Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca...

103
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP Léa Nunes de Assis Desafios e conquistas de um aluno que procura a escola aos 55 anos. MESTRADO EM EDUCAÇAO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO SÃO PAULO 2014

Transcript of Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca...

Page 1: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

Léa Nunes de Assis

Desafios e conquistas de um aluno que procura a escola aos 55 anos.

MESTRADO EM EDUCAÇAO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO

SÃO PAULO

2014

Page 2: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Léa Nunes de Assis

Desafios e conquistas de um aluno que procura a escola aos 55 anos.

MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO

SÃO PAULO

2014

Page 3: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Léa Nunes de Assis

Desafios e conquistas de um aluno que procura a escola aos 55 anos.

MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontíficia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência Parcial

para obtenção do título de MESTRE em

Educação: Psicologia da Educação sob a

orientação da Profª. Dr.ª – Laurinda Ramalho

de Almeida.

SÃO PAULO

2014

Page 4: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

A849

Assis, Léa Nunes de. Desafios e conquistas de um aluno que procura a escola aos 55

anos./ Lea Nunes de Assis – São Paulo: s.n., 2014. 92p. ; 30 cm.

Referência: 80-84

Orientador: Profª. Drª. Laurinda Ramalho de Almeida. Dissertação (Mestrado), Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, Programa de Pós-Graduação em Educação: Psicologia da Educação, 2014.

1. Psicologia da Educação 2. Afetividade – EJA – Letramento

CDD 370.15

Page 5: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

Banca examinadora

______________________________________________

______________________________________________

______________________________________________

Page 6: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

AUTORIZAÇÃO

Autorizo, para fins acadêmicos ou científicos, a reprodução parcial ou

total desta dissertação por processos fotocopiadores ou eletrônicos, desde que

citada a fonte.

São Paulo, julho de 2014.

Page 7: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

Dedico este trabalho a todos os meus alunos e

alunas com quem aprendi e ensinei.

Page 8: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

AGRADECIMENTOS

Para meus pais José Nunes de Assis (in memoriam) e Adalgisa das

Dores de Assis, que na sua simplicidade mineira nunca deixaram faltar o pão e

o livro na minha infância.

Para meus irmãos Athos José Nunes e Marcia Cristina de Assis, por

partilhar as refeições que me nutriram durante o período de estudo.

Para Noel (Nono) pela companhia.

Para a equipe da EMEF Profº. José Ferraz de Campos.

E em especial: Para a diretora da EMEF Profº. José Ferraz de Campos,

Profª. Margareth Garcia da Silva, pela flexibilidade que me deu condições de

frequentar o curso sem prejuízo.

Para a Profª Cirlene Santos da Cunha Marcassa de Carvalho, pelas

orientações e sugestões.

Para a Profª Aparecida Moko Nishimori, por ter encaminhado seus

alunos para sala de reforço e confiado no meu trabalho.

Para meus amigos: Sr. Wilson Paes de Andrade Filho e Ricardo Ferreira

dos Santos pela colaboração; Paulo Antônio da Silva Andrade pela troca de

Page 9: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

informações que tanto contribuiu para o desenvolvimento deste trabalho; Dany

Kanaan, pelo incentivo e pelas orientações e sugestões sempre pertinentes;

Antonio Palma Filho pela revisão deste trabalho incansável e realizador; e

Sílvia Castelhano que com seu bom humor realizou a formatação.

Para a minha Orientadora Profaª Drª. Laurinda Ramalho de Almeida,

por me apresentar Wallon e pelo empenho em terminar este trabalho no prazo

combinado.

Para a Profª Drª. Vera M. N. S. Placco, por ter sinalizado o caminho

desta pesquisa.

Para a Profª. Drª. Eliane Bambini Gorgueira Bruno, pelas sugestões

muito bem pontuadas para a finalização deste trabalho.

Page 10: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

RESUMO

O objetivo desta pesquisa foi compreender como se deu o processo de

inserção na escola, os aprendizados e os sentimentos vivenciados por um

aluno de 55 anos que procurou a escola pela primeira vez (um curso de

educação de jovens e adultos – EJA). Para tanto, procurou-se apreender a

história de vida desse aluno, bem como o início do seu percurso na escola. O

referencial teórico utilizado foi a psicogenética Walloniana. Os resultados

apontam que a mediação da afetividade, que no caso se deu pela proximidade

da professora e pelo recurso da literatura, introduziu com prazer o aluno na

escola, levou-o a se apropriar da leitura e escrita e, em consequência, elevar

sua autoestima.

PALAVRAS-CHAVE: afetividade. EJA. letramento.

Page 11: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

ABSTRACT

The objective of this search was to comprise how the insertion process

occurred, the learning and the feelings experienced by a 55 years old student

who has looked for a school for the first time in his life (The Education for Young

People and Adults course). For that sought out to understand this student’s

history of life, as well as the beginning of his way in the school. The Henry

Wallon’s psychogenetic was the theoretical background used. The results lead

us to an affective mediation. In this case it happened by the approach of the

teacher and the Literature resources, introducing with great pleasure the

student into school, making himself to appropriate the lecture, the written and in

consequence boost his self-esteem.

KEY-WORDS: affective. education for young people and adults. Literacy.

Page 12: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

SUMÁRIO

MEMORIAL ................................................................................................ 01

APRESENTAÇÃO, CONTEXTUALIZAÇÃO E DEFINIÇÃO DOS

OBJETIVOS ............................................................................................... 10

CAPÍTULO 1. REFERENCIAIS TEÓRICOS ............................................. 13

1.1. Paulo Freire ou “A Alfabetização Pela Pedra”........................ 14

1.2. Magda Soares ou “Alfabetização para Além do Muro da

Escola”.............................................................................................. 21

1.3. Henri Wallon e a Integração Afetiva – Cognitiva – Motora .. 25

1.3.1 Afetividade ........................................................................ 26

1.3.2. Integração organismo meio ............................................. 28

1.3.3. A relação Eu-Outro .......................................................... 30

1.4. As águas se encontram .......................................................... 31

CAPÍTULO 2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ......................... 34

2.1. Coleta de Dados ...................................................................... 34

2.1.1 Caracterização da Escola e do Aluno Selecionado ......... 34

2.1.2 Entrevista com o sujeito selecionado ................................ 35

2.1.3 Anotações do Diário de Bordo da Professora ................... 36

Page 13: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

2.2. Análise dos dados .................................................................... 36

CAPÍTULO 3. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS ............................ 37

3.1. Trajetória de vida do sr. Raimundo ............................................. 37

3.2. Motivo que o levou a procurar a escola ...................................... 42

3.3. O processo de inserção do aluno e seus sentimentos

despertados no processo de escolarização ...................................... 44

3.4. Sentimentos vivenciados no processo de alfabetização ........... 52

CAPÍTULO 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................... 68

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..........................................................71

APÊNDICES .............................................................................................. 76

ANEXOS .................................................................................................... 84

Page 14: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

APÊNDICE

Quadro 1. Caracterização dos alunos da 1ª etapa de EJA ................. 76

Quadro 2. Depoimento de Raimundo com a explicitação de

Significados ............................................................................................. 77

ANEXOS

ANEXO 1. Relatos de Raimundo registrados no diário de bordo

da professora .......................................................................................... 84

ANEXO 2. “Causo” relatado por Raimundo em sala de aula ....... 87

ANEXO 3. Termo de consentimento livre e esclarecido ..................... 89

Page 15: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

1

MEMORIAL

Olhar o próprio conteúdo da memória

implica olhar para si mesmo, refazer

caminhos, descobrindo as afinidades e

intenções do percurso. Iberê Camargo

Para escrever este memorial vasculhei a minha memória e, lendo

algumas coisas, me deparei com a história de um educador que um dia foi um

menino. Esse menino vivia numa casa, acolhido pela sombra das mangueiras

num quintal de chão batido e, com graveto na mão, desenhava na terra as

primeiras letras, escrevendo as palavras do seu mundo.

“Fui alfabetizado no chão do quintal da minha casa (...). O chão foi o

meu quadro negro; gravetos, o meu giz.” (FREIRE, 1988, p.15).

Peço permissão para dizer que esse momento afetou esse menino, que

se construiu Educador. Esse Educador trabalhou arduamente pela educação.

Uma educação libertária, que aproxima o homem da sua humanidade. Ele nos

deixou um legado inestimado, do qual terei a oportunidade de falar em um dos

capítulos deste trabalho.

Assim como Freire, a escolha pelo ensino, pela leitura mais

especificamente, começou na infância. Vou relatar a minha história que vai

transpassar todo este trabalho.

O livro está presente na minha vida desde a infância. Meu pai era

jornaleiro e quase todos os domingos eu frequentava sua banca de jornal. Era

um momento fascinante, tinha livros e gibis à minha disposição. Eu escolhia um

Page 16: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

2

livro e começava a folheá-lo, observando os desenhos e imaginando o que

aquelas letras poderiam estar dizendo. Naquela época, eu não sabia ler as

palavras, só lia os desenhos. Mas folhear os livros e gibis me despertou a

vontade de aprender a ler como gente grande. Não demorou muito para que

esse momento chegasse; fui alfabetizada aos sete anos e me tornei uma leitora

“independente”.

Como uma leitora “independente”, eu escolhia os livros que queria ler na

estante da minha casa. Eram livros com muito desenho e muito colorido. Lia os

clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos

(IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI), Cinderela (PERRAULT), dentre outros.

.

A leitura me afetava de uma forma que o sentimento de tristeza, alegria,

medo e solidão, vividos pelos personagens, eram também meus. Era um

sentimento tão verdadeiro e mágico que me causava um grande prazer em ler

e reler as histórias.

Afetada por esse prazer, comecei a ler para meu irmãozinho, que se

deliciava com as peripécias dos personagens e dormia antes que a história

terminasse. Foram momentos felizes!

Acredito que meu irmão, nessa época, se encantava com as histórias e

talvez com meu próprio encantamento ao narrar. Nesse momento, eu era uma

mediadora de leitura.

Page 17: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

3

Lendo, fui crescendo e a minha adorada infância foi se transformando

lentamente em adolescência. Os livros infantis ficaram na estante e então

chegaram outros livros, como O Meu Pé de Laranja Lima, Vamos Aquecer o

Sol, Arara Vermelha, Coração de Vidro (VASCONCELOS), Olhai os Lírios do

Campo, Clarissa (VERISSIMO), Capitães da Areia (AMADO), dentre outros.

Na infância, as histórias me traziam a sensação de que sempre

seríamos felizes, independentemente de qualquer sofrimento ou dificuldade. Na

adolescência, elas me traziam conforto; lendo, eu percebia que a angústia, a

tristeza, a depressão, a alegria e as vicissitudes da vida fazem parte da

aventura humana na terra. Ler alguns livros me fazia rir, como a história do

Gênio do Crime (MARINHO), outros me faziam descobrir o Brasil – de miséria,

exploração e vício – que não existia na minha realidade, como Capitães da

Areia (AMADO).

No final da adolescência, comecei a pensar qual profissão seguir. Como

precisava trabalhar, fiz o colegial junto com o magistério.

Pensando na minha escolha, ser professora, acredito que não foi casual.

Foi uma escolha marcada pela minha experiência com a leitura e com os

momentos em que lia para meu irmão.

Após dois anos de formada, comecei a trabalhar na Prefeitura Municipal

de São Paulo. A primeira turma foi uma classe de educação infantil que

permanecia o dia inteiro na escola. Eu era responsável pelo almoço, higiene e

a hora do sono. Almoçar e fazer a higiene com os alunos era tranquilo, mas

Page 18: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

4

dormir era um pouco complicado, pois eles resistiam e ficavam agitados. Voltei

ao passado e lembrei que meu irmão, ao ouvir as histórias que contava,

geralmente dormia. Então decidi que na hora do sono eu contaria histórias, e

funcionou: a maioria das crianças adormecia antes do desfecho final. Brenman

defende:

“Tenho visto frequentemente como as crianças ficam “enfeitiçadas”

quando ouvem histórias de qualidade, lidas pelos seus professores. É

como se elas tivessem parado no tempo, esquecidas de como eram e de

como são, apenas vivendo a narrativa como se fosse real. (...) a leitura

dessas histórias realmente acalma, instaura um novo clima na sala de

aula, silencia os ruídos infantis entre outros muitos efeitos benéficos

observados e invisíveis. Sabemos que as crianças amam as histórias (...).

(BRENMAN, 2012, p. 72).

Depois dessa turma, fui trabalhar com uma 2ª série do ensino

fundamental, em uma escola municipal na periferia da cidade de São Paulo.

Eram crianças carentes, e muitas já haviam sido afetadas por situações tristes,

como abandono, fome, dependência química na família, maus-tratos e fracasso

escolar (muitas não estavam alfabetizadas).

Nessa época, eu fazia Serviço Social na Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo. Esta graduação me possibilitou construir um olhar voltado para o

social, especialmente para os oprimidos.

Com esse olhar, eu levava para sala de aula uma caixa cheia de livros

para que as crianças, ao terminarem a lição, pudessem ler e não atrapalhar os

demais. Nesse momento, o livro era um meio prazeroso de garantir a disciplina;

não queria puni-los com castigo, gritos e chantagens, pois a vida já os tratava

Page 19: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

5

assim. E assim o ano letivo foi passando e as crianças foram se apropriando

dos livros e a sala de aula se tornou um espaço de prazer e aprendizado.

Mudanças de ordem administrativa ocorreram na Rede Municipal, que

me levaram a escolher uma sala de alfabetização de Jovens e Adultos.

Trabalhando com essa população, eu deixava uma caixa com livros no

canto da sala e no início ou no final da aula eu sempre contava uma história ou

um poema; o dia em que eu “esquecia”, pediam: Professora, você não vai ler

pra gente? Eu lia! Lendo, eu observava o grupo embalado pelo desenrolar da

trama. Percebia estampado no rosto de cada um(a) o cansaço pela lida do

cotidiano. Com o desenrolar da história, esse semblante exausto expressava

sentimento de alegria, compaixão, admiração, espanto, tristeza e medo. Houve

uma aluna, com idade de 40 anos aproximadamente, que chorou ao ouvir a

história do Patinho Feio (ANDERSEN). Quando me deparei com suas lágrimas

rolando pela sua face cansada, me emocionei, meus olhos marejaram

lágrimas, mas terminei a contação. Perguntei pra sala se alguém gostaria de

comentar sobre a história, se gostou, que momento ‘tocou’ o coração. Dentre

muitos comentários, essa aluna se desculpou pelo choro... eu disse que: não

precisava se desculpar, chorar faz bem para a alma.

Que chorar faz bem pra alma eu sabia, porque quando choro, sinto

minha alma esvaziar e se acalmar. Mas o que comecei a perceber com esse

episódio foi que ouvir história faz tão bem para a alma quanto chorar. Nesse

instante, tive a certeza de que a história e a poesia estariam presentes na

minha vida pessoal e profissional.

Page 20: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

6

É importante lembrar que a população de Jovens e Adultos geralmente

trabalha em serviço pesado; atuam como pedreiro, faxineiro, empregada

doméstica, camelô. A jornada diária desta classe trabalhadora é extensa,

incluindo sábados e feriados. Essa grande maioria não teve oportunidade de

frequentar a escola na infância; sendo assim, não “sabe” ler e escrever.

Conhecendo esta realidade, eu utilizava a contação de história para

proporcionar um ambiente de relaxamento e descontração. Acreditava que

esse ambiente descontraído poderia facilitar o processo de ensino e

aprendizagem.

O trabalho de alfabetização seguia. Nessa época, eu utilizava o livro

didático e a cartilha. Eram os únicos materiais disponíveis na escola.

Trabalhando com esse material pedagógico, comecei a perceber que o tema

abordado se mostrava impessoal e distante da realidade do educando. O mais

triste foi constatar que nem sempre havia livro para todos. A escassez de livros

didáticos, naquela época, levava o professor, na melhor das hipóteses, a

xerocar as páginas e distribuir para os alunos. Na falta de xerox, o professor

passava o conteúdo na lousa e os alunos, depois de um dia exaustivo de

trabalho, copiavam.

Esse caminho que eu e meus alunos trilhamos, por pouco tempo, era

árido, enfadonho, alienante e, o que é pior, os alunos não atingiam um

aprendizado satisfatório.

Page 21: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

7

Atualmente, percebo que o uso do livro didático no início do processo de

alfabetização é uma roupagem com um único número para vestir corpos tão

singulares. Nas palavras de Freire:

“Daí a nossa descrença inicial nas cartilhas, que pretendem a

montagem da sinalização gráfica como uma doação e reduzem o

analfabeto mais à condição de objeto que à de sujeito de sua

alfabetização”. (FREIRE, 1967, p. 111).

O uso da cartilha não possibilita uma troca de conhecimento entre

educador e educando. O conteúdo vem pronto, na forma que se chama

cartilha. O educador utilizará esse material para depositar as letras do papel

para a cabeça do aluno, num movimento mecânico, frio e impessoal.

Preocupada com a aprendizagem e apaixonada por livros literários,

comecei a pensar na possibilidade de utilizar a literatura na minha prática

pedagógica. Pensei nas histórias, na poesia e no ditado popular para mediar o

processo de ensino e aprendizagem e a relação entre educando e educador.

Logo, veio a pergunta: De que forma o educando adulto é afetado pela

poesia no processo de ensino e aprendizagem e na relação professor e aluno?

Inicialmente a minha questão era esta, depois do diálogo com a banca

de qualificação, assumiu outro caráter. De forma mais abrangente, por um lado

e que contempla melhor minha prática, acabamos por definir a seguinte

questão: Compreender como se deu o processo de inserção na escola de um

adulto analfabeto, os seus aprendizados e os sentimentos vivenciados.

Page 22: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

8

Retornando à minha trajetória acadêmica, a preocupação com o ensino

e aprendizagem me despertou um grande desejo de conhecer a complexidade

do ser humano e o seu desenvolvimento. Fui fazer o curso de psicologia no

Centro Universitário Paulistana. Nesse curso, descobri vários livros que

abordam a literatura e o desenvolvimento humano. Não tive dúvidas, abracei a

literatura e li vários livros, como Fadas no Divã (CORSO E CORSO); Contos de

Fadas e Realidade Psíquica/A Importância da Fantasia no Desenvolvimento

Humano: (RADINO); A Sombra e o Mal nos Contos de Fadas (FRANZ),

Psicanálise dos Contos de Fadas (BETTELHEM), dentre outros.

Após ter lido vários livros e concluído o curso de psicologia, resolvi

trabalhar com literatura, mais especificamente com poesia no processo de

ensino e aprendizagem, na série inicial de Educação de Jovens e Adultos –

EJA, daí a primeira proposta referida.

O uso da literatura foi tão importante que resolvi levar essa prática

pedagógica para o âmbito acadêmico. Foi quando ingressei na pós-graduação

da Pontifícia Universidade Católica.

O ingresso no programa e o “diálogo” travado com muitos professores

sobre o processo de ensino e aprendizagem só confirmaram e legitimaram

para mim a importância desta pesquisa.

A escolha por Wallon

Wallon leu Makarenko, pedagogo soviético, e refere-se a ele como um

educador que deu igual peso ao desenvolvimento da pessoa e da coletividade,

Page 23: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

9

levando em conta as condições concretas da vida de cada um de seus

educandos.

“E o resultado principal das leituras pedagógicas foi para Makarenko ‘a

convicção de que a teoria tinha de ser extraída da soma total dos

fenômenos reais que se desenrolavam diante dos seus olhos’. (ALMEIDA,

2010b, p. 128)”.

Para Makarenko, a teoria tinha que estar contida nos fenômenos que se

mostravam aos seus olhos; para mim, a escolha por Wallon não foi diferente.

Optei por Wallon quando consegui perceber a presença dos seus conceitos na

minha prática profissional. Em uma aula, aproximei-me da carteira de um aluno

(sujeito desta pesquisa) e pedi para que lesse a poesia produzida pelo grupo.

Ele sorriu e disse que ficou nervoso, mas iria ler, mas primeiro precisava tirar a

blusa (estava muito frio), alegando que estava subindo um calor intenso pelo

seu corpo. Ele pediu para que encostasse a minha mão no seu braço: “sente

aqui, professora”! (A partir daqui, todo texto que estiver em negrito se refere

ao sujeito desta pesquisa). Quando minha mão o tocou, constatei que suava

intensamente. Este momento marcou a minha memória e meu encontro com

Wallon.

“Moldado simultaneamente pelas variações produzidas tanto no

ambiente como nas vísceras e na atividade própria do indivíduo, o tônus é

de fato constituído para favorecer uma base material à vida afetiva”.

(WALLON, 1995, p.141).

Entendi então que a psicogenética Walloniana daria elementos sólidos

para fundamentar meu projeto de pesquisa.

Page 24: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

10

Esta teoria concebe a afetividade, a cognição e a motricidade como

elementos indissociáveis e constituintes da pessoa. Esses conjuntos funcionais

se inter-relacionam com o meio social, de uma forma dinâmica, influenciando o

desenvolvimento humano, desde o nascimento até a morte.

Os conjuntos funcionais, por constituírem a pessoa, estão presentes no

contexto ensino e aprendizagem. Eles se expressam de uma forma entrelaçada

nas atividades desenvolvidas. Cada atividade dirigida a um dos conjuntos afeta

os demais.

APRESENTAÇÃO, CONTEXTUALIZAÇÃO E DEFINIÇÃO DOS OBJETIVOS.

Meu problema de pesquisa surgiu quando acompanhei um sujeito em

processo de alfabetização por 9 (nove) meses. Vou relatar, brevemente, a sua

chegada na sala de reforço, a atividade que o afetou e seus sentimentos

vivenciados com o grupo.

No ano de 2013, recebi um aluno na sala de reforço, com 55 (cinquenta

e cinco anos) anos, que não conseguiu frequentar a sala de alfabetização de

Educação de Jovens e Adultos - EJA (regular). Logo no primeiro dia, pedi para

que contasse a história do seu nome. No relato da história do nome,

geralmente vêm outras informações importantes, como: o lugar em que

nasceu, no que trabalhou e trabalha, por que migrou, suas preferências, seu

gostos, etc. Enquanto o relato vai acontecendo, vou anotando no meu diário de

bordo os acontecimentos que mais afetaram a sua vida. Essas informações

Page 25: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

11

serão utilizadas na elaboração do planejamento e das atividades que serão

desenvolvidas com o educando.

“Esta inquietação em torno do conteúdo do diálogo é a inquietação em

torno do conteúdo programático da educação”. (FREIRE, 2011, p. 116).

Nas palavras de Freire, este diálogo inicial entre educando e educador é

revelador. É no dialogar que ambos vão se revelando e se encontrando. O

educador encontra na palavra expressa pelo educando as informações

pertinentes para a escolha do conteúdo programático que vai nortear o

processo de ensino e aprendizagem. O educando encontra no educador a

possibilidade de realizar o sonho de aprender a ler e escrever.

Vou chamar esse educando de Raimundo. Escolhi Raimundo porque é

um nome comum no nordeste do Brasil e representa inúmeros sujeitos que

sonham em ler, escrever e vencer na vida. Na sua singularidade, representa

um coletivo que, por inúmeras circunstâncias, não conseguiu entrar ou

permanecer na escola.

Raimundo me afetou em especial:

Logo nos primeiros dias, quando lia poesia ou contava uma história

para a classe, ele se sobressaía, ora expressando um sorriso, ora

fazendo um comentário. Após a leitura, ele sempre fazia uma

observação ou pedia para contar um “causo”. Em uma aula, contei a

história do Bicos Quebrados (INGPEN, 2007). Quando terminei, ele

pediu para contar a história do papagaio (Vide anexo) que havia

Page 26: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

12

acontecido com ele. O homem relatou a história com muito humor,

medo e emoção. Percebi que a narrativa e a poesia afetavam a alma

e o cotidiano desse aluno.

A trajetória de Raimundo levantou-me alguns questionamentos e

delimitei meu problema de pesquisa da seguinte maneira:

Como se deu o seu processo de inserção na escola, os

aprendizados e os sentimentos vivenciados por esse aluno.

Objetivo: Apreender a história de vida de Raimundo para

compreender sua procura pela escola aos 55 (cinquenta e cinco

anos) anos e os sentimentos despertados no seu processo de

aprendizagem na escola.

Page 27: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

13

CAPÍTULO 1. REFERENCIAIS TEÓRICOS

“Revelar a riqueza escondida sob a aparente

pobreza do cotidiano, descobrir a profundeza

sob a trivialidade, atingir o extraordinário do

ordinário, esse é o desafio”. Lefebvre

Neste capítulo, pretendo fazer uma breve reflexão sobre a alfabetização,

tendo em vista a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e apresentar as ideias

de um psicólogo do desenvolvimento, ou seja, a abordagem de Henri Wallon.

No primeiro momento, procurarei estabelecer um diálogo com dois

autores cujos trabalhos possam me auxiliar na compreensão de como se deu o

processo de inserção na escola, os aprendizados e os sentimentos vivenciados

em EJA. São eles, Paulo Freire e Magda Soares.

A escolha por estes autores se deve pelo fato de o primeiro ter sido um

dos pioneiros a pensar a alfabetização para este segmento, os jovens e

adultos, e Magda Soares, por suas pesquisas constantes em alfabetização,

seja com este segmento, seja com a população infantil.

Merece destaque, na produção desses autores, a preocupação

constante, direta ou indiretamente, com a realidade na qual esses sujeitos

estão inseridos. Para um e para outro, a realidade é parte essencial do

processo de aquisição de conhecimentos, como o processo de alfabetização.

Page 28: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

14

Os sujeitos são detentores de conhecimentos diversos, portadores de

um acervo cultural significativo, que se refletirão no seu modo de apreensão e

no modo de lidar com a realidade. Esses aspectos deverão, portanto, ser

considerados como partes essenciais do processo de alfabetização.

Se, como professam os analistas de discurso (Orlandi, Neni e

Maigueneau), devemos estar atentos às “condições de produção” do discurso

para sua análise, em nosso caso, seguindo os passos desses autores referidos

acima, quero me atentar ao que cada indivíduo traz consigo no momento da

alfabetização, sua história, seu contexto sociocultural, etc.

Assim, a meu ver, ambos os autores permitem pensar o processo de

alfabetização para além de métodos já dados, sempre se considerando novos

elementos do entorno que podem (e devem) auxiliar nesse processo,

ampliando a perspectiva sobre este, ou seja, pensar a alfabetização de modo

contextualizado.

Ressalto que este diálogo será permeado, o tempo todo, pela minha

experiência como educadora que trabalha na Rede Municipal de São Paulo

com jovens e adultos; ao longo deste diálogo, irei destacar elementos

essenciais que me auxiliaram a desenvolver a presente pesquisa.

1.1. Paulo Freire ou “A Alfabetização pela Pedra”

Freire (1967, p. 101) desenvolveu seu método de alfabetização

trabalhando com educação de adultos, em áreas proletariada e subproletária,

Page 29: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

15

urbanas e rurais na região nordeste do Brasil. Para ele, alfabetizar é uma

prática muito mais ampla, que implica a tomada de consciência do educando.

Ou seja, o educando precisa conhecer o lugar que ocupa no mundo, as

relações interpessoais que trava no seu cotidiano, o seu poder criativo e

transformador. Assim, Freire ressalta que tanto o indivíduo do campo como o

da cidade tem conhecimento. É um conhecimento peculiar, que marca o lugar

de cada um no tempo e no espaço. No processo ensino aprendizagem, o

educador pode extrair elementos desse conhecimento para criar um novo

saber.

Com este objetivo, Freire (1967, p. 102) criou o círculo de cultura. Nesse

espaço o alfabetizando se reunia para debater os seus problemas vividos na

comunidade, os problemas do país e do mundo. Esse debate, “aparentemente

espontâneo”, era mediado pelo educador. No calor dos depoimentos, os

participantes resgatavam a sua história de vida com suas singularidades e

semelhanças e percebiam-se sujeitos detentores de saberes e experiências.

Saberes que contribuem na criação e recriação do meio cultural, social e

econômico. Nesta relação grupal, a realidade e o sujeito vão se revelando para

o próprio sujeito e para o grupo. Neste revelar-se, o sujeito vai marcar seu lugar

no mundo, que passa a ser sentido, marcado e nomeado pela linguagem.

Para consolidar essa prática, é fundamental que o educador se coloque

na condição de mediador da aprendizagem. O mediador não é doador de

conhecimento, mesmo porque o alfabetizando é detentor de um conhecimento

prévio. O mediador compartilha e/ou constrói conhecimentos e experiências

junto com o educando em uma relação dialógica. Portanto, isto implica se

Page 30: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

16

colocar numa posição frente ao educando, como igualmente detentor de uma

história, com características singulares e também comuns às do educando;

falam de lugares diferentes, mas compartilham algo em comum, que é a

construção do conhecimento conjunto, particularmente a alfabetização.

É na relação dialógica com o grupo que o educador tem condições de

garantir um espaço para que o sujeito conte a sua história de vida, suas

emoções, sentimentos, dificuldades e desejos. Esse momento é extremamente

significativo, no qual o educador fará um levantamento do universo vocabular.

(...) os vocábulos mais carregados de sentido existencial e, por isso de

maior conteúdo emocional (...) os falares típicos do povo. (FREIRE, 1967,

p. 111).

O levantamento vocabular permitirá que o educador extraia a palavra

geradora.

“Palavras geradoras são aquelas que, decompostas em seus

elementos silábicos, propiciam, pela combinação desses elementos, a

criação de novas palavras”. (FREIRE; 1967, p. 111).

A palavra geradora vem carregada de significado. Ela traz no seu âmago

um fragmento da história de vida do indivíduo e está impregnada de emoção,

afetividade e memórias. Ela serve como um disparador que possibilitará ao

sujeito, em uma ação contextualizada e mediada pelo educador, construir

outras palavras significativas tanto quanto a palavra geradora e, assim,

apropriar-se do código da escrita de uma forma consciente, crítica, humanizada

e não mecanizada. Ao apropriar-se do código da escrita de uma forma

consciente, o indivíduo terá a possibilidade de escrever e nomear o conteúdo

Page 31: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

17

do seu pensamento, suas emoções, seus sentimentos, enfim ele passa a

desvelar o mundo e escrevê-lo com mais propriedade.

É justamente a “contextualização”, outro momento importante no

processo de ensino e aprendizagem.

“contextualizar é trazer para a realidade a fala do educando carregada de

história de vida, e socializá-la com o grupo; é um momento de reflexão compartilhada”.

(FREIRE, 1967, p. 111).

Este momento possibilita situar o sujeito no passado e no presente. É

uma oportunidade que ele tem de conhecer e se reconhecer como autor da sua

história. Este reconhecimento lhe possibilitará refletir sobre o lugar que ocupa

no mundo, as suas escolhas do passado, do presente, e ressignificar suas

experiências; é um movimento de desvelar a vida e projetar o futuro.

Esse desvelar a vida nada mais é do que se descobrir um ser dotado de

consciência do mundo. Um mundo inacabado construído por seres inacabados

e impregnado de historicidade. Perceber-se que se constrói nas relações

sociais e econômicas, portanto é um sujeito marcado historicamente. Este

sujeito histórico que constrói a realidade e é construído por ela pode construir

também seu processo de ensino e aprendizagem em uma relação dialógica,

mediada e compartilhada pelo educador e educando.

Para Freire, a essência do processo ensino e aprendizagem está

pautada no diálogo, tendo em vista que esse é o encontro de duas ou mais

Page 32: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

18

pessoas portadoras de conhecimentos diferentes e semelhantes, ambos

inacabados. Ele se revela por meio da palavra em uma conversação.

A palavra reflete a maneira como a pessoa se coloca no mundo, como

pensa, vive e se conecta com a realidade. Por esta razão a palavra tem que

refletir uma ação, uma reflexão e uma práxis, do contrário ela se torna oca,

vazia de significados, se transformando em palavreria, verbalismo que é o

blablablá alienante, descompromissado e desconectado com a realidade.

“O diálogo é um encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para

pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu”. (FREIRE,

2011, p. 109).

É pelo diálogo que eu reconheço o outro e me conheço, e juntos

denunciamos o mundo que compartilhamos. Um mundo inacabado, que não se

esgota nessa relação eu-tu, mas se completa na incompletude do vir a ser.

Esse vir a ser é um ato de criação e transformação da realidade. O ato criador

e transformador se objetiva quando reconheço que o outro, assim como eu,

não sabe tudo e não ignora tudo, mas ambos têm potencial para confrontar as

suas semelhanças e diferenças numa realidade dinâmica, histórica e

culturalmente construída.

Segundo Freire, para estabelecer uma relação dialógica entre homens e

mulheres, educando e educador, é necessário que todos tenham amor, fé,

humildade, coragem e esperança.

Nessa relação, o amor é fundamental, pois este sentimento atrelado à

esperança, à fé, à humildade e à coragem vai despertar os sonhos. O sonho de

Page 33: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

19

saber mais sobre quem sou eu neste mundo? Quem é o outro? Qual é o meu

lugar? Para onde quero ir? Quais os projetos que quero realizar? Que mundo é

este que habito e qual mundo quero habitar? Este sonho não é um sonho que

se sonha sozinho, mas um sonho compartilhado com outros sonhos.

“Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, o diálogo se

faz uma relação horizontal, em que a confiança de um polo no outro é

consequência óbvia”. (FREIRE, 2011, p. 113).

Na proposta Freiriana, a relação entre educando e educador é horizontal

nesta fase do diálogo, pois ambos estão em pé de igualdade, são detentores

de saberes diferentes e inacabados, assim como é o homem. É por meio do

diálogo que esses saberes vão se revelando, se cambiando, se completando e

se transformando em novos saberes. É neste espaço de conversação e

reflexão que os problemas, sejam do cotidiano, do país ou do mundo vão se

configurando; assim acontece também com os desejos, angústias e sonhos de

cada sujeito. Refletindo em conjunto a realidade, que é “comum” ao grupo,

surgem fragmentos da realidade que são singulares ao sujeito.

É possível agora passar à etapa seguinte.

Os saberes exteriorizados, não sistematizados, na relação horizontal

entre educador e educando, serão aglutinados e transmitidos de uma forma

sistematizada em conteúdos programáticos. Sendo assim, a realidade dos

sujeitos está contemplada no conteúdo programático.

O conteúdo programático não se caracteriza como uma doação do

educador para o aluno, mas em uma vivência significativa entre pessoas

Page 34: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

20

reflexivas que pensam a sua história de vida, o lugar que ocupam no mundo,

os sentimentos, as dificuldades, os sonhos e a realidade que as circundam.

São pessoas portadoras de saberes mediatizados pelo mundo que se

materializa pela palavra, que tanto pode escravizar como libertar o homem. É o

reconhecimento da palavra do educando pelo educador e da palavra do

educador pelo educando que desencadeará o processo de uma educação

libertária. A educação libertária percebe o sujeito ativo, criador e transformador

da realidade e do processo de ensino e aprendizagem. Esse tipo de educação

desperta para conscientização do eu no mundo e com o mundo.

Os fragmentos do poema A Educação pela Pedra, de João Cabral de

Melo Neto, sintetizam o processo apresentado.

“(...) lições da pedra (de fora para dentro, cartilha muda), para quem

soletrá-la. Outra educação pela pedra: no Sertão (de dentro para fora, e

pré-didática). No Sertão a pedra não sabe lecionar, e se lecionasse não

ensinaria nada; lá não se aprende a pedra: lá a pedra, uma pedra de

nascença, entranha a alma”. A educação pela pedra (MELO NETO, 1994,

p. 338).

Este fragmento do poema nos faz pensar no tipo de educação que

podemos promover. Uma educação para a liberdade, que busca na essência

do homem o caminho para sua realização humana ou a opressão e a alienação

que o tornam um ser subserviente do próprio homem!

Na educação opressora (nomeada por Freire como bancária), o

educador detém o saber e deposita no educando, é uma relação vertical, de

cima para baixo. O conhecimento vem de fora para dentro, causando, na

maioria das vezes, certo estranhamento. Esta relação é fria como a pedra,

Page 35: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

21

mina o poder criador e transformador do homem, endurece a sua alma e

congela a sua consciência. Nesta relação verticalizada, o homem é visto como

uma coisa, um objeto inanimado, é algo moldável e adaptável ao mundo de

acordo com os interesses de quem manda e determina as relações pessoais,

sociais e econômicas do país. Esta proposta de educação não emancipa,

aprisiona, obstrui o mundo do homem tirando a sua humanidade.

A educação pela liberdade se caracteriza pela tomada de consciência

sobre a realidade objetiva, é o despertar para uma consciência crítica sobre o

real e a superação da consciência ingênua. Nesta proposta de educação

libertária, a apropriação da leitura e da escrita é simultânea à tomada de

consciência. Embora para Freire a leitura do mundo preceda a leitura das

palavras, à medida que o sujeito se apropria da leitura esta aprimora a sua

leitura do mundo. Não de um mundo estático, determinado e imutável, mas um

mundo que o sujeito construiu e constrói com seus sentidos, com sua força de

trabalho, com sua criatividade, com seus sonhos, desejos, afetos e desafetos.

Homem e mundo se pertencem reciprocamente: o homem transforma o mundo

e é transformado por ele. Nesta relação, mundo e homem se perpetuam. Até a

pedra do sertão (em estado bruto), lapidada pela criatividade humana se

transformará em um produto da cultura e da produtividade humana.

.

1.2. Magda Soares ou “Alfabetização para Além do Muro da Escola”

Soares é uma pesquisadora da língua escrita. Sua pesquisa é

desenvolvida na academia e legitimada no chão da escola na periferia de Belo

Page 36: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

22

Horizonte. É no chão da escola que a autora acompanha a prática docente e o

desenvolvimento do aluno.

Ela defende que todo indivíduo que nasceu em uma sociedade

grafocêntrica, ou seja, mediada pela escrita, já está em estado de letramento. A

criança que acaba de ganhar o mundo já está cercada de letras. As primeiras

letras que serão sua marca registrada desde o nascimento até a morte são as

do seu nome. Logo depois, o seu principal cuidador nomeará os alimentos que

consome, os objetos que utiliza, as pessoas mais próximas com quem se

relaciona, o brinquedo com que brinca, o choro, o riso, a fome, os sentimentos

e emoções, enfim a criança será apresentada ao mundo letrado e, por

necessidade e/ou desejo, será levada a interagir com ele.

Esta interação entre letramento e vivência é um aquecimento para a

alfabetização sistematizada, que acontecerá na pré-escola. Portanto, a criança

que chega à pré-escola não é uma tábua rasa ou um saco vazio que precisa se

encher! É um ser que traz sua herança cultural que foi transmitida pela família

e sociedade nos primeiros anos de vida.

Na concepção de Soares, “alfabetização é adquirir uma tecnologia, a de

codificar em língua escrita e de decodificar a língua escrita” (SOARES, 1998, p.

39). Neste trecho, a autora cita a aquisição de uma tecnologia. Esta tecnologia

nada mais é do que conhecer o alfabeto e, por meio dele, escrever palavras e

frases. Esta prática é a codificação da língua escrita. A decodificação é a leitura

da escrita. Em suma, alfabetização é aprender a ler e escrever.

Page 37: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

23

No entanto, a autora defende que, atualmente, só a alfabetização não

supre as necessidades da demanda social em relação à leitura e escrita. Ela

alega que, além de alfabetizado, o indivíduo precisa estar letrado:

“(...) dos indivíduos já se requer não apenas que dominem a

tecnologia do ler e do escrever, mas que saibam fazer uso dela,

incorporando-a a seu viver, transformando-se assim seu “estado” ou

condição, como consequência do domínio dessa tecnologia”. (SOARES,

2013, p. 29).

Mas o que é letramento? Letramento é a apropriação da língua escrita, é

ter consciência de que ler e escrever faz parte do EU de cada indivíduo. O

indivíduo letrado está apto para atender às demandas sociais, que nada mais

são que: preencher uma ficha, ler e assinar um documento, ler jornal, bula de

remédio, receita de bolo, quadrinhos, dentre outras coisas. O sujeito letrado

fortalece o seu poder de escolha, ou seja, leio isso ou aquilo? Compro isso ou

aquilo? Relaciona-se com a sociedade de uma forma “autônoma,” se sentindo

um cidadão de direitos e deveres.

No processo de ensino e aprendizagem, alfabetização e letramento são

interdependentes e indissociáveis. Para atingir o letramento, é necessário o

sujeito se apropriar do sistema alfabético e ortográfico da língua escrita

(alfabetização). Esta apropriação deve ser desenvolvida no contexto de

letramento e por meio de atividade de letramento. Então, o que é um ambiente

letrado? O ambiente letrado é o contexto social e cultural em que o indivíduo

está inserido. Vou destacar a escola, porque a sua função na sociedade é

promover a educação integral do ser humano. A escola deveria ser um espaço

de construção da alfabetização e do letramento, por guardar o conhecimento

Page 38: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

24

universal da humanidade, produzir novos conhecimentos e∕ou transformá-los.

Ela garante o encontro de pessoas de diversas culturas. Sendo assim, é tarefa

do educador promover situações efetivas que despertem no alfabetizando o

desejo de se envolver com práticas de letramento.

Essas práticas vão desde leituras de poesia, história, jornal, produção de

texto, enfim todo material de leitura que circula na escola e na sociedade. Este

ambiente deve promover condições favoráveis ao aprendizado significativo da

leitura e escrita e simultaneamente pontuar que estas habilidades responderão

a uma demanda social do cotidiano, desde a mais tenra idade até a finitude da

vida. O indivíduo letrado tem consciência do que, como e por que ler e escrever

no seu meio social. “Um adulto pode ser analfabeto e letrado”. (SOARES, 2012,

p. 47).

Esta afirmação da autora nos diz que o adulto analfabeto (aquele que

não se apropriou do sistema da língua escrita) pode viver em estado de

letramento. Este estado de letramento é saber utilizar a escrita para responder

a uma demanda social. No filme Central do Brasil, cuja trama se passa no

subúrbio do Rio de Janeiro, podemos perceber um estado de letramento na

cena onde Ana (analfabeta) procura Dora (Fernanda Montenegro, escrevente

de carta) para ditar uma carta para seu “marido”, que mora no Nordeste. A

personagem dita a carta com domínio da linguagem; este comportamento

representa o letramento.

O contrário também pode ocorrer: uma pessoa pode ser alfabetizada e

não estar letrada. Embora alfabetizada, tenha dificuldade de interpretar um

Page 39: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

25

texto, de escrever um bilhete ou uma carta; ela tem dificuldade em se envolver

em situações de letramento. Este comportamento ocorre porque ela não foi

alfabetizada em um ambiente letrado.

Como já foi relatado anteriormente, alfabetização e letramento são

práticas indissociáveis, que se utilizadas efetivamente, logo nos primeiros anos

de escolaridade, provavelmente ultrapassarão o muro da escola. Alfabetizar e

letrar para além do muro da escola deveria ser o objetivo central das políticas

educacionais de qualquer país preocupado com o desenvolvimento pleno dos

seus cidadãos.

1.3. Henri Wallon e a Integração Afetiva – Cognitiva – Motora

O teórico Henri Wallon, médico, psicólogo, pesquisador, educador,

nasceu em Paris, em 1879, e morreu na mesma cidade, em 1962. Esse

período foi bastante turbulento, com acontecimentos que marcaram a

humanidade, como as duas primeiras guerras mundiais (1914-1918 e 1939-

1945); o avanço do fascismo no período entre guerras; as revoluções

socialistas e as guerras para libertação das colônias na África, que atingiram

boa parte do continente europeu e em especial o seu país.

Wallon foi criado em uma atmosfera humanista. O respeito ao ser

humano e às suas diferenças, aos valores éticos e o repúdio às injustiças

sociais fizeram parte da sua educação familiar. Estudou filosofia, medicina e

psicologia. A sua trajetória acadêmica, assim como os acontecimentos

políticos, sociais e a sua educação humanista influenciaram o desenvolvimento

Page 40: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

26

da sua teoria, uma teoria que se propõe a estudar o ser humano completo. É

importante lembrar que era uma pessoa dotada de uma sensibilidade

expressiva pelo mundo das artes.

“Há um grande parentesco entre o artista e o cientista. O cientista tem

necessidade de mais imaginação do que costuma se supor. Ele precisa

remanejar a realidade para compreendê-la. O artista precisa desarticulá-la

para reafirmá-la à sua maneira”. (GALVÃO, 1995, p. 20)

Sua formação interdisciplinar se refletiu na sua produção teórica. A

teoria Walloniana propõe um estudo integrado do desenvolvimento humano,

por acreditar que o homem não é fragmentado. O psiquismo é constituído

pelos conjuntos afetividade, motricidade, cognição e pessoa. Afetividade,

cognição, movimento se inter-relacionam desde o nascimento, em uma

complexa relação com o ambiente. Pessoa, o quarto conjunto, tanto garante a

integração entre eles, como é o resultado dessa integração

Nesta pesquisa vou priorizar a afetividade, embora reconhecendo que

afetividade, cognição e motricidade são indissociáveis: se uma atividade for

dirigida a um dos conjuntos, os demais serão afetados. Wallon discute

separadamente cada um dos conjuntos por uma questão didática:

“As exigências da descrição obrigam a tratar de forma distinta alguns

grandes conjuntos funcionais, o que certamente não pode ser feito sem

certa artificialidade, sobretudo no ponto de partida, quando as atividades

ainda são pouco diferenciadas” (WALLON, 2007, p. 113).

1.3.1 Afetividade

A afetividade em Wallon “refere-se à capacidade, a disposição do

ser humano de ser afetado pelo mundo externo/interno por sensações ligadas

Page 41: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

27

a tonalidades agradáveis ou desagradáveis” (MAHONEY e ALMEIDA, 2005, p.

19).

Quando o indivíduo é afetado positivamente por uma situação há um

envolvimento que o mobiliza e o convida a avançar na resolução de um

problema. Se o indivíduo for afetado de uma forma negativa por uma situação,

a tendência é se afastar, se retrair. Há casos, porém, em que a situação que o

afeta provoca sentimentos de tonalidades negativas e pode fortalecê-lo para

avançar e vencer o obstáculo.

O conjunto afetividade engloba emoção, sentimento e paixão. Os

três resultam da integração do organismo com o meio social. Sucintamente:

Emoção: é a exteriorização da afetividade, podendo ser percebida

por meio da expressão corporal e motora. Ela é plástica, contagiante e

expressiva. No recém-nascido, a exteriorização da emoção é uma ponte de

comunicação com o seu cuidador e com o ambiente. Daí a afirmação de

Wallon de que é pela emoção que o recém-nascido tem sua primeira ligação

com o mundo social.

Sentimento: quebra a potência da emoção, ou seja, ele reprime sua

força. Para quebrá-la ou reprimi-la, o indivíduo pode usar a linguagem, a

mímica, etc. Esta habilidade de controlar e nomear as emoções é melhor

percebida no adulto devido este já ter conquistado a capacidade de refletir

sobre os fatos e de se expressar intelectualmente sobre as situações.

Page 42: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

28

“O sentimento corresponde à expressão representacional da afetividade.

Não implica reações instantâneas e diretas como a emoção”. (MAHONEY

e ALMEIDA, 2005, p. 21).

Paixão: tenta silenciar a emoção. A paixão controla a expressão de

emoções e sentimentos para atingir um objetivo; tem, pois, a função de

autocontrole, para atingir o objetivo relevante.

Reafirmo que escolhi a psicogenética Walloniana porque considera a

afetividade, a cognição e a motricidade integradas, constituindo uma pessoa

não fragmentada. De forma integrada, os conjuntos constituem o psiquismo

humano. Outro aspecto que determinou minha escolha foi a sensibilidade de

Wallon pela arte, pela justiça social, pelos oprimidos e pela educação. Seu

projeto educacional visava uma educação mais justa para uma sociedade mais

justa.

1.3.2. Integração organismo meio

Na concepção de desenvolvimento de Wallon, o biológico e o social

são indissociáveis:

“Nunca pude dissociar o biológico do social, não porque os julguem

redutíveis um ao outro, mas porque me parecem tão estritamente

complementares desde o nascimento, que é impossível encarar a vida

psíquica sem ser sob forma de suas relações recíprocas”. (WALLON,

1941/1995, p. 14).

O biológico e o social têm basicamente a mesma importância para a

teoria Walloniana. O indivíduo se relaciona com o meio desde o nascimento até

Page 43: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

29

a morte. Nesta relação ambos se transformam e transformam a realidade. É

um constante vir a ser, pois indivíduo e meio são construídos historicamente.

“O meio é um complemento indispensável ao ser vivo. Ele deverá

corresponder a suas necessidades e as suas aptidões sensório-motoras e

depois psicomotoras [...] Não é menos verdadeiro que a sociedade coloca

o homem em presença de novos meios, novas necessidades e novos

recursos, que aumentam as possibilidades de evolução e diferenciação

individual. A constituição biológica da criança ao nascer não será a única

lei de seu destino posterior. Seus efeitos podem ser amplamente

transformados pelas circunstâncias de sua existência, da qual não se

exclui sua possibilidade de escolha pessoal.” (WALLON, 1986, p. 168,

169).

O componente biológico do indivíduo ao nascer, no decorrer da vida

é transformado pela ação do meio. Este meio tanto pode contribuir como barrar

o desenvolvimento. Em sendo acolhedor, oferecendo condições materiais,

afetivas e intelectuais satisfatórias para que o indivíduo possa explorar o

mundo, desenvolver suas habilidades, potencialidades e fazer as suas

escolhas, favorece o desenvolvimento (Mahoney e Almeida, 2010). A

sociedade está em constante mutação, trazendo novos saberes e desafios

para que o homem se aproprie, evolua e se diferencie. O exemplo da

tecnologia é sugestivo. Com o uso do computador surgiram novos recursos e

novas necessidades, exigindo mudanças no comportamento do homem. Ele

teve no mínimo que aprender a usar essa máquina para se comunicar, para

trabalhar, etc. Isso foi uma exigência do meio social, que desencadeou um

avanço no comportamento do homem e um avanço em muitas áreas do saber.

Page 44: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

30

1.3.3. A relação Eu-Outro

Eu e outro têm para Wallon uma relação fundamental para o

desenvolvimento da pessoa. A criança já nasce inserida no meio social,

completamente dependente; precisa do outro para garantir sua sobrevivência.

É pela emoção que ela se vincula ao outro em uma relação simbiótica,

indiferenciada. No decorrer do seu desenvolvimento, por meio das interações

estabelecidas e experiências decorrentes de seu meio é que ela vai

alcançando a individualidade, numa complexa diferenciação entre o eu e o

outro.

No decorrer do processo de desenvolvimento, a partir de jogos de

alternância, atuando sobre o meio, a criança se diferencia dos objetos, das

coisas e dos outros seres.

O grupo terá papel fundamental nesse processo, pois a criança

defrontando-se com as diferenças que permeiam as relações humanas e

tomando consciência das mesmas passará, também, a perceber seu lugar em

determinado grupo e por que faz parte dele; percebe-se como diferente dos

demais. Identificar-se com determinado segmento grupal não exime ninguém

de se deparar com diferenças, pois elas existem em qualquer relação humana.

Sendo, então, essencialmente social, o indivíduo parte da

socialização para a individuação. O social deixa nele suas marcas, seus

valores, contribui com a formação de sua personalidade, e o indivíduo,

reconhecendo sua individualidade é agora capaz de refletir sobre o social,

sobre suas ações, sobre si.

Page 45: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

31

“Essa modelagem do eu pelo meio, da consciência individual pelo

ambiente coletivo (...) é consequência das inaptidões prolongadas às quais

o filho do homem está condenado pela lentidão extrema de seu

desenvolvimento, aliás, possível graças à instituição de uma sociedade

organizada e protetora.” (WALLON, 1986, p. 168, 169).

Wallon aponta três tipos de outro: o outro das relações

interpessoais, com os quais os indivíduos interagem; o outro enquanto conceito

geral, englobando todos os outros; e o socius, o outro íntimo, companheiro

constante do eu, que traz as marcas e valores de seu meio social. O socius

emerge do processo de diferenciação entre eu e outro. É por vezes negado e

escondido, mas aparece de acordo com as situações e emoções suscitadas. É

um outro silencioso; que dialoga com o eu, e nesse diálogo um pode se

sobrepor ao outro (ALMEIDA, 2014).

1.4. As águas se encontram

A escolha destes teóricos se deu devido todos contemplarem a realidade

do sujeito, suas experiências e vivências. Eles acreditam que a educação tem

como objetivo principal promover uma sociedade mais justa e democrática. A

escola é uma das principais instituições que deveriam desempenhar este

papel, pois ela guarda em seu bojo a cultura universal, transforma o saber e

produz novos saberes. É no âmbito escolar que o indivíduo, independente da

sua classe social, etnia e diferenças deveria desenvolver as suas habilidades e

aptidões. É o lugar legítimo para apropriar-se da leitura e da escrita como um

direito de todos e não como um “favor” ou “doação”.

Page 46: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

32

Os autores, partindo de lugares e formações diferentes, têm uma

preocupação, a construção do conhecimento. Sendo assim:

(...) à medida que um método ativo ajude o homem a se conscientizar

em torno de sua problemática, em torno de sua condição de pessoa, por

isso de sujeito, se instrumentalizará para as suas opções”. (FREIRE, 1967,

p. 119).

Para Soares (2012):

“Concluiu-se que só se estará contribuindo para a conquista da

cidadania se, ao promover a alfabetização, propicia-se, sobretudo,

condições de possibilidade de que os indivíduos se tornem conscientes de

seu direito à leitura e à escrita, de seu direito a reivindicar o acesso à

leitura e à escrita”. (SOARES, 2012, p. 57).

Para Wallon (1969):

“a introdução da justiça na escola pela democratização do ensino

porá cada um no lugar que suas aptidões lhe apontam para o maior bem

de todos. A diversidade das funções já não será regulada pela fortuna ou

pela classe social, mas pela capacidade para desempenhar a função”.

(Plano Langevin-WALLON, 1969, p. 158).

A escola é o lócus da construção de conhecimentos que estejam a

serviço do coletivo e do bem-estar individual, ou seja, para desenvolver a

cidadania. O ensino democrático deve estar pautado na participação e no

diálogo entre aluno e professor, pois ambos são detentores de saberes que se

encontram e que se transformam para “formar” uma nova sociedade. Uma

sociedade na qual todos tenham o seu lugar de direito. Um espaço de

produtividade, reconhecimento e acesso ao patrimônio cultural.

Uma sociedade democrática concebe a educação como um direito de

todos e não como um privilégio de alguns. Para tanto, é necessário que os

Page 47: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

33

professores(as), mediadores do aprendizado, recebam uma formação efetiva e

de qualidade e que sejam tratados com respeito e dignidade!

Page 48: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

34

CAPÍTULO 2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

“O êxito da vida não se mede pelo caminho

que você conquistou, mas sim pelas dificuldades

que superou no caminho.” Abraham Lincoln

Para a elaboração desta pesquisa foi escolhida a abordagem qualitativa.

2.1. Coleta de Dados

Para coleta de informações foi realizada entrevista do tipo reflexivo, com

o aluno já referido anteriormente, o qual me afetou de forma significativa. Essa

modalidade prevê questões desencadeadoras que, durante a entrevista, são

realizadas para esclarecimento e complemento de algumas informações.

Outras informações foram fornecidas pelo registro de observações no

cotidiano da sala de aula, pois durante o processo de ensino e aprendizagem

foram anotadas no diário de bordo da pesquisadora as falas do sujeito inserido

no processo de alfabetização.

2.1.1 Caracterização da Escola e do Aluno Selecionado

A pesquisa foi realizada em uma Escola Municipal de Ensino

Fundamental na periferia da cidade de São Paulo. A escola é composta por

1.100 alunos e 70 professores. Essa escola funciona em três turnos: manhã,

tarde e noite. O curso de Educação de Jovens e Adultos funciona no período

noturno.

Page 49: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

35

A entrevista foi realizada com um aluno da 1ª Etapa do curso de

alfabetização de Jovens e Adultos. Os alunos dessa etapa estão registrados no

quadro 1 (um) do Apêndice. Este quadro é importante para visualizarmos a

heterogeneidade do grupo, as suas origens. O entrevistado é do sexo

masculino, tem 55 (cinquenta e cinco) anos, é casado, pai de dois filhos

adultos, trabalha na feira e mora próximo à escola.

A entrevista foi agendada pela pesquisadora, que trabalha como

professora alfabetizadora nessa escola e foi realizada no período noturno, em

uma sala reservada para reuniões. Esse local foi escolhido por ser um lugar

tranquilo e sem interferências.

No início da entrevista, percebi que o aluno estava muito bem-

humorado e disposto a contribuir com este trabalho. Fizemos um acordo, onde

ele só iria responder o que quisesse. Com a sua permissão a entrevista foi

gravada, pois esse procedimento iria permitir uma análise mais fiel e rigorosa

do conteúdo. Foi acordado que sua identidade seria preservada e que usaria

um nome fictício. O nome escolhido foi Raimundo.

2.1.2 Quanto à entrevista, foi proposta da seguinte forma:

Primeira questão: Conte-me a sua história;

Segunda questão: O que o levou a procurar a escola?

Terceira questão: Conte-me como foi seu primeiro dia na escola.

A primeira questão teve a proposta de levantar a trajetória de vida de

Raimundo: a segunda, a de identificar o que o levou a procurar a escola aos 55

Page 50: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

36

(cinquenta e cinco) anos, tendo já conseguido trabalho em várias empresas; a

terceira na tentativa de compreender seus sentimentos e aprendizagens na

escola.

2.1.3 Anotações do diário de bordo da professora

Selecionei alguns registros, dentre os muitos que fiz, durante meu

trabalho com Raimundo. Escolhi-os em função de meu tema de pesquisa.

Algumas falas de Raimundo, depois que aprendeu a ler, estão em anexo.

2.2. Análise dos dados

A partir da entrevista, elaborei um quadro constando:

Depoimento do sr. Raimundo;

Explicitação dos significados, isto é, o que a pesquisadora

interpretou do depoimento:

Identificação, no depoimento, de alguns temas para discussão.

O Quadro 2 (Apêndice) registra o depoimento e os significados

aprendidos pela pesquisadora.

A partir do quadro selecionei quatro temas, que passo a discutir juntando

na discussão as falas que registrei no diário de bordo brevemente.

Page 51: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

37

CAPÍTULO 3. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

A formação psicológica dos professores não pode ficar

limitada aos livros. Deve ter uma referência perpétua nas

experiências pedagógicas que eles próprios podem

pessoalmente realizar. Henri Wallon

3.1. Trajetória de vida do sr. Raimundo

A história de vida do sr. Raimundo representa a vida de muitos

Raimundos e Raimundas, excluídos(as) da escola, do mercado de trabalho

formal, dos sonhos, enfim, da cidadania.

“Nada o distingue, nada o singulariza: Nem seu nome, nem seus pais,

nem passado, nem o corpo, nem o lugar onde vive, nem a vida, nem a

morte o individualizam. Sua identidade transcende sua individualidade”.

(CIAMPA,1987, p. 24).

O sujeito desta pesquisa, a quem chamo de Raimundo, nasceu na

cidade de Brumados, Bahia. É o único homem de uma prole de mais quatro

irmãs. Seu pai, bem mais velho que sua mãe, faleceu quando ele tinha seis

anos. Após perder o marido, sua mãe mudou com os filhos(as) para a roça,

para trabalhar na lavoura de algodão. Raimundo, com 6 (seis) anos, ajudava a

mãe na roça. Quando tinha 7 (sete) para 8 (oito) anos, sua mãe resolveu

migrar para São Paulo com o namorado, deixando os filhos (as) com a avó.

Nesse período, ele foi trabalhar na lavoura de arroz, espantando passarinhos

com gritos e pedras; em troca, ganhava comida, roupa e moradia.

“Então eu ficava cuidando para os passarinhos não comer o arroiz”

(...) Nois pegava o boneco vestia, parece boneco de Olinda, e colocava no

Page 52: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

38

meio da plantação (...) Ficava o dia inteiro gritando com os passarinhos e

jogava pedras para eles avoarem. A colheita que era dura. Tinha que

cortar o arroz e não aguentava carregar muito, eu pegava aos poucos (...).

“Um tempo Severino que vivido como quotidiano estruturado na luta

pela sobrevivência. O quotidiano o produz e ele o reproduz Severino: esta

sua sina”! (CIAMPA, 1987, p. 25).

Nas palavras de Ciampa, Raimundo, assim como Severino, defende a

sua sobrevivência, marcado pela rotina do trabalho cotidiano. Raimundo não

produz, não cria o seu trabalho. Ele é a expressão viva do espantalho, espanta

os passarinhos, num movimento repetitivo e empobrecido, que leva ao

achatamento da condição humana, minando seu poder criativo e

transformador.

Nesta condição de espantalho vivo não havia tempo e nem lugar para a

escola.

Ele desconhecia o que era escola até a chegada de uma professora.

“Não tinha escola, não tinha nada, era só roça”.

“(...) o risco da banalização da vida humana, que pode ser provocado

pela rotina, pelo trato cotidiano de situações de segregação, de injustiça.”

(MARTINELLI, MUCHAIL e ON 1998, p. 110).

Raimundo está inserido em uma realidade na qual essa é a única opção,

para garantir a sobrevivência, é o trabalho na roça. A sua condição é

semelhante à do escravo, obrigado a trabalhar, ininterruptamente, sem

remuneração. Essa condição de semiescravidão banaliza a vida, impedindo

Page 53: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

39

que o sujeito se aproprie da maior riqueza humana, que é a capacidade de

expressar todo o seu poder criador e transformador por meio do trabalho.

A professora chegou, na roça, para dar aula no pé da árvore e trouxe um

livro para cada criança. O nome do livro era Pelé e a Bola. Mas, como ela

morava muito longe, a 30 km da cidade, desistiu no primeiro dia. Só restou o

livro, que marcou a memória de Raimundo. O livro que guarda em suas

páginas as letras, que formam as palavras, que formam as frases que

exprimem um sonho de menino de aprender a ler e escrever, então “Só fica o

que significa”. (PLACCO e SOUSA, 2006, p. 38). O livro significou, naquele

momento, a possibilidade de apropriação da leitura e escrita.

Raimundo foi crescendo sem escola, e se transformando em pré-

adolescente com mais força e capaz de tirar leite da vaca e ser o vaqueiro da

fazenda. “(...) aí eu já guentava tirar leite, tem que ter força pra tirar, eu

tenho até olho-de-peixe daquela época (...)” Com toda a sua força de quase

homem, assumindo responsabilidade de um adulto, não tinha um salário;

continuava trabalhando em troca de casa, comida e roupa. O pouco dinheiro

que conseguiu juntar era vendendo cachaça, que pegava fiado na cidade, para

os colegas na roça.

“Os sonhos impossíveis, as fantasias sentimentais não atingem todos

os jovens com a mesma intensidade, podendo ser contidos conforme as

exigências de sua vida cotidiana. Uma das causas frequentes é o início da

atividade profissional precoce, que põe o jovem em contato imediato com a

realidade social e pode oferecer-lhe o sabor da sua independência, mas

também colocá-lo diante de responsabilidades para as quais pode ainda

não estar preparado”. (MAHONEY e ALMEIDA , 2012, p. 63).

Page 54: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

40

A criança que carregava arroz, aos poucos, porque não aguentava o

peso, agora, na adolescência, assume a responsabilidade de um vaqueiro, pois

se sente dotado de força para tirar o leite da vaca e cuidar do gado. Embora

tenha mudado de função e adquirido mais autonomia no trabalho, ainda

permanece em uma situação aviltante, ou seja, sem remuneração. Ele muda

de função, consegue mais autonomia no trabalho, mas não muda o seu lugar

no mundo, pois não tem ainda autonomia suficiente sobre sua própria vida.

Na concepção Walloniana, alguns adolescentes são obrigados a

trabalhar para suprir as carências materiais, suas ou da família. Essa

necessidade, muitas vezes, impossibilita o jovem de viver intensamente suas

fantasias, sonhos e sentimentos. No caso de Raimundo, a necessidade de

trabalhar chegou na infância e se intensificou na adolescência, com mais

responsabilidades, e o que é mais humilhante, sem pagamento em dinheiro.

Não lhe foi concedido um espaço acolhedor, nem na infância e muito menos na

adolescência, que lhe possibilitasse: jogar bola, rodar pião, ser embalado por

cantigas de ninar, ouvir e contar histórias, conhecer letras, formar palavras,

escrever frases, histórias, escolher roupas, calçados, sonhar e fantasiar.

A exclusão e a mesmice do cotidiano marcaram a sua trajetória até os

18 (dezoito) anos, mas não cristalizaram o seu potencial para a labuta.

Atingindo a maioridade, conheceu uma moça (de São Paulo) que estava

passeando na cidade de Brumado. Ela percebeu o seu talento para o trabalho

e o incentivou a migrar para a capital paulista, em busca de uma melhor

ocupação.

Page 55: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

41

“Uma moça que me falou, você pode ir pra São Paulo que você vai

se dar bem, vai ganhar dinheiro”.

Nesse momento ela reconheceu o valor da sua força de trabalho e lhe

sugeriu trilhar um novo caminho, que o libertaria da condição de espantalho.

Espantado com essa proposta, olhou para si e percebeu o quanto estava

estagnado. Ao mesmo tempo em que reconheceu a sua estagnação, foi

tomado por uma profunda irritação, que o despertou para a mudança. Podemos

perceber esse movimento na sua própria fala:

“Eu me invoquei, fiquei nervoso porque eu ajudava a ganhar

dinheiro e eu não ganhava, fui lá e falei: vou embora, foi coisa do

momento, coisa rápida, não quero viver mais na fazenda porque não

ganhava nada, era uma escravidão, aí eles me deram o dinheiro da

passagem”.

Ao perceber que “doava” a sua força de trabalho para enriquecer o

outro, e em contrapartida estava “contribuindo” com o seu empobrecimento

material e humano, foi tomado por um estado de tensão e se rebelou contra o

“patrão”, e exigiu que o mesmo pagasse a sua passagem para São Paulo.

“O homem se constrói e se recria quando se opõe para romper com o

domínio do outro, na tentativa de busca de si mesmo”. ( MAHONEY e

ALMEIDA, 2010, p. 98).

O olhar do outro (mulher) refletiu no olhar de Raimundo, permitindo que

ele enxergasse e reconhecesse o seu potencial para romper com o domínio do

Page 56: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

42

outro, tomar as rédeas da sua vida e continuar escrevendo a sua história, mas

agora sendo ele o protagonista. Segundo Almeida e Mahoney (2005):

“Emoções são sistemas de atitudes, reveladas pelo tônus. Atitude é a

expressão da combinação entre tônus (nível de tensão muscular) e

intenção, cada atitude é associada a uma ou mais situações”. (MAHONEY

e ALMEIDA, 2005, p. 20).

Raimundo deixa a sua terra trazendo a marca, no seu polegar, do olho-

de-peixe, que representa o trabalho repetitivo e desumano. Ele chega na antiga

rodoviária da Estação da Luz, na cidade de São Paulo. Mesmo sem saber ler e

escrever trabalhou em várias funções, constituiu família e, atualmente, é

feirante e frequenta o curso de alfabetização em uma escola da periferia da

capital.

3.2. Motivo que o levou a procurar a escola

Como já citado no tópico anterior, Raimundo tem dois filhos. O filho mais

novo sofre de sinusite há muito tempo. Em uma crise muito severa, foi levado,

(pelo pai) ao pronto-socorro. Na recepção do hospital, a funcionária entregou

uma ficha para Raimundo preencher. Quando este olhou a ficha, sentiu-se

incapaz de preenchê-la e relatou:

“Senti uma decepção. Parece que você tem mão, perna, braço e não

tem utilidade nenhuma para fazer o que precisava”.

Na fala de Raimundo, podemos observar que ele se sentiu refém da

situação, pois lhe faltava o conhecimento da leitura e escrita para realizar a

exigência do preenchimento da ficha. Essa experiência o afetou

Page 57: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

43

profundamente, desencadeando um sentimento de frustração e desvalia.

Relembrando Wallon:

“Afetividade refere-se à capacidade, à disposição do ser humano de

ser afetado pelo mundo externo/interno por sensações ligadas a

tonalidades agradáveis ou desagradáveis”. (MAHONEY e ALMEIDA, 2005,

p. 19).

Em um primeiro momento, a situação desagradável desencadeou outros

sentimentos e ações que Raimundo relata com clareza:

“A ficha ficou tudo branco. Porque eu fiquei aéreo, não consegui

fazer o que tinha que fazer para meu filho que estava doente (...) pensei:

vou estudar porque serviço não mata home e se Deus quiser vou

conseguir. Vou conseguir ler e escrever, nunca é tarde para aprender”.

A impossibilidade de preencher a ficha afetou Raimundo

“negativamente”. No dizer de Wallon, “a emoção obnubilou a razão”. “Caso ele

se entregue às manifestações extremas de fúria, chegará a uma obnubilação

total da percepção e da inteligência” (ALMEIDA, Wallon, apud 2010a, p. 80).

Suas emoções se sobressaíram, obscurecendo sua visão, e por alguns

minutos se desconectou da realidade, desencadeando um estado de tristeza,

inutilidade e impotência.

(...) “emoção é um estado afetivo, comportando sensações de bem-

estar ou mal-estar que têm um começo preciso, é ligado a um objeto

específico e de duração relativamente breve e inclui ativação orgânica”.

(MAHONEY e ALMEIDA, 2005, p. 19).

Este estado de impotência, desencadeado pelo não preenchimento da

ficha, foi passageiro. Ao mesmo tempo em que foi tomado pela inércia, pela

Page 58: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

44

impossibilidade de auxiliar o filho, reconheceu e refletiu a sua condição de

“iletrado”. Segundo Soares (2012):

“uma pessoa iletrada = uma pessoa que não tem conhecimentos

literários, que não é erudita; analfabeta, ou quase analfabeta”. (SOARES,

2012, p. 32).

Na sua imperícia frente ao ato de ler, ele desvelou o valor da leitura e

escrita e decidiu voltar a estudar, mesmo tendo uma jornada de trabalho

extensa e estressante. A situação em que vê o filho doente, sem poder

preencher a ficha por não saber ler e escrever faz com que Raimundo reveja a

importância de adquirir esta habilidade e ambas ganham um valor maior para

ele.

Podemos afirmar que as situações negativas, desencadeadas por

elementos internos ou externos ao sujeito, podem desencadear uma ação

positiva ou negativa. No caso de Raimundo, foi desencadeada uma ação

positiva, voltada para sua realidade, pois a experiência que viveu o estimulou a

ir à escola e transformar a sua condição de “iletrado” em sujeito letrado, ou

seja, que interage com o universo da leitura e escrita.

3.3. O processo de inserção do aluno e seus sentimentos

despertados no processo de escolarização

Ao chegar à escola, Raimundo encontrou um ambiente pouco acolhedor.

A carteira escolar uma atrás da outra, pouco confortável para acomodar o

aluno adulto (a Escola Municipal de Ensino Fundamental foi pensada para

Page 59: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

45

acolher crianças e adolescentes em fase regular de aprendizagem), o caderno,

o lápis e uma lousa imensa cheia de conteúdo para ser copiado.

Raimundo se vê diante da vida escolar, algo que, talvez, também tivesse

de alguma forma evitado, justamente para não ter que se deparar com o seu

“não saber”.

Raimundo estava habituado a domar animais, roçar, embalar comida,

entregar marmita, trabalhar em firma, e atualmente trabalha na ponta da feira

vendendo frutas, legumes e temperos. Adentrando o espaço escolar e

principalmente a sua sala de aula, deparou-se com o mundo das palavras, não

aquelas que ele ouve e fala no cotidiano do trabalho, da família e do lazer, mas

palavras que ocupavam a lousa e que não apresentavam nenhum sentindo e

significado, pois não contemplavam o seu conhecimento prévio. O universo

escolar não contemplou o educando, desde o mobiliário, os conteúdos, o ritmo

de aprendizagem dos seus colegas, parece que tudo estava “incompatível”

com sua história. Ele relata os momentos iniciais da sua primeira experiência

escolar:

“O primeiro dia foi muito nervoso, no segundo um pouco tenso e o

terceiro já me relaxei mais”.

“Mas na sala dela os outros já sabiam mais do que eu. Eu não tava

acompanhando, os outros tinham mais tempo de escola que eu, aí eu

comecei a faltar”.

O nervosismo, a tensão e a dificuldade em acompanhar os colegas

foram os primeiros sentimentos relatados. Ele sentiu certo estranhamento com

Page 60: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

46

o ambiente escolar. Sua primeira atitude foi começar a faltar, o que,

provavelmente, o levaria à evasão; sentia-se afetado por uma sensação de não

pertencimento ao grupo.

A situação descrita foi alterada quando a professora inicial entrou em

contato com ele e o convidou a frequentar a sala de reforço com outra

professora. É importante deixar claro que a sala de reforço não é um lugar de

inclusão, mas um espaço destinado ao aluno que, por algum motivo,

apresentou dificuldades para acompanhar o grupo classe. Esse novo espaço é

marcado pelo acolhimento, pelo diálogo, por atividades elaboradas mediante

situações discutidas em sala de aula, pela presença de uma minibiblioteca para

uso dos alunos, por materiais alternativos, como o alfabeto móvel, massa de

modelar, contação de histórias, poesia, músicas e filmes. Recursos que

deveriam existir em qualquer sala de alfabetização, principalmente, e, se

existem, deveriam ser mais bem utilizados com o aluno. Esses recursos são

facilitadores que visam atender às dificuldades específicas do aluno,

propiciando uma aprendizagem significativa. A aprendizagem significativa só

tem possibilidade de ocorrer na relação professor-aluno, assim como os

possíveis recursos materiais só ganham sentido quando inseridos e utilizados

corretamente, tendo o professor como mediador. Sendo assim, a sala se

diferencia da anterior, como relata o próprio aluno:

“O ensinado dela é diferente do seu, aqui na sala de reforço você

deu aquele tempero, o que você fez, fez nós crescer, foi diferente pra nós.

Lá a gente copia, copia, copia, não adianta, tem que saber o que tá

copiando, se não, não dá. Você pega mais legal, o jeito seu pra trabalhar

ajuda a gente. A ensinação, o trabalho seu é mais esforçado”.

Page 61: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

47

Resgatando o filme Tempos Modernos (CHAPLIN), podemos fazer um

paralelo com o ato de copiar o conteúdo da lousa e o ato de apertar parafusos

na fábrica. Ambos são movimentos repetitivos e frenéticos que,

paulatinamente, vão cindindo o homem do seu poder criador e transformador,

levando-o à alienação. Esse estado de alienação afeta profundamente o

sujeito, causando a impossibilidade de se reconhecer e ser reconhecido na

produção da sua obra. O indivíduo perde a consciência do ato que está

realizando, não se apropriando do seu saber, que é histórico e socialmente

construído, é um fazer mecânico, que causa um abismo entre o existir no

mundo e com o mundo.

Na percepção de Raimundo, na sala de reforço existia uma “ensinação”

e um “tempero” diferente. Mas de fato o que é uma “ensinação” e um “tempero”

diferente?

Penso que, na sala de reforço, entrar em contato com a “ensinação” do

alfabeto, tendo como recurso mobilizador a contação de história, foi um convite

para o grupo, por meio da letra, vasculhar sua memória e partilhar as suas

experiências, trazendo para o presente sensações, lembranças, desejos e

emoções. É importante deixar claro que o contato com o alfabeto foi realizado

por meio de atividades com o alfabeto móvel (alfabeto móvel são letras

plásticas, passíveis de ser manuseadas).

Agora a letra não está oca, estática e perdida no tempo e no espaço.

Mas manuseadas pelo calor das mãos humanas ganham corpo, vida e

Page 62: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

48

significado, que representam o pensamento e o sentimento do aluno no

presente.

Acredito que o “tempero” diferente está atribuído à maneira como as

atividades foram desenvolvidas em sala, como relata abaixo:

“Na sala de reforço eu me senti bem porque eu achei que eu ia me

apertar mais um pouco e ia ser melhor. As cruzadinhas, caça-palavra, lê

as frutas, as palavras, as histórias que você conta, os versos era legal

porque a gente não sabia o que era verso”.

Raimundo deixa claro que as atividades propostas na sala de reforço

foram realizadas com prazer. Acredito que essas atividades contemplaram a

realidade do seu trabalho (pois não podemos nos esquecer que ele vende

frutas) e da sua vida pessoal. Ele se sentiu “representado” nas atividades.

“Caso a aprendizagem da leitura se vincule a processos prazerosos,

relacionada com a vida real e imaginária do aluno, o esforço exigido na sua

aprendizagem terá algum sentido, já que levará ao sujeito um canal

inesgotável de informação, conhecimento, divertimento, crescimento, etc.”.

(BRENMAN, 2012, p. 68).

Raimundo pensou inicialmente que na sala de reforço teria que realizar

um esforço intenso para aprender a ler e escrever. O conteúdo programático

iria ser depositado em seu corpo inerte e ele teria que se ajustar como um

parafuso ao novo conhecimento vindo de fora. Mas veio a surpresa, quando se

deparou com a lousa vazia, mas com o ambiente da sala de aula preenchido

por uma conversa acolhedora, entre educador e educando sobre a origem do

nome de cada um (nada é mais significativo do que o próprio nome). “Daí que o

papel do educador seja fundamentalmente dialogar com o analfabeto.” (...)

Page 63: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

49

(FREIRE, 1967, p. 110). Nesse diálogo acolhedor, muitas informações,

pertinentes à vida do educando, foram registradas e utilizadas na preparação

de atividades (caça-palavras de nomes, cruzadinha, construção do próprio

nome com alfabeto móvel, etc.) que foram realizadas nos primeiros dias de

aula.

Diante dessa nova proposta de aprendizagem, observei que o aluno foi

se esforçando, mas aprendendo com gosto, saboreando cada união de letras,

cada sílaba e cada palavra formada. Raimundo provou, com seus sentidos, o

tempero usado na sua aprendizagem.

Todas essas atividades relatadas por Raimundo lhe trouxeram

sentimentos de tonalidades agradáveis, apesar de reconhecer a situação que o

levaria a se esforçar mais.

Dentre as atividades que relatou, desenvolvidas na sala de reforço,

refere-se particularmente à contação de história da lenda da Iara:

“A história que me marcou foi da índia. Às vezes a história cola a

gente, é uma lembrança que a gente tem pra sempre, é igual a uma

tatuagem. Tem algum passado que entra no meio daquela história, aí

lembrei da Eva, a primeira namorada lá no interior, eu tinha 14 anos. Um

amor que a gente teve, gostei um bocado, você vê que a gente não

esquece”.

A fala de Raimundo nos remete a Ecléa Bosi:

Page 64: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

50

“pertencer a novos grupos nos faz evocar lembranças significativas

para este presente e sob a luz explicativa que convém à ação atual”.

(BOSI, 1987, p. 335).

Ao ouvir a lenda da Iara, emergiram lembranças da sua adolescência, do

seu primeiro amor, houve uma identificação com a narrativa. Esse momento

reflexivo foi compartilhado e confrontado com outras histórias de amor

vivenciadas pelo grupo, confrontadas com o momento presente:

“Contar e recontar tudo” “significa partilhar a lembrança das

experiências do cotidiano e a sabedoria adquirida ao longo da vida”.

(PATRINI, 2005, p. 106).

Por alguns momentos, passado e presente se entrelaçaram com a

história. Nesse clima narrativo, as experiências e os sentimentos são

partilhados sob um novo olhar, que foi se transformando por outras

experiências amorosas, vividas ao longo do tempo.

“A memória pode ser enfocada tanto como função quanto como

recurso para o ato de aprender. Em qualquer uma destas abordagens, podemos

afirmar que sem ela não se aprende”. (PLACCO E SOUSA, 2006. p. 28).

A memória sendo um reservatório inesgotável das experiências vividas

pelo ser humano é um recurso, imprescindível, na aprendizagem de jovens e

adultos analfabetos. O caminho escolhido para acessar a memória desta

população foi a contação de história e a partir dela abriu-se um espaço para o

diálogo. Essa escolha não foi ingênua, ler ou contar história, além de evocar as

lembranças, possibilita suscitar o imaginário, responder perguntas, encontrar e

criar novas ideias, estimular o intelecto, descobrir o mundo imenso dos

conflitos, das dificuldades, dos impasses e das soluções. É ouvindo histórias

que se pode sentir e reconhecer emoções, como raiva, tristeza, irritação, pavor,

Page 65: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

51

alegria, medo, angústia, insegurança, viver profundamente tudo o que as

narrativas provocam de uma forma significativa e verdadeira. Com a escuta e o

olhar do presente é possível ou não ressignificar os sentimentos do passado

desencadeados pela narrativa.

“A força da história é tamanha que narrador e ouvinte caminham

juntos na trilha do enredo e ocorre uma vibração recíproca de

sensibilidade, a ponto de diluir-se o ambiente real ante a magia da palavra

que comove e enleva. A ação se desenvolve e nós participamos dela,

ficando magicamente envolvidos com os personagens, mas sem perceber

o senso crítico que é estimulado pelos enredos”. (COELHO, 1991, p. 11).

Essa magia e ludicidade despertada pela narrativa e pelo diálogo é

espaço fértil para garimpar a palavra geradora ou os temas geradores visando

promover com significância e sentido o processo de ensino e aprendizagem.

Ou seja, acredito que é no brincar com a leitura, com as letras e com as

palavras que a criança e o adulto têm maior possibilidade de abrir as portas da

imaginação para a apropriação da leitura e escrita, com maior criatividade,

afetividade e propriedade. Para Winnicot:

“É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto

fruem sua liberdade de criação”. (WINNICOT, 1975, p. 79).

É na ludicidade da palavra que a leitura transmite todo o conhecimento

produzido pela humanidade e é no brincar que o indivíduo vai se apropriando

dessa produção e produzindo outras tantas novas. A escuta literária nos

permite conhecer o homem do passado e do presente, saber como viviam, e

como vivem agora, como se relacionavam e como se relacionam hoje e como

resolviam os seus problemas e como resolvem hoje, é um convite para que o

Page 66: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

52

indivíduo possa se como(ver) com a sua experiência e com a do outro,

aprendendo e ensinando. É um espaço potencial onde podemos explorar o

melhor e o pior da nossa condição humana, expressar a nossa individualidade

e viver temporariamente, na nossa casa imaginária, outros tipos de papéis.

Nesse jogo de escuta, o educando vai entrar em contato com a norma culta,

possibilitando a elaboração e a construção da leitura e da escrita.

“Jogos com os sons das palavras, jogos com o sentido delas, ou com

o modelo de mundo que cada poema ou narrativa inevitavelmente criam,

ampliam nossas possibilidades de relação, tanto com a linguagem, quanto

com o mundo”. (CADERMATORI, 2010, p. 32).

O aspecto lúdico da história reflete a ludicidade inerente ao ser humano.

A “ensinação” do ler e escrever, por se configurar em um caminho árido,

deve ser sentida a partir do mundo da vida. E a vida nada mais é do que um

entrelaçamento de histórias, sejam elas individuais, universais e regionais.

Quanto mais a “ensinação” contemplar esse patrimônio, mais significativa,

prazerosa e mais legítima será a apropriação da leitura e escrita pelo

educando.

3.4. Sentimentos vivenciados no processo de alfabetização

Não cabe aqui uma discussão sobre todo o processo de alfabetização,

que foi desenvolvido na sala de reforço. Selecionei alguns pontos relevantes

em função do problema de pesquisa.

Page 67: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

53

Para compreender a dimensão afetiva no processo de alfabetização

temos que recorrer aos conceitos de Wallon, que já foram expostos no

referencial teórico. Relembrarei, brevemente, alguns conceitos desta teoria

para elucidar este capítulo; eu o faço concordando com Mahoney:

“A escola, assim como nossa sociedade, desvaloriza, nega a emoção

nas suas práticas, como se esta impedisse a consecução de seus

objetivos. E esse descaso pode ser um dos muitos fatores responsáveis

pelo fracasso escolar”. (Mahoney, 1993).

É importante lembrar que o ator desta pesquisa quase desistiu de

frequentar o curso de alfabetização, como ele explicita:

“Eu não estava acompanhando, os outros tinham mais tempo de

escola que eu, aí eu comecei a faltar”.

Sua atitude faltosa, o que levaria ao fracasso escolar, nos leva a

entender que o mesmo não estava sendo contemplado no seu saber e nos

conteúdos administrados na sua sala de origem, o que o levou a ser convidado

a frequentar a sala de reforço. Possivelmente, se essa atitude não fosse

tomada, a sua desistência se consolidaria, engrossando as estatísticas da

evasão escolar.

Diante deste contexto, penso que, para atingir um aprendizado

satisfatório, é fundamental que a relação professor e aluno, assim como o

conteúdo programático, sejam mediados pela afetividade. A afetividade

engloba a emoção e sentimento e faz parte da constituição da pessoa, assim

como a cognição e o ato motor. Se o indivíduo é constituído por esses

elementos, acredito que seja fundamental o professor desenvolver um olhar

Page 68: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

54

afetivo e promover estratégias de aprendizagem que contemplem todos esses

aspectos no decorrer do processo de escolarização, visando atingir uma

aprendizagem significativa e libertária. Almeida deixa clara a importância da

mediação:

“A mediação do professor será tanto mais eficaz quanto maior for o

número de linguagem de que dispõe. Os recursos da literatura, da

dramatização, da música são possibilidades que servem para canalizar as

emoções em favor do pensar, bem como para ampliar a cultura, e é dever

da escola oferecer à criança e ao jovem, sem discriminação, o que há de

melhor na cultura”. (ALMEIDA, 2010b, p. 127).

O uso da literatura não é novidade, mas também não é usual, pois a

maioria das escolas prioriza a realização de tarefas (perguntas e respostas), a

cognição, o pensamento lógico, a razão. Na minha prática pedagógica, eu

escolhi a literatura por acreditar que é atemporal; sendo assim, está mais

próxima da natureza humana em qualquer época ou lugar. É um canal lúdico

para tocar a emoção e, simultaneamente, evocar a memória e mobilizar a

cognição, momento fértil para despertar o aprendizado se utilizada como

recurso para mediar o conteúdo programático. Ela aborda de uma forma

singela a vida e a morte, o belo e o feio, a bondade e a maldade, a

solidariedade, vitórias, derrotas, o amor e o ódio, a alegria e a tristeza, as leis

da natureza, os desejos, as dificuldades humanas, enfim ela retrata com

fidelidade o ser humano em todas as suas nuances.

As falas de Raimundo em processo de alfabetização evidenciam a

presença e o poder da literatura como recurso de mediação e por que razões

elas ocorreram na sala de reforço e não na sua sala de origem.

Page 69: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

55

Começarei pelo primeiro dia que o recebi no grupo de reforço em

alfabetização. No primeiro contato com o grupo, foi lida a crônica “Vergonha do

nome (ACIOLI). A escolha pela leitura de uma crônica para mediar a

apresentação de educando e educador nos remete à fala de Wallon:

“O meio nada mais é que o conjunto mais ou menos durável de

circunstâncias nas quais se desenvolvem existências individuais. Ele

comporta, evidentemente, condições físicas e naturais, que são, porém,

transformadas pelas técnicas e pelos usos do grupo humano

correspondente (...)”. (WALLON, 1986, p. 170).

Como podemos perceber, Raimundo continua no mesmo espaço

escolar, mas inserido em uma sala de aula diferenciada, pois o que vai mediar

a relação professor e aluno, aluno e aluno, professor, aluno e conteúdo

programático é a técnica “inovadora” da contação de história, dentre outros

recursos permeados pela afetividade. Essa técnica foi utilizada para abrir um

espaço potencial para dialogar, acessar a emoção e o pensar, o que de fato

aconteceu. Os alunos e a professora contaram a história do seu nome e na

esteira revelaram fragmentos da sua história de vida, elementos importantes

para a seleção pertinente do conteúdo programático. Dar voz ao aluno e

utilizar-se de elementos da sua realidade para planejar o conteúdo

programático e as atividades é um ato de afeto, pois a sua realidade está

sendo considerada e contemplada na transmissão do conhecimento

sistematizado.

A abordagem do nome próprio no primeiro contato não foi por acaso,

pois como afirma Garcia:

Page 70: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

56

“O nome próprio possui um estatuto particular na língua, o de ser

puro significante caracterizado pela afinidade do nome próprio com a

sua marca (...)”. (GARCIA, 1991, p. 192).

O nome próprio identifica o indivíduo desde o seu nascimento, é a sua

marca inalienável no mundo e está repleto de historicidade. Aproveitando esta

riqueza que o nome representa, foi apresentado o alfabeto móvel, para que o

sujeito, pelo toque das suas mãos, percebesse a estrutura de cada letra, as

sua semelhanças, diferenças, e escrevesse seu nome e o dos colegas. Nesta

atividade, Raimundo exterioriza:

A letra M e W são as mesmas, professora? (...) Ah tem diferença

sim, a M é mais aberta e o W é mais fechado.

A letra M é diferente da letra N porque o M tem mais perna que o N.

A letra d é diferente da b, a barriga de uma é prum lado, a de outra é

pro outro.

Por que o uso do alfabeto móvel? Quem nos responde primeiro é

Cazade & Compagnon:

“Não é possível ignorar esse simbolismo do alfabeto que se expressa

na anatomia das letras e que, não por acaso, é similar à do corpo (...).

(CAZADE & COMPAGNON, 1987, p. 173-182).

Acredito que a primeira resposta esteja aí! Muitas letras do alfabeto são

semelhantes às partes do corpo humano, o que provoca uma aproximação

legítima, pra não dizer uma fusão entre letra e corpo. Observei que essa

aproximação de ambos afeta o educando de uma forma tão agradável e

significativa que o convida a não só escrever o próprio nome, mas escrever

Page 71: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

57

outras palavras. Afetado por esta descoberta, ele percebe que as palavras, o

pensamento e o sentimento se materializam no alfabeto móvel e no mundo em

que vive. Nessa atividade fica clara a conexão do cognitivo, afetivo, motor e a

pessoa.

Mahoney, ao responder à pergunta: O que o conjunto cognitivo oferece

para a constituição da pessoa? Também oferece elementos para justificar seu

uso:

“Oferece um conjunto de funções responsáveis pela aquisição, pela

transformação e pela manutenção do conhecimento por meio de imagens,

noções, ideias e representações. Transforma em conhecimento a mistura

combinada de coisas e ação, que constituem a experiência concreta. O

concreto, a experiência bruta, é indispensável para a elaboração do

conhecimento”. (MAHONEY, 2010, p. 18).

A segunda resposta está contemplada pela autora, então constatei que

apesar de ser adulto, Raimundo precisou experienciar as letras e a construção

de palavras no concreto, pois sabemos que o seu cotidiano profissional, social

e pessoal está calcado no concreto; sendo assim, na escola, não poderia

acontecer diferente, pois cabe a ela como espaço legítimo de aprendizagem

contemplar a realidade do aluno, as suas dificuldades e o seu conhecimento

acumulado. Observei que o contato constante do educando com o alfabeto

móvel, com a palavra geradora e com o seu conhecimento prévio possibilitaram

que o educando fosse vendo, escrevendo e lendo seu mundo. Nessa relação

dinâmica de aprendizagem, os conjuntos funcionais se inter-relacionam.

Nesta mediação lúdica do alfabeto, da contação de história e do diálogo

foram surgindo outras palavras geradoras, que foram sendo trabalhadas,

Page 72: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

58

possibilitando a Raimundo se apropriar e exteriorizar os seus conhecimentos

da leitura e escrita. Para ilustrar este momento, vou traçar um paralelo do

personagem João, 7 (sete) anos, em processo de alfabetização (da história O

Menino que Aprendeu a Ver (ROCHA, 1998, p. 28, 29, 31)) e Raimundo, de 55

(cinquenta e cinco) anos, também em processo de alfabetização. Ambos,

embora com idade e vivendo fases diferentes da vida, estão vivenciando uma

situação de aprendizagem muito semelhante, como ilustra o trecho abaixo:

(...) “Quando João chegou em casa foi logo falar com o pai:

- Papai, o que é que está acontecendo? Cada vez que eu vou pra escola

pintam nas placas, nos livros, nos pacotes, nas paredes, as letras que estou

aprendendo.

O pai de João explicou:

- É que você está aprendendo a ver, João.

- Mas eu já sei ver, papai, desde que eu era pequenino.

- Não, meu filho, você agora está aprendendo a ver o que você está

aprendendo a ler. Entendeu?

Joãozinho coçou a cabeça:

- Não entendi nada...” (...)

“(...) João saía da escola e se punha a procurar.

E assim João viu surgir nas placas e nos postes, no ônibus e nos postes,

tudo que ele aprendia. (...)”.

Raimundo, assim como João, foi afetado pela beleza do mundo das

letras que impregna o mundo da vida. As letras “unidas” se transformam em

palavras com significado e nos transmitem uma informação. Ele começa a ler

Page 73: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

59

de uma forma sistematizada o que já via no seu dia a dia, como nos mostram

os trechos abaixo:

“Não vejo um poste que não leio!

As pessoas falam: o que você tá vendo aí?

Eu tô vendo? Eu tô é lendo!”

“Fui comprar frutas com meu filho no Ceasa e li as placas dos

carros, tinha Araraquara, Sorocaba, Rio de Conta, Salvador – Salvador

começa com S e termina com O. O nome mais bonito que achei foi

Araraquara, tem muito R”.

Não é por acaso que o sujeito percebeu e reconheceu as letras no seu

cotidiano. Na sala de aula, trabalhando o alfabeto, foi sugerido ao aluno que

observasse as placas de rua por onde costumava passar, as embalagens de

produtos que consumia, os jornais de propaganda e outros, o nome do ônibus

que utilizava e isso de fato ocorreu. O educador deve oferecer os instrumentos

para que o aluno se aproprie e estes devem ser aplicados na sua realidade. O

educando precisa vivenciar concretamente o que aprendeu na escola, e nada é

tão concreto como a realidade.

A realidade é um referencial legítimo para que os conhecimentos

apreendidos pelo aluno vão adquirindo visibilidade e sentido. Nas palavras de

Mahoney:

“Cabe ao ensino oferecer pontos de referência, pré-requisitos para que

a aprendizagem se concretize na direção de conceitos cada vez mais

diferenciados e abstratos”. (MAHONEY, 2010, p. 20).

Page 74: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

60

O espaço escolar é destinado ao aprendizado sistematizado da leitura e

escrita, mas é na interação social que esses conhecimentos vão se revelando,

se abstraindo e se confirmando para o educando, principalmente para o jovem

e adulto.

Esta fala explicita a manifestação do ato motor no aluno.

“Tô em tempo de quebrar o pescoço dentro do carro de tanto que

tô lendo placa, tava passando um ônibus Perus. Perus começa com P, né

professora? (o filho dirige o caminhão)

A fala “quebrar o pescoço” evidenciou que o ato motor possibilitou a

expressão da emoção e a exteriorização da cognição que se objetivou na

leitura da placa. Os conjuntos funcionais se inter-relacionaram, possibilitando

ao sujeito acessar o seu mundo interno e externo, sendo assim:

“(...) Henri Wallon considera que o movimento corporal humano não é

apenas deslocamento voluntário do corpo ou de partes do corpo no tempo

e espaço, mas é uma atividade de relação da pessoa consigo mesma, com

os outros e com o meio, na qual são construídos e expressos

conhecimentos e valores”. (LIMONGELLI, 2010, p. 59).

A ânsia de ler o mundo é um agradável convite para que Raimundo se

relacione com o seu conhecimento adquirido, com sua realidade e com o outro.

É nessa relação dinâmica que a trama do conhecimento se entrelaça com a

trama da vida, ambos vão se completando se transformando e se renovando.

Podemos perceber que o educando, no espaço da sala de aula, pede para que

o conhecimento construído neste espaço e “encontrado” no mundo seja

confirmado pela escola e pela professora.

Page 75: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

61

“A presença do outro humano nesse processo de aprendizagem é

primordial e indispensável. A atração que a criança sente pelas pessoas

que a rodeiam é uma das mais precoces e das mais poderosas”.

(WALLON, 1995, p. 161).

Não é só a criança que precisa do outro para aprender, mas o adulto,

embora tenha uma “consciência” mais clara de sua identidade, de sua

realidade, de seus valores, de suas possibilidades e de seus limites precisa

que seu conhecimento seja legitimado, isso mostra a credibilidade que o aluno

deposita em ambos.

Na roça, Raimundo domava animais e atualmente ele está domando as

letras com tanta propriedade que se dispõe a ler para o outro, como

verificamos no trecho abaixo:

“Tava no açougue e li coxão mole, aí chegou uma senhora bem

mais velha, perguntou; tem patinho? Eu olhei na placa e li patinho, e falei:

tem patinho também! Isso é bom demais”.

“É no entrelaçamento com o motor e o cognitivo que o afetivo propicia

a constituição de valores, interesses, necessidades, motivação que

dirigirão escolhas, decisões ao longo da vida”. (MAHONEY, 2010, p. 18).

Raimundo se utiliza do seu conhecimento de leitura e se relaciona com

propriedade com o mundo. Ele vai até o açougue e localiza, pela leitura da

placa, a carne que quer comprar e, ainda por meio da leitura, responde à

pergunta da senhora: tem patinho? Tem patinho também! Ele é despertado

pelo prazer de ler para si e ler para o outro, ou seja, de posse do conhecimento

da leitura, decodifica para o outro parte do universo letrado que até há pouco

Page 76: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

62

tempo lhe era estranho . Raimundo, agora, se assume como um leitor letrado e

autônomo.

Essa autonomia é estendida para a leitura e assinatura de documentos e

escolha de sabores, como mostram as falas abaixo:

“Antes, quando eu ia assinar um cheque dava uma suadeira, agora

de uns dias pra cá eu tô mais concentrado, eu assino”.

“Quando eu fui comprar mercadoria no Ceasa eu li na caixa: Fruta

Reginaldo”.

“É bom quando você lê: 3 caixas de morango”

“Tem banheiro juntinho de homem e mulher, se você não sabe ler

você se ferra todinho, pode entrar em banheiro errado”.

“Tô ficando xarope, tudo que eu pego no mercado eu olho o nome e

a data de validade, quando você vê oferta, você tem que ficar esperto com

a data de validade, antes eu não olhava, agora eu olho, tô lendo né!

“Quando eu ia comprar bolo no mercado eu não lia, agora eu leio:

bolo de fubá e sei o sabor que estou levando”.

Raimundo vai paulatinamente dominando e fazendo uso saborosamente

da técnica de leitura e escrita nas suas relações de trabalho e pessoais, esse

movimento nos lembra Soares (2013):

“(...) dos indivíduos já se requer não apenas que dominem a

tecnologia do ler e do escrever, mas que saibam fazer uso dela,

incorporando-a a seu viver, transformando-se assim seu “estado” ou

condição, como consequência do domínio dessa tecnologia”. (Soares,

2013, p. 29).

Page 77: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

63

A humanidade vive na era tecnológica. O uso da tecnologia está

presente em quase todos os lugares do mundo. Sendo assim, o indivíduo

analfabeto é aquele que mesmo alfabetizado não sabe fazer uso dessa técnica

nas suas relações, está praticamente “excluído” socialmente. É papel da escola

e tão somente da escola promover uma alfabetização significativa que facilitará

a inserção social do indivíduo. Nas palavras de Leite:

“a função da escrita se concretiza por seus usos sociais, ou seja, o que dá

sentido à alfabetização é a possibilidade de os indivíduos envolverem-se

com práticas sociais por meio da escrita, reconhecendo que o mero

domínio do código não garante o envolvimento com essa prática”. (LEITE

apud LEITE, 2013, p. 35).

Para o educando se envolver com as práticas sociais de leitura e escrita

é fundamental que ele perceba que as suas dificuldades e o seu conhecimento

prévio sejam contemplados no conteúdo programático. É de igual importância

que a mediação entre aluno, conteúdo e professor seja permeada por uma

prática afetivamente positiva, ou seja, respeitar o ritmo do aluno, as suas

limitações biológicas, se houver e as suas dificuldades em relação ao tempo e

a permanência na escola, assim como as dificuldades na realização de tarefas

são imprescindíveis para uma aprendizagem satisfatória. Esta dinâmica vai

ampliando seu conhecimento, aumentando sua autoestima e despertando-lhe

sensações de tonalidades agradáveis, convidando-o a buscar outras formas de

leitura na vida e na escola. Em nosso caso, esta busca pode ser confirmada na

fala de Raimundo:

“Hoje de manhã sentei no banco da praça, peguei o jornal e li

governo do Estado, ai eu perguntei pro meu amigo: tá certo? Ele

respondeu: aí véio, tá aprendendo”! [sorriu]

Page 78: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

64

E, também, no diálogo travado com a professora:

Após Raimundo ler a poesia, Ipê amarelo, construída pelo grupo – sala:

Raimundo: Aquele livro lá em cima tô com sede!

Professora: O senhor falou aquele livro lá em cima? Em cima de onde?

Raimundo: Aquela sala lá em cima cheia de livros que de vez em

quando a gente vai.

Professora: Ah, a sala de leitura!

Raimundo: É isso mesmo! É pra nois lê eles se Deus quiser!

Professora: Vocês estão gostando das poesias?

Raimundo: Pra mim tá dando vida, tá clareando, porque nois tá

lendo. Lá fora se tiver poesia a gente vai saber!

Leite (2013), em seus estudos com esta população afirma:

“(...) o trabalho pedagógico deve utilizar uma estratégia que possibilite,

ao aluno de EJA, ampliar suas habilidades com as práticas de leitura e de

escrita; tal processo deve permitir que tenha condições de usufruir melhor

das possibilidades sociais e culturais que a escrita permite. Neste sentido,

ao desenvolver um trabalho a partir das demandas iniciais apresentadas

pelos alunos e de forma afetivamente positiva, criam-se as condições para

que novas demandas sejam apresentadas pelos professores nas etapas

posteriores do trabalho pedagógico. Assim, muitos jovens e adultos

procuraram a EJA motivados, inicialmente, para realizar, com sucesso, o

exame de habilitação para motorista, mas acabaram descobrindo a

importância da leitura de jornal ou das obras da nossa literatura (...)”.

(LEITE, 2013, p. 53).

Raimundo não precisou esperar a etapa seguinte para se aventurar na

leitura de ler jornal e livro. De posse dos primeiros aprendizados da leitura e

Page 79: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

65

escrita já leu a manchete de jornal e pegou emprestado um livro na sala de

leitura.

Esse desempenho me leva a pensar o quanto o conteúdo programático

e a mediação afetiva contribuíram para esta evolução. A busca pela palavra

geradora carregada de sentido existencial e emocional, norteando a construção

de versos poéticos, a contação de histórias, as atividades desenvolvidas

vinculadas aos conteúdos contextualizados em sala de aula formam um leque

de atividades que, se forem afetivamente e adequadamente desenvolvidas,

desencadearão o sucesso na aprendizagem e a formação de um aluno leitor.

É importante frisar o valor da literatura na aprendizagem das séries

iniciais, mesmo com jovens e adultos, e acredito que principalmente com esse

segmento, pois muitos deles não tiveram quem lhes contasse uma história ou

declamasse uma poesia ou cantasse uma cantiga. É resgatando a criança

interior que se desperta o homem cidadão.

“Não são as letras, as sílabas e as palavras que fascinam. É a estória.

A aprendizagem da leitura começa antes da aprendizagem das letras:

quando alguém lê e a escuta (...) com prazer. “Erotizada” – sim erotizada!

– pelas delícias das leituras ouvidas, a criança se volta para aqueles sinais

misteriosos chamados de letras. Deseja decifrá-los, compreendê-los

porque eles são a chave que abre o mundo das delícias que moram no

livro”! (ALVES, 2002, p. 41).

Raimundo ouvindo prazerosamente histórias, poesias e contando os

seus “causos”, lendo a poesia construída por ele e pelo grupo, reconheceu-se

sujeito da sua aprendizagem, capaz de ler o que ele produziu e ler outros livros

e jornais. Sentindo-se um sujeito leitor, encontrou a chave para abrir as

Page 80: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

66

inúmeras portas da leitura, da escrita e da literatura que o levarão a se

conhecer interiormente, conhecer a sua realidade, interagir com o meio social e

conhecer outros mundos imaginários e reais. Ele está a caminho para “saciar”

a sua sede de ler e escrever! Convicto de que se apropriou do código da

leitura, ele afirma:

“Tô lendo mais que moeda de um centavo”.

“Virei o bicho, agora tô lendo tudo”.

“Papagaio véio não aprende a falar, mas aprende a voar, eu tô

voando”.

Raimundo apreendeu as letras e está em estado de letramento.

Relembrando a definição de letramento por Soares:

“Letramento: Estado ou condição de quem não apenas sabe ler e

escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita

cultiva = dedica-se à atividade de leitura e escrita exerce = responde às

demandas sociais de leitura e escrita”. (SOARES, 2012, p. 47).

Raimundo interioriza as letras, cria asas e começa a voar. Ele conquista

um novo lugar no mundo no seu mais amplo sentido (um mundo letrado, ele

como sujeito e cidadão). Essa conquista foi fruto de uma prática permeada pela

afetividade, promovida pela escola e pela professora. Esta considerou o seu

potencial de aprendiz, o seu conhecimento prévio e construiu uma ponte entre

escola, conteúdo programático e o seu cotidiano, respeitando o seu ritmo e as

suas dificuldades. Nas palavras de Alves:

(...) “Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que

elas amam são os pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros

coragem para voar. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer, porque o

Page 81: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

67

voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só pode

ser encorajado” (...) (ALVES, 2011).

O ser humano nasce com potencial para aprender e cabe à escola,

como espaço legítimo para a aprendizagem da leitura e da escrita,

desempenhar esse papel em consonância com a realidade do educando.

“A escola de Wallon não limita sua ação à instrução, mas considera o

aluno uma pessoa em processo de desenvolvimento, e reconhece que seu

papel repousa no conhecimento desse aluno, de suas possibilidades e

necessidades; reconhece também que o saber escolar não pode se isolar

do meio físico e social, mas sim nutrir-se das possibilidades que esse meio

oferece”. (ALMEIDA, 2010, p. 122).

É fundamental que a escola perceba o aluno como um ser em

desenvolvimento. Seu papel é transmitir os conhecimentos acumulados pela

humanidade e, na interação com o aluno e a realidade, produzir novos

conhecimentos. A identidade escolar vai se confirmando à medida que os

alunos vão potencializando os seus conhecimentos.

Podemos notar a importância dos diferentes papéis exercidos pela

escola, professor e aluno no processo de construção do conhecimento, em

nosso caso particularmente, na aprendizagem da leitura e escrita. Podemos

notar, enfim, que a ponte que o professor estabeleceu entre a escola, aluno,

conteúdo programático, mediados pela afetividade, foram imprescindíveis para

a construção do conhecimento do nosso Raimundo nesta pesquisa.

Page 82: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

68

CAPÍTULO 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa iniciou-se quando me deparei com a população de jovens

e adultos analfabetos. Após percorrer alguns caminhos, infrutíferos, para

alfabetizá-los, encontrei na literatura, na afetividade, no diálogo e no lúdico o

tempero essencial para atingir satisfatoriamente a construção do

conhecimento.

Selecionei Raimundo, como sujeito desta pesquisa, com a finalidade de

acompanhar o seu processo de alfabetização e letramento e confirmar a

eficácia dos recursos utilizados nesse processo. Após ter anotado no meu

diário de bordo várias observações feitas por Raimundo, antes, durante e

depois das atividades realizadas em sala de aula, selecionei alguns registros

que considerei pertinentes para melhor compreensão do objetivo desta

pesquisa. Uma entrevista com a finalidade de conhecer sua história de vida,

ampliou a compreensão dos motivos que o levaram a iniciar o seu processo de

escolarização aos 55 anos de idade, bem como os sentimentos vivenciados

tanto para a procura da escola como para permanecer nela.

Com a “finalização” da pesquisa vou relatar, brevemente, as suas

contribuições para a prática profissional e acadêmica.

A contribuição para a prática educacional é o recurso da literatura para

mediar a relação de ensino e aprendizagem entre educador e educando. Essa

Page 83: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

69

foi uma escolha afetiva por que as histórias me afetam de uma forma muito

positiva e julguei que o mesmo poderia acontecer não só com crianças, mas

com educandos adultos. A história é tão antiga quanto o homem, é atemporal,

lúdica, é significativa e expõe as condições existenciais humanas. Portanto,

cria um clima intimista, afetando o educando e educador, propiciando um

espaço para o diálogo entre ambos. Esse diálogo é um campo fértil para o

educador colher informações pertinentes, que poderão nortear os conteúdos

programáticos e propiciar um aprendizado significativo em sala de aula,

evitando a evasão escolar.

Muitos outros recursos poderiam ser utilizados para integração cognitiva

e afetiva, além da literatura, como o desenho, a música, ou seja, a arte em

geral.

A contribuição desta pesquisa para área acadêmica é a constatação da

possibilidade de se produzir pesquisa na área de alfabetização e letramento

com o recorte da afetividade, o que é extremamente importante, uma vez que

as taxas de analfabetismo de crianças, jovens e adultos são expressivas no

Brasil.

Para realizar esta pesquisa foi necessário construir um olhar Walloniano.

Um novo olhar para a realidade - um olhar Walloniano não se constrói da noite

para o dia, é como uma fruta que vai amadurecendo ao sabor do tempo. Não

tive tanto tempo assim! Quando ficou decidido que seria Wallon meu referencial

teórico desta pesquisa, realizei muitas leituras, assisti às aulas, busquei na

minha prática profissional e na minha vida pessoal encontrar os princípios

Page 84: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

70

Wallonianos, e de fato encontrei. Realizei a minha dissertação tendo como foco

a psicogenética de Wallon. Foi um caminho árduo, mas prazeroso, pois adquiri

muitos conhecimentos novos e aprimorei outros que ao longo da vida acumulei.

Finalizo esta pesquisa na certeza de que é um ponto de partida, com uma

frase:

Na incompletude do meu ser, Wallon ofereceu-me elementos para

compreender melhor a realidade, a prática profissional e a mim mesma!

Page 85: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

71

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACIOLI, S. Folha de São Paulo (Folhinha) em 5/5/2007.

ALMEIDA L. R. Ser Professor: Um diálogo com Henri Wallon in MAHONEY. A

A.; Almeida, L. R. (Orgs.). A Constituição da pessoa na proposta de Henri

Wallon. São Paulo: Edições Loyola, 2010b.

ALMEIDA, L. R.. A questão do eu e do outro na psicogenética walloniana.

Estudos de Psicologia. Campinas: vol. 31, n. 4 (no prelo)

_____________. O homem em toda a sua integridade. Revista Educação:

História da Pedagogia. Vol. 3 – Henri Wallon. São Paulo: Editora Segmento,

2010a.

ALVES, R. Gaiola e asas. Folha de S. Paulo, 05/12/2001.

_______. Por uma educação romântica. Campinas: Papirus, 2002.

AMADO, J. Capitães da areia. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

ANDERSEN , H. C. Patinho feio. São Paulo: FTD, 2004.

BERNSTEIN, M.; CARNEIRO, J. E. Central do Brasil. Filme. Diretor. SALLES,

W. Rio de Janeiro: 1998.

BETTELHEM, B. Psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 2002.

BOSI E. Lembranças de velhos. São Paulo: Editora da Universidade de São

Paulo, 1987.

Page 86: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

72

BRENMAN I. Através da vidraça da escola. Belo Horizonte: Formando Novos

Leitores, Aletria, 2012.

CADERMATORI, L. O que é literatura infantil. São Paulo: Brasiliense, 2010.

CAZADE, E. & COMPAGNON, A. Alfabeto. In: Enciclopedia Einaudi. Lisboa:

Imprensa Nacional, Casa da Moeda, v. 11, p. 173-182, 1987.

CIAMPA, C. A. A estória do Severino e a história da Severina: Um ensaio

de psicologia social. São Paulo: Brasiliense. 1987.

COELHO, B. Contar histórias uma arte sem idade. São Paulo: Ática. 1991.

COLLODI, C. Pinóquio. São Paulo: Fantasia & Aventura. Hemus. 1981.

CORSO, D. L.; CORSO, M. Fadas no divã. Psicanálise nas histórias

infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006.

FRANZ, M-L. V. A sombra e o mal nos contos de fadas. São Paulo: Paulus,

2002.

FREIRE, P. A Importância do ato de ler em três artigos que se completam.

São Paulo: Cortez Editora, 1988.

___________. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Editora

Paz e Terra, 1967.

___________. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra,

2011.

GALVÃO, I. Henri Wallon - Uma concepção dialética do desenvolvimento

infantil. Petrópolis: Editora Vozes, 1995.

Page 87: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

73

Garcia, M. L. A. O desenho da escrita. Distúrbio da comunicação. São Paulo:

4(2):185-198, outubro, 1991, p. 192.

INGPEN, R. L. N. Bicos quebrados. São Paulo: Global editora, 2007.

IRMÃOS GRIM. Branca de Neve e os sete anões. Coleção Ouro. Disney.

_____________. Os três porquinhos. Coleção Ouro. Disney.

LEITE, S. A, S. (Org.) Afetividade e letramento na educação de jovens e

adultos – EJA. São Paulo: Cortez Editora, 2013.

LIMONGELLI, A. M. A. A Constituição da Pessoa: Dimensão Motora. In

MAHONEY, A. A. e ALMEIDA, L. R. (Orgs.). A constituição da pessoa na

proposta de Henri Wallon, São Paulo: Edições Loyola, 2010.

MARTINELLI, M. L.; RODRIGUES, M. L.; MUCHAIL, S. T. O uno e o múltiplo

nas relações entre as áreas do saber. São Paulo: Cortez, 1998.

MAHONEY, A. A. e ALMEIDA, L. R. (Orgs.) A constituição da pessoa na

proposta de Henrri Wallon. São Paulo: Edição Loyola, 2010.

____________________________. Afetividade e processo ensino e

aprendizagem: contribuições de Henri Wallon – Psicologia da Educação. São

Paulo: 1º sem 2005, p. 11-30.

MAHONEY, A. A. Emoção e ação pedagógica na infância: contribuições da

psicologia humanista. Temas de Psicologia. v. 1, n. 3, Ribeirão Preto: 1993.

____________________________. A constituição da pessoa:

Desenvolvimento e aprendizagem. In: MAHONEY, A. A. e ALMEIDA, L. R.

(Orgs.) A constituição da pessoa na proposta de Henri Wallon. São Paulo:

Edições Loyola, 2010.

Page 88: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

74

MARINHO, J. C. O gênio do crime. São Paulo: Global Editora. 1969.

MELO NETO, J. C. Obra completa volume único. (Organização de Marly de

Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

PATRINI, L. M. A Renovação do conto. São Paulo: Cortez. 2005.

PERRAULT, C. Cinderela. São Paulo: Meus Clássicos Favoritos. Cedic. 1982.

PLANO LANGEVIN-WALLON. In: MERANI, A. L. Psicologia y Pedagogia.

Las ideas pedagógicas de Henri Wallon. México: Grijalbo, 1969.

PLACCO, V. M. N. S. e SOUZA, V. L. T. de. (Orgs.) Aprendizagem do adulto

professor. São Paulo: Loyola, 2006.

RADINO, G. Contos de fadas e realidade psíquica/A importância da

fantasia no desenvolvimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

ROCHA, R. O Menino que aprendeu a ver. São Paulo: Quinteto Editorial,

1998, p. 59.

SOARES, M. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2013.

__________. Letramento um tema em três gêneros. Belo Horizonte:

Autentica Editora, 2012.

VASCONCELOS, J. M. O meu pé de laranja lima. São Paulo: Melhoramentos,

1970.

_________________. Vamos aquecer o sol. São Paulo: Melhoramentos,

1983.

_________________. Arara vermelha. Editora Argentina, 1984.

Page 89: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

75

_________________. Coração de vidro. São Paulo: Melhoramentos, 1990.

VERÍSSIMO, E. Clarissa. São Paulo: Coleção de bolso. Companhia de Bolso,

1982.

____________. Olhai os lírios do campo. São Paulo: Companhia das Letras,

1991.

WALLON, H. Os meios, os grupos e a psicogênese da criança. In:

WEREBE, M. J. e NADEL-BRULFER, J. (Orgs.). Henri Wallon. São Paulo:

Ática. Coleção Grandes Cientistas Sociais, 1986.

___________. A evolução psicológica da criança. Lisboa: Edições 70,

1941/1995.

______________. A evolução psicológica da criança. São Paulo, Martins

Fontes, 1941/2007.

WEREBE, M. J. G.; NADEL-BRULFERT, J. (Orgs.). Henri Wallon. São Paulo:

Ática, 1986.

WINNICOTT, W. D. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

Page 90: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

76

APÊNDICE .

Quadro 1. Caracterização dos alunos da 1ª etapa de EJA

Nome do

aluno

Data/nasc UF Est. civil Emprego

Atual

Já frequentou a

escola?

Arnaldo 17/07/67 Bahia casado Feirante Não

Cleber 27/07/79 São Paulo casada Construtor Não

Daiane 29/03/92 Bahia casada Aux.

limpeza

Sim

Francisco 28/04/61 Ceará casado Comércio Sim

Ionice 20/03/68 Bahia separada Doméstica Não

Isaura 01/07/55 Bahia casada Doméstica Não

Ivoneide 06/03/79 Piauí casada A.Produção Sim

Isidorio O2/11/86 Bahia solteiro Pedreiro Sim/1 ano

Marcilene 24/10/77 Minas

Gerais

casada Do lar Sim quando

criança

M.

Edneide

28/04/84 Pernambuco separada A.

produção

Sim quando

criança

M. José 04/11/58 Bahia solteira Doméstica Não

Marizete 05/06/71 Bahia casada Do lar Sim quando

criança

Neilza 28/07/74 Bahia solteira Doméstica Não

Otávia 04/03/67 Bahia casada Cuidadora 6 m/SESI

Obs.: Dados obtidos diretamente com os alunos – 1º semestre de 2014.

Page 91: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

77

Qu

ad

ro 2

. D

ep

oim

en

to d

e R

aim

un

do

, c

om

a e

xp

lic

itaç

ão

do

s s

ign

ific

ad

os

Dep

oim

en

to

Exp

licit

ação

de s

ign

ific

ad

os

A

po

io d

a t

eo

ria

1.

Sr.

R

aim

un

do

, m

e

co

nte

a

su

a

his

tóri

a

de

vid

a,

su

as

ale

gri

as e

tri

ste

zas.

Eu n

asci em

Bru

mado (

Ba

hia

) n

a c

ida

de.

Entã

o m

inha m

ãe e

ra

nova,

meu pa

i já

era

de id

ade.

Com

seis

anos de

id

ade nós

fom

os para

a ro

ça.

Fo

i fa

zer

o q

uê n

a ro

ça?

M

inha m

ãe fo

i

trabalh

ar

na r

oça d

e a

lgo

dão e

eu a

com

panhe

i a m

inha m

ãe n

o

trabalh

o.

Me

u p

ai

já e

sta

va m

eio

ad

oe

nta

do e

fale

ceu

. Q

uand

o

eu p

egu

ei a

id

ade

de s

ete

para

oito a

nos m

inha m

ãe c

om

eçou a

nam

ora

r de

no

vo.

Min

ha

m

ãe

veio

pra

S

ão

Pa

ulo

com

o

nam

ora

do,

ela

cham

ou a

gente

pra

ir

eu e

min

has 4

irm

ãs,

nois

não q

uis

, fiquem

os c

om

nossa v

ó n

a f

azend

a.

Nesta

tem

pora

da

eu

fique

i n

a

lavo

ura

d

e

arr

oz.

O

qu

e

o

sen

ho

r fa

zia

n

esta

lav

ou

ra d

e a

rro

z?

Entã

o e

u f

icava c

uid

and

o p

ara

os p

assarinh

os

não

com

er

o

arr

oiz

. C

om

o

era

es

se

cu

ida

r?

Cuid

ar

era

o

seguin

te.

is p

ega

va o

bo

neco v

estia,

pare

ce b

oneco

de O

lind

a,

e c

olo

ca

va n

o m

eio

da p

lanta

ção.

O s

en

ho

r fi

cav

a l

á?

Fic

ava o

dia

inte

iro g

rita

nd

o c

om

os p

assarinh

os e

jogava p

edra

para

ele

s

avo

are

m.

A c

olh

eita q

ue e

ra d

uro

. T

inha q

ue

cort

ar

o a

rro

z e

o

ague

nta

va carr

eg

ar

muito,

eu peg

ava aos poucos.

Eu cort

ava

ele

, pra

tirar

das f

olh

as t

inha q

ue

le

var

para

a m

áquin

a l

impar

tira

r a c

asca d

o a

rro

z,

eu g

anha

va

um

din

he

irin

ho a

qu

ele

tem

po

,

N

asceu n

um

a c

ida

de d

a B

ahia

. C

om

seis

anos f

oi m

ora

r na r

oça

porq

ue o

pai fa

leceu

. D

e s

ete

para

oito a

nos f

oi

mora

r na r

oça c

om

a a

(ele

e q

uatr

o

irm

ãs)

porq

ue a

mãe v

eio

para

São

Pau

lo c

om

o n

am

ora

do.

Se

u p

rim

eiro

trabalh

o f

oi cuid

ar

de u

ma lavo

ura

de

arr

oz,

afu

genta

nd

o o

s p

assarinh

os.

Em

seguid

a p

assou a

colh

er

o a

rro

z;

era

um

tra

balh

o d

uro

para

criança: n

ão

ague

nta

va c

arr

egar

muito, tinh

a q

ue

pegar

aos p

oucos.

Inte

gra

çã

o o

rgan

ism

o-m

eio

Page 92: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

78

era

que n

em

escra

vid

ão.

A g

en

te n

ão s

abia

o q

ue e

ra e

scola

.

Não t

inha e

scola

não t

inh

a n

ada e

ra s

ó r

oça (

neste

mo

men

to

ele

cit

a u

m l

ivro

qu

e n

ão

en

ten

do

). O

qu

e o

sen

ho

r fa

lou

do

liv

ro?

Ah o

liv

ro e

ra d

o P

elé

. O

titu

lo d

o liv

ro o

Pe

le é

da b

ola

. E

co

mo

o

sen

ho

r sab

ia

qu

e

esta

va

es

cri

to

iss

o?

P

orq

ue

apare

ce

u u

ma p

rofe

ssora

para

vir dar

aula

num

pé d

e á

rvore

,

mas ela

não qu

is desis

tiu

; fo

i ela

que tr

ouxe o liv

ro e fa

lou o

nom

e d

ele

. E

la v

eio

de m

uito long

e 3

0 k

m.

Eu n

ão

apre

nd

i a

ler

e

escre

ver

mas a

pre

ndi a n

adar

com

meu a

mig

o.

E c

om

o e

ra e

sse

liv

ro?

Dentr

o d

o l

ivro

tin

ha

uns d

ese

nho d

o P

elé

e a

bola

. T

inha

um

zig

ue

zag

ue .

No

is e

ra t

udo inte

ressad

o n

o liv

ro m

as n

ão t

inha

quem

ensin

ava

no

is pra

. N

o liv

ro ti

nh

a d

es

en

ho

o

u ti

nh

a

pala

vra

ta

mb

ém

?

No

liv

ro tinha

pa

lavra

e

dese

nh

o ta

mbém

.

Com

de

z a

nos s

da c

asa d

a m

inha v

ó e

fui

mora

r com

outr

a

fam

ília

. N

este

tem

po e

u f

ique

i de

de

z a

nos a

té d

ezoito

an

os.

O

qu

e o

sen

ho

r fe

z n

este

te

mp

o?

Este

tem

po a

i n

ão s

ei com

o s

e

fala

a

qui. L

á e

u tira

va le

ite na

fa

ze

nd

a.

Eu era

o vaque

iro da

fazend

a c

om

tre

ze a

nos,

eu já

gu

enta

va t

irar

leite,

tem

que t

er

forç

a

pra

tira

r eu

tenho

até

olh

o-d

e-p

eix

e

daqu

ela

é

poca

,

(mostr

ou

o

pole

gar

co

m

a

cic

atr

iz).

E

ntã

o

neste

p

erí

od

o

o

sen

ho

r só

fazia

isso

? T

irava

leite e

da

va

ração p

ros a

nim

ais

. O

sen

ho

r g

an

hav

a

qu

an

to

pra

is

so

?

Tra

balh

ava

por

troco

da

com

ida,

roup

a,

sapa

to,

bo

ta p

ra t

raba

lhar.

O s

en

ho

r d

orm

ia l

á?

Dorm

ia p

orq

ue

era

lo

ng

e a

casa d

a m

inha

vó.

Dep

ois

desta

fa

se

F

ala

de u

m liv

ro q

ue a

pro

fessora

que

ve

io u

ma v

ez e

o v

eio

mais

de

vid

o à

dis

tância

(p

orq

ue a

roça f

icava

a 3

0

km

da c

idad

e)

e tro

uxe p

ara

ele

s.

Falo

u o

nom

e d

o liv

ro: P

elé

e a

Bo

la.

Todos f

icara

m inte

ressado

s p

elo

liv

ro,

mas n

ão tin

ha n

ing

uém

para

ler

pra

ele

s e

ensin

á-l

os a

ler!

C

om

dez a

nos s

aiu

da c

asa d

a a

vó e

foi m

ora

r com

outr

a f

am

ília

na f

aze

nda

e s

er

va

que

iro,

porq

ue já t

inha f

orç

a

para

tirar

o le

ite. T

raba

lha

va p

or

con

ta

de c

om

ida, ro

upa, sa

pato

e b

ota

pra

trabalh

ar.

A

fetivid

ade:

tonalid

ades

agra

dáveis

(o liv

ro);

to

na

lidades

desagra

veis

(n

ão p

od

er

ler)

Inte

gra

çã

o o

rgan

ism

o-m

eio

N

ovo m

eio

forç

a a

no

vas a

tivid

ades

Page 93: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

79

o q

ue a

co

nte

ceu

? V

im b

ora

pra

o P

au

lo.

Se n

ão a

cre

dita,

vim

por

causa d

e u

ma m

ulh

er.

Um

a m

oça q

ue m

e f

alo

u q

ue

você

pode ir pra

S

ão P

au

lo q

ue você vai

se dar

bem

, va

i ga

nha

r

din

heir

o.

Eu m

e in

voqu

ei, fiquei

nerv

oso p

orq

ue

eu

aju

da

va a

ganh

ar

din

heiro

e e

u n

ão g

anh

ava f

ui

lá e

fale

i vou

em

bora

foi

cois

a d

e m

om

ento

cois

a r

ápid

a,

o q

uero

viv

er

mais

na f

azen

da

porq

ue

não

gan

ha

va

nad

a,

era

um

a

escra

vid

ão,

ele

s

me

dera

m o

din

he

iro d

a p

assagem

. S

ó o

din

heir

o d

a p

assag

em

?

Só.

Eu t

inha j

unta

do

um

as m

oedas c

om

outr

as c

ois

as q

ue f

azia

.

Eu com

pra

va pin

ga

, fiado

, na cid

ade e le

va

va pra

fa

ze

nda e

ven

dia

um

as d

ose p

ro p

essoal

que g

osta

va d

e b

eber

e g

anha

va

din

heir

o.

Ai

eu

vim

, vim

com

de

zoito

an

os

(São

Pau

lo).

E

o

sen

ho

r fi

co

u o

nd

e a

qu

i? E

u c

heg

ue

i n

a r

odo

viá

ria n

a E

sta

çã

o

da L

uz,

confo

rme esta

m

oça fa

lou

pra

m

im,

eu vim

de quase

em

pre

go arr

um

ado,

e ai, naqu

ela

época tinh

a m

uito em

pre

go,

num

mês e

u t

rab

alh

ei

em

trê

s f

irm

a.

O q

ue o

sen

ho

r fe

z n

esta

firm

a?

A p

rim

eira e

mpre

sa q

ue

tra

balh

ei fo

i d

e a

judan

te g

era

l na

Tra

nsife,

firm

a de tr

anspo

rte.

Depo

is passei

a ser

em

bala

dor,

em

bala

va l

ata

de f

eijo

ada

na B

ord

on e

gan

ha

va 1

7,0

0 c

ruze

iro

na é

poca a

i e

u s

ai pra

outr

a p

ra g

anh

ar

17,5

0.

Hu

m e

a o

utr

a?

A

outr

a com

o eu

era

fr

aquin

ho e

u tr

aba

lhe

i entr

ega

nd

o m

arm

ita,

aqu

i no J

aguaré

na lin

ha d

o t

rem

, lá

eu g

anh

ava 1

8,0

0 c

ruze

iros.

Co

mo

assim

?

Os

cara

s

trabalh

avam

no

trecho

de

trem

arr

um

ando

os

trilh

os,

eu

chega

va

com

a

kom

bi

e

entr

eg

ava

A

os d

ezo

ito

an

os v

eio

pra

São P

aulo

,

e tra

ba

lhou e

m v

árias e

mpre

sas c

om

o:

Aju

da

nte

Gera

l n

a T

ransife –

firm

a d

e

transport

e,

em

bala

dor

na B

ord

on,

entr

eg

ador

de

marm

ita n

a lin

ha d

o

trem

, m

eta

lúrg

ico, n

a D

elta

cro

meação. N

a ú

ltim

a e

mpre

sa f

icou

do

ze a

nos e

dep

ois

foi tr

ab

alh

ar

com

o

feirante

, ond

e e

stá

até

hoje

.

O

pape

l d

o o

utr

o n

as e

scolh

as.

P

ap

el do m

eio

Page 94: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

80

marm

ita p

ros c

ara

! D

epois

ele

s m

e t

ransfe

rira

m p

ara

Ba

uru

eu

tenh

o a

cart

eira a

ssin

ada p

ela

ferr

ovia

eu e

ra b

om

de tra

balh

ar.

E

ai

o q

ue a

co

nte

ceu

? F

ui tr

ansfe

rido p

ara

Cu

batã

o p

ara

tra

ba

lhar

na l

inha d

o t

rem

entr

egad

o m

arm

ita t

am

bém

. E

dep

ois

? D

epois

eu sai

porq

ue ele

s queri

am

m

e m

andar

para

M

ato

G

rosso.

O

sen

ho

r n

ão

q

uis

?

o

porq

ue

era

m

uito

peri

goso,

eu

ia

trabalh

ar

na m

ata

, pert

o de S

err

a P

ela

da e tinha m

uita gente

morr

endo a

li. V

oltei

pra

o P

aulo

fui

mora

r em

um

a p

ensã

o n

o

Anastá

cio

. F

iz t

este

na D

elta e

fui bem

e v

ire

i m

eta

lúrg

ico.

Com

o

era

fácil

em

pre

go n

aqu

ela

época!

Qu

e e

mp

resa q

ue e

ra?

De

lta

cro

meação!

Min

ha p

rofissão f

oi

cro

mador,

apre

nd

i até

pro

fissão.

Nesta

em

pre

sa f

ique

i do

ze

anos n

ela

. N

este

pe

río

do

o s

en

ho

r

não

pro

cu

rou

a e

sco

la?

Pro

cure

i m

as o

acesso e

ra m

uito d

ifíc

il

era

tud

o m

uito lon

ge p

uxa

do.

Eu m

ora

va n

o P

arq

ue N

ovo M

un

do

e t

rab

alh

ava n

o A

nastá

cio

. E

não

dav

a t

em

po

pra

esco

la?

Não

entr

ava a

s s

ete

da m

anhã e

saia

as c

inco e

meia

da

tard

e.

Não

tinh

a c

om

o o

cara

apre

nd

er.

O s

en

ho

r fi

co

u d

oze a

no

s n

esta

em

pre

sa e

dep

ois

? A

i sai

e f

ui

traba

lhar

por

conta

! N

o q

uê?

Ponta

de f

eira.

En

tão

o s

en

ho

r é f

eir

an

te?

É!

Nessa é

po

ca o

sen

ho

r v

en

dia

o q

uê?

Mand

ioca,

limão

, cois

a b

ásic

a.

Qu

an

to

tem

po

o s

en

ho

r tr

ab

alh

a n

a f

eir

a?

Uns q

uin

ze a

nos o

u m

ais

. O

qu

e t

e l

ev

ou

a p

rocu

rar

a e

sco

la?

Eu f

ui

no E

isnte

n (

hospital)

levar

me

u f

ilho (

ele

junto

u d

inheir

o d

ura

nte

meses p

ra p

agar

a

consulta)

pra

um

a c

onsulta

pra

sin

usite,

meu f

ilho t

ava

muito m

au

Levou o

filh

o a

o E

inste

in p

ara

um

a

consulta

(o f

ilho junto

u d

inh

eiro p

or

vári

os m

eses p

ara

essa c

onsulta).

Ao

A

uto

nom

ia a

dquir

ida

; re

cusou

-se a

ir p

ra M

ato

Gro

sso.

O

pape

l d

o o

utr

o (

filh

o)

A

feta

do f

ort

em

ente

pela

s

circunstâ

ncia

s.

Page 95: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

81

de c

ab

eça b

aix

a e

a m

oça m

e d

eu a

fic

ha p

ra p

reencher

e a

í eu

não s

ab

ia.

Ela

falo

u:

o s

enhor

qu

e t

em

que p

ree

nch

er

porq

ue o

pacie

nte

o c

onse

gue

pa

rece m

uito m

al. S

enti u

ma d

ecepçã

o

pare

ce q

ue

você

te

m m

ão,

pern

a,

bra

ço e

o te

m utilid

ade

nenh

um

a p

ara

fa

zer

o q

ue

pre

cis

ava.

A f

icha

fic

ou t

udo b

ranco.

Porq

ue

eu

fiqu

ei

aére

o,

não

conse

gui

fazer

porq

ue

eu

fique

i

aére

o,

não c

onse

gu

i fa

zer

o q

ue t

inh

a q

ue f

azer

pro

meu f

ilho

que e

sta

va d

oente

. A

i m

eu f

ilho f

alo

u:

de

ixa q

ue e

u f

aço p

ai. E

u

me s

enti m

uito t

riste

por

o c

onsegu

i fa

zer

o q

ue b

em

queria.

A

part

ir d

ai

o q

ue o

sen

ho

r p

en

so

u?

Pense

i: v

ou e

stu

dar

porq

ue

serv

iço

não

mata

h

om

e e

se

De

us

qu

iser

eu

vou

consegu

ir.

Conseg

ui le

r e e

scre

ver,

nunca é

tard

e p

ara

apre

nd

er.

Com

toda

a i

dad

e e

a d

ific

uld

ade q

ue a

ge

nte

tem

é a

pre

nde

o b

ásic

o.

O

básic

o pra

m

im é oce pe

gar

um

pape

l e le

r, peg

ar

um

papel

escre

ve.

Min

ha

fam

ília

o o

s q

ue

me d

ão m

otivação p

ra i

sso

ele

s m

e d

ão a

maio

r fo

rça.

Tem

os m

uitos p

roble

mas f

ina

nceiros,

mas p

roble

ma todo

mundo t

em

.

Sr.

R

aim

un

do

m

e co

nta

co

mo

fo

i o

seu

p

rim

eir

o d

ia n

a

esco

la?

O p

rim

eiro d

ia f

oi

muito n

erv

oso

, n

o s

egu

ndo

um

pouco

tenso e

o t

erc

eir

o já m

e r

ela

xei m

ais

e d

ai pra

fre

nte

tô g

osta

nd

o

por

isso q

ue a

com

panho a

escola

tô s

entindo o

utr

o m

undo a

gora

.

Qu

e m

un

do

é e

sse q

ue o

sen

ho

r tá

sen

tin

do

? U

m m

undo q

ue

enxerg

ando

mais

abert

o.

Mais

ab

ert

o

co

mo

?

Co

mo

?

Ah

porq

ue e

u j

á t

ô l

endo

. O

utr

a c

om

o e

u t

rabalh

o c

om

fru

tas e

u j

á

chegar

lá, com

o f

ilho m

al, a

moça

(recepcio

nis

ta)

de

u u

ma f

icha p

ara

pre

ench

er,

e e

le n

ão c

onse

guiu

. O

filh

o, m

esm

o m

al, a

cabo

u

pre

ench

end

o.

S

entiu-s

e t

ota

lmente

inca

pacitad

o p

or

não p

reench

er

a f

icha.

T

eve u

m ím

peto

para

vo

ltar

à e

scola

e

apre

nder

a ler

e e

scre

ver.

A

fam

ília

é u

m m

otiva

dor

para

voltar

aos e

stu

dos.

O

prim

eiro d

ia a

pre

se

nto

u n

erv

osis

mo,

mas a

os p

oucos f

oi re

laxa

ndo e

agora

já e

stá

acostu

mado.

E

stá

enxerg

an

do u

m m

undo m

ais

abert

o p

orq

ue e

stá

lend

o e

escre

ven

do.

A

fetivid

ade:

sentim

ento

de

incap

acid

ade,

inutilid

ad

e.

A

em

oção o

bnub

iland

o a

ra

zão.

P

rocura

de n

ovos m

eio

s a

escola

.

Influência

do o

utr

o (

fam

ília

).

Page 96: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

82

sei

escre

ver

o q

ue e

sto

u v

en

den

do.

E c

om

o q

ue o

sen

ho

r se

sen

te?

Eu m

e s

into

muito

ale

gre

. É

um

pra

zer

você

peg

ar

um

a

cois

a e

fazer

e s

entir

que e

sta

dan

do c

ert

o.

O s

en

ho

r co

meço

u

na s

ala

de q

uem

mesm

o?

Da C

inira.

O q

ue o

sen

ho

r ach

ou

daq

uela

sala

? A

che

i le

ga

l. M

as n

a s

ala

dela

os o

utr

os já s

abia

m

mais

do q

ue e

u.

Eu n

ão t

ava a

com

panh

and

o,

os o

utr

os t

inham

mais

tem

po d

e e

scola

qu

e e

u a

i eu

com

ecei a f

altar.

O e

nsin

ado

dela

é d

ifere

nte

do s

eu,

aq

ui n

a s

ala

de r

efo

rço v

ocê d

eu a

qu

ele

tem

pero

o q

ue v

ocê f

ez n

os c

rescer

foi

difere

nte

pra

nós.

Lá a

gente

cop

ia,

cop

ia,

só c

opia

não a

dia

nta

tem

que s

ab

er

o q

ue

copia

ndo s

e n

ão n

ão d

á.

Você p

eg

a m

ais

lega

l o j

eito s

eu p

ra

trabalh

ar

aju

da

a g

ente

. A

e

nsin

açã

o,

o tr

ab

alh

o

seu é m

ais

esfo

rçado.

Na s

ala

de r

efo

rço e

u m

e s

enti b

em

porq

ue e

u a

che

i

que i

a m

e a

pert

ar

mais

um

pouco e

ia s

er

melh

or.

A c

ruzad

inh

a,

caça pala

vra

, lê

as fr

uta

s,

as pala

vra

s,

as his

tóri

as que você

conta

os v

ers

os e

ra l

ega

l porq

ue a

ge

nte

não s

abia

o q

ue e

ra

vers

o.

A h

istó

ria

qu

e m

e m

arc

ou f

oi

da í

ndia

(le

nd

a d

a I

ara

) A

s

ve

zes a

his

tóri

a c

ola

a g

en

te é

um

a l

em

bra

nça q

ue a

gen

te t

em

pra

sem

pre

é i

gual

a um

a t

atu

agem

. T

em

alg

um

passado q

ue

entr

a

no

meio

daqu

ela

his

tória

ai

lem

bre

i da

Eva

a

prim

eira

nam

ora

da l

á n

o i

nte

rior,

eu

tin

ha

14

anos.

Um

am

or

que a

gente

teve,

goste

i um

bocado v

ocê v

ê q

ue a

ge

nte

o e

sq

uece.

Ela

lá n

o i

nte

rior

até

hoje

tá c

om

dez f

ilhos,

tá b

em

magrinh

a b

em

ve

lhin

ha p

orq

ue t

raba

lha d

ireto

na r

oça.

E a

go

ra c

om

o q

ue v

ocê

A

sala

da

prim

eira e

tapa

de

alfabetização é

lega

l, m

as e

le n

ão

consegu

iu a

com

panh

ar

os c

ole

gas

que e

sta

vam

mais

adia

nta

dos e

com

eçou a

faltar.

O

jeito d

e e

nsin

ar

da p

rofe

ssora

(Cin

ira)

é d

ifere

nte

da (

pro

fessora

da

sala

de r

efo

rço).

A p

rofe

ssora

do

refo

rço d

eu a

que

le t

em

pero

e f

ez o

s

alu

nos c

rescere

m (

apre

nder

ler

e

escre

ver)

. N

a o

utr

a s

ala

o g

rupo s

ó

copia

va e

não s

ab

ia o

que e

sta

vam

copia

ndo.

O jeito

de e

nsin

ar

na s

ala

de r

efo

rço é

difere

nte

.

A

difere

nça e

ntr

e a

sa

la n

orm

al e a

sala

de r

efo

rço e

stá

nas a

tivid

ad

es

desen

vo

lvid

as.

A

his

tória

qu

e m

ais

marc

ou o

suje

ito

foi a lend

a d

a Iara

. E

le s

e lem

bro

u d

e

um

am

or

de infâ

ncia

.

N

o p

rese

nte

, se

u a

mor

de infâ

ncia

está

bem

velh

inha

, de

vid

o a

o tra

balh

o

A

leitura

da p

ala

vra

le

va à

leitura

do m

undo.

P

rocesso d

e a

lfabe

tizaçã

o n

a s

ala

de r

efo

rço: P

roposta

Pa

ulo

Fre

ire.

R

espeito à

rea

lidade

do e

ducando

.

A

tivid

ad

e d

ifere

ncia

da c

om

pala

vra

s r

etira

da

s n

o u

niv

ers

o d

o

educan

do.

L

eitura

de lend

as q

ue e

xpre

ssam

a

Page 97: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

83

está

se s

en

tin

do

co

m u

m a

no

na e

sco

la?

Esto

u m

e s

entindo

um

ser

hum

ano um

pouco adia

nta

do.

Ad

ian

tad

o n

o q

uê?

N

a

leitura

, nas l

ição v

ocê d

a u

ma l

ição d

a h

ora

pra

fa

zer

em

casa

com

ple

te a

s p

ala

vra

s.

Vo

cê v

ai

no c

om

puta

dor

e n

ão d

á m

ais

trabalh

o

pra

m

enin

a

(Pro

fessora

O

rienta

dora

de

In

form

ática

Educativa

) ela

fica m

ais

esta

bili

zada

. P

orq

ue v

ocê n

ão

d

á

trab

alh

o?

Porq

ue a

gente

já s

abe.

Vo

cês

sab

em

o q

uê?

O q

ue

facilit

a o

u

so

d

a m

áq

uin

a n

a s

ala

d

e in

form

áti

ca

? A

g

ente

apre

ndeu a

escre

ver

e ler

aqu

i (c

om

a p

rofe

ssora

) e c

hega lá f

ica

mais

cil.

O

q

ue

vo

ap

ren

deu

q

ue

vo

não

sab

ia?

Basta

nte

co

isa,

pra

com

eço e

u n

ão

esq

ueço d

e v

ocê n

em

um

segund

o,

qua

ndo

você

fala

do

nom

e

da

gente

qu

e

é

muito

import

ante

, hoje

eu f

aço m

eu n

om

e d

ireitin

ho.

O q

ue n

ão s

abia

era

ler

legal e a

gora

esto

u s

abend

o m

ais

.

Mu

ito

ob

rig

ad

a, sr.

Raim

un

do

!

contínu

o n

a r

oça.

C

om

um

ano f

requenta

ndo

a e

scola

sente

a d

ifere

nça

. Já s

ab

e “

ler”

e

escre

ver

e u

tiliz

a a

leitura

na s

ala

de

info

rmática.

A

im

port

ância

de

saber

escre

ver

o

nom

e c

om

ple

to e

ler.

alm

a p

opu

lar,

despert

a s

en

tim

ento

.

O

suje

ito r

essig

nific

ou a

su

a v

ida

,

se tiv

esse p

erm

anecid

o n

a r

oça,

pro

va

ve

lmente

teri

a o

mesm

o

destin

o d

o s

eu a

mor

de infâ

ncia

A

leitura

e a

escrita

em

ancip

am

.

Q

uand

o m

e a

pro

prio

do m

eu n

om

e

com

ple

to e

sto

u m

e a

pro

pri

ando

da

min

ha ide

ntidad

e, m

e f

aze

ndo

suje

ito c

onstr

uto

r, a

tor

da

vid

a e

da

realid

ade.

Page 98: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

84

ANEXOS

ANEXO 1. Relatos de Raimundo, registrados no diário de bordo da

professora.

A letra M e W são as mesmas professora? (...) Ah tem diferença sim a M é

mais aberta e o W é mais fechado.

A letra M é diferente da letra N porque o M tem mais perna que o N

A letra d é diferente da b, a barriga de uma é prum lado a de outra é pro

outro.

“Não vejo um poste que não leio!

As pessoas falam: o que você tá vendo aí?

Eu tô vendo?? Eu tô é lendo!”

“Fui comprar frutas com meu filho no Ceasa e li as placas dos carros,

tinha Araraquara, Sorocaba, Rio de Conta, Salvador – Salvador começa

com S e termina com O. O nome mais bonito que achei foi Araraquara,

tem muito R”.

“Tô em tempo de quebrar o pescoço dentro do carro de tanto que tô

lendo placa, tava passando um ônibus Perus. Perus começa com P, né

professora”? (o filho dirige o caminhão)

Page 99: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

85

“Tava no açougue e li coxão mole, aí chegou uma senhora bem mais

velha perguntou; tem patinho? Eu olhei na placa e li patinho, e falei: tem

patinho também! Isso é bom demais”.

“Antes quando eu ia assinar um cheque dava uma suadeira, agora de uns

dias pra cá eu tô mais concentrado eu assino”.

“Quando eu fui compra mercadoria no Ceasa eu li na caixa: Fruta

Reginaldo”.

“É bom quando você lê: 3 caixas de morango”

“Tem banheiro juntinho de homem e mulher se você não sabe ler você se

ferra todinho, pode entrar em banheiro errado”.

“Tô ficando xarope tudo que eu pego no mercado eu olho o nome e a data

de validade, quando você vê oferta você tem que ficar esperto com a data

de validade antes eu não olhava agora eu olho tô lendo né!

“Quando eu ia comprar bolo no mercado eu não lia, agora eu leio: bolo de

fubá e sei o sabor que estou levando”.

“Hoje de manhã sentei no banco da praça, peguei o jornal e li governo do

Estado ai eu perguntei pro meu amigo: tá certo? Ele respondeu: aí veio tá

aprendendo”! [sorriu]

Dialogo de R com a professora:

“Após Raimundo ler a poesia, Ipê amarelo, construída pelo grupo sala:

Raimundo fala: Aquele livro lá em cima tô com sede!

Page 100: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

86

Professora: O senhor falou aquele livro lá em cima? Em cima de onde?

Raimundo: Aquela sala lá em cima cheia de livros que de vez em quando

a gente vai.

Professora: Ah a sala de leitura!

Raimundo: É isso mesmo! É pra nois lê eles se Deus quiser!

Professora: Vocês estão gostando das poesias?

Raimundo: Pra mim tá dando vida tá clareando porque nois tá lendo. Lá

fora se tiver poesia à gente vai saber!

“Tô lendo mais que moeda de um centavo”.

“Virei o bicho, agora tô lendo tudo”.

“Papagaio veio não aprende a falar, mas aprende a voar eu tô

voando.

Page 101: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

87

ANEXO 2. “Causo” relatado pelo Raimundo em sala de aula.

Após a contação e contextualização da história do “Bicos Quebrados”

(Ingpen, 2007) na sala de reforço, Raimundo narra um “causo” que vou

relatar na íntegra.

A senhora alembra do governo Collor de Mello. Foi nessa época que eu

e mais uma cambada de gente ia pro Paraguai comprar coisa e vender aqui.

Eu tinha os meus clientes. Uma cliente me encomendou dois papagaios.

Aí eu peguei o ônibus de excursão e fui pro Paraguai. Chegando lá eu comprei

dois papagaios por 20 dólares cada um. Chegando aqui eu ia vender por 100

dólares, ia ganhar um dinheirão!

Na volta o ônibus veio cheio de muamba. Chegando na fronteira, a

polícia tava lá! Aí o motorista avisou: - a polícia!

Aí eu falei: - Ai minha Nossa Senhora, o que é que eu vou fazer com

estes filhotinhos de papagaio? Eu olhei pra trás e tinha uma japonesa no maior

ronco, no último banco. Eu catei a gaiolinha e pus lá perto dela.

O policial parou o ônibus e fez todo mundo descer. Os caras tinham uns

baita cachorrão. Os cachorrões subiram e foram farejando direto nos

papagaios, lá no fundinho do ônibus. Os caras cataram as gaiolas e vieram pra

fora do ônibus. Eles foram perguntando pra cada um de quem era o papagaio.

Ninguém respondia. Eles perguntaram três vezes, na quarta eles falaram: - se

não aparecer o dono do papagaio, vão todos pra delegacia, aí vai ficar pior. Eu

assustei. Aí eu pensei, o jeito é me entregar. Aí eu falei: - O papagaio é meu. O

guarda disse: - O senhor vai ter que me acompanhar até a delegacia. Na

delegacia o delegado me perguntou: - Você não sabe que é proibido o tráfico

Page 102: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

88

de animais silvestres? Aí eu falei: - eu não sei disso não. Eu cheguei do norte

não faz muito tempo (tive que mentir né professora!). E lá isso é normal. A

gente vai pra mata, pega os filhotinhos de papagaio e vende na cidade e não

acontece nada. Aí o delegado disse: - Já que o senhor disse a verdade, eu vou

liberar, mas os papagaios ficam! Aí eu fui embora, nesta viagem eu tomei

prejuízo.

Hoje eu não faço mais isso não. Hoje eu monto minha barraquinha na

praça e ponho comida pros passarinhos. Aí na praça vem tudo. Passarinho,

papagaio, maritaca, vem até tucano!

Page 103: Léa Nunes de Assis - tede2.pucsp.br Nunes de Assis.pdf · Lia os clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos (IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI),

89

ANEXO 3. Termo de consentimento livre e esclarecido

O objetivo da presente pesquisa é a identificação dos motivos que levam

alunos a buscar a escola na idade madura, bem como sentimentos e emoções

vivenciados em sala de aula. Sua participação consistirá em dar uma

entrevista. Entretanto, de antemão lhe é assegurado total sigilo sobre suas

respostas. Elas serão analisadas e eventualmente o produto final poderá ser

publicado ou divulgado em eventos, mas essa divulgação assegurará a

omissão de qualquer elemento que permita a sua identificação.

Sua participação voluntária poderá ser interrompida a qualquer

momento, sem que isso lhe cause qualquer ônus ou transtorno de qualquer

espécie.

___________________________________

Pesquisadora: Léa Nunes de Assis

Comitê de Ética em pesquisa da PUC 3670-8466

Entendi todos os aspectos envolvidos na minha participação na pesquisa

e concordo em fazê-lo de forma voluntária.

Nome do Participante: ____________________________________________

Assinatura: ______________________________