será sentido? Terá a hora certa de colher em cada
mão sua migalha de vida? Se tudo aquilo que vive, respira, porque esse silêncio alojado no
nojo do quarto?
No meu nojo.
Minhas mãos tensas tecem a febre que sinto. Quando criança, as palavras me espantavam.
Um susto colhido da imagem. Eu dizia: febre – e repetia em mim até surgir a febre, mas ela
não vinha nunca. Nem quando a noite avizinhava, nem quando o dia nascia.
Cadeira, relógio, vértebra... Nojo. Nenhuma delas me dizia respeito, formava imagens em
mim. Eu lapidava a pedra sem saber de suas formas, criança ensandecida no deserto dos
vernáculos.
Meus lábios diziam todo o dicionário, meus dedos todos tentando tocá-lo. Mas nada era
tocado por mim, então dormia, no linho dos lençóis que não sabia dizê-los. Sem saber, eu
também era poeta. E desenhava epígrafes.
Agora eu sei. E morro órfão da gramática do mesmo jeito.
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Quando criança, meu avô me tomava no colo e me embalava nos versos de Augusto dos
Anjos:
Rugia nos meus centros cerebrais, a multidão dos séculos futuros...
Então eu adormecia.
O relógio desenhado na parede ainda marca as horas do tempo. Apagando seus contornos,
suas fibras tensas e azuis, seus ponteiros.
O lápis rangendo sobre a página em branco. Um silêncio com palavras apenas escritas. Nada
dito. Digerido. Um silêncio sem as palavras ásperas de sangue do meu avô. Talvez ele não
volte mais aqui, para o seu quarto. Posso vê-lo no hospital, com tubos plásticos enfiados nas
narinas, na boca, quem sabe até nos olhos, em cada orifício do corpo. Talvez.
Imagino que deva estar chateado com os relógios que lá devem ter. Sentindo falta da música
dos versos de Augusto dos Anjos. Mas não. Não irei lá visitá-lo. Prefiro esperar por ele aqui.
Não quero ver meu avô desse jeito. Entubado. Prefiro seu sangue, seu praguejo, seus olhos
acesos. A incessante e dolorosa sonata dos seus pulmões enfermos.
No tempo de meu pai, sob estes galhos, como uma vela fúnebre de cera...
Augusto dos Anjos, poeta da morte e da melancolia. Esperamos aqui pelo retorno de meu
avô. Eu e ele. O “Eu” aberto sobre minhas coxas, meus dedos passeando pelas mesmas
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páginas que há oitenta e seis anos, passearam os dedos magros do poeta. 1912. Em uma
edição custeada pelo irmão Odilon, é finalmente publicada a compilação mórbida desses
versos tristes, fúnebres, melancólicos, essenciais. É noite, e o poeta estende os braços
sombrios em direção do irmão. Obrigado Odilon, ele diz. E repete: obrigado meu irmão.
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Rio de Janeiro, sete de julho de 1916.
Nasce o escritor Antônio da Fraga Fernandes, autor da novela “Desabrigo”, publicada pela
editora Macunaíma, em 1945.
Quatorze anos depois do nascimento de Fraga, na cidade de Jaú, no estado de São Paulo,
nasce a escritora Hilda Hilst. Era o dia vinte e um de abril.
Estes dois nascimentos, embora importantes para as letras nacionais, não possuem nenhuma
relação com nada do que foi escrito até agora, nessas páginas. Até agora, pelo menos...
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Rio de Janeiro, seis de junho de 1912.
É noite, e Augusto dos Anjos estende os braços sombrios em direção do irmão. “Obrigado
Odilon” Ele diz.
E repete: “Obrigado meu irmão”.
Um pequeno grupo cerca o poeta. Pessoas conversando. Pessoas elegantes e alegres, quase
como se fossem europeias. Pessoas admirando a capa do “Eu”. Copos fechados entre os
dedos, charutos acesos. Bigodes. O título do volume ocupa quase toda a página da capa:
“EU”. Os caracteres são vermelhos. Vermelhos como sangue.
“Pretensioso”. Murmura Oscar Lopes, cronista do jornal O País, referindo-se ao título do
livro.
“Extraordinário”. Diz Apolônio de Almeida Prado Hilst, um homem alto e forte, corpulento,
de olhares aziagos, poeta e cafeicultor paulista que estava a negócios na capital da República.
Ele soube do lançamento pela revista Fon Fon, decidindo na última hora aparecer para
garantir seu exemplar.
“Um grande talento transviado pelo cientificismo”. Brada Osório Duque Estrada, balançando
nas mãos o jornal Correio da Manhã, onde escreveu artigo favorável ao livro de estreia do
desconhecido poeta.
Sim, apesar da ampla cobertura da imprensa carioca, Augusto dos Anjos está tenso. Ele sabe
que talvez não consiga pagar de imediato a quantia que deve ao seu irmão. Quinhentos e
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cinquenta mil réis, ele diz. Para levantar essa soma ainda hoje a noite, terei que vender no
mínimo quinhentos exemplares do “Eu”, ele pensa, angustiando-se ao perceber que até o
momento, vendeu apenas dez. Faltam somente quatrocentos e noventa, ele diz para si, em
tom de escárnio.
Mário Pederneiras entra atabalhoado na Livraria Garnier, onde está acontecendo o estranho
lançamento. Ele balança nas mãos um exemplar da revista Fon Fon:
“Leu o artigo Augusto?”.
“Li Mário, e te agradeço por ele”. Responde o poeta.
“Saiu até o teu retrato. Você viu?”.
Sim, Augusto dos Anjos havia visto. Na foto, o rosto magro e pálido do poeta ressaltava-lhe
o aspecto soturno, cadavérico. Os olhos tristes, afundados, infundindo-lhe lugubridade.
“Vi”. Respondeu secamente.
A noite abria-se aos poucos com sua braçada lenta. Escorria de ponta a ponta do céu como
uma água áspera, estendida. Moviam-se dentro dela estrelas e satélites, silenciosos morcegos
de omoplatas abertas flanavam como balões negros com frutas presas às mandíbulas.
Aos poucos, a livraria foi se enchendo de gente. Uma pequena fila formou-se na frente do
poeta. Cada uma das pessoas da fila trazia um exemplar a ser autografado.
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“Acho que vou conseguir vender quinhentos hoje”. Pensou Augusto dos Anjos, um pouco
mais otimista agora, diante do movimento contínuo de pessoas.
“Pretensioso, você não acha?”. Perguntou Oscar Lopes ao escritor Medeiros de Albuquerque.
“De péssimo gosto”. Respondeu Medeiros, acrescentando: “Deveríamos era levantar a
estátua de Eça de Queiroz aqui no Rio de Janeiro. E não permitir que determinados livros de
mau gosto pudessem ser lançados”.
“Mas o irmão dele foi quem o financiou. Senão, o livro nunca teria saído”. Resmunga Oscar
Lopes.
“Pinto do Couto já a terminou?”. Pergunta o poeta Aníbal Teófilo, referindo-se ao escultor
incumbido da gratificante tarefa de criar a estátua de Eça de Queiroz de perfil, em levíssimo
estado de ereção.
“Está feita”. Responde Medeiros.
Eugênio estende o livro na direção do seu criador: “Dedique para mim poeta”. Ele pede.
“Que bom que você veio meu amigo”. Diz Augusto dos Anjos. “E o filho, como está?”. Ele
pergunta. “Está bem, saudável”. Eugênio responde. “Fico feliz”. Diz Augusto dos Anjos,
enquanto autografa o livro, as mãos magras.
Para Eugênio Pereira de Melo, com afeto e cumprimentos do seu,
Augusto dos Anjos.
Em seguida de Eugênio, vem à mesa onde está sentado o poeta um homem de aspecto
simples, humilde, nada europeu. Ele destaca-se dos demais por não estar tão bem vestido
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como todos. Augusto dos Anjos o observa por alguns instantes: o paletó puído, a gravata
desfiada, a calça desbotando de velha.
“A quem devo dedicar?”. Ele pergunta.
“Justino Fernandes, senhor”. Ele responde. “Por que este é o meu nome”. Completa o
humilde homem.
“Obrigado por ter vindo Justino”. Diz o poeta.
“De nada senhor. Eu que agradeço”. Responde Justino, completando: “Sabe, o seu livro pode
não cair no gosto dos críticos oficiais, o senhor sabe, eles são muito requintados, muito
europeus. Acham que o Rio de Janeiro é Paris. Mas com certeza cairá no gosto popular”.
“Fico feliz em sabê-lo Justino”. Responde o poeta, entregando em seguida o exemplar
autografado ao homem.
Doze anos mais tarde, esse mesmo exemplar autografado despertaria em Antônio Fraga, o
jovem filho de Justino, o interesse pela literatura. Doze anos mais tarde também se cumpriria
o vaticínio de Fernandes: os versos de Augusto dos Anjos estariam imortalizados na boca do
povo. Alguns até virariam ditados populares.
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
A noite aberta por completo, como os braços do Cristo Redentor. Estrelas e satélites
afogando seus reflexos no espelho do mar. Morcegos varando a plataforma do ar como
pequenas línguas rompendo placentas. Lâmpadas a querosene queimando nos postes que
ladeiam as ruas.
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Um pouco afastado de todos, Apolônio de Almeida Prado Hilst folheia seu exemplar do
“Eu”. Ele ainda não entrou na fila para garantir o autógrafo do autor. Talvez nem chegue a
entrar, tão entretido que está na leitura daqueles versos estranhos. Tão estranhos que chegam
a fazer bem a sua alma esquizofrênica. Doente.
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho. Meu Deus! E este morcego...
Se entrasse na fila, poderia, quem sabe, até conhecer o estranho homem que inspirou
Augusto dos Anjos a escrever o poema que acabara de ler. O homem morcego? Sim, esse
mesmo que agora estende a mão magra em cumprimento ao poeta.
“Karl. Você por aqui? Pensei que nunca mais o veria”. Diz o poeta, em tom de susto e
admiração.
“Ainda estou escrevendo meu livro”. Responde Rossmann, asperamente.
“Mas vai ter que levar um exemplar do meu então”. Diz Augusto dos Anjos e, pegando um
exemplar nas mãos, autografa-o rapidamente e o entrega ao inusitado visitante.
“Obrigado”. Rossmann responde, coçando com a mão direita a parte de trás de sua orelha
esquerda.
“De nada”. Responde o poeta, acrescentando: “Há um poema aí que escrevi para você.
Chama-se O morcego”.
“Ainda estou escrevendo meu livro”. Rossmann limita-se a dizer. Depois, tomando o livro
nas mãos, vai se afastando aos poucos, quase sem emitir ruído algum. Uma sombra andando
para trás.
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A Karl Rossmann segue-se o poeta Hermes Fontes, que acabava de chegar: “Grande e
inconfundível poeta”. Ele diz, em saudação a Augusto.
Apolônio de Almeida Prado Hilst continua compenetrado em sua leitura. Tão entretido com a
leitura, que não vê aproximar-se dele o jornalista José Oiticica, cronista do jornal A Época.
“Então? Está gostando do livro, senhor...”.
“Apolônio de Almeida Prado Hilst”. Responde o poeta cafeicultor.
“Um ótimo livro não é?”. Pergunta Oiticica.
“Extraordinário. Original”. Resume-se a dizer Almeida Prado. Ele ainda não sabe, mas, dali a
dezoito anos, sua esposa, a imigrante portuguesa Bedecilda Vaz Cardoso, dará luz a uma
menina que se tornará também uma escritora extraordinária. Original. Hilda Hilst, como
ficará conhecida, herdará a beleza da mãe. Do pai, o talento para a poesia. Além de sua
loucura.
Carlos Eduardo, cronista do jornal A Imprensa, acena para Oiticica, que se despede de
Apolônio: “Até mais senhor. Foi um prazer conhecê-lo”. Logo, a Livraria Garnier vai ficando
ainda mais lotada. Odilon dos Anjos suspira de satisfação ao perceber que, provavelmente,
recuperará logo o dinheiro que investiu no irmão. Quinhentos e cinquenta mil réis, ele diz
para si, é uma quantia considerável. Apolônio de Almeida Prado Hilst continua lendo seu
exemplar. Tomado pela leitura, pela música estranha e sombria que costura aqueles versos,
nem se apercebe que começa agora a lê-los em voz alta.
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Era a hora em que arrastados pelos ventos, os fantasmas hamléticos dispersos...
Em voz cada vez mais alta:
NUMERAR SEPULTURAS E CARNEIROS, REDUZIR CARNES PODRES A
ALGARISMOS...
Tão alta, que todos direcionam os olhares em sua direção.
A DANÇA DOS ENCÉFALOS ACESOS COMEÇA...
E o que veem assustados é o gigante poeta cafeicultor lendo aqueles versos mórbidos,
sombrios, sendo acompanhado por um estranho e pequeno homem, que parece dançar...
Odradek, Odradek, Odradek...
Enquanto entoa um mantra demoníaco e esquisito.
“Estão loucos, você não acha?”. Pergunta Oscar Lopes ao escritor Medeiros de Albuquerque.
“Deveriam ser internados”. Respondeu Medeiros.
Petrópolis, vinte e oito de setembro de 1998.
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Deitado sobre uma boia gigantesca em forma de casco de tartaruga, Jaime Rodrigues recorda
que hoje é seu aniversário. Aniversário? Sim. Quantos anos? Cinquenta e sete. Nossa, como
estou velho – ele diz para si.
A lembrança da data o deixou com uma desconfortável sensação. A sensação de que, se
quisesse recordar todos os anos vividos até agora, até poderia fazê-lo, mas, seria como se em
sua memória rodasse um filme que não lhe diz respeito, embora o soubesse pelo avesso, e de
trás para frente. Então não. Preferiu não se dar a esse trabalho. O esforço mnemônico não
valeria a pena, e só lhe traria aborrecimentos.
Não sou um memorialista, ele pensou. Não sou um Proust. Nem mesmo um Pedro Nava. Que
se dane – ele completou.
E quanto a Eli, ele subitamente se perguntou. Sim, porque eu ter esquecido a data de meu
aniversário, para dela só me recordar agora, tudo bem, mas, e quanto a Eli? Trinta e dois anos
de casados? Sim, e até o momento nenhuma felicitação, nenhum beijo, nenhum abraço.
Estranho. Muito estranho.
Um belo dia para se morrer, apenas isso, concluiu melancólico o escritor.
A boia girava levemente em sentido horário. Rodrigues encostou ainda mais as espáduas no
casco de plástico macio da tartaruga. Para relaxar ainda mais. Um silêncio de fóssil o céu
acima dele. Nele, apenas um leve ruído de nuvens se movendo, vez ou outra. A ópera já
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havia terminado e era preciso trocar o disco. Mas não. O silêncio estava bom para o autor de
“Phutatorius”. O silêncio também uma espécie de música.
Foi então que ali deitado, os músculos entregues, os ossos bem dispostos, a respiração
branda, lhe veio à cabeça a imagem de Vladimir Nabokov caçando borboletas nos Alpes
suíços. Veja que belo fim de vida para um homem, ele pensa. Sim, é possível para ele
enxergar o escritor russo sem camisa, nas mãos uma rede azul, caçando borboletas entre as
flores abandonadas do campo. A grama úmida e fresca e vejam só: lá está Vladimir
Nabokov, agora metido entre a folhagem do jardim que cerca a piscina da casa de Rodrigues.
A estranha aparição é de tamanho bucolismo que Jaime não se surpreende com ela.
“Vlad você por aqui?”. Limita-se a dizer, limitando-se Nabokov a apenas acenar com a
cabeça em sua direção.
“Almoça conosco?”. Ele pergunta, sem, no entanto, obter nenhuma resposta do autor de
Lolita.
Lolita. Lolita é o nome de minha cachorra. Eli. Huston. Coppola. Fellini. Polanski. Gaia
Maria de Moura Brizola. Phutatorius. Noel Rosa. Charlie Parker. Coltrane. Miles Davis.
Clarice Lispector. Ezra Pound. James Joyce. Nabokov. Lewis Carrol. Rio de Janeiro.
E quanto a Laurence Sterne? Ah sim, como pude me esquecer dele, diz Rodrigues para si
mesmo e, virando a boia em sentido anti-horário, observa o próprio escritor irlandês em
pessoa, sentado sobre a borda da piscina, refrescando os pés dentro d’água.
“Sterne, você também por aqui?”. Ele diz.
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“Como vai Jaime?”.
“Você que disse isso, ou foi eu que pensei?”.
“Isso o quê Jaiminho?”.
“E quanto a Laurence Sterne?”.
“Ah sim, fui eu mesmo que disse. Estava chateado pelo fato de você até o momento não ter
me citado na sua lista de preferências”.
“Desculpe Laurence. É a minha memória sabe? Acordei estranho hoje”.
“Eu sei Jaime, estava só brincando”.
“Mas sei da minha dívida com você... Sem o The life and opinions of Tristram Shandy
gentleman o Phutatorius não teria sido escrito”.
“É assim que acontece Jaime. O Phutatorius, meu personagem... Cômico não, o capítulo da
castanha quente lhe entrando pela braguilha dos calções?”.
“Muito hilário Sterne. Esse seu romance é fantástico, mas, a propósito, o que você está
fazendo aqui?”.
“Nós viemos acompanhá-lo Jaime”.
“Nós? Ah, o lepidopterologista também”.
“Exatamente”.
“Mas me acompanhar... Para onde?”.
“Hoje é o seu dia, Jaime Rodrigues”.
“Um belo dia para se morrer”.
“Exatamente”.
“Bem que eu acordei estranho hoje”.
“Não doerá nada”.
“Eu sei... Mas como? Como vou embora?”.
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“Metástase Jaime. Seu câncer se espalhando...”.
“E James Joyce?”.
“Estará lá do outro lado, lhe esperando”.
“Yorick?”.
“Também”.
“Então não vejo porque não ir”.
Metástase: o vento levanta as folhas do chão. As folhas se espalham delicadas no ar como
sementes. Bailarinas verdes. Algumas pairam no ar como fossem ser fotografadas. Um
tumulto de dança, de sintaxe solta. Elas sobem e descem, costuram no ar seus rastros
respiratórios. Borboletas coloridas. Sorrisos. Metástase: pulmões desprendidos dos troncos
conduzem sangue e hálito através do sono da vida. E a última e derradeira memória que se
acende, é nítida e familiar ao escritor: Eli. Eli é o nome dela. Huston. Coppola. Fellini.
Polanski. Lolita & Gaia Maria de Moura Brizola. Phutatorius. Noel Rosa. Charlie Parker.
Coltrane. Miles Davis. Clarice Lispector. Ezra Pound. James Joyce. Nabokov. Lewis Carrol.
Rio de Janeiro. São Paulo. Laurence Sterne.
Petrópolis, vinte e oito de setembro de 1998.
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Morreu hoje em Petrópolis, onde vivia com a esposa, Eli Gomes Rodrigues Teixeira, o
escritor Jaime Rodrigues, autor do romance “Phutatorius”. Morreu exatamente no dia de seu
aniversário.
Segundo a astrologia, apenas os arrebatados por Deus encerram o ciclo de sua vida terrena
fechados na chave dessa estranha e fatídica coincidência.
Semanas após seu falecimento, uma das prateleiras de ferro de sua imensa biblioteca é
derrubada pelo vento.
Praga, vinte e oito de setembro de 1914.
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“Caríssimo Max, escrevo essa para lhe pôr a par da novidade: estou quase terminando o meu
romance O Desaparecido. Está ficando bom, dou boas risadas aqui comigo, e sozinho. O que
mais prezo nesse meu livro, assim como em tudo, você deve saber, é o senso de humor. É
engraçadíssimo. Escrevo-o sempre à noite, dando boas gargalhadas, e na companhia de velas
acesas. Durante o dia, trabalho como um autômato. É meu corpo apenas que trabalha, que se
move. Meu pensamento, no entanto, fica aqui, nas páginas. Estou tão imerso nesse meu novo
rabisco que todos os funcionários lá da Companhia de Seguro para Acidentes de Trabalho
da Boêmia me tomam por funcionário modelo. Eles acham que o que me absorve tanto é o
trabalho que desempenho lá. Ah, se eles soubessem”.
Franz Kafka assopra as mãos miudinhas na tentativa de aquecê-las. Uma noite
particularmente fria essa em que se encontra. As pequenas mãozinhas em concha: duas
patinhas de caranguejo. A cidade de Praga lá fora: gelada e densa e escura e silenciosa como
nunca. Janelas embaçam como retinas com conjuntivite. Uma geada leve dedilha o telhado
das casas como uma carícia proibida.
“Franz querido, me conte mais sobre o livro: quando você o lerá para nós? Estamos ansiosos.
A novela O Veredicto teve boa repercussão entre os leitores da revista Arkadia. Talvez esse
seja o caminho Kafka: sua publicação em revistas, e há tantas outras. O Musil, por exemplo,
acaba de fundar uma”.
No sonho, ele vê Felice Bauer sentada ao centro de uma sala. Sua beleza inconfundível é
ainda mais ressaltada pelo vestido que usa. Um de tecido azul, semelhante a um papel
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celofane incendiando. Kafka a observa de longe, como se fosse ele menor do que todos os
objetos que a rodeiam. Seus dedos pequenos percebem uma coleira presa à própria garganta.
Sim, sou um cachorro, ele pensa, a coleira afivelada a uma corrente presa ao pé de uma mesa.
Au, au, ele diz.
Au, au.
“A ideia para o livro me veio quando eu estava no cinema. Abriu um em Praga, você sabia?
E adoro ver filmes, adoro a sala escura, a modernidade. Ver um filme é como assistir a um
sonho. Um ritual: pagar o ingresso, entrar na fila, passar na roleta, acomodar-se na cadeira,
esperar as luzes serem extintas. Ah, e quando elas se apagam, uma deliciosa solidão se
assoma ao espectador. Você se esquece de você durante aqueles breves minutos em que a
película range no cinematógrafo. Que maravilhosa invenção. Acho que o cinema, em breve,
substituirá a literatura. Pelo menos a literatura como hoje a concebemos. A ideia do meu
livro partiu daí: do desaparecimento do homem na modernidade, na narrativa. Da sua
ineficiência em fazer parte do sonho. Ah meu amigo, fui tomado pelas imagens. Tanto que
decidi escrever sobre um lugar no qual nunca estive. É disso que trata o meu livro”.
Ele observa o movimento das pessoas em frente à bilheteria: dissonante, circular,
atabalhoado. Kafka imerge na vertigem dessa velocidade. Tomado por imagens, chega a ficar
tonto. Pessoas falando, engolindo vírgulas, estalando línguas. A velocidade do mundo agora
o fascina: vertiginosa e escura. E ele mergulha nesse fluxo, mas como observador, o coração
atado à boca. Serelepes, suas mãozinhas dançam nuas dentro dos bolsos em meio a moedas e
chaves. Excitado, excitado. O cinema é uma espécie de sonho compartilhado com todos.
100
Logo, ele entrará para assistir à sessão. Dormir, sonhar, desaparecer na escuridão junto com
os outros. Escorregar como um líquido desconhecido em direção aos pulmões. Os olhinhos
fixos na tela são duas jabuticabas pulsando, dois cuzinhos negros e tensos, intoxicados. Duas
guelras abertas para respirar o sono.
“Franz, meu amigo, que lugar é esse que você nunca esteve? Lembra a nossa viagem no
verão? Percorremos a Europa inteira. Como nos divertimos, recorda? Leipzig, Weimar. E os
relatos dessa viagem? Você olhando fascinado através das janelas do trem a paisagem
velocíssima. Poderíamos viajar novamente, se você quiser. É que fiquei curioso com o tema
desse seu novo livro. O Desaparecido não é? Um belo título”.
A geada dedilhando uma sonata nos telhados. O barro das ruas a cobrir as calçadas como um
tecido de limo. Janelas embaçadas lacrimejando gelo. A respiração fria da noite sugando o
calor das chaminés. Estrelas piscando protegidas atrás de um espelho de rugas. Uma floração
de lâminas no ar. Ao fundo, a sonata dedilhada.
Kafka enrola as mãos em um pedaço de pano para tentar continuar escrevendo. Os ossos lhe
doem, congelados. Ele assopra as mãozinhas azuis para tentar mantê-las aquecidas. Suas
extremidades estão congeladas, as orelhas enfiadas no cabelo.
O lápis range sobre a página como se fosse quebrar. Mas ele não quebra, e Kafka continua
sua vigília.
“Max meu curioso e caríssimo amigo, vou satisfazê-lo. O Desaparecido começa com o
jovem Karl Rossmann, meu protagonista, desembarcando em uma cidade do exterior onde
101
nunca esteve antes. Desembarca sem mala e sem guarda-chuva. Ele vem de Praga, fala
apenas alemão, e espera nessa nova e estranha cidade reconstruir sua vida, que foi bastante
abalada por um episódio anterior. É isso”.
A geada cede lugar à chuva, outra música dedilhando nos telhados. Música mais tensa, mais
acrílica. Nas ruas, guarda-chuvas são abertos como latas de conserva. Pedaços de gelo
somem no ar como pensamentos, desses bem vagos. Gotas sapateando nas calçadas formam
o novo tecido. Não de limo, mas de lama. Foguistas acendem as caldeiras.
“Franz querido, você sabe muito bem que aprecio seu senso de humor, e que folgo em saber
que andas bem-humorado, como pude notar pelo tom das cartas. Mas você não satisfez
minha curiosidade, e sei que propositalmente. Então volto a perguntar: que cidade do exterior
é essa que seu protagonista desembarca, na tentativa de fugir de seu passado?”.
No sonho, Felice ergue-se majestosa e bela. Caminha em sua direção como se acompanhada
por uma valsa. O vestido de celofane envolto em fogo azul. Ela sorri – os dentes perfeitos e
emparelhados. Vou alimentar meu cãozinho, ela diz. Kafka arfa ao estirar a língua úmida: au,
au. Ao chegar próximo dele, ela diz: lamba minhas botinhas, querido. Nessa hora, Kafka
pensa em Calígula.
“Caríssimo Max, sua curiosidade só não é maior que meu desejo em contar-lhe toda a estória
do livro. Bom, a cidade onde desembarca o jovem Karl Rossmann chama-se Recife. Já ouviu
falar dela? Brod meu amigo, dizem que é uma belíssima cidade. Chamam-na de Veneza dos
trópicos. Já pensou em algo assim? E antes que você me pergunte como fiquei sabendo de
102
sua existência, vou lhe adiantar o fato. Conhece o jornal Neue Rundschau? Bom, é um jornal
que leio habitualmente. Entre 1911 e 1912, um jornalista chamado Arthur Holitscher
publicou uma série de matérias sobre as viagens que fez através dos mais diversos lugares do
mundo, lugares nos quais vivenciou experiências as mais bizarras. Bem, em uma de suas
matérias, ele conta de sua ida a uma estranha cidade onde havia acontecido um fato grotesco:
o nascimento de um carneiro com rosto de gato. Imaginou isso? Pois então. Era uma matéria
muito bem escrita, bastante precisa nos pormenores geográficos da cidade. E imagina que
cidade era? Fantástico. Como já burilava a ideia de escrever um romance que tratasse do
desaparecimento do homem na modernidade, resolvi ambientá-lo nessa estranha cidade do
Recife, onde coisas assim fantásticas são capazes de acontecer, alinhadas ao
desenvolvimento, à vertigem, e ao frisson de uma cidade tão moderna como ela. Sim, porque,
segundo li na reportagem, Recife possui imensos arranha-céus e uma enorme estátua erguida
em sua baía, a qual seus moradores chamam de Estátua da Deusa da Liberdade. Não é
perfeito?”.
No sonho, Kafka lambe as botas de Felice com sofreguidão. A língua lisa e pequena, como as
costas de um sapo. Felice gargalha, escancarando seus dentes perfeitos, sua gengiva rubra e
saudável. Tudo bem: vou te alimentar agora, ela diz. Você merece, ela completa. Au, au,
responde Kafka. Quer passear seu danadinho? Então come tudo. Seja um bom menino, que te
levo para dar uma volta.
“Franz meu amigo, agradeço ter-me satisfeito a curiosidade. Achei a ideia do livro genial,
agora que já tenho uma visão mais ampla do que você pretende fazer. Só me esclareça uma
dúvida: salvo engano, a Estátua da Deusa da Liberdade a qual você se referiu na carta
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anterior, não fica na cidade de Nova Iorque? Será que estou enganado? Seria bom que você
verificasse se a informação da matéria que você leu procede, pois temo que um erro
geográfico como esse possa prejudicar, posteriormente, a sua integridade literária. Ah, e
antes que me esqueça: em que país fica essa estranha cidade?”.
“Caríssimo Max, agradeço seu zelo em se preocupar com minha posterior integridade
literária. Mas você bem sabe que isso não tem importância para mim, não sabe? A
posteridade não me interessa. Acredito que minha precária vocação para a escrita não me
levará tão longe assim. Preocupa-me apenas ser testemunha de agora. O futuro? Acho que
não chegarei lá, ainda mais com os pulmões que tenho. Dessa forma, possíveis erros
geográficos não me tiram o sono. Mas agradeço a você assim mesmo, pois sei que fala em
meu benefício, embora esse benefício nunca tenha me interessado muito”.
A chuva desce acrílica sobre as ruas de Praga. As gotas formam corais que se agregam nos
cantos, amontoando-se em pequenas ilhas de vidro. Bolhas emergem da respiração das
telhas. O foguista alimenta o fogo da caldeira na tentativa de evitar o frio. As chamas
queimam como água, lambendo o carvão. Mas não adianta. O frio permanece, como uma
promessa escura.
“A propósito, Max querido: se não me engano, Recife é a capital da Argentina. Agora, se me
perguntar onde fica a Argentina, já te adianto que não saberei responder a essa pergunta”.
No sonho, Felice Bauer leva o pequeno e indefeso Kafka para passear. Ela tem as botinhas
limpas.
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“Argentina Franz? Amigo: andei pesquisando sabia? E descobri que a Estátua da Deusa da
Liberdade fica em Nework (não sei se a grafia está certa), nos Estados Unidos da América. O
que me diz? O que você acha de mudar a cidade imaginária do seu romance?”.
São Paulo, vinte e oito de setembro de 1998.
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Morreu hoje o grande escritor carioca Jaime Rodrigues, autor do desconhecido romance
“Phutatorius”. Coincidência ou não só hoje descobri que minhas suspeitas em relação a ele
eram infundadas. Rodrigues não é o meu vizinho do apartamento 602. Através do obituário
do jornal que por coincidência li hoje, fiquei sabendo que há anos ele morava em Petrópolis,
com a esposa, Eli. Soube também que Rodrigues detestava a cidade de São Paulo, chegando
a morar aqui por um ano apenas, e por força do trabalho, entre 1977 e 1978. Fatalidade do
destino: só hoje descobri também que esse meu desconhecido vizinho anda mexendo nos
meus papéis quando saio de casa. Senti isso logo pela manhã. Uma sensação nítida de que as
coisas mudam de lugar quando eu não estou, como se alguém andasse me investigando.
Será que todas as chaves desse hotel possuem o mesmo segredo? Não sei. E como sei que o
intruso é esse meu vizinho do apartamento 602? E quem mais seria? Talvez ele esteja sem
ideias para escrever, tendo resolvido roubar as minhas, lendo as páginas nas quais reescrevo
o inédito Servindo de assento à bunda da imaginação do escritor uberabense Campos de
Carvalho. E como meu vizinho descobriu que sou um escritor? Do mesmo modo que o
descobri: ouvindo o barulho incessante de uma Olivetti 86.
Tectectec-tectec-tec.
De fora, J.R. Terron observa o movimento ainda pequeno de pessoas. Ele está atrás da vitrine
de vidro da livraria, coçando a careca lisa e oval enquanto pensa, os olhos graves e
fosfóricos. Está impaciente, esperando o instante certo de entrar sem ser notado. Há meses
ele vem fazendo isso, uma forma de driblar a falta de dinheiro, estando ele nesse momento,
mais uma vez desempregado.
106
É simples, ele diz para si, afinal de contas, há mais escritores que leitores nessa cidade
desgraçada. E é verdade. Lançamentos de livros acontecem todos os dias, e em quase todas
as livrarias da cidade. Por questões óbvias de logística, J.R. Terron escolheu frequentar
apenas os que acontecem na Livraria Curtume, a única que fica próxima a sua casa.
E ali está ele, ensaiando uma cara inteligente frente à vitrine, enquanto observa o movimento
das bandejas que só agora começaram a circular.
Parado ali, ele pensa em Campos de Carvalho, no seu silêncio literário de trinta e quatro
anos. Em Jaime Rodrigues também, dezenove anos sem jogar pérolas aos porcos. E assim
como eles tantos outros autores geniais: Agrippino de Paula, Antônio Fraga, Rosário Fusco.
Escritores que decidiram não mais publicar para não compactuar com a idiotia do seu tempo,
com o oba-oba do mercado editorial, com a circulação criminosa de livros como objetos de
uso, de livros como informação de luxo disfarçada por um péssimo verniz literário.
Vejamos o exemplo do lançamento de hoje, diz J.R. Terron. Morri – E agora? É o título do
livro. A Livraria Curtume convida todos para o lançamento de “Morri – E agora?” O mais
recente livro do escritor...
J.R. Terron lê mais de uma vez a chamada do cartaz. Parece não acreditar no despautério do
título do livro. Um livro cujo público alvo seja os leitores mortos deveria, no mínimo, ser
lançado no inferno, ele pensa. E não aqui em vida, completa o escritor desconhecido e
amargurado. Morri... E agora? E agora fodeu meu amigo, diz J.R. Terron para si. E agora
107
fodeu, ele repete, no exato instante em que decide entrar para curtir os quitutes que logo
serão servidos.
Enquanto ensaiava uma cara inteligente na vitrine, J.R. Terron aproveitou para estudar a rota
estabelecida pelos garçons, tratando de postar-se em um ponto onde poderia abordá-los tanto
na ida quanto na volta. E em primeiro lugar. A prática conduz à perfeição, ele pensou,
lembrando-se de tantos outros lançamentos em que compareceu no intuito de filar uma
refeição, tomar uns tragos. Sim, tantos outros lançamentos, de livros com títulos não menos
imbecis, concluiu para si.
Como continuar obedecendo a um idiota?
O Código da vice.
Reestruturando você.
O geômetra e o diâmetro.
Homens são de Marte, mulheres são de Morte.
Já em sua posição privilegiada, J.R. Terron avista a primeira bandeja ladeada por taças de
vinho. Rapidamente ele ensaia uma feição de quem não gostaria de aceitar uma taça, mas,
aceitará por condescendência. O escritor laureado da noite autografa seus livros, sentado em
uma mesa. À frente dele, uma fila de cadáveres, de leitores mortos e bem vestidos.
J.R. Terron também está bem vestido, até a gravata passou a ferro sobre a cama. Ele aceita a
taça de vinho, agradecendo com um meneio. O vinho bate em seu estômago vazio como os
molares de um acetilsalicílico.
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A Vida Vazia.
Aprendendo a engolir – Estudos sobre a balística da glote durante a felação.
O Pênis & Você.
O Poeta e o Executivo.
No que elas pensam?
“Um belo título não é?”. Pergunta à J.R. Terron uma mulher gorda e rosada, abraçando o
exemplar recém-autografado contra os imensos seios. Ela surge subitamente do nada, como
um mau presságio, catástrofes não anunciadas.
“Que logo me remete às doze categorias kantianas da razão...”. Responde J.R. Terron para
parecer inteligente, lançando sem querer perdigotos de saliva e vinho no rosto da gorda.
“Desculpe-me”. Ele diz, enquanto ela se afasta em direção ao banheiro.
“Não foi nada”. Ela responde.
De onde me saiu essas doze categorias kantianas da razão, ele se pergunta, completando: de
onde saiu essa gorda? E quando será que vão servir os deliciosos quitutes da noite?
Sentado em sua mesa, o escritor laureado da noite sorri para seus mortos como se a gravata
lhe enforcasse. A caneta com que autografa reluz um brilho prata, austero.
Nietzsche em trinta minutos.
As netas da Zelda.
Se eu cozinho, é meu?
Você é seu esfíncter.
109
Não há nada lá.
Mais uma taça de vinho, e J.R. Terron sente seu estômago arder como se digerindo uma
estrela viva. Apesar disso, consegue manter a pose de pessoa inteligente e bem alimentada.
Ele sabe que precisa aproveitar bem as primeiras bandejas com vinho. Pela experiência,
percebeu que as primeiras sempre contêm as melhores safras. A partir da quinta ou sexta
bandeja eles começarão a servir os carreteiros. Os mesmos que mataram Jack Kerouac em
1969.
E meu vizinho do apartamento 602? Deve estar nesse exato momento fazendo a festa lá em
casa, ele pensa. Mas não há o que fazer. Preciso me alimentar de vez em quando.
Imerso em seus pensamentos, o escritor desconhecido vê surgir dentre eles, de súbito, o
nascimento de um título de livro. No meio de tantos títulos idiotas, um belíssimo título para
um livro acende em seus pensamentos. Lautréamont Press, ele pensa. Lautréamont Press:
repete para si, no instante em que avista uma bandeja, repleta de salgados, vindo em sua
direção. Finalmente – ele diz. A boca cheia d’água.
Câncer da próstata – Quando tocar no assunto?
Escritos reais sobre escritores imaginários.
A história do casamento, e de como preservá-lo bem.
Onde fui enfiar meu charuto? – Bill Clinton, uma autobiografia.
Necrofilia na Academia Brasileira de Letras.
110
Coxinhas de frango, empadinhas de camarão, canudinhos de atum, risoles, pasteizinhos de
carne. J.R. Terron sente suas papilas gustativas molharem apenas de avistar os deliciosos
quitutes que vêm em sua direção. Agora lavo a burra, ele pensa. No rosto, a mesma feição
ensaiada de quem não gostaria de aceitar um quitute, mas aceitará por condescendência.
Em sua mesa, o escritor laureado da noite explica a um de seus cadáveres ambulantes o
processo de feitura do seu grande livro. Com uma das mãos, J.R. Terron enfia uma suculenta
coxinha de frango na boca. Com a outra, agarra ao mesmo tempo entre os dedos um risole e
uma empadinha de camarão. Que bandeira da porra, ele pensa, enquanto mastiga seu salgado
com satisfação.
As pessoas circulam pela livraria posando de inteligentes. Pavões de penas coloridas.
Grandes leitores de orelhas de livros, diz para si J.R. Terron. Duvido que saibam quem foi
Lévi-Strauss, por exemplo.
“Lévi-Strauss? Não é uma marca de calça jeans?”. Eles provavelmente responderiam a uma
pergunta como essa.
Devidamente mastigada e engolida, à coxinha de frango segue goela a baixo o delicioso
risole e a crocante empadinha de camarão. J.R. Terron comete a temeridade de enfiar na boca
os dois salgados ao mesmo tempo. Nesse instante, retorna do banheiro a enorme mulher
gorda e rosada, ainda abraçando o exemplar recém-autografado contra os imensos seios.
“Já conseguiu pegar seu exemplar autografado?”. Ela pergunta.
111
“Azinda zão”. Responde J.R. Terron, cuspindo farelos para todos os lados. Um bigode de
camarão voa certeiro até atingir a retina esquerda da mulher gorda e rosada.
“Deszulpe”. Ele diz.
“Não foi nada”. Ela responde, afastando-se novamente em direção ao banheiro para lavar-se,
o olho atingido lacrimejando.
Quem xingou em Baker Street?
Dez vantagens em você ir para a cama comigo.
O churrasco americano e suas variações – Na cozinha com Osama Bin Laden.
Os degraus para o sucesso.
A última curva da vida – Ayrton Sena, e a biografia de um campeão.
Aos poucos, J.R. Terron vai forrando seu estômago com quitutes os mais diversos. Na sexta
bandeja de salgados, ele finalmente se satisfaz. A confortável sensação do peso em seu
estômago o agrada. Agora, é ir para casa e descansar, ele pensa. Mas antes, aceito mais uma
taça de vinho.
“Quero sim, obrigado”. Ele responde ao garçom.
A enorme mulher gorda e rosada passa novamente por ele, agora a uma distância segura. J.R.
Terron gargalha disso em pensamento, enquanto afrouxa um pouco o cinto da calça.
112
Em sua paralelogrâmica mesa, o escritor laureado da noite continua dedicando seu mais
recente livro aos mortos, a caneta prata e austera assinando o óbito da arte. Enterrando com
sua tinta a literatura de qualidade.
Lautréamont Press – ele pensa. Sim, talvez eu mude o título do livro. Campos de Carvalho
na certa iria gostar. Afinal de contas, Lautréamont Press é um título muito melhor do que
Servindo de assento à bunda da imaginação.
“Aceito outro sim, obrigado”. Ele responde novamente ao garçom.
O homem que não matou Getúlio Vargas.
Autobiografias não autorizadas.
Mudando de sexo e de assunto.
Ganhando seu primeiro bilhão.
Aprenda a evacuar com segurança.
A careca habitualmente lisa e úmida adquire agora um leve tom encarnado. É o vinho, pensa
J.R. Terron, depois de olhar mais uma vez para seu reflexo no espelho. Ele está no banheiro
agora. Lava as mãos depois de ter urinado cerca de vinte e duas taças de vinho. Bom, o que
resta a fazer agora é esperar o momento certo para sair de fininho, ele diz para si, enxugando
o crânio encarnado e oval com uma toalha de papel.
Afinal, assisti à extrema-unção da literatura, mas não carregarei seu caixão até o cemitério,
ele completa.
113
Deus é dez.
Tratado astrológico dos acidentes passados.
Resolvendo as posições.
Como vencer na vida.
Você é o segredo do seu sucesso.
Ao sair do banheiro, J.R. Terron dá de cara com o escritor mineiro Rosário Fusco. Ele é
enorme, negro, ameaçador, estando vestido apenas em um roupão azul que, aberto, revela a
Terron a cueca de algodão de astronauta recheada de pantufas do gigante de quase dois
metros de altura. Na mão direita, Fusco segura um charuto fedorento. Na esquerda, uma
garrafa de aguardente.
“Estava demorando a vocês aparecerem”. Disse J.R. Terron.
“É por isso que eu fui morar por uns tempos na França sabia?”. Respondeu-lhe Fusco.
“É? E por que foi mesmo que você foi parar lá?”. Perguntou Terron.
“Por que as francesas gostam de rosários de trinta centímetros”. Ele respondeu, retirando,
orgulhoso, da cueca de algodão de astronauta recheada de pantufas a enorme e rotunda
serpente negra.
“Vira isso pra lá Fusco”. Disse J.R. Terron.
“São tão católicas as francesas”. Conclui o autor de O Agressor.
Córdoba, onze de setembro de 2001.
114
O escritor brasileiro André Sant’anna está em um quarto de hotel na Argentina. Sentado de
frente para a mesa onde repousa um laptop aberto, ele espera. O cursor pisca na tela em
branco como um sinal de alerta, a respiração de um peixe. Guelras. Chove. Gotas de chuva
espancam o vidro da janela. Formam nele uma ferida límpida de água. Uma TV está ligada
com o som em off. O espanhol, afinal de contas, é uma língua irritante. E o escritor André
Sant’anna não quer irritar-se. Ele quer silêncio e paciência para escrever, para vencer o vazio
da página onde o cursor pisca – lâmpada fraca agonizando. Ao lado do laptop, repousa o
original de um livro ao qual o escritor se incumbiu de escrever a orelha. Um livro, uma
novela genial escrita não por ele, mas por outro escritor, também desconhecido.
A TV está ligada no noticiário do dia. O escritor André Sant’anna olha em direção do
aparelho mudo apenas para distrair-se. Sua intenção é a de esvaziar a mente para deixar fluir
melhor as imagens, as palavras, mas espere... Algo aconteceu. O noticiário é interrompido
bruscamente pela imagem de um enorme prédio sendo atingido por um avião. Um acidente,
um terrível acidente, pensa o escritor André Sant’anna, na medida em que se levanta para
aumentar o som da TV.
Agora Não há nada lá.
O escritor aumenta o som do aparelho em seu limite máximo. Confusão. Pessoas gritando.
Repórteres em polvorosa sem saber o que dizer. O prédio está em chamas. Da tela da TV,
pode-se ouvir crepitar as chamas consumindo concreto e aço. Um acidente, um terrível
acidente, pensa o escritor, no instante em que um segundo avião choca-se, minutos após o
primeiro, em outro prédio. Um que emparelhava com o que já estava em chamas.
115
Não há nada lá.
Minutos depois, surge uma legenda na tela da TV: Os Estados Unidos da América estão sob
ataque. O novo milênio é inaugurado, na literatura e no mundo.
Recife, vinte e oito de outubro de 1998.
116
O relógio desenhado na parede ainda marca as horas do tempo. Só que o tempo que ele
marca é um diferente daquele que contam os relógios convencionais. E sua medição é a única
a que sigo. A medição de um tempo menos arbitrário, menos equivocado, como o tempo que
crio no ranger do meu lápis sobre a página. Pois a página, toda página, é um deserto
interminável, como o mar.
Há duas semanas meu avô retornou do hospital. Alvéolos rompidos, hemorragia interna.
Tiveram que fazer uma transfusão de sangue para salvá-lo. Ouvi minha mãe dizer o seguinte
ao telefone: “praticamente o mouro trocou de sangue”. E gargalhou. Ela ainda completaria:
“teve sorte de estar na frente da lista do banco de sangue, e de ter acabado de morrer naquele
instante um doador perfeitamente compatível com ele. Sangue fresco”.
Sangue fresco, ela repetiu.
Eu penso e escrevo a palavra “sangue”. Sangue. Acho que o sangue é uma espécie de
memória correndo em nossas veias laçadas. Gemendo dentro delas. Pulsando nelas como um
halo úmido respirando. Digo isso porque meu avô voltou do hospital diferente. Parece até ser
outro homem, com outra memória. Vejam só uma coisa: desde que voltou, ainda não me
pediu para ler o Augusto para ele. Estranho.
117
Ontem, por exemplo, acordou pela manhã dizendo estar sentindo uma sensação esquisita.
Estranhou tudo o que há no quarto. Todos os objetos ao seu redor. Os objetos ao seu redor
ainda pareciam partilhar com ele a mesma franca e veloz decomposição. Mesas, cadeiras,
bacias, pessoas. Mas era como se ele não os reconhecesse mais. Como se nada daquilo lhe
dissesse mais respeito.
Ele coçava uma barba imaginária quando se levantou da cama. E era como se por um
segundo tivesse também estranhado o próprio corpo que possuía. Admirou-se das próprias
mãos magras e cabeludas, dos dedos longos e ossudos. Sentado na beira da cama, olhou com
desconfiança até para os próprios pés, e deles para as pernas, para as coxas flácidas, para os
pelos crespos do peito. Negros.
“Que horas são” – ele perguntou.
“Do tempo do relógio da parede vô” – perguntei de volta.
“Do que você está falando?”, ele disse, e completou: onde ela está?
“Ela quem vô”, perguntei.
“Ela”, ele respondeu.
O lápis range sobre a página em branco, enquanto tento entender o que aconteceu com meu
avô. Ele agora está dormindo. Antes de dormir, me pediu que lesse para ele o livro A maçã
no escuro. Mas nós não temos esse livro aqui, respondi. Então, mais uma vez ele perguntou
por essa tal de ela.
118
Meu silêncio se une à mudez de toda a mobília. A penteadeira, o espelho, o guarda-roupa
com sua translação interna de camisas de seda. Seda e sangue. Linhos rompidos como rins.
Cabides onde se penduram ossaturas costuradas. Uma gaveta para a garganta das gravatas.
Outra, apenas para as meias brancas. Tudo o que pertence ao meu avô está em seu devido
lugar, embora pareça que nada mais disso lhe faça falta alguma, ou lhe diga respeito. Ao
telefone, minha mãe diz que ele está louco. Diz também que, ao voltar do hospital, começou
a falar coisas sem nenhum nexo. Perguntar a ela sobre assuntos que ela mesma não
compreendia.
Huston. Coppola. Fellini. Polanski. Lolita & Gaia Maria de Moura Brizola. Phutatorius.
Noel Rosa. Charlie Parker. Coltrane. Miles Davis. Clarice Lispector. Ezra Pound. James
Joyce. Nabokov. Lewis Carrol. São Paulo.
Talvez, se estivesse forte e saudável, ele fugisse daqui, já que nem mesmo os netos e os
filhos ele reconhece mais. Mas não. Ainda está fraco e doente. Na certa não irá durar muito
além do que possa suportar seus pulmões. Apenas nessas páginas que escrevo ele
sobreviverá, eu acho, quando chegar o final. Sim, porque haverá um final para tudo. E já que
posso aqui escrever o que quiser, contarei como ele será. E o que escrever aqui será o que
realmente aconteceu. Escrevemos para esquecer o que queremos esquecer. O que queremos
esquecer é sempre maior que a memória.
O relógio desenhado na parede continua marcando as horas do tempo. Nesse tempo, meu avô
é um fantasma dentro do seu próprio pijama. Nesse tempo, estamos em 1978. Um
apartamento em São Paulo, no bairro dos Jardins, zona sul, Rua José Maria Lisboa. Ela
119
sentada no sofá traga com gosto seu cigarro enquanto escuta meu avô resmungar: não vou
conseguir viver aqui, não aguento mais essa cidade. É barulhenta demais. E como se não
bastasse todo o ruído do trânsito, há esse vizinho que me enlouquece com o ruído de sua
máquina de escrever. Deve ser escritor, o filho da mãe.
Tectectec-tectec-tec.
Nesse tempo, meu avô sentado de frente a uma janela com vista para uma parede de concreto
cinza, resolve também aporrinhar seu vizinho escritor. Assim, ele começa a redação do
romance “Phutatorius”. De uma briga entre vizinhos, nasce o romance. Do mal-estar que
sentia meu avô em relação à metrópole paulista, brotam as páginas do livro. Sim, porque
nesse tempo ele também possui uma Olivetti velha.
Tectectec-tectec-tec-tec.
O relógio desenhado na parede badala uma hora cheia. O tempo é uma raiz antiga que possui
ramificações envelhecidas. Nesse tempo, meu avô ouve o ruído metálico do relógio e
levanta-se do sofá. Ele segue em direção ao apartamento do vizinho escritor. Atravessa os
corredores como um asterisco rompendo a gramática. Nesse tempo, meu avô encosta o
ouvido na porta para certificar-se que o vizinho não esteja lá. Ele não está.
Meu avô entra no apartamento silencioso como um intruso. Um sentimento de posse o
acomete. Posse de tudo o que ali está, como se todos os objetos do apartamento pertencessem
a ele. Livros. Quase todos os objetos que existem no apartamento são livros. Centenas deles,
120
milhares. Juntos, vão formando aos poucos as pilhas que logo minarão todo o carpete da sala
minúscula, na medida em que forem sendo retirados das caixas de papelão. Sim, caixas de
papelão, diz para si meu avô. Deve ter se mudado há pouco, completa.
Em frente à janela, há uma mesa. Sobre ela, repousa uma Olivetti semelhante a que possui
meu avô. Uma página inconclusa acopla-se à máquina de escrever. Meu avô é capaz de sentir
o cheiro da tinta ainda forte no ar, ainda nítida na página. As teclas como se ainda quentes.
Um filtro de cigarro queima lentamente no cinzeiro. Acabou de sair, pensa meu avô, no
instante em que seus olhos curiosos começam a ler a página interrompida.
O parágrafo inicia-se com meu avô deitado sobre uma boia gigantesca em forma de casco de
tartaruga. Ele desliza na superfície calma e espelhada de sua piscina. Ao ler isso, recorda que
sempre apreciou ficar ali por horas, um livro aberto na mão, ouvindo óperas, embora nessa
manhã descrita como já adiantada esse tipo de lazer lhe parecesse ridículo, burguês.
Ela está em algum lugar da casa, percorrendo silenciosa todos os seus cômodos, talvez
falando ao telefone. Ele sabe dela por ali, e a certeza com que sente sua presença rodeando a
casa o deixa ainda mais confortável, ainda mais seguro, ainda que estranhando todas essas
lembranças, todas essas sensações, a boia deslizando lenta como uma gota de lágrima no
espelho. Alguns parágrafos depois, ele irá falar com ela.
Sim, curioso como nunca, meu avô começa a ler as páginas anteriores a esta que se acopla à
máquina de escrever. Elas estão empilhadas ao lado da Olivetti ainda fumegando. Todas
numeradas. Em uma delas, meu avô lê A maçã no escuro. Dois parágrafos abaixo, Ela
121
pergunta o que ele gostaria de almoçar hoje. Em outra página, meu avô recorda que a data
impressa em todos os capítulos (28 de setembro de 1998) é a data de seu aniversário. De
posse dessa informação, ele diz em uma das passagens: hoje é um belo dia para se morrer.
122
Recife, vinte e oito de outubro de 1998.
Morreu hoje Eugênio Pereira de Melo, meu avô. Parada cardíaca. Foi como se seu coração
não tivesse suportado o sangue novo que acabara de receber. Antes de ir, ainda sussurraria
em meu ouvido: que bela ideia para um livro.
Mas o relógio desenhado na parede continuará marcando as horas do tempo. Assim como
essas páginas que escrevo para rememorar meu avô.
E todos os objetos ao redor dele morreram junto com o dono. Ficaram sem memória.
Solenes. Tristes. Apagados. Logo, os filhos chegaram para fazer a faxina no quarto. É como
se estivessem esperando com avidez pela morte do pai. O que pude pegar antes disso
sobreviveu.
Meu diário, e o exemplar autografado do “Eu”, de Augusto dos Anjos.
123
Leopoldina, doze de novembro de 1914.
Logo, os alunos o apelidaram de Doutor Tristeza. A figura magra, cadavérica, opaca e triste
do poeta, lhe valeu o apelido. Estava realmente em péssimas condições físicas, devido às
sucessivas privações financeiras que passara no Rio de Janeiro. À nomeação para o cargo de
Diretor do grupo escolar de Leopoldina, Minas Gerais, agarrou-se como sendo sua última
tábua de salvação. Só que essa tábua chegaria tarde demais ao náufrago da vida.
O livro, apesar de vendida toda a primeira edição, ainda não tivera uma segunda tiragem. O
dinheiro que entrou com a venda de todos os exemplares passou direto para as mãos do
irmão, como pagamento. Assim constava no contrato, diz para si o Doutor Tristeza.
Pelo presente documento, fica firmado entre Odilon dos Anjos e Augusto dos Anjos, abaixo
assinados, que tendo Odilon dos Anjos dispendido, como dispendeu, a importância de Rs.
550 $ 000 (quinhentos e cinqüenta mil réis), na impressão de mil exemplares do livro de
versos denominado “Eu”, de propriedade literária de Augusto dos Anjos, fica com direito ao
que se segue: reaver, à proporção que os primeiros exemplares do livro forem sendo
vendidos, a importância dispendida com a mesma impressão; participar da metade do lucro
que se verificar na venda dos exemplares do livro, depois que Augusto dos Anjos, ato
contínuo, a ter sido reavida a importância da impressão, retirar para si quantia igual à da
mesma impressão...
124
Mas é justo, muito justo, repete dos Anjos para si mesmo. Os duzentos e setenta e cinco
contos que me sobraram voaram todos do meu bolso para pagar outras dívidas, suspira o
poeta. Não me sobrou nada, ele diz para si, e agora aqui estou: Diretor do grupo escolar de
Leopoldina, Minas Gerais. O rectu do mundo.
O poeta está sentado no banco da única praça da cidade. Faz frio, e seus ossos gemem
congelados. Imerso em seus pensamentos melancólicos, ele nem percebe a chegada do
pequeno demônio tcheco, que vinha se aproximando desde há algum tempo, como uma
bruma.
“Difícil a vida não é Augusto?”.
“Rossmann, você por aqui?”.
“Não, Rossmann não está por aqui”.
“Como não Karl?”.
“Só vim ver como você estava, mas se continuar insistindo em me chamar por esse nome,
vou embora”.
“Desculpe-me Ka... Como devo chamá-lo então?”.
“Joseph K”.
“Não entendo... Por que isso agora meu amigo?”.
“Estou escrevendo um novo livro. Chama-se O Processo”.
“E quanto ao Karl Rossmann?”.
“Ficou inconcluso. Larguei mão dele. Karl Rossmann deve estar nesse exato instante perdido
em alguma rua de Nova Iorque”.
“Nova Iorque?”.
125
“Max Brod sempre acaba me convencendo”.
“Sei”.
“E a vida poeta? Como anda?”.
“De mal a pior”.
“E os pulmões?”.
“Assim é que são eles, como você me disse àquele dia”.
“Adorei o seu livro, embora não compreenda uma palavra do português”.
“Entendo...”.
“Mas a música Augusto... Há música nele... E a música é a linguagem universal”.
“Fico feliz de você ter gostado”.
“Só que a música que fazemos não será entendida agora. Nossa clave está aberta, mas em
direção ao futuro”.
“Somos estranhos K”.
“Estranhíssimos. E não chegaremos lá”.
“Lá aonde?”.
“No futuro... Mas nossos livros sim”.
“Então?”.
“Bom... Agora tenho que ir”.
“Gostei de sua visita. É sempre bom rever os amigos”.
“Um belo dia para se morrer hoje, não é?”. Disse Joseph K e, abrindo seu imenso guarda-
chuva negro, começou a flutuar no espaço, como se tomado por uma forte corrente de vento.
“Hoje somos prescindíveis Augusto, esquecidos como guarda-chuvas jogados atrás da porta”.
Ele concluiu, e em seguida desapareceu no ar como uma bolha de sabão.
126
Um belo dia para morrer, repetiu para si mesmo Augusto dos Anjos.
Leopoldina, doze de novembro de 1914.
Morreu hoje, de congestão pulmonar, o grande poeta Augusto dos Anjos. Quedou esquecido
como um objeto sem uso. Um guarda-chuva.
Alguns dias depois de sua morte, dois entusiastas da pequena obra do poeta caminhavam
taciturnos pela Avenida Central, no Rio de Janeiro. Eram os jornalistas cariocas Orris Soares
e Heitor Lima. No caminho, cruzaram com Olavo Bilac que, notando-lhes a tristeza impressa
no rosto, perguntou: “O que aconteceu homens? Que caras desanimadas são essas?”.
“Morreu o grande poeta Augusto dos Anjos”. Disse Orris Soares, os olhos marejados.
“Acabamos de receber a notícia”. Ele completou. Olavo Bilac, recém congratulado com o
título de Príncipe dos Poetas franziu o cenho das sobrancelhas grossas, e perguntou: “Grande
Poeta? Pois nunca ouvir falar desse meu súdito. Sabem alguma coisa dele?”. Prontamente,
Heitor Lima começa a recitar, de memória, todo o soneto Versos a um coveiro. Bilac o ouviu
pacientemente, sem interrompê-lo em nenhum momento. Findo o derradeiro decassílabo,
Olavo enrugou ainda mais as pregas da carranca, e disse: “Ah, então era o Coveiro poeta? Já
tinha me esquecido dele. Mas fez bem em morrer”. E concluiu: “Não se perdeu grande
coisa”.
Não se perdeu grande coisa, repetiu o Príncipe dos Poetas.
127
Petrópolis, vinte e oito de outubro de 1998.
Passado o susto de ter sido despertada à noite com o barulho que fez, ao ser derrubada pelo
vento, uma das estantes de ferro da imensa biblioteca do marido, Eli Gomes Rodrigues
Teixeira decide vender todos aqueles livros. Todos eles. Todos os cinco mil títulos da
biblioteca do autor de “Phutatorius”.
Eles a intimidavam com a imponência de seus volumes, com a severa austeridade de suas
capas, como fossem uma espécie de memória ruidosa do seu antigo dono. Eli vende a
biblioteca inteira por sete mil e oitocentos reais. Vende-a para as faculdades FAESA, de
Vitória, no Espírito Santo. Lá, poderão cuidar melhor deles, ela conclui.
Alguns anos depois, em onze de setembro de 2001, uma chuva torrencial desaba sobre a
cidade de Vitória, provocando pontos de alagação em todos os bairros. A inundação chega
até a biblioteca da FAESA, onde, pasmem, ainda está sendo catalogado o “Acervo Jaime
Rodrigues”.
Uma infiltração no forro do teto de gesso da biblioteca resulta em várias goteiras abertas. A
água começa a pingar incessantemente sobre o patrimônio literário do autor desconhecido.
Os livros, dispostos sobre imensas mesas de madeira, vão sendo gradativamente molhados
pelas gotas. O único bibliotecário presente no local não sabe o que fazer para salvá-los. Ele
está indeciso entre tomar, como de praxe, seu cafezinho, ou correr atrás de baldes e de
128
voluntários, na tentativa de salvar o acervo. E foi assim, indeciso e estacionado, que o
funcionário assistiu, atônito, à invasão da biblioteca. Subitamente, dezenas de pequenos
homens vestindo capas negras e sombrias adentraram o recinto. Cada um deles trazia nas
mãos um imenso guarda-chuva negro. Agora paralisado pelo susto da esdrúxula invasão, o
bibliotecário observa o movimento rápido e sincrônico dos pequenos homens. Eles sobem
rápido nas mesas onde estão dispostos os livros para, cada homem em uma mesa, abrirem
seus imensos e negros guarda-chuvas, as capas esvoaçando no ar como celofanes epiléticos.
“Não se preocupe. Nós os protegeremos até o fim da chuva”. Um deles disse, dirigindo-se ao
bibliotecário.
“Evitaremos essa tragédia, já que a outra que está acontecendo neste exato momento não nos
foi possível evitar”. Disse outro.
“E quem são vocês?”. Perguntou o aturdido bibliotecário.
“Somos da Sociedade Secreta do Guarda-Chuva”. Todos gritaram.
“Sociedade Secreta do Guarda-Chuva?”. Perguntou o bibliotecário. “Mas o que significa
isso? Nunca ouvi falar de vocês”. Ele completou.
“O que significamos não será tratado aqui, nem agora”. Um deles respondeu.
“O importante é que os livros ficarão bem”. Disse outro.
“Pode ir tomar seu cafezinho, que tudo está sob controle”. Disse um terceiro.
“Tudo bem... Está na minha hora mesmo”. Respondeu o bibliotecário.
“Maldito funcionário público...”. Resmungou um quarto.
O bibliotecário deixa o recinto rapidamente, como se temesse que aqueles estranhos homens
voltassem atrás e lhe pedissem ajuda. Um delicioso café com bolo não cairá nada mal agora,
129
ele pensou. Deixemos a literatura nas mãos dos expertos. Com certeza eles devem ser ligados
ao Ministério da Educação, concluiu.
Ao se verem sozinhos, os estranhos e pequenos homens começaram a bradar o que, à
primeira audição, pareciam ser palavras de ordem:
“Morte aos funcionários públicos da Literatura”. Um deles disse, acompanhado em seguida
pelo coro dos restantes:
Morte aos funcionários públicos da Literatura!
“Vida longa aos escritores esquecidos... Como os guarda-chuvas”.
Vida longa aos escritores esquecidos... Como os guarda-chuvas!
“Salvem-nos a memória de Franz Kafka, Campos de Carvalho e Augusto dos Anjos, nossos
patronos e inspiradores”.
Salvem-nos a memória de Franz Kafka, Campos de Carvalho e Augusto dos Anjos, nossos
patronos e inspiradores.
“Bem-aventurados os guardiões dos grandes livros, pois está chegando o período negro da
Idade das Trevas”.
130
Bem-aventurados os guardiões dos grandes livros, pois está chegando o período negro da
Idade das Trevas.
Nesse instante, todos começaram a bater as solas dos pequenos sapatos nas mesas,
produzindo um barulho ensurdecedor. Pareciam dançar, enquanto cantavam um estranho e
metálico mantra demoníaco:
Odradek, Odradek, Odradek...
Odradek, Odradek, Odradek...
Odradek, Odradek, Odradek...
Odradek, Odradek, Odradek...
ODRADEK, ODRADEK, ODRADEK...
ODRADEK, ODRADEK, ODRADEK...
131
Viena, Sanatório Kierling, três de junho de 1924.
Em bilhete a Max Brod, Kafka escreveu: “Caríssimo Max, meu último pedido – queimar
completamente, sem ler, tudo o que se encontrar no meu espólio (o que estiver, portanto, em
caixas de livros, guarda-roupas, escrivaninhas em casa ou no escritório, ou em qualquer lugar
para onde algo se tenha extraviado e chame sua atenção) em termos de diários, manuscritos,
cartas, de outros ou de meu próprio punho, desenhos, etc, bem como todas as coisas escritas
ou desenhadas que você ou outras pessoas, que você deverá solicitar nesse sentido,
possuírem. Devem ao menos comprometer-se a queimar as cartas que não quiserem entregar
a você. Seu Franz Kafka”.
Os pulmões dois arbustos negros, Kafka observa da janela o tempo ruim de Viena.
Costurados por uma tosse espessa: dois arbustos banhados de sangue negro, que respiram
com dificuldade. Uma leve e acrílica chuva dedilha na janela fechada uma música triste.
Contra o vidro fechado dela, as gotas são dedos, e o vidro, teclas. A tuberculose agravara-se,
por isso está internado aqui, no sanatório Kierling, em Viena, capital da Áustria. Por isso está
sentado nesta cadeira de frente para a janela, listando seus últimos desejos, o velho guarda-
chuva repousando atrás da porta.
Kafka está sozinho, assim como na hora da morte todos nós estaremos. Felice Bauer, Julie
Wohryzek, Milena Jesenská, Dora Diamant... Todas elas se foram, passaram por ele como
132
uma agulha trespassando a memória. Noivados rompidos, empregos, amigos... Apenas o bom
e velho Max Brod permanece até o fim, testemunha da agonia de um amigo. Assim como
Max, seu guarda-chuva, sua capa negra de morcego, seu chapéu esquisito.
Em um segundo bilhete endereçado a Brod, Kafka escreveu: “Caro Max, desta feita eu talvez
realmente não me levante mais, depois de um mês de febre pulmonar é suficientemente
provável que chegue a pneumonia e nem mesmo o fato de eu registrar isso por escrito será
capaz de afastá-la, embora tenha lá certo poder. Nesse caso, portanto, eis meu último desejo
em relação a tudo o que escrevi: de tudo o que foi escrito por mim valem apenas os livros...”.
Os livros escritos por ele dançam à sua frente como bolhas de vento inflamado. Giram no ar
como satélites, enquanto Kafka escolhe qual sobreviverá aos pulmões desgraçados do seu
autor. Lá fora, um canteiro de flores coloridas é alimentado pela chuva.
“De tudo o que foi escrito por mim, valem apenas os livros: Veredicto, Foguista,
Metamorfose, Colônia Penal, Médico Rural, e o conto: Artista da Fome (aqueles dois ou três
exemplos de Contemplação podem ficar, não quero dar a ninguém o trabalho de ficar
amassando papel, mas, nada de seu conteúdo deve ser reimpresso...”).
Não quero dar a ninguém o trabalho de ficar amassando papel... Kafka sorri, até quando lhe
é possível sorrir no estado em que se encontra. Mesmo estando no fim não perde o senso de
humor. Um homem comum, enfim, divertido, bem-humorado, inteligente, espirituoso,
sempre uma companhia agradável para todos. Mas está morrendo.
133
“Quando digo que aqueles cinco livros e o conto têm validade, não quero dizer que tenho o
desejo de que sejam reimpressos e deixados para épocas futuras; ao contrário, eles devem se
perder por completo, é o que corresponde a meu verdadeiro desejo. Só que, como eles já
existem, eu não vou impedir ninguém de conservá-los se tiver vontade”.
Só que, como eles já existem... Kafka ri um riso afônico, como se estivesse sendo
estrangulado. Seus pulmões lhe doem. A chuva segue fendendo lenta o vidro da janela.
Kafka golfa sangue. À sua garganta costura-se um gosto metálico. No canteiro, as flores
despontam coloridas como vértebras.
“No entanto, tudo o mais que existir em forma escrita (impresso em revistas, em manuscritos,
ou em cartas) deve ser queimado sem exceção, na medida em que for localizável ou puder ser
obtido por meio de solicitação aos destinatários...”.
Ele imagina uma grande fogueira sendo acesa. Imagina seu espólio literário reduzido a cinzas
bem no centro do fogo. Pensa e regozija-se ao vislumbrar tais destinatários sendo chamados
para a Grande Inquisição de seus rascunhos.
“Você conhece a maioria deles, trata-se principalmente da senhora Felice M., senhora Julie
Wohryzek (nome de solteira) e da senhora Milena Pollak; não esqueça, sobretudo, daqueles
cadernos que estão com a senhora Pollak”.
Sobretudo daqueles cadernos que estão com a senhora Pollak... Sim, Kafka pensou,
lembrando-se dos desenhos que fez nas páginas alternadas aos textos contidos naqueles
cadernos: Kafka de sunguinha, vestido de pierrô, Kafka pelado flutuando no ar com seu
134
guarda-chuva, Milena & Kafka completamente desnudos, montados em um grande porco
com asas sobrevoando a cidade de Viena... A lembrança desses desenhos feitos a lápis leva o
escritor tcheco a gargalhar, como fosse possível aos seus pulmões debilitados gargalharem
daquele jeito. Uma prolongada risada franca e ruidosa, entrecortada por tosses e engulhos de
sangue enfermo.
“Tudo isso, sem qualquer exceção, deve ser queimado, de preferência sem ser lido”.
Imagine... Disse Kafka para si.
“Embora eu não o impeça de dar uma passada de olhos, eu preferiria que não o fizesse; seja
como for, nenhuma outra pessoa deve ver esse material, e eu lhe peço que faça isto o mais
rápido possível. Franz Kafka”.
A chuva soluça de encontro ao vidro da janela uma música triste. Kafka observa os nós da
água delicada avançando sobre o parapeito. Estica um pouco o pescoço e consegue ver o
canteiro de flores coloridas lá embaixo, no jardim do sanatório Kierling. As flores, aos olhos
do escritor, ressumam as gotas da chuva através de suas pétalas. Ele olha para elas como se
pela última vez.
Um belo dia para morrer, ele diz para si.
135
Viena, Sanatório Kierling, três de junho de 1924.
Morreu hoje o desconhecido escritor tcheco Franz Kafka, um mês antes de completar
quarenta e um anos de idade. Será enterrado no cemitério judaico de Praga. Dentro de duas
semanas, nascerá sobre seu túmulo um canteiro de flores coloridas. Um arco-íris costurado
por pétalas. Ao contrário do que, duvidosamente, pediu Kafka a Max Brod, seu fiel amigo e
leitor entusiasta não destruirá nenhum de seus textos. Brod, na verdade, será o guardião do
espólio literário de Kafka, bem como seu único difusor. Graças à dedicação de Brod, dentro
de alguns anos, Franz Kafka será considerado – ao lado de Proust e Joyce – um dos maiores
escritores do século vinte.
Por que ao contrário do que, duvidosamente, pediu Kafka a Max Brod?
Segundo Susana Kampff, docente de língua alemã e tradutora; autora de vários livros, dentre
eles, o premiado Walter Benjamin: tradução e melancolia: a existência de dois bilhetes
remetidos a Max Brod, como expressão de um “último desejo” contribui para dar vazão à
teoria de que, talvez, Franz Kafka não quisesse de fato que sua obra fosse destruída. Para
demonstrar isso, Kampff sugere atenção à ambigüidade, e à prolixidade do segundo bilhete.
Então, na verdade, Kafka não queria que seus textos fossem destruídos?
136
Nunca saberemos, e tampouco é importante sabermos isso. Segundo Susana Kampff, Brod já
havia dito a Kafka (que chegou certa vez a expressar, ainda em vida, ao amigo, esse seu
“último desejo”) que não estava disposto a atender esse tipo de pedido. Ou seja, Kafka sabia
que o amigo talvez fosse desobedecê-lo.
Então?
Pouco importa se pudermos imaginar Max Brod nesse exato momento. Vejamos, ele está
passeando as mãos sobre a escrivaninha de Kafka. Uma escrivaninha desarrumada, forrada
por páginas espalhadas em todos os seus cantos. Uma escrivaninha de frente para a janela,
através da qual Kafka admirava o movimento das ruas, quando queria. Nas ruas, Franz
observava as pessoas indo e vindo constantemente, como sépalas soltas no ar, arrancadas à
força do cálice de suas flores. Só que, para o escritor tcheco, todas as pessoas que ele via nas
ruas lhe eram desconhecidas. Assim como ele também era desconhecido para elas. Uma
partilha mútua de desconhecimento recíproco era instalada sem o consentimento de nenhuma
das partes. Uma partilha de silêncio. De frases que nunca seriam ditas em vida, apenas
escritas, pois são frases que morreriam antes mesmo de serem concebidas. Isso mesmo, como
óvulos infecundos. À Kafka, enfim, bastava o papel de testemunha.
Mas, continuemos imaginando. Imaginemos que Brod, por um minuto, tenha decidido dar
cabo do último desejo do amigo. Ele apanha todas as páginas soltas que encontra; todos os
cadernos, bilhetes, manuscritos, e os coloca sobre uma imensa e funda bacia de alumínio
onde Kafka, em vida, lavava seu rosto todas as manhãs.
137
E lá está, pronto para ser incinerado sobre a bacia, praticamente todo o espólio literário
kafkiano. É possível imaginar isso, ver Brod, as mãos trêmulas, preparar-se para riscar um
fósforo entre os dedos indecisos. Ele o risca. Titubeia receoso por um segundo apenas para,
no instante em que sua mão aproxima o fósforo da pilha de papéis, uma lufada de vento o
apagar.
O que produziu esse vento súbito?
Esperem... Brod olha para trás. Vê a porta aberta através da qual o vento sibilou acrílico até
atingir a extremidade acesa do fósforo, para apagá-la. Diante da porta, estacionado, se
encontra um estranho grupo de pequenos homens vestindo capas negras e sombrias. Cada um
deles traz nas mãos um imenso guarda-chuva negro.
“Quem são vocês? O que fazem aqui?”. Pergunta um Max Brod perplexo e assustado.
“Somos da Sociedade Secreta do Guarda-chuva”. Responde os estranhos intrusos, em coro.
“Mas... De onde... O que vocês...”.
“Viemos impedi-lo de fazer essa temeridade, Max”.
“Eu não ia... Na verdade... Não ia mesmo...”.
“Se não ia, ótimo. Se ia, não irá mais, pois nós o impediremos”.
“Tudo bem, só que...”.
“Só que o quê Max?”. Pergunta o coro dos estranhos homens.
“O Franz... Foi o Franz quem pediu”.
“Brod meu caro Brod, parece que não conhece seu amigo”.
“Como assim? Não estou entendendo nada”.
138
“Você nunca ouviu falar em aporia?”.
Córdoba, onze de setembro de 2001.
De um só fôlego, André Sant’anna escreve a orelha da novela Não há nada lá. Enquanto
escreve, segue estarrecido a observar os dois prédios em chamas, na TV. A imagem dos dois
aviões se chocando contra o World Trade Center é repetida diversas vezes em todos os canais
de todas as emissoras de TV do mundo. Uma imagem nítida e colorida, um verdadeiro
espetáculo de luz e som. Diante da renitência das imagens, o escritor tem a impressão de que
as duas imensas torres continuam a serem alvejadas, insistentemente, em outro tipo de espaço
e tempo, paralelos ao nosso. A terrível tragédia norteia toda a escrita da orelha a qual se
incumbiu de escrever.
Segundo o escritor: não deu para não notar a conjunção apocalíptica dos fatos. André
Sant’anna ainda não sabe, mas ele sofre da Síndrome de Cronópio, uma doença rara que
atinge uma pequena porcentagem (cerca de 2% dos adultos, ocorrendo aproximadamente
igual em homens e mulheres) da população do mundo, segundo dados recentes da
Organização Mundial de Saúde.
Segundo esses mesmos dados, a síndrome caracteriza-se pela presença de ideias, imagens ou
impulsos, recorrentes e indesejados, que compelem seus portadores a fazer analogias entre os
fatos reais, acontecidos no mundo, e os ficcionais, que se desenrolam no âmbito da literatura.
Partindo dessas analogias, os portadores da Síndrome de Cronópio acreditam que,
139
decodificados previamente na literatura, a leitura desses fatos os levariam à previsão do
futuro.
Ainda segundo os dados, a maioria dos indivíduos portadores da síndrome tem consciência
de que suas analogias obsessivas não refletem riscos, nem possibilidades reais. Eles
percebem que seu comportamento mental é exagerado a ponto de ser estranho. O problema é
que eles gostam muito de ler, e para tirar isso de suas cabeças dá um trabalho danado.
Dessa forma, eles insistem em continuar enxergando paralelos entre a vida e a literatura em
tudo que é canto.
A nomenclatura da síndrome faz alusão ao livro “História de Cronópios e de Famas” do
escritor bruxelense radicado na Argentina, Júlio Cortázar, primeiro caso diagnosticado dessa
estranha síndrome literária. Francisco Porrua, editor e amigo de Cortázar, disse certa vez que
ele (Júlio) sofria de algum tipo de paranoia, pois: Com ele aconteciam coisas esquisitas o
tempo todo. Cortázar negava-se a crer em casualidades e acasos. Para ele, não existiam
coincidências, mas fatos interligados com a produção literária do seu tempo. A realidade,
para ele, acabava convertendo-se em reflexos gêmeos de contos, de novelas, de romances. A
esses fatos interligados, Cortázar deu o nome de Figuras. Figuras que, se lidas como
páginas de livros, poderiam ser decifradas, permitindo a qualquer um adivinhar o futuro
com isso.
Mas voltemos: o escritor André Sant’anna escreve assim, ao final da orelha: Ao meter os
acontecimentos de Nova York na parada, esta orelha corre o risco de datar o livro, que traz
uma história passada em tempos diversos. Mas fiquei muito impressionado ao ver as cenas
140
do World Trade Center exatamente na hora em que estava escrevendo a orelha. Não deu
para não notar a conjunção apocalíptica. E se você prestar atenção, ao olhar para o ponto
que fica um pouco acima de Manhattan, quase no céu, vai reparar que, agora, Não há nada
lá.
Ao colocar o derradeiro ponto final na orelha, o escritor desliga o laptop, a TV, fecha as
cortinas do quarto, e desce para o bar do hotel, na intenção de tomar uns tragos ouvindo um
bom tango argentino. Um tango argentino, afinal de contas, para completar a tragédia do
mundo e do amor à literatura, conclui para si mesmo, taciturno.
Se tivesse ficado no quarto assistindo à TV, veria a imagem de um homem que, alheio ao
barulho ensurdecedor do tumulto, apontava em direção às duas torres gêmeas incendiadas.
Veria também a aproximação de um repórter que, curioso com a estranha figura (chapéu na
cabeça, capa e guarda-chuva na mão) resolvera entrevistá-lo. O repórter perguntaria: como
você se chama? Karl Rossmann, responderia o estranho. O repórter continuaria: estamos
muito próximo das torres, é perigoso. Não é não, diria o pequeno homem, completando: eu
bem que tentei avisar, eu bem que tentei avisar.
141
Rio de Janeiro, onze de setembro de 1920.
Sentado em uma das inúmeras mesas do bar “O espinhaço da gata”, Orris Soares bebe
calmamente sua cerveja. O líquido amarelo brilha dentro da caneca como um bulbo de fogo,
à medida que o jornalista a seca em goles longos, demorados. Sobre a mesa, repousa a
segunda edição do “Eu”, publicada há dias.
A nova edição vem acrescida de novos e esparsos poemas, além de um prefácio contundente,
escrito pelo próprio Orris. A nova edição do livro era um sonho que Orris Soares acalentava
desde a morte do poeta Augusto dos Anjos. Sonho que se concretizou graças ao empenho do
jornalista, e da doação de um montante em dinheiro que viabilizou a nova impressão do livro.
Soares acredita que essa nova publicação vá reparar o erro cometido contra Augusto dos
Anjos. Erro por parte da crítica, que o ignorou; erro cometido até mesmo por parte dos seus
poucos leitores, que com o passar dos anos, se esqueceram dele. Sim, repete Orris para si,
repararemos o terrível erro de tê-lo esquecido.
Sentado em uma das inúmeras mesas do bar “O espinhaço da gata”, Orris Soares brinda
sozinho à memória do Poeta da morte e da melancolia. No entanto, uma dúvida o aflige:
quem teria enviado para ele aquele cheque nominal, no valor de mil e cem contos de réis?
Quem teria descoberto sua ideia de lançar uma segunda edição do “Eu”? Ele não sabe. O
envelope com o cheque foi passado debaixo de sua porta, naquela manhã, sem o endereço do
142
remetente. Junto ao cheque, apenas um bilhete: esse dinheiro viabilizará a segunda edição
do “Eu”. Use-o com parcimônia e discernimento. Estamos de olho em você. Ass:
Sociedade Secreta do Guarda-chuva.
Estranho, muito estranho, resmunga Orris Soares, enquanto acena ao garçom do bar, na
esperança de lhe pedir outra caneca de cerveja.
As Figuras estão aí para ser decodificadas – ele pensa. Só não enxerga quem não quer, ele
completa, enquanto acende seu cigarro.
143
Rio de Janeiro, onze de setembro de 1928.
Em crônica para o jornal O País, Oscar Lopes escreveu: graças ao sucesso da segunda
edição, a Livraria Castilho lança hoje, por iniciativa própria, a terceira edição do “Eu”, de
Augusto dos Anjos.
Semanas após o lançamento, escreve assim efusivo, no Jornal do Commercio, o jornalista
Medeiros e Albuquerque: o “Eu” representa o mais espantoso sucesso da Livraria Castilho
nos últimos tempos – três mil volumes escoados em quinze dias.
Gondin da Fonseca, cronista do jornal Crítica, escreveria dias depois: em apenas dois meses,
tiveram saída nada menos que cinco mil e quinhentos exemplares do livro de Augusto dos
Anjos.
Em onze de setembro de 2001, Francisco de Assis Barbosa, organizador da quadragésima
quarta edição do “Eu”, assim escreve em seu “Texto e Nota”: A obra de Augusto dos Anjos,
sendo um patrimônio nacional, não tem donos, tampouco enfiteutas provincianos. Vamos
prosseguir, melhorando sempre, até oferecer ao público de língua portuguesa um texto
perfeito, dentro dos limites das possibilidades humanas.
Malditos enfiteutas provincianos resmungou Barbosa, ao pôr um ponto final no texto e sair,
acompanhado por seu imenso guarda-chuva negro.
144
São Paulo, onze de setembro de 2001.
Hoje, pela parte da manhã, em Nova Iorque, dois aviões se chocaram às duas torres gêmeas
do World Trade Center. Emissoras de TV do mundo inteiro continuam noticiando a tragédia.
Fala-se em terrorismo. Em guerra contra o terror. Em fundamentalismos. Em retorno à
barbárie. Em atentado. Quanto a mim, penso em como aplicar a tática terrorista em defesa da
literatura. Da grande literatura. Penso também em churrasco. No delicioso hambúrguer Texas
Rangers. Penso em companhias aéreas indo buscar seus passageiros em casa. Com avião e
tudo. Perdeu seu voo? Não se preocupe. Nós o pegaremos em casa.
Se tivesse dinheiro, abriria um açougue. Eu o chamaria: Açougue Helter Skelter. A The
Butcher’s Orchestra tocaria em sua inauguração. Porcos rosados voando no céu. Envoltos em
lençóis de chamas. Talvez o lançamento de um novo miojo: o Nissin Laden sabor americano
na grelha.
When I get to the bottom I go back to the top of the slide where I stop and I turn and I go for
a ride till I get to the bottom and I see you again.
Mas como aplicar a tática terrorista em defesa da grande literatura? Coincidência ou não,
meu vizinho xereta e escritor acabou por me dar a ideia. Sim, eu irei à fonte. Entrarei
sorrateiro na casa dos escritores medíocres, e não para bisbilhotá-los apenas, mas para dar um
fim a tudo o que andam escrevendo. Apagarei tudo de seus computadores. Se escreverem à
mão ou à máquina, queimarei todas as páginas que encontrar. Serei um invasor invisível,
145
terrível, assim como esse meu desconhecido vizinho. Busque e destrua será o meu lema.
Caso essa tática não dê certo, colocarei bombas nas editoras que se atreverem a publicar
livros como objetos de uso descartável. Farei isso. Sim senhor. Em paralelo, tentarei publicar
meus escritos, a começar pelo romance Servindo de assento à bunda da imaginação. Quem
sabe eu consiga, no futuro, abrir uma editora que só publique as pérolas imprescindíveis.
Sim, um oásis de criatividade e imaginação em meio à imundície e o lugar comum do
mercado editorial de hoje em dia. Campos de Carvalho aprovaria isso, assim como aprovará,
eu sei, a mudança do título do seu (meu) livro. Ele, que agora se chama... Mas como? O que
significa isso?
J.R. Terron observa o movimento da Livraria Curtume. O escritor desconhecido está, mais
uma vez, atrás da vitrine de vidro da livraria, coçando a careca lisa e oval enquanto pensa, os
olhos graves e fosfóricos. Estava impaciente, esperando o instante certo de entrar sem ser
notado, quando leu a chamada do cartaz. Mas que merda é...
Ele esfrega os olhos com os dedos, na esperança de que tivesse lido errado a chamada. Minha
imaginação, ele pensa, só pode ser isso. Os olhos com as pálpebras baixas são massageados.
Lá dentro, em seus globos oculares, um movimento de escleróticas de sangue. De membranas
diáfanas envolvendo a gema. Eu vejo escritores mortos, ele pensa... Haver lido errado a
chamada é o mais provável de ter acontecido, ele completa. Mas não. Ao abrir os olhos, a
chamada do cartaz permanece a mesma.
146
J.R. Terron enfia as mãos nos bolsos, como se assim pensasse melhor. Apóia todo o peso do
corpo na perna esquerda, como se quisesse descansar a direita. No bolso esquerdo, seus
dedos tocam as chaves de seu apartamento. Será possível, ele resmunga para si mesmo.
A Livraria Curtume convida a todos para o lançamento do livro...
Bom, o mais provável é que tivéssemos tido a mesma ideia, conclui pensativo o escritor. Isso
é possível, é extremamente possível, ele diz, como se querendo convencer a si mesmo do
fato. De que outra forma eu poderia explicar isso? Coincidências existem, afinal de contas.
Ainda de trás da vitrine, J.R. Terron observa o escritor laureado da noite. O escritor laureado
conversa com um grupo de amigos, todos com um copo de vinho à mão. Não, não se parece
em nada com o meu vizinho bisbilhoteiro. Meu vizinho usa barba. Ele, não usa. Meu vizinho
é um pouco menor e mais gordo. Ele é mais alto e mais magro. Meu vizinho usa espessos
óculos de grau. Ele não. Não, não pode ser. Não pode ser meu vizinho. Meu vizinho não é o
Jaime Rodrigues. Nem esse escritorzinho de merda o é. O escritor laureado da noite também
não é o Jaime Rodrigues. Jaime Rodrigues está morto. Eles estão vivos, e são diferentes.
Dessa feita, meu vizinho xereta, o escritor laureado e Jaime Rodrigues são três pessoas
completamente diferentes. Mas então?
A Livraria Curtume convida a todos para o lançamento do livro “Lautréamont Press” do
premiado escritor...
147
Matteus Denodo Remela? Que espécie de nome é esse? Que espécie de homem tem um
nome como esse? Denodo? Remela? Que tipo de homem não se envergonharia de um nome
como esse? Eu se tivesse esse nome de batismo, não o ostentaria em um cartaz dessa forma.
A Livraria Curtume convida a todos para o lançamento do livro “Lautréamont Press” do
escritor Matteus Denodo Remela...
Mas que merda é...
J.R. Terron lê mais uma vez a chamada no cartaz, e entra. Parece não acreditar no
despautério da situação toda. Um equívoco, ele diz para si, uma triste coincidência. Mas não
faz mal. Mudo eu novamente o título do livro. É simples. Tenho imaginação para tanto. Quer
ver? Bem, que tal...
A careca lisa e centrípeta do escritor desconhecido sua como nunca. Ele pensa. Na livraria,
há uma TV ligada no noticiário. Excepcionalmente hoje, por causa do atentado às duas torres
gêmeas, ela está lá, embora sem som. Os dois aviões continuam a se chocar contra as torres.
A imagem da tragédia repetida N vezes e N vezes e N vezes...
Parece que o tempo parou, pensa J.R. Terron, enquanto olha as imagens movendo-se na tela
de cristal líquido. Ele assiste novamente ao choque do primeiro avião. Agora, ao do segundo.
Agora, as duas torres desabando como um castelo de cartas, um esqueleto sem cálcio. Não há
nada lá mais para ser visto, diz para si J.R. Terron. Não há nada lá, ele repete. É isso. Esse
será o novo título do meu livro. Meu e de Campos de Carvalho.
148
Não há nada lá seu idiota. Ouviu, Matteus Denodo Remela? Escritorzinho ladrão, amigo do
alheio. Merda. Onde já se viu um nome desses?
Agora, um pouco mais calmo, J.R. Terron caminha até a sua já conhecida posição
privilegiada, para esperar as bandejas que virão trazendo seus deliciosos quitutes. Na TV,
pessoas saltam do World Trade Center em chamas, flanando no ar como notas musicais
desprendidas da escala.
“Um belo título não é?”. Pergunta à J.R. Terron uma mulher gorda e rosada, abraçando o
exemplar recém-autografado contra os imensos seios. Ele a reconhece. Já a viu em outros
lançamentos de livros. Os mesmos pequenos olhinhos negros. Os mesmos dois cuzinhos
piscando para ele, úmidos. A mesma garganta gorda ladeada por um rastro de suor.
“É um belo título, realmente”. Responde J.R. Terron, e completa:
“Nós já nos vimos antes não?”.
“Ãhã”. Ela responde. J.R. Terron se arrepia ao ouvir o ãhã. Um grunhido horrível, ele pensa,
quando:
“Qual é a sua graça?”. Ele pergunta, para demonstrar interesse. Na verdade, J.R. Terron está
curioso. Ele resolveu dar uma folheada no Lautreamont Press. Só para ver do que se trata.
Ele está prestes a pedir da gorda o exemplar autografado, para folheá-lo.
“Ana Cachalote”. Ela responde.
“Bonito nome”. Diz J.R. Terron. Mas a palavra que pensou foi: sugestivo.
“E o seu?”. Ela pergunta, os olhinhos acesos como dois fósforos serelepes.
149
“Joca Reiners Terron”.
“Prazer”.
“Prazer. Posso dar uma folheada no livro?”. Ele pergunta.
“Claro”. Ela responde.
Dois aviões, dois prédios enormes. Duas torres erguidas no coração do capitalismo. Pessoas
saltam pela janela. A única forma de se escapar do fogo. Pessoas flutuam no ar como sacos
de plástico vazios.
“Já deu uma olhada nele?”. Pergunta J.R. Terron, o livro já em mãos.
“Ainda não. Gosto de ler em casa, no conforto da minha casa. Sentada, coçando a barriga da
minha gata... Você não quer ir lá depois?”.
“Lá aonde?”. Pergunta assustado o escritor, ilustre desconhecido.
“Lá na minha casa, para...”.
“Vamos ver”. Um terrível frio na espinha lambe todas as sinapses nervosas do escritor. Só de
imaginar a gorda, em casa, coçando a barriga de sua gata...
“Certo. Vamos ver. Bom... Ainda quer dar uma olhada no livro?”. Ela pergunta.
“Ah sim”. Ele responde, quando, antes de abri-lo, completa:
“Do que será que se trata hein? Hoje em dia tantas merdas são lançadas...”.
“Do que se trata eu não sei ao certo... Só sei que estou nele”. Ela responde.
J.R. Terron a mede de cima a baixo. Parece uma vitela pendurada em um gancho de açougue,
ele diz para si mesmo.
“Como assim? Nele quem? No livro?”.
150
“Exatamente”.
Eu sabia, pensa consigo J.R. Terron. Mais um escritorzinho metido a Fante, a Henry Miller.
Mais um genial autor de livros autobiográficos, desses que acreditam que suas vidas imbecis
e inúteis servem de matéria-prima para seus escritos. Esses idiotas creem que os leitores irão
se interessar por suas bebedeiras, suas fodas com gordas desse tipo...
“Entendi... E você não se incomoda com isso?”. Pergunta J.R. Terron.
“Com o quê?”. Ela rebate.
“Com isso. Com o fato de você conhecer, veja bem, de alguma forma, um escritor, e ele
depois te colocar como personagem de um de seus livros”.
“Desculpe, não entendi”. Ela responde.
Dois aviões, duas torres, duas explosões. Fogo consumindo concreto e aço. Carne. Vigas
estalando como portas enferrujadas. Pessoas gritando. Poças de sangue fervendo sobre
espelhos de chamas.
“Estou dizendo que isso é normal mesmo. Vários escritores fazem isso”.
“Fazem o quê?”. Pergunta a gorda.
“Bom, eles conhecem uma pessoa... Depois, quando se debruçam sobre um romance, ou um
conto, eles terminam se aproveitando disso. Digo assim: eles aproveitam as características
físicas de pessoas conhecidas, para criar uma personagem, entende? Às vezes descrevem
situações reais também, tudo para dar verossimilhança à estória que está sendo narrada. Mas
é perfeitamente normal. O escritor, na verdade, manipula a realidade para construir a ficção”.
151
O que não é o meu caso, pensa para si J.R. Terron. Isso é tique de escritor sem imaginação,
completa.
“Não entendi”. Responde a gorda.
“Não entendeu?”.
“Não”. Ela diz. Mas é burra como uma porta, pensa consigo J.R. Terron.
Dois aviões...
“Você não o conhece?”. Pergunta J.R. Terron, já um pouco impaciente.
“Conheço quem?”.
“O escritor laureado. Esse tal Matteus Denodo Remela?”.
“Não. Não o conheço”. Ela responde.
“Mas como? Como você está no livro então?”.
“Eu não o conheço, Joquinha, mas ele me conhece”.
“Ah”. Exclama J.R. Terron, mesmo sem ter entendido uma vírgula sequer do que ela disse.
“Preciso ir ao banheiro”. Ela diz. “Estou apertada”. Ela completa. “Na volta eu apanho meu
livro. Aproveita e dá uma olhada”.
“Obrigado”. Responde J.R. Terron. “Você volta logo?”. Ele completa. “É que daqui a pouco
tenho que ir andando, lembrei que tenho um compromisso...”.
“Não precisa mentir para não ter que ir lá em casa depois. Já estou acostumada com isso e,
além do mais, isso de você ir ou não, não depende de você, ou de mim”. Ela diz –
enigmática.
152
“Não é nada disso Ana”. Responde J.R. Terron, enquanto pensa: o que será que ela quis dizer
com isso de não depender de mim nem dela?
“Tudo bem. Vou indo então”.
“Volta logo Ana?”.
“Daqui a algumas páginas eu volto”. Ela responde.
É louca, pensa J.R. Terron, ao vê-la afastar-se.
As pessoas circulam pela livraria posando de inteligentes. Parecem gordos balões de gás
coloridos. Elas flanam, os peitos inflados, como se estivessem na iminência de dizer algo
interessantíssimo. J.R. Terron as observa caminhando para lá e para cá, como pavoas no cio,
no instante em que começa a folhear o livro...
As torres gêmeas desabam. Um véu de poeira, cinza e vidro, ergue-se do ar como um lençol
negro avançando, uma espessa nuvem de gafanhotos. A massa ofegante do concreto forra de
escombros o chão, disforme massa amarrada por nós de pedras furiosos. E novamente: as
torres gêmeas desabam. Um véu de poeira, cinza e vidro, ergue-se do ar como um lençol
negro avançando, uma espessa nuvem de gafanhotos. A massa ofegante do concreto forra de
escombros o chão, disforme massa amarrada por nós de pedras furiosos. E mais uma vez: as
torres gêmeas desabam. Um véu de poeira, cinza e vidro, ergue-se do ar como um lençol
negro avançando, uma espessa nuvem de gafanhotos. A massa ofegante do concreto forra de
escombros o chão, disforme massa amarrada por nós de pedras furiosos...
J.R. Terron não quer acreditar no que está lendo, os olhos fosfóricos. O primeiro parágrafo
do livro lhe é bastante familiar. Ele o lê novamente, e novamente, e novamente, como se o
153
lendo repetidas vezes, a estranha familiaridade com o texto desaparecesse. Mas não. Ela
continua lá, lhe dizendo muito respeito, como se as palavras impressas ali tivessem nascido
recentemente dos próprios dedos do escritor desconhecido:
São Paulo, dez de abril de 1998.
É sempre assim: quando se busca sossego e silêncio sempre aparece um ou outro alguém
para incomodar. Aconteceu comigo hoje pela parte da tarde. Aliás, um fato muito estranho.
Resolvi sair do hotel para dar uma volta. Não estava conseguindo escrever com todo aquele
barulho. Estavam fazendo reforma em um dos apartamentos, e o ruído de uma furadeira me
incomodava. Larguei o parágrafo bem no meio de uma sentença, assim: mas o que ela disse
descendo as escadas com um bloco de notas debaixo do braço e um lápis dentro do bolso,
para concatenar melhor as idéias em um lugar mais calmo. Há uma praça próxima daqui.
Sim, uma praça. Posso me sentar em um dos seus inúmeros bancos e continuar a escrever
em paz.
J.R. Terron avança na leitura, como se querendo certificar-se de algo. Mais à frente, ele lê:
O relógio desenhado na parede badala anunciando a hora cheia. Meio dia em ponto. É meu
aniversário, mas o dia não mudou em nada por conta disso. É o mesmo dia de ontem, de
anteontem, com a diferença de que hoje fico um pouco mais velho. Como disse antes:
decompondo-me.
154
Assustado, J.R. Terron corre os olhos em todas as páginas do Lautreamont Press. São
minhas, ele diz para si, todas essas páginas me pertencem. É meu esse livro, eu que o escrevi.
Isso só pode ser uma brincadeira, ele conclui. É o meu Servindo de assento à bunda da
imaginação. Seu filho da...
Em sua paralelogrâmica mesa, o escritor laureado da noite, cuja mãe, segundo J.R. Terron, é
prostituta, segue com sua noite de autógrafos. Ladrão, resmunga Terron. Ele observa o
escritor laureado com atenção. Não, não é o meu vizinho do apartamento 602, ele diz para si.
Mas deve ser outro, um vizinho invisível quem sabe, porque está aqui, a prova em minhas
mãos... Essa cópia criminosa... Esse livro me pertence. É meu. Fui eu quem o escreveu.
Tenho como provar isso...
Dois aviões acabam de se chocar com as torres do World Trade Center. As torres queimam
como duas enormes velas incendiando as nuvens.
A careca lisa e oval de J.R. Terron está ensopada de suor. Lustrada e úmida. Apesar de
bastante nervoso, ele não quer causar um tumulto. Decide entrar na fila que se faz à frente da
mesa do escritor laureado, para esclarecer o assunto assim que chegar a sua vez. Na fila, ele
continua a ler o livro:
A pequena reunião que começara à tarde entrava agora pela noite, de tão divertida que
estava. Também, não era para menos: Kafka estava entre os presentes à casa de Max Brod
àquele divertido colóquio literário. Os amigos sempre o acharam uma ótima companhia.
155
Divertido, bem-humorado, inteligente, espirituoso, um homem agradável para todos, enfim,
menos para sua ex-noiva, Felice Bauer.
A fila anda lentamente. O escritor laureado da noite dá a devida atenção a todos os seus
leitores. Isso faz com que a fila ande devagar. J.R. Terron parece querer agarrar-se à sua
própria vida, como se ela agora existisse apenas em sua memória. Em suas lembranças.
Lembranças de um passado recente onde ele está sentado em seu apartamento, reescrevendo
o livro de Campos de Carvalho. Isso aconteceu, ele diz para si, vendo a si mesmo em
dezessete de agosto de 1995, sentado na minúscula sala de seu apartamento, cercado de livros
por todos os lados. Livros. Centenas deles, milhares de livros que, juntos, formarão aos
poucos as pilhas que logo minarão todo o carpete, na medida em que forem sendo retirados
das caixas de papelão.
A fila anda lentamente. O escritor laureado da noite dá a devida atenção a todos os seus
leitores. Isso faz com que a fila ande devagar. J.R. Terron parece querer agarrar-se à sua
própria vida, como se ela agora existisse apenas em sua memória. Em suas lembranças.
Lembranças de um passado recente onde ele está sentado em seu apartamento, reescrevendo
o livro de Campos de Carvalho. Isso aconteceu, ele diz para si, vendo a si mesmo em
dezessete de agosto de 1995, sentado na minúscula sala de seu apartamento, cercado de
livros por todos os lados. Livros. Centenas deles, milhares de livros que, juntos, formarão
aos poucos as pilhas que logo minarão todo o carpete, na medida em que forem sendo
retirados das caixas de papelão.
“A quem devo dedicar o livro?”. Pergunta o escritor laureado da noite.
156
“A ninguém seu canalha. Eu sei o que está acontecendo aqui”. Responde J.R. Terron,
sussurrando asperamente. Matteus Denodo Remela levanta os olhos em direção ao escritor
desconhecido que acaba de lhe xingar, e diz:
“Ah. É você Terron?”. Ele me conhece, pensa para si J.R. Terron.
“Fique calmo”. Completa Remela.
“Calmo o cacete. Acho bom você começar a me explicar tudo, senão...”.
“Calmo o cacete. Acho bom você começar a me explicar tudo, senão...” – página 156.
“Sei que deve ser difícil para você Joquinha, mas vamos conversar”.
“Joquinha? Que intimidades são essas? Você me conhece por acaso?”. Pergunta J.R. Terron,
furioso, a voz já um pouco mais exaltada.
“Tudo bem... Senhor Terron então... Prefere assim?”.
“Como você entrou no meu apartamento? Como você fez para roubar meu livro? Sim,
porque esse livro é meu. Eu que o escrevi, vírgula por vírgula. Está tudo aqui. Não se trata
nem de plágio. É uma cópia descarada”. Responde J.R. Terron.
“Como você entrou no meu apartamento? Como você fez para roubar meu livro? Sim,
porque esse livro é meu. Eu que o escrevi, vírgula por vírgula. Está tudo aqui. Não se trata
nem de plágio. É uma cópia descarada”. Responde J.R. Terron – página 157.
“Você não entendeu nada não é Terron?”.
“O que foi que não entendi seu grandessíssimo filho da puta?”.
“Acho melhor você se acalmar”.
“Acalmar o quê? Ladrão. Você é um ladrão”. Agora J.R. Terron grita exaltado, as veias
pulsando azuis na garganta. Latejando. Ele olha em volta de si mesmo, e começa a gritar para
todos os presentes à livraria:
157
“Ladrão. O senhor Matteus Denodo Remela, esse escritorzinho de merda aqui, roubou o meu
livro. Eu sou o autor desse livro. O Lautréamont Press é de minha autoria”.
“Eu sinto muito Terron”. Responde Remela.
“Vai sentir mesmo”. Devolve J.R. Terron, no instante em que agarra Remela pela gola da
camisa.
“Leia a próxima página do livro Terron. A cento e cinquenta e oito”. Grita o escritor laureado
da noite.
“Calmo o cacete. Acho bom você começar a me explicar tudo, senão...”. Página 156.
“Sei que deve ser difícil para você Joquinha, mas vamos conversar”.
“Joquinha? Que intimidades são essas? Você me conhece por acaso?”. Pergunta J.R.
Terron, furioso, a voz já um pouco mais exaltada.
“Tudo bem... Senhor Terron então... Prefere assim?”.
“Como você entrou no meu apartamento? Como você fez para roubar meu livro? Sim,
porque esse livro é meu. Eu que o escrevi, vírgula por vírgula. Está tudo aqui. Não se trata
nem de plágio. É uma cópia descarada”. Responde J.R. Terron.
“Como você entrou no meu apartamento? Como você fez para roubar meu livro? Sim,
porque esse livro é meu. Eu que o escrevi, vírgula por vírgula. Está tudo aqui. Não se trata
nem de plágio. É uma cópia descarada”. Responde J.R. Terron. Página 157.
“Você não entendeu nada não é Terron?”.
“O que foi que não entendi seu grandessíssimo filho da puta?”.
“Acho melhor você se acalmar”.
“Acalmar o quê? Ladrão. Você é um ladrão”. Agora J.R. Terron grita exaltado, as veias
pulsando azuis na garganta. Latejando. Ele olha em volta de si mesmo, e começa a gritar
para todos os presentes à livraria:
158
“Ladrão. O senhor Matteus Denodo Remela, esse escritorzinho de merda aqui, roubou o
meu livro. Eu sou o autor desse livro. O Lautreamont Press é de minha autoria”.
“Eu sinto muito Terron”. Responde Remela.
“Vai sentir mesmo”. Devolve J.R. Terron, no instante em que agarra Remela pela gola da
camisa.
“Leia a próxima página do livro Terron. A cento e cinquenta e oito”. Grita o escritor
laureado da noite – página 157.
“Como você fez isso?”. Pergunta J.R. Terron, ao ler a página aconselhada, as mãos já soltas
da gola da camisa do verdadeiro autor do livro. “Como conseguiu escrever aqui o que
acabamos de dizer?”. Ele completa.
“Você não imagina?”. Pergunta de volta Remela.
“Como você previu o futuro? Que espécie de demônio você é?”.
“Não é possível prever o futuro Terron”. Responde Remela. A frase provoca risos gerais
entre todos os presentes à livraria.
A frase provoca risos gerais entre todos os presentes à livraria – página 159.
“Só é possível prever o futuro se decifrada as figuras”. Completa Remela.
Figuras que, se lidas como páginas de livros, poderiam ser decifradas, permitindo a
qualquer um, adivinhar o futuro com isso – página 140.
Os risos continuam cada vez mais altos e estridentes, como guelras rompendo a água. Um
ruído metálico e crescente, que se torna insuportável aos ouvidos sensíveis do pobre J.R.
Terron. A cena que se segue é burlesca: Os risos continuam cada vez mais altos e estridentes,
como guelras rompendo a água. Um ruído metálico e crescente, que se torna insuportável
aos ouvidos sensíveis do pobre J.R. Terron. A cena que se segue é burlesca – página 159 As
159
pessoas continuam a gargalhar, como se em uma festa criminosa. Diante dos olhos incrédulos
de J.R. Terron, os sorrisos alargam-se cada vez mais, até tocarem os lóbulos de cada um dos
gargalhadores. Malditos espantalhos, grita J.R. Terron.
“Espantalhos?”. Pergunta Remela.
Subitamente, J.R. Terron se vê cercado por horríveis bonecos de palha sorridentes,
movimentados por ruidosos monjolos.
Malditos espantalhos, grita J.R. Terron – página 159.
“Espantalhos?”. Pergunta Remela – idem.
“Mas que merda é...”.
“Calma Terron”.
“O que está acontecendo?”.
“Você não é o autor desse livro Terron”.
“Mas como foi que...”.
“Você é personagem Terron. Você é personagem desse livro”.
“Você é louco”. Diz J.R. Terron.
“Sou? Olhe para a porta de entrada da livraria então”.
“Sou? Olhe para a porta de entrada da livraria então”.
“Você é louco”. Diz J.R. Terron.
160
J.R. Terron faz o que lhe aconselha Remela. Ele não quer acreditar no que vê. Esfrega os
olhos como se estivesse louco. Mas estão ali, acenando para ele, da porta de entrada da
livraria, cada qual com um exemplar do Lautréamont Press na mão: Campos de Carvalho,
Augusto dos Anjos, Franz Kafka, Apolônio de Almeida Prado Hilst, fundador da Sociedade
Secreta do Guarda-chuva, e meu avô, o escritor Jaime Rodrigues.
Fantasmas literários... Desde que voltei do coma quando criança, eu os vejo, diz J.R. Terron
para si mesmo, como se querendo convencer-se de que agora, estava realmente louco.
Aos sete anos de idade um acidente grave: ele brincando de esconde-esconde, algo entre o
impacto de sua cabeça e uma coluna de cimento. Depois, o coma. Do coma, a leitura, o
desenvolvimento de uma visão noturna, e de uma capacidade peculiar para enxergar
fantasmas – página 26.
“Não se preocupe Joquinha. Vamos lá para casa?”. Pergunta a J.R. Terron a mulher gorda e
rosada, que acabava de voltar do banheiro.
“Mas nem que me paguem, sua gorda escrota”. Ele responde. “Mas nem morto”. Completa.
“Não se preocupe Joquinha. Vamos lá para casa?”. Pergunta a J.R. Terron a mulher gorda
e rosada, que acabava de voltar do banheiro.
“Mas nem que me paguem, sua gorda escrota”. Ele responde. “Mas nem morto”. Completa.
161
São Paulo, onze de setembro de 2001.
Da sala, Joca Reiners Terron escuta a voz nasal e gordurosa, que o chama.
“Joquinha”.
Um cigarro queima silencioso entre os dedos do escritor, como um balão noturno.
“Joca?”.
Na TV ligada em off passam as imagens de um acidente.
“Não vai me ajudar não? Joquinha?”.
Dois aviões acabaram de se chocar contra as duas torres gêmeas do WTC. Joca Reiners
Terron assiste hipnotizado às chamas consumirem aos poucos os dois edifícios.
“Joquinha amor”.
162
Pessoas saltando das janelas para se salvarem do fogo.
“Olha droga. Um acidente aconteceu em Nova Iorque. Dois aviões... Não quer vir ver não?”.
Ele grita da sala.
“Estou é preocupada com esse acidente aqui, Terron”. Diz a mulher, a voz manhosa.
“Essas coisas acontecem”. Ele responde.
“Você não vai vir mesmo me ajudar, é isso?”.
“Melhor irmos a um médico, para tirar isso. Eu que não enfio a mão nessa coisa”.
“Não enfia a mão? Mas o pau fez questão de enfiar não foi”. Ela diz.
O telefone toca. Uma ligação a cobrar. De Córdoba.
“Joca?”.
“A cobrar André?”.
“Está assistindo a TV?”.
“Que coisa não?”.
“Estou escrevendo a orelha do livro, norteado por esse acidente horrível”.
“Como assim André?”.
“As conjunções apocalípticas Joca”.
“André?”.
“Quê?”.
“Você precisa se tratar meu amigo”.
163
A ligação cai.
“Joquinha”. Grita a mulher, a voz cada vez mais nasal, mais gordurosa.
“Que é diabo?”. Pergunta o escritor.
“Não estou conseguindo tirar ele”. Ela responde.
“Vamos a um médico, já disse”.
“Mas Joca... É embaraçoso demais. Ao médico eu não vou”.
Merda de mulher – resmunga J.R. Terron.
“Você não vai me fazer ir até aí não é?”. Ele pergunta.
“Por favor, Joquinha”.
Droga, ele diz.
Joca Reiners Terron apaga o cigarro em um cinzeiro que repousa sobre a TV em off. Na TV,
fala-se não mais em acidente, mas em atentado.
Ele entra no quarto onde a mulher gorda e rosada ronrona como uma lontra gripada.
“Abre as pernas. Vou tirar esse troço daí”.
“Não precisa ser grosso”. Ela responde, abrindo as adiposas coxas como um esquadro. A
gorda esparramada e nua sobre a cama lembra um cachalote abatido.
“Você vai mesmo me obrigar a fazer isso não vai, seu miserável?”. Resmunga Joca Reiners
Terron.
164
“Fazer o quê? Que miserável? Com quem você está falando Joquinha?”. Ela pergunta.
“Com ninguém não. Fica quieta”. Ele responde.
E é ali, com o rosto enfiado entre as pernas da gorda, enquanto procura dentro dela o
preservativo masculino que acabou de usar, um que insistiu em ficar dentro dela depois de
terminada a cópula, que Joca Reiners Terron resmunga a última frase deste livro: que
péssimo final para um romance, hein seu miserável?
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