Leandro de Oliveira Galastri · i universidade estadual de campinas instituto de filosofia e...

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i UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE DOUTORADO EM CIÊNCIA POLÍTICA Leandro de Oliveira Galastri Revisionismo “Latino” e Marxismo: de Georges Sorel a Antonio Gramsci Campinas Abril de 2011

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE DOUTORADO EM CIÊNCIA POLÍTICA

Leandro de Oliveira Galastri

Revisionismo “Latino” e Marxismo: de Georges Sorel a Antonio Gramsci

Campinas Abril de 2011

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA

BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP Bibliotecária: Sandra Aparecida Pereira CRB nº 7432

Título em inglês: “Latin” revisionism and marxism : from Georges Sorel to Antonio Gramsci

Palavras chaves em inglês (keywords):

Área de Concentração: Teoria Política

Titulação: Doutor em Ciência Política

Banca examinadora: Edmundo Fernandes Dias, Marcos Del Roio, Anita Helena Schlesener, Rodrigo Passos Data da defesa: 18-04-2011

Programa de Pós-Graduação: Ciência Política

Gramsci, Antonio, 1891-1937 Sorel, Georges, 1847-1922 Socialism Communist - Revisionism

Galastri, Leandro de Oliveira G131r Revisionismo “Latino” e Marxismo : de Georges Sorel a Antonio Gramsci / Leandro de Oliveira Galastri. - - Campinas, SP : [s. n.], 2011.

Orientador: Alvaro Gabriel Bianchi Mendes Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Gramsci, Antonio, 1891-1937. 2. Sorel, Georges, 1847-1922. Socialismo. 3. Comunismo - Revisionismo. I. Mendes, Alvaro Gabriel Bianchi. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto

de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

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Para a Bá

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Agradecimentos

Agradeço ao apoio institucional concedido pela CAPES, sem o qual esta pesquisa

não teria sido realizada nas mesmas condições de aproveitamento.

Ao Prof. Alvaro Bianchi, pelo estímulo ao meu trabalho e zeloso acompanhamento

de seu desenvolvimento, e também ao Grupo de Pesquisa Marxismo e Pensamento Político,

no qual encontrei um profícuo meio de trabalho e discussão de novas ideias, em especial no

debate com os colegas Luciana Aliaga, Renato César Fernandes, Rodrigo Passos, Daniela

Mussi e Verônica Gomes.

Ao Prof. Daniel Bensaïd (in memoriam), que gentilmente me acompanhou como co-

orientador de minha pesquisa durante o ano de Estágio de Doutorado em que permaneci

vinculado à Universidade de Paris VIII e de quem tive o privilégio de ser aluno em seu

curso de pós-graduação de Filosofia. A sugestões do Prof. Bensaïd devo a abertura de

algumas perspectivas futuras nesta linha de pesquisa.

À Prof.ª Rita Medici, que fez importantes observações críticas a este trabalho, além

de me receber na Universidade de Bologna e me ajudar enormemente no acesso aos

arquivos do Instituto Gramsci daquela cidade.

Ao colega Luciano Martorano pela ajuda com a bibliografia de língua alemã.

Pelo debate constante, convivência alegre, apoios os mais diversos, contribuições

intelectuais e pessoais, críticas arrasadoras e elogios substanciosos, agradeço em especial

aos seguintes amigos: Adriano Nascimento, Ana Elisa Corrêa, André Garcia, André

Pereira, Andriei Gutierrez, Carolina Alves, Cristiano Diniz, Danilo Martuscelli, Davisson

de Souza, Eduardo Spínola (o “Rolo”), Elaine Amorim, Henrique Amorim, Jair Silva,

Michelle Redondo, Paula Marcelino, Paulo Bomfim, Rodrigo Ribeiro e Santiane Arias.

Por fim e mais importante, agradeço a Vanessa Arias por surgir em minha vida,

constituindo o que de melhor me aconteceu em Paris e o que de mais valioso continua a me

acontecer no Brasil.

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[16 de maio de 1925, no Parlamento Italiano...] “‘ GRAMSCI: o fascismo luta contra a única força organizada eficientemente que a burguesia possui na Itália, para suplantá-la na ocupação dos postos que o Estado oferece aos seus funcionários. A revolução fascista é só a substituição de um pessoal administrativo por outro pessoal. MUSSOLINI: de uma classe por outra, como ocorreu na Rússia, como ocorre normalmente em todas as revoluções, como nós faremos metodicamente... GRAMSCI: só é uma revolução quando se baseia em uma nova classe. O fascismo não se baseia em nenhuma classe que já não estivesse no poder... MUSSOLINI: mas se grande parte dos capitalistas está contra nós, mas se eu posso lhe citar grandes capitalistas que votam contra nós, que estão na oposição, os Motta, os Conti (...). A alta finança não é fascista, vocês sabem disso! GRAMSCI: o fascismo não conseguiu absorver completamente todos os partidos na sua organização. Com a maçonaria, empregou a tática política do noyautage, depois o sistema terrorista do incêndio de lojas; e, finalmente, emprega hoje a ação legislativa segundo a qual determinadas personalidades das altas finanças e da alta burocracia acabarão por submeter-se aos dominadores para não perderem o seu lugar. Mas com a maçonaria, o governo fascista deverá firmar um compromisso (...). Por isso, nós dizemos que (...) a lei é feita especialmente contra as organizações operárias. Perguntamos por que de alguns meses até hoje, sem que o Partido Comunista tenha sido declarado uma associação criminosa, os carabineiros prendem os nossos companheiros sempre que se acham reunidos em um número de pelo menos três... MUSSOLINI: fazemos como vocês fazem na Rússia... GRAMSCI: na Rússia existem leis que são observadas; vocês têm as suas leis... MUSSOLINI: não é verdade! GRAMSCI: e, no entanto, se prende sem nenhuma acusação específica qualquer pessoa que seja encontrada em uma reunião de três indivíduos, somente porque comunista, e a jogam na prisão. MUSSOLINI: mas logo são libertados. Quantos estão na prisão? Nós os prendemos simplesmente para conhecê-los. GRAMSCI: é uma forma de perseguição sistemática, que antecipa e justificará a aplicação da nova lei (...). Vocês agem como agiam os funcionários giolittianos no Mezzogiorno, que prendiam os eleitores de oposição... para conhecê-los. UMA VOZ: eram casos isolados. O senhor não conhece o Sul. GRAMSCI: sou um meridional!’ A sala enchia-se de vozes. Para Gramsci era a primeira vez e, também, a despedida. Nunca mais falaria daquele banco. Comenta-se, mas não se têm testemunhas diretas do ocorrido, que Mussolini, vendo-o logo depois na buvette da Câmara, foi ao seu encontro, com a mão estendida, para felicitá-lo pelo discurso. Indiferente, Gramsci continuou a tomar o café, ignorando a mão que lhe era estendida”.

(Giuseppe Fiori, A vida de Antonio Gramsci)

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RESUMO

O objetivo desta tese é demonstrar a hipótese de que categorias centrais elaboradas nos Cadernos do Cárcere provêm da assimilação crítica de conceitos elaborados por Georges Sorel no período de uma trajetória pessoal em que o pensador francês encontrava-se envolvido na produção revisionista de sua época, em diálogo direto ou indireto com ela. Consideramos as categorias de “bloco histórico”, “mito” e “cisão de classes” como emblemáticas a respeito. Além disso, são os mais agudos representantes do pensamento revisionista na Europa a “vanguarda do pensamento adversário”, a qual cumpria chamar em desafio para, assimilando seus momentos mais elaborados, superá-la criticamente conferindo um novo vigor à filosofia da práxis. Supomos ser esta uma das vias perseguidas por Gramsci nos Cadernos. De nossa parte, procuraremos apontar e discutir os momentos de apropriação e assimilação crítica, por parte de Gramsci, do pensamento revisionista representado, sobretudo, por Georges Sorel. Antes disso, porém, seguiremos a constituição daquele pensamento, desde seus momentos mais conhecidos, a partir da Alemanha, passando pelas suas expressões mais importantes na França e na Itália para, após compreendermos historicamente seu contexto “marginal” (ou seja, fora da Alemanha), alcançarmos o debate que nos compete de forma mais central, qual seja Georges Sorel nos Cadernos do Cárcere como um importante depositário da herança revisionista.

Palavras-chave: Gramsci, Antonio, 1891-1937; Sorel, Georges, 1847-1922; Socialismo; Comunismo - Revisionismo.

ABSTRACT

The purpose of this thesis is to demonstrate the hypothesis that central categories present in Prison Notebooks come from the critical assimilation of concepts developed by Georges Sorel, in a personal trajectory in which the French thinker was involved in the revisionist production of his time, in direct or indirect dialogue with her. We consider the categories of "historical block", "myth" and "class scission" as emblematic. Furthermore, are the most acute representatives of revisionist thinking in Europe the "vanguard of the opponent's thought", which fulfilled the call in defiance to assimilating their more elaborate moments, overcome it critically conferring a new force to the philosophy of praxis. This is assumed to be a persecuted way in the Prison Notebooks. We will point out and discuss the moments of critical assimilation and appropriation by Gramsci of the revisionist thinking represented, above all, by Georges Sorel. Before that, however, we will follow the constitution of that thought, since their best-known moments, from Germany, through its most important expressions in France and in Italy for, after we understand historically its "marginal" context (i.e. outside of Germany), we can achieve the debate that we consider in a more central point of view, which is Georges Sorel in Cadernos do Cárcere as an important depository of revisionist inheritance.

Keywords: Gramsci, Antonio, 1891-1937; Sorel, Georges, 1847-1922; Socialism; Comunism-Revisionism.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 1

CAPÍTULO 1 – O REVISIONISMO NA ALEMANHA ..................................................... 3

1.1 Kautsky ........................................................................................................................... 7

1.2 Bernstein ....................................................................................................................... 14

1.2.1 As críticas de Bernstein à Teoria do Valor. ........................................................ 22

1.2.2 As críticas de Bernstein à dialética ..................................................................... 28

1.2.3 A tática bernsteiniana .......................................................................................... 31

1.3 Lênin e Rosa contra Bernstein .................................................................................... 35

CAPÍTULO 2 – O REVISIONISMO “LATINO”: CONTEXTO HISTÓRICO E PRINCIPAIS REPRESENTANTES .................................................................................... 49

2.1 Desenvolvimento e agonia do sindicalismo revolucionário ..................................... 49

2.2 O Biennio Rosso e a “origem” de Gramsci ................................................................ 55

2.3 A questão estrutura “versus” superestrutura .............................................................. 60

2.4 O movimento da história e a questão estrutura “versus” superestrutura ................. 63

2.5 Os pensadores do revisionismo “latino” .................................................................... 73

2.5.1 Saverio Merlino ................................................................................................... 73

2.5.2 Benedetto Croce ................................................................................................... 80

2.5.3 Henri De Man ...................................................................................................... 96

2.5.4 Georges Sorel: do revisionismo ao sindicalismo revolucionário ................... 109

2.5.4.1 A luta de classes como luta jurídica .................................................. 116

2.5.4.2 Devir histórico: reforma moral, determinismo e dialética ............... 171

2.5.4.3 Antideterminismo em Sorel ............................................................... 179

2.5.4.4 Finalmente o sindicalismo revolucionário ........................................ 185

2.5.4.5 Sorel e o “neomarxismo” ................................................................... 198

2.5.4.6 O marxismo como mito ..................................................................... 202

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CAPÍTULO 3 – O REVISIONISMO “LATINO” E O MARXISMO ITALIANO: SOREL DIANTE DE LABRIOLA E GRAMSCI ............................................................. 209

3.1 Antonio Labriola ....................................................................................................... 209

3.2 O diálogo entre Sorel e Labriola .............................................................................. 237

3.3 Um Gramsci soreliano? ............................................................................................. 240

3.4 Sorel nos Quaderni ................................................................................................... 245

3.4.1 O mito ................................................................................................................. 246

3.4.2 O bloco histórico ................................................................................................ 251

3.4.3 A revolução passiva ........................................................................................... 259

3.4.4 Jacobinismo (e antijacobinismo) ...................................................................... 266

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 275

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 279

1

INTRODUÇÃO 1

A “crise do marxismo” é apenas o sintoma de um fato simples e compreensível: alguns seguem, enquanto outros ficam pelo caminho. Desejemos boa viagem aos primeiros, e façamos aos últimos um cumprimento cordial. Quanto àqueles que se servem daquela expressão como uma frase de efeito, como um pretexto ou uma cômoda maneira para insinuações, limitemo-nos a rir. (LABRIOLA, 1977, p.299).

No início do século XX, a teoria marxista encontrava-se fustigada por um potente

movimento teórico revisionista, no qual se haviam empenhado, desde fins da década de

noventa do século anterior, intelectuais de grande envergadura na Europa, como Eduard

Bernstein (1850-1932), Benedetto Croce (1866-1952) e Georges Sorel (1847-1922)

respectivamente na Alemanha, Itália e França. Como parte de sua proposta de

recomposição da ortodoxia marxista, Antonio Gramsci travou importante debate com essas

correntes, sobretudo nos Cadernos do Cárcere. Embora conduzido de maneira mais

significativa (mas não sem conflitos internos), como se sabe, pela socialdemocracia alemã,

sobretudo na figura de Bernstein, tal movimento revisionista possuiu expressão

considerável em pensadores como Croce e Sorel.2 Este, embora sendo francês, influenciou

de modo importante o movimento operário italiano nos primeiros anos do século passado.

Nos Cadernos do Cárcere, o debate com Benedetto Croce é ostensivo, sobretudo por conta

da influência que Croce exercia no ambiente intelectual italiano da época. No caso de Sorel,

1 A referência aos textos dos Cadernos do Cárcere será feita da seguinte forma: (Q, §, p., A, B ou C), onde

"Q" designará o caderno, "§" o parágrafo, "p." a página e a seguir se se trata de um texto A, B ou C. Quando a referência for a um texto C, será indicado também o respectivo texto A (de primeira redação). As notas de tipo B são as de redação única, sem modificações posteriores. Todas as notações referir-se-ão à edição crítica de Valentino Gerratana, da qual utilizamos a reimpressão de 2001, que mantém a mesma paginação da edição original de 1975 (GRAMSCI, 2001). 2 Gramsci faz alusão a uma afirmação de Sorel em carta deste a Croce segundo a qual Bernstein teria admitido, num artigo da Neue Zeit n. 46 de 1899, inspirar-se nos trabalhos de Sorel e Croce para desenvolver suas próprias teorias na Alemanha (Q10,§2, p.1213, C; Q8,§225, p.1082) . O texto de Bernstein é um artigo de polêmica com Kautsky, chamado "Luta de Classes: dogma e realidade", e diz o seguinte na passagem em que se refere a Sorel e Croce: "Primeiro, é um grande erro, se Kautsky interpreta categoricamente a minha frase, de que eu considero como irrefutáveis as objeções levantadas contra detalhes da doutrina de Marx, e que isso não seria 'outra coisa senão economia burguesa'. Kautsky porém não desconhece que também há críticos socialistas de Marx. Eu já acentuei no seu período de 'Neue Zeit' que os trabalhos de gente como B. Croce, G. Sorel, entre outros, não foram indiferentes para mim" (Bernstein, 1899, p.622).

2

embora as referências diretas estejam em número bem menor se comparadas às feitas a

Croce, por exemplo, elas possuem grande importância no processo de composição de

conceitos centrais da obra carcerária.3

O objetivo deste trabalho é demonstrar a hipótese de que categorias centrais

elaboradas nos Cadernos do Cárcere provêm da assimilação crítica de conceitos elaborados

por Georges Sorel no período de uma trajetória pessoal em que o pensador francês

encontrava-se envolvido na produção revisionista de sua época, em diálogo direto ou

indireto com ela. Consideramos as categorias de “bloco histórico”, “mito”, “cisão de

classes” e “reforma intelectual e moral” como emblemáticas a respeito. Além disso, são os

mais agudos representantes do pensamento revisionista na Europa a “vanguarda do

pensamento adversário”, a qual cumpria chamar em desafio para, assimilando seus

momentos mais elaborados, superá-la criticamente conferindo um novo vigor à filosofia da

práxis. Supomos ser esta uma das vias perseguidas por Gramsci nos Cadernos. De nossa

parte, procuraremos apontar e discutir os momentos de apropriação e assimilação crítica,

por parte de Gramsci, do pensamento revisionista representado, sobretudo, por Georges

Sorel. Antes disso, porém, seguiremos a constituição daquele pensamento, desde seus

momentos mais conhecidos, a partir da Alemanha, passando pelas suas expressões mais

importantes na França e na Itália para, após compreendermos historicamente seu contexto

“marginal” (ou seja, fora da Alemanha) alcançarmos o debate que nos compete de forma

mais central, qual seja, Georges Sorel nos Cadernos do Cárcere como um importante

depositário da herança revisionista. Nosso método de exposição, portanto, prevê dois

momentos: primeiro, localização e análise do debate sobre a crise do marxismo que ocorre

para além (ou à margem) do já conhecido debate que tem lugar no seio da socialdemocracia

alemã herdeira de Engels. Segundo, a assimilação deste debate por Gramsci, e seu papel na

atualização da “ortodoxia” marxista pós-vaga revisionista. Entretanto, apenas parcialmente

verificaremos como Gramsci realiza tal operação. Nosso recorte acabará por limitar-se ao

diálogo gramsciano com a obra de Sorel.

3 Por exemplo, o conceito de Bloco Histórico, diretamente inspirado nas páginas de Sorel, e o de Reforma Intelectual e Moral, que Sorel toma literalmente do historiador positivista Ernest Renan, embora lhe altere o sentido.

3

CAPÍTULO 1 - O REVISIONISMO NA ALEMANHA 4

A chegada da social democracia alemã à condição de partido mais forte do

proletariado na Europa da segunda metade do século XIX tem suas raízes, em grande parte,

no significativo engajamento revolucionário do proletariado francês e na derrota deste.

Batidos duas vezes, nas revoluções de 1830 (queda de Carlos X) e 1848 (queda de Luís

Filipe), nas quais as diferentes frações da burguesia francesa buscavam a composição de

um Estado adequado a seus interesses expansionistas, os trabalhadores franceses sofreriam

sua derrota final frente às classes dominantes francesa e prussiana em Paris, em 1871, num

desdobramento da derradeira guerra de Napoleão III, contra a Prússia, em 1870. A França

caiu em setembro e parte significativa dos exércitos imperiais foi feita prisioneira em

Sedan. A burguesia francesa se dividiu: uma parte queria continuar a guerra, mas a parte

majoritária temia a participação em massa dos operários, que se engajavam nos batalhões

da Guarda Nacional (BERTELLI, 2003, p.41). Como se sabe, esta parte da burguesia estava

com a razão, e o resultado da conjunção da derrota militar contra a Prússia com a

organização dos operários franceses em armas foi a tomada de Paris por esses no começo

de 1871, que terminaram massacrados alguns meses depois num comum acordo entre as

burguesias francesa e prussiana.

Assim, “a guerra de 1870-1871 e a derrota da Comuna tinham, como predissera

Marx, transferido provisoriamente da França para a Alemanha o centro de gravidade do

movimento operário europeu” (ENGELS, 1974, p.293). Tal deslocamento ter-se-ia dado

pelo próprio desenvolvimento econômico auferido pela Alemanha por conta da vitória na

guerra, recebendo um total de 5 bilhões de francos como indenizações, o que teria sido

fundamental para a acumulação de capital na Alemanha e a promoção de um

desenvolvimento acelerado (BERTELLI, 2003, p.43). Situação que se articulou ao uso feito

4 Por conta da sofisticada estrutura da socialdemocracia alemã e consequente peso político no cenário europeu, esta adquiriu um status historiográfico mais evidente. Porém, como salienta Gustafsson, “As posições teóricas e práticas representadas por Bernstein tinham defensores em praticamente quase todos os partidos da Segunda Internacional. Na Alemanha enfrentavam-se os partidários de Bebel e de Bernstein, na França os de Guesde e de Jaurés e na Bélgica os de Brouckère e de Vandervelde. Na Inglaterra, a linha de separação dividia a Social Democratic Federation do Independent Labour Party, na Itália integralistas de reformistas, na Rússia Bolcheviques de Mencheviques, etc. O que separava uns de outros não estava igualmente claro em todos os lugares, mas no fundo tratava-se de uma oposição em princípio entre marxistas “ortodoxos” e revisionistas. O revisionismo se havia convertido, assim, me fenômeno internacional” (GUSTAFSSON, 1975, p.173).

4

pelo Partido Social Democrata do sufrágio universal, inserindo-se fortemente nas disputas

pelo parlamento (Idem).

Um dos argumentos de autoridade utilizados pela direção do Partido Social

Democrata para conferir força política às suas teses de revisão do marxismo fora a

Introdução de Engels de 1895 ao Luta de Classes na França, de Marx. Era um momento de

grande ascensão eleitoral do Partido e sua direção aproveitou-se de reflexões de Engels em

que este se referia à superação dos métodos de 1848 e da Comuna de 1871, aos êxitos

parlamentares e ao uso do sufrágio universal pelo partido. O texto de Engels teria sido

usado para corroborar as teses políticas da social democracia em 1895, pacifistas e

parlamentares. Wilhelm Liebknecht, antigo dirigente e fundador do partido

socialdemocrata, “editou” o texto e o publicou, em 1895, num dos órgãos da imprensa

socialdemocrata sem as partes que faziam clara referência a defesa dos meios violentos da

ação operária (BERTELLI, 2003, p.27). Engels teria insistido para que o texto fosse

retomado em sua forma inicial para a publicação do livro de Marx. Fato é que a defesa dos

“meios violentos” como necessários a determinado momento futuro das lutas operárias era

condição indispensável para Engels, como transparece da leitura do texto integral a que

temos acesso hoje (ENGELS, 1974). Porém, a socialdemocracia estaria empenhada em dar

um sentido apenas parlamentar à sua luta, postura que refletia o sucesso eleitoral crescente

do partido nas sucessivas eleições parlamentares daquele ano (Idem, p. 28).5

Um elemento que reforçava bastante a difusão das ideias revisionistas de Bernstein

fora o próprio argumento utilizado pelo autor, no prefácio ao seu livro As premissas do

socialismo e as tarefas da socialdemocracia, de que Engels estaria de acordo com as novas

posições segundo o que teria escrito no prefácio acima citado (Idem, p.29). De fato, neste

texto, afirma Bernstein:

5 Przeworski apresenta os números da rápida ascensão do partido socialdemocrata. Sobre as expectativas dos socialdemocratas de rapidamente chegar ao poder pelo sufrágio universal, diz o autor que “tais expectativas, baseadas na convicção sobre o curso futuro da história, foram quase imediatamente confirmadas pelo progresso eleitoral dos partidos socialistas. O partido alemão – apontado por Engels como o modelo a ser seguido – cresceu, apesar dos anos de depressão, de 125 mil votos em 1871 para 312 mil em 1881, 1 427 000 em 1890 e 4 250 000 às vésperas da Primeira Guerra Mundial. De fato, tão logo se permitiu que caducassem as leis antissocialistas, o SPD tornou-se, em 1890, o maior partido da Alemanha, com 19,7% dos votos” (PRZEWORSKI, 1991, p.32).

5

E, em 1895, Friedrich Engels estabeleceu, em pormenor, no prefácio à Guerra de classes, que o tempo das surpresas políticas, das “revoluções de minorias escassamente conscientes, à frente de massas inconscientes” estava hoje chegando ao fim [...]. E ele acentua, em conformidade com essa opinião, que a tarefa seguinte do partido devia ser “trabalhar para um incremento constante dos seus votos” ou levar a efeito uma lenta, mas ininterrupta, propaganda da atividade parlamentar (BERNSTEIN, 1997, p.25).

Como salienta Bertelli (2003, p. 28-29), tratava-se de uma afirmação muito séria

vinda de um amigo “testamenteiro” de Engels. Segundo o autor, a versão integral da

“Introdução” de Engels só viria a ser publicada em 1930 em Moscou, pelo Instituto Marx-

Engels, dirigido por Riazanov. Porém, numa carta de Engels a Kautsky, citada por este em

seu livro O Caminho do Poder, Engels diria:

Com grande surpresa vejo no Vorwârts [órgão da imprensa socialdemocrata, dirigido por Wilhelm Liebknecht] de hoje um extrato de minha “Introdução” impresso sem minha aprovação e enfeitado de tal maneira que eu tenho o ar de ser adorador pacífico da legalidade a qualquer preço. Estou mais contente de ver aparecer agora integralmente a “Introdução” em Neue Zeit [órgão da imprensa socialdemocrata dirigido por Karl Kautsky], a fim de que essa impressão vergonhosa se apague. Não deixarei de dizer o que penso disso a Liebknecht e aos que, quaisquer que sejam, desnaturaram meu pensamento (ENGELS apud KAUTSKY, 1979, p. 42. Grifo nosso).

Ou seja, em seguida à publicação da versão mutilada Engels teve atendido por

Kautsky seu pedido de urgência da publicação integral da “Introdução”.

Engels não estaria, na verdade, defendendo a substituição necessária da forma final

violenta da luta de classes pela via pacífica parlamentar. O que abordava no prefácio em

questão era a necessidade de se considerar novas formas de luta dadas as modificações nas

formas de resistência que o sistema capitalista havia experimentado após determinada etapa

histórica, modificações notadamente demonstradas por ocasião da derrota da Comuna de

Paris (ENGELS, 1974, p.293). Para Engels, o sufrágio universal e a via parlamentar

configuravam mais uma das táticas de luta (BERTELLI, 2003, p.45) 6. A experiência da

Comuna de Paris havia deixado claro que o movimento operário, lançado à luta direta nas

6 Bertelli (2003, p. 46) faz uma interessante observação sobre a proximidade entre as reflexões de Engels e as categorias gramscianas desenvolvidas nos Cadernos do Cárcere: “Assim, as questões do bloco histórico, da hegemonia, da guerra de movimento e de posição, do partido de novo tipo, que constituem temas abordados por Gramsci de forma genial, embora embrionária (sic), em seus Quaderni, estão perfeitamente claras nos diversos momentos da análise engelsiana da ‘Introdução’, que, diga-se de passagem, são também momentos geniais e embrionários de reflexões teóricas”.

6

barricadas, não se mostrava capaz de enfrentar as forças regulares do Estado burguês, mais

equipadas e bem treinadas para fazer frente a situações de insurreição. Teria sido então

após a Comuna que o operariado começaria sua organização na forma do partido político

que resultaria no modelo da social-democracia (Idem, 55).

Fato é que o crescimento da socialdemocracia na Alemanha lidava com um

momento diferenciado do capitalismo e procurava desenvolver teoricamente uma crítica ao

sistema que se adaptasse a esses novos tempos. A diferenciação na composição interna do

partido advinda de seu crescimento mostra o novo perfil da estratificação social diante da

qual devia se apresentar como alternativa viável, preocupada também com os problemas

cotidianos dos trabalhadores e não apenas com uma estratégia revolucionária de prazo

indefinido:

O proletariado já não era assim tão monolítico, pois, além das camadas industriais que se diferenciavam a cada dia do ponto de vista profissional, surgiam outras camadas de trabalhadores, como empregados em serviços, ferrovias, correios, bancos, etc. E a realidade da agricultura criava camadas rurais diferenciadas, seja no polo dominante, com os capitalistas agrários, latifundiários e pequenos fazendeiros, seja no polo oposto, com operários rurais, camponeses de todos os tipos, peões, etc. (...) Os conflitos gerados pelo emaranhado de tendências e de camadas iam ganhando corpo no interior do partido, na medida em que ele desenvolvia sua ação política e crescia, aumentando seu poder na sociedade. Assim, representantes de uma região industrializada, fortemente operária, defendiam posições totalmente voltadas para temas operários e industriais; outros, de regiões mais agrárias, cujos problemas giravam em torno de questões rurais, lutavam pelos camponeses pobres; os representantes pequeno-burgueses, por sua vez, defendiam as camadas médias, como intelectuais, e cada parcela desconhecia o interesse das demais (BERTELLI, 2003, p.64-65).

A origem da socialdemocracia como partido político na Alemanha fora resultado da

fusão de duas organizações socialistas criadas na década de 1860: a Associação Geral dos

Trabalhadores Alemães, fundada em 1863 por Ferdinand Lassalle, e o Partido Operário

Socialdemocrata Alemão, fundado em 1869 pelos líderes socialistas August Bebel e

Wilhelm Liebknecht. Tal fusão ocorreu no congresso de Gotha, em maio de 1875, dando

origem assim ao que seria o “primeiro grande partido operário moderno” (BERTELLI,

2003, p.49). Logo em 1878, Bismarck providencia a aprovação pelo Parlamento Alemão

7

das leis antissocialistas, colocando o partido socialdemocrata na ilegalidade e cerceando sua

liberdade de expressão (Idem, p.50).7

O surgimento da nova face partidária dos socialdemocratas alemães encontra-se no

fim da lei antissocialista em 1890. Ali, o partido se reorganizou e mudou de nome para

Partido Social Democrata Alemão. Já no II Congresso após o fim da lei antissocialista

aprovou-se o novo programa: o programa de Erfurt de 1891. Em sua redação tiveram

papéis preponderantes Karl Kautsky, responsável pela parte dos princípios teóricos, e

Eduard Bernstein, que se encarregou da parte relativa à prática política. Nos princípios

teóricos o partido se reivindicava como “revolucionário, sem, contudo, possuir o poder de

decidir quando ou como a revolução se desencadearia”, sendo que tal caráter revolucionário

residiria, sobretudo, nos objetivos finais do partido, e não em seus meios de ação

(ABELLÁN, 1990, p. XV). A parte prática trazia um conjunto de reivindicações concretas

e o reconhecimento da sociedade burguesa e suas instituições como o ponto de partida para

a melhoria das condições de vida dos trabalhadores. Entre aquelas reivindicações estavam a

igualdade da mulher, o sufrágio universal, a laicização do ensino e medidas relativas às

relações de trabalho e ao direito de liberdade sindical (Idem).

1.1 Kautsky

O texto apresentado por Kautsky ao Congresso de Erfurt tivera a influência crítica

de Engels, e acabou sendo aceito com poucas modificações. Seu conteúdo, como programa

oficial da socialdemocracia alemã, teria ainda uma vigência de muitos anos no partido

(PROCACCI, 1988, p.94). Nas divergências internas do Partido Socialdemocrata, o

movimento revisionista expressaria a percepção mais ou menos acentuada do início de uma

nova etapa na história do movimento operário e do socialismo. A entrada em cena de um

conjunto cada vez mais heterogêneo de personagens da massa trabalhadora encetaria o

7 Tal lei, aprovada em 21 de outubro de 1878, inviabilizava quase totalmente a sua organização. Ficavam proibidas as reuniões, assembleias e seus órgãos de imprensa. As finanças do partido, como as caixas de socorro mútuo, passaram a ser controladas pelo Estado. De toda forma, era permitida aos socialistas a candidatura em eleições, o que de fato continuaram fazendo. As autoridades policiais de cada estado tinham autorização prévia para prender ou expulsar militantes socialistas. Mais de 1500 pessoas foram presas, além de mais de 900 expulsas e outras tantas forçadas a emigrar (ABELLÁN, 1990, p. XII).

8

surgimento de diversas tendências em oposição, bem como uma aproximação entre as

questões da democracia e do desenvolvimento do socialismo. As lutas e vitórias do

movimento operário, com o desenvolvimento da grande indústria, criara uma consciência

democrática que se expandiu também grupos cada vez mais amplos da sociedade. Os

objetivos políticos e econômicos e as formas de luta desses grupos passavam a se cruzar

com os objetivos e as formas de luta próprios do movimento operário (Idem, p.100). Essas

novas variáveis complicavam a natureza dos problemas que se apresentavam aos partidos

socialistas e revolucionários, o que fomentava os pontos de vista que defendiam a

necessidade de uma renovação da teoria, do abandono de determinados axiomas da teoria

marxistas preconizados pelas correntes revisionistas. Diante de tudo isso, Kautsky viria a

ter importância decisiva no combate à tentativa dessas reformas revisionistas do ideário

socialdemocrata. (Idem, p.96).

Segundo Procacci (1988, p.99), o mérito histórico de Kautsky para com o marxismo

teria sido a batalha pela sua autonomia como ideologia específica da classe operária.

Kautsky teria vencido esta batalha, embora não tivesse conseguido avançar suficientemente

naquele que seria seu principal problema teórico, o da conciliação entre o tipo de

democracia política até então construído pelo regime liberal e a revolução socialista.

Kautsky intentaria desenvolver o problema das relações entre democracia burguesa e

democracia socialista com o problema de sua relação histórica e dialética e salientar,

exatamente, sua continuidade. Para isso, ele desejaria começar justamente pela

demonstração de sua oposição, de sua distinção. Na discussão com o revisionismo, Kautsky

enfatizaria suas posições ortodoxas de maneira que às vezes chegava ao reducionismo ou à

simplificação excessiva de teses como a da oposição entre burguesia e proletariado como

caráter fundamental da sociedade capitalista moderna, a base necessariamente econômica

de qualquer conflito político e ideológico e a inescapável subordinação da atividade política

a leis e tendências do desenvolvimento capitalista (PROCACCI, 1988, p.100).

Kautsky teria conseguido um primeiro triunfo no plano internacional quando,

juntamente com Bebel no Congresso da Internacional Socialista em Amsterdã, em 1904,

conseguira impor a aprovação de moção na qual condenava de forma explícita o

revisionismo (Idem, p.101). Fora esse então um dos momentos significativos da luta

9

antirrevisionista de Karl Kautsky, cujas posições a respeito da greve geral, do socialismo e

das relações entre partidos e sindicatos seguiam “apaixonadamente” discutidas na imprensa

operária e socialista da época (Idem, p.102). De acordo com Procacci (1988, p.102):

(...) o documento que talvez melhor reflita, mais do que qualquer outro, esse estado de ânimo é Der Weg zur Macht [O Caminho do Poder], que Kautsky publicou em 1909 e que apresenta o limite máximo de seu esforço para atualizar e modernizar o sistema de convicções que formara e consolidara na longa polêmica contra o revisionismo.

Vejamos sumariamente alguns dos princípios antirrevisionistas expostos na obra em

questão. Logo de saída, Kautsky não admite outra designação para o partido “que luta pelos

interesses de classe do proletariado” senão a de “revolucionário” (KAUTSKY, 1979, p.1).

Desdenha dos modos antagonicamente extremados de se conceber a revolução, ou seja,

como a simples efusão de sangue, saques e pilhagens, assassinatos, e como uma

transformação excessivamente lenta das condições sociais. Reivindica o pressuposto da

tomada do aparelho do Estado como o meio para se empreender a dominação do

proletariado, a tomada do poder político por este (Idem).

Sustenta Kautsky que a função do partido socialista seria combinar os vários modos

de ação e resistência do proletariado contra a exploração capitalista, “com uma ação

sistemática, consciente do objetivo a conquistar e culminando nas grandes lutas finais pela

conquista do poder político” (Idem, p. 3). Queixa-se o autor, no entanto, de que essa

estratégia não tivesse podido se firmar com toda sua força até então, devido à necessidade

de enfrentar “a dúvida e a crítica nas próprias fileiras do Partido Socialista” (Idem). Analisa

as falhas das “previsões” de Marx e Engels no final da década de 1840 com relação à

iminência de uma revolução burguesa na Alemanha que seria imediatamente seguida pela

revolução proletária, observando que, “no cálculo, um fator não era exato”: Marx e Engels

haviam contado demasiadamente com a força revolucionária e com a oposição da burguesia

(Idem, p.4). De par aqui aparentemente com a análise de Lênin sobre a via prussiana da

“revolução burguesa” na Alemanha - tese desenvolvida dois anos antes no trabalho O

programa agrário da socialdemocracia na Primeira Revolução Russa de 1905-1907 do

revolucionário russo - e adiantando-se em algumas décadas às análises de Gramsci sobre a

10

“passivização” das revoluções burguesas, ou simplesmente “revolução passiva”, Kautsky

argumenta que

A burguesia abandonou, em seguida aos diferentes governos, a tarefa de continuar para ela a revolução enquanto fosse necessária, e Bismarck, especialmente, foi o grande revolucionário que, em parte ao menos, unificou a Alemanha, derrubou príncipes alemães de seus tronos, favoreceu a unidade italiana e o destronamento do Papa, derrubou o império na França e abriu caminho à república. Assim se cumpriu a revolução burguesa alemã que Marx e Engels profetizaram em 1847, como próxima, e que não terminou até 1870 (Idem).

A revolução burguesa ocorrera assim, na Alemanha, na ausência da burguesia como

sujeito político revolucionário e por meio de reformas sucessivas a partir do aparato estatal

bélico e burocrático do império de Bismarck. É assim que, sem poder mais esperar pela

revolução burguesa como etapa radical imediatamente anterior à própria revolução

proletária, conclui Kautsky que nenhuma revolução seria possível que não fosse já aquela

pelas mãos do proletariado. Em seguida, o autor volta à carga contra o revisionismo em seu

partido. Conclui haver, neste, aqueles “camaradas” que consideram inútil e ultrapassados os

métodos revolucionários e que contam com alianças com partidos burgueses mais próximos

para se chegar a uma composição de poder que, julgam, não poderia mais ser alcançada por

nenhum partido isoladamente (Idem, p.5). Segundo tais camaradas, diz Kautsky, bastaria

continuar o desenvolvimento de instituições sociais já conquistadas, como a legislação

operária, os sindicatos, as cooperativas, para expropriar aos poucos a classe capitalista sem

os traumas de uma revolução. Para Kautsky, “esta teoria de uma evolução pacífica e

gradual até a sociedade futura é uma modernização das velhas concepções antipolíticas do

utopismo e do proudhonismo” (Idem). Segundo o autor, não se trataria aqui de opiniões

sem consequências, mas “da salvação ou a derrota do proletariado militante”, e conclui com

palavras incisivas: “um partido proletário, em um governo de coalizão burguesa, far-se-á

sempre cúmplice dos atos de repressão dirigidos contra a classe operária” (Idem). Kautsky

afirma então com toda veemência que a discussão não é sobre ser contra ou a favor das

instituições ou da legislação que proporciona melhorias na vida do proletariado, já que a

utilidade dessas medidas seria consensual, mas sobre a impossibilidade de reformas

progressivas que cheguem à expropriação da classe capitalista sem esperar que ela, que

detém o poder político, oponha uma resistência com todas as suas forças, resistência que

não poderia ser quebrada sem uma “batalha decisiva” (Idem, p.6).

11

A distinção que Kautsky fazia entre suas posições e aquela da corrente revisionista

concentrava-se também em tratar a utilização da legalidade institucional no âmbito da

tática, e não no da estratégia, como julgava fazerem os adeptos de Bernstein. Reivindica

Kautsky já haver desenvolvido, em um artigo de 1893 publicado na Neue Zeit e recolhido

em O Caminho do Poder, argumentos semelhantes aos que Engels apresenta na

“Introdução” discutida mais acima. Comentando o referido artigo, sugere Kautsky que o

proletariado não deixaria de ser revolucionário nas condições de uma democracia burguesa.

O que ocorreria é que a democracia deixaria mais em evidência as forças relativas dos

partidos e das classes, impedindo que as classes revolucionárias se precipitem em busca de

soluções para as quais não estariam ainda preparadas, da mesma forma que impedem as

classes dirigentes de fazer concessões, deixando mais evidente quando não tiverem

condições para tal (Idem, p.45). De todo modo, para Kautsky, de forma alguma a

democracia burguesa destruiria os antagonismos de classe da sociedade capitalista, nem

conseguiria impedir seu resultado histórico, ou seja, seu desaparecimento e superação por

uma sociedade sem classes (Idem).

Para o líder socialdemocrata, a conservação, a permanência de métodos de luta não

militares, como a participação no parlamento, greves, manifestações, jornais, etc., pode ser

tanto mais provável quanto mais as instituições democráticas num determinado país são

eficazes e a população mais consciente política e economicamente (Idem, p.46). Na mesma

trilha de raciocínio de Engels, Kautsky considera a Comuna de Paris como a última grande

derrota do proletariado, envolvido justamente nos métodos militares de resistência. Desde a

queda da Comuna, a classe operária teria empreendido avanços consideráveis em muitos

países por meio dos chamados métodos “pacíficos”, que se mostrariam então mais seguros

do que os movimentos revolucionários anteriores (Idem, p.48).

Para Kautsky, a aposta nos meios violentos naquele momento de desenvolvimento

da sociedade capitalista parecia agora, no mínimo, uma atitude precipitada, que

objetivamente se igualaria às ações irresponsáveis de movimentos anarquistas. Considera o

“sindicalismo revolucionário” na França, por exemplo, como a mais recente vertente

anarquista da qual uma parte substancial do movimento operário se fazia presa naquele

momento. Segundo o autor, o sindicalismo revolucionário preocupar-se-ia menos com a

12

preparação política do proletariado do que em “assustar inutilmente a burguesia”,

enfurecendo-a e submetendo o proletariado a reações que estariam para além de suas forças

suportar (Idem, p.52).

Enfim, conclui Kautsky que seriam os revolucionários marxistas os representantes

dessa nova maneira de encarar a ação revolucionária que seria reivindicada tanto por

Engels quanto por ele próprio na primeira metade da década de 1890: “Não somos

partidários da legalidade a qualquer preço, nem revolucionários a todo custo. Sabemos que

não se podem criar, por simples vontade, situações históricas e que de acordo com estas é

que se deve elaborar nossa tática” (Idem).

É necessário lembrar que, além deste Kautsky “ortodoxo”, que reivindicava lugar

privilegiado na luta pela manutenção dos cânones centrais do marxismo e lavrava uma luta

aberta contra as teses revisionistas elaboradas por seu velho amigo Bernstein, existiu outro,

um que terminou por deixar também sua contribuição, embora tardia, às sendas

revisionistas do socialismo, por meio de seu combate contra a revolução bolchevique e a

construção do novo Estado na Rússia a partir de 1917 (SALVATORI, 1988). Esse “último”

Kautsky, do final da década de 20 e que expressaria suas derradeiras teses na obra Die

materialistische Geschichtsauffassung8, de 1927, defenderia a perenidade da capacidade

que o capitalismo possuiria de superar indefinidamente suas crises econômicas, negando

que estas alcançassem condições cada vez mais graves e agudas (Idem, p.161).

Não seria a inevitabilidade de crises cada vez mais agudas, mas a exploração dos

assalariados o elemento potencialmente condutor da luta socialista para a conquista do

poder de Estado e da socialização da produção, ou seja, o sistema capitalista seria incapaz

de eliminar aquela exploração (Idem, p.162). A função dos socialistas seria, assim,

demonstrar ao movimento operário que somente o socialismo poderia construir uma nova

ordem baseada na defesa dos operários contra a exploração, defesa que já se organizava em

âmbito corporativo no interior do próprio capitalismo. Kautsky enxergaria a democracia

parlamentar como uma necessidade impossível de ser superada, e constantemente traduzida

pelo operariado como opção de luta contra a exploração, propiciando assim a educação

política necessária para formar nos trabalhadores a consciência socialista (Idem). Neste 8 “A concepção materialista da história”.

13

processo, a elevação do nível de vida dos trabalhadores e o aumento gradativo da

democracia não diminuiriam os conflitos de classe, exatamente pelo fato de que aquele

aumento da democracia colocaria cada vez mais os interesses coletivos em choque contra

os interesses privados do capital. Assim, a resistência que o capitalismo necessariamente se

veria obrigado a opor à democracia faria com que os trabalhadores vissem no socialismo a

única opção definitiva (Idem). Nas palavras de Salvatori (1988, p. 162),

[Para Kautsky] a concentração capitalista tem duplo efeito: por um lado, moderniza a economia e cria as bases para o socialismo; mas, por outro, não “democratiza” inteiramente o capitalismo mesmo, fazendo crescer a aspiração das massas pelo socialismo.

Assim, o proletariado já não poderia, no capitalismo avançado, organizar sua

existência autônoma sem a democracia parlamentar. Esta adquiriria, portanto, um valor

tanto maior para a etapa de transição ao socialismo (Idem, p. 163). O revisionismo de

Kautsky chegava as seguintes conclusões: a improbabilidade da crise final do capitalismo;

em vez da tomada do poder do Estado e instauração da ditadura do proletariado, tratar-se-ia

agora apenas da edificação do socialismo via democracia parlamentar; a impossibilidade da

extinção do Estado: a extinção das classes tiraria do Estado seu caráter opressor, mas a

sociedade não poderia prescindir de seu caráter regulador, destinado a “dominar os

impulsos particularistas presentes em seu seio, que não são frutos somente da divisão de

classes” (Idem, p. 167).

Baseado na defesa da democracia política como o pavimento indispensável sobre o

qual se poderia viabilizar a marcha para o socialismo, Kautsky é levado então a se opor de

maneira determinada ao bolchevismo no poder, considerando-o uma espécie de

“bonapartismo contrarrevolucionário” (Idem,p.177). O bolchevismo, para o

socialdemocrata alemão, aparecia como o responsável pela edificação de um regime

despótico que havia interrompido as possibilidades de avanço do socialismo que teriam

surgido na Rússia entre fevereiro e outubro de 1917: “Neste sentido, segundo Kautsky,

Stálin era o legítimo e necessário herdeiro de Lênin. Esta foi a conclusão a que chegou o

velho teórico socialdemocrata diante do stalinismo triunfante” (Idem, p.178).

14

Em suma, os elementos que comporiam a tese principal do “velho Kautsky” seriam

os seguintes: o capitalismo não seria capaz de integrar o proletariado em seu

desenvolvimento, visando à complementação harmônica entre as classes, porque não

poderia superar, eliminar ou acabar com a luta de classes; apenas através da democracia

política é que esta luta de classes pode se manifestar duradouramente nas sociedades

capitalistas industriais avançadas; assim, tem-se a luta de classes permanente que, realizada

nos marcos da democracia política, não pode conduzir a outro resultado senão o “impulso

para o socialismo nas massas trabalhadoras” (Idem, p.180). Esta tese resultaria, portanto, na

defesa exclusiva do caminho parlamentar para o socialismo, já que o proletariado deveria

considerar as liberdades democráticas não mais como um dos elementos táticos, mas como

elemento primordial e estratégico da luta de classes. A democracia política forneceria as

únicas possibilidades de construção do socialismo democrático, e a tarefa do proletariado,

diante de uma ameaça às liberdades democráticas, não poderia nunca ser a luta direta pelo

poder do Estado, mas exclusivamente pelo restabelecimento daquelas liberdades.

1.2 Bernstein

Como se sabe, o socialdemocrata alemão Eduard Bernstein passou para a história do

marxismo como o fundador das interpretações revisionistas da obra de Marx e Engels a

partir do surgimento de seu livro As premissas do socialismo e as tarefas da

socialdemocracia, em 1899.9 O livro fora resultado de uma série de artigos intitulada

“Problemas do Socialismo” e publicada na revista do Partido Socialdemocrata Alemão

Neue Zeit entre 1896 e 1898. No livro propriamente dito se desenvolvem três momentos

distintos: em parte seria uma crítica ao marxismo, em parte a teoria positiva do próprio

Bernstein e finalmente uma série de propostas práticas para a socialdemocracia 9 Disponível em português sob o título Socialismo evolucionário, publicada pela editora Jorge Zahar em 1997 como parte da coleção “Pensamento Social-Democrata”, aos cuidados do Instituto Teotônio Vilela. Trata-se de uma edição com um equívoco imperdoável, qual seja a omissão de um capítulo inteiro da obra original, mais precisamente o segundo, chamado O marxismo e a dialética hegeliana, no qual Bernstein procurar fundamentar filosoficamente sua conversão revisionista, preconizando o abandono da dialética hegeliana e o suposto blanquismo que dela resultaria nas fileiras marxistas. O objetivo seria abrir o caminho para a defesa da assimilação da filosofia kantiana pelo movimento socialista, defesa com a qual o autor fechará sua obra. Em nosso trabalho, essa problemática edição brasileira é cotejada com a edição em espanhol publicada pela Siglo Veintiuno Editores em 1982 que, além de completa, traz como anexos importantes textos de Bernstein complementares à polêmica no seio do Partido Social Democrata.

15

(GUSTAFSSON, 1975, p.141). Na época, sofrera forte condenação por parte da esquerda

do SPD, como Rosa Luxemburgo, mas também por Kautsky, representante do centro, que

alegou serem as posições de Bernstein não representativas do partido (BERTELLI, 2000,

p.44).

A obra de Bernstein seria a expressão política, no seio do SPD, do novo contexto

socioeconômico alemão resultante do processo de desenvolvimento capitalista da

Alemanha unificada sob Bismarck, desde 1870. Segundo Gustafsson, o número de cartéis

empresariais, por exemplo, passara de 14 em 1879 para 90 em 1885, 210 em 1890 e 260 em

1896; a proporção de empregados em pequenas empresas com relação ao total abaixou de

59% em 1882 para 47% em 1895 e 37% em 1907. Ao contrário, a proporção de

empregados em médias empresas passou, respectivamente àqueles anos, de 19% a 24% e

depois para 25%. Já nas grandes empresas, esses números passavam para 22%, depois 30%

e finalmente 37%, respectivamente. De toda forma, em cifras absolutas, houve um aumento

progressivo de trabalhadores nas três escalas. Entre 1882 e 1907 as cifras apontavam um

aumento de 4,3 para 5,4 milhões nas pequenas empresas, 1,4 para 3,6 milhões nas médias

empresas e de 1,6 para 5,4 milhões nas grandes empresas (GUSTAFSSON, 1975, p.20). O

que Bernstein observava então, por meio das estatísticas econômicas, era que, ao contrário

do previsto por Marx, não havia uma extinção significativa de pequenas e médias empresas

por conta de uma suposta intensificação no processo de centralização do capital.

De outro lado, também, o movimento sindical conhecera um abrupto crescimento.

Os sindicatos dirigidos pelos socialdemocratas passaram sucessivamente de 90 mil

membros, em 1888, para 294 mil, em 1893, e 680 mil, em 1900. No começo da Grande

Guerra, já contavam esses sindicatos com aproximadamente 2,5 milhões de trabalhadores

(Idem, p.21). Evidentemente, essa força operária em ascensão tornava mais factível o

atendimento das exigências imediatas de melhoria da situação social da classe trabalhadora,

o que ocorreria sob a direção majoritária, direta ou indireta, do partido socialdemocrata.

Outra consequência deste desenvolvimento teria sido o surgimento de uma nova camada

social, a nova classe média. Haveria a partir de então a necessidade de novas categorias de

trabalhadores, como empregados administrativos, técnicos, professores, jornalistas,

demanda gerada pelas grandes empresas, pelas sociedades por ações, organizações,

16

imprensa, ampliação do sistema educacional e crescente necessidades da administração

estatal e local (Idem, p.22).

Essas mudanças estruturais na sociedade alemã vinham acompanhadas de

modificações conjunturais que tinham reflexo na teoria e na política. No começo dos anos

1890 iniciou-se uma tendência de crescimento econômico que inverteu as estatísticas de

depressão que haviam marcado a década anterior. A produção industrial conhecera um

aumento de 45% entre 1893 e 1902, o maior aumento relativo a outros ciclos conjunturais

desde a década de 1860 (Idem, p. 23). O desemprego baixara da média de 5%, entre 1891 e

1895, para uma flutuação entre 1% e 1,5%. Os salários reais começaram a se recuperar

lenta e constantemente após permanecerem estáticos por toda a década de 1880, apesar de

voltarem a se estancar nos primeiros anos do século XX devido a constantes aumentos dos

preços (Idem).

Assim, a partir de meados do século XIX pode-se constatar um aumento do nível de

vida nos países industrializados europeus, fato que começava a ser confirmado pelas

estatísticas justamente nessa época. Essa é, então, a época em que surgem novas diretrizes

políticas no interior do movimento socialista, notadamente uma ascensão do reformismo

(Idem). Como observa Bernstein,

Em meados dos anos noventa do século XIX ocorreu na Europa, e na Alemanha não por último, o auge dos negócios com uma potência e duração como não se tinha visto desde muito tempo. Este auge produziu em mim uma forte impressão. E estava em forte contradição com a teoria do aumento inevitável e da gravidade crescente das crises econômicas que culminariam finalmente com a derrocada total da economia, tal como resulta, com uma lógica aparentemente irresistível, das exposições de Karl Marx n’O Capital e como havia sido propagado, sobretudo por August Bebel, com grande êxito no Partido Socialdemocrata (BERNSTEIN apud GUSTAFSSON, 1975, p.24).

No entanto, o que Bernstein e outros revisionistas estariam interpretando de maneira

equivocada neste momento seriam as consequências daquele “auge” sobre as relações entre

as rendas do trabalho e as rendas do capital (GUSTAFSSON, 1975, p.24). A expansão

econômica, na conjuntura ali tratada, contaria com um forte aumento na produção de bens

de capital. Haveria, de fato, um rápido crescimento da renda, mas não um aumento

equivalente na produção agrícola e na de bens de consumo. Em consequência disso,

ocorreria aumento nos preços que neutralizariam os aumentos salariais, até estancá-los

17

completamente. Economistas já comprovavam, em 1903, que o lucro dos empresários

aumentava de maneira mais intensa que os salários (Idem). Entre 1893 e 1913 as rendas do

trabalho aumentaram em torno de 3% anuais, ao passo que as rendas dos empresários

haviam aumentado em média 6% anuais. Grandes setores da classe operária teriam

conseguido, realmente, melhorar sua condição material ao longo do período em questão,

mas parecia ter aumentado a diferença social entre os capitalistas e os trabalhadores (Idem).

Passemos agora à interpretação que Bernstein fornece do capitalismo de sua época.

O autor declara já no prefácio de Socialismo Evolucionário sua notória convicção de que o

importante seria o movimento, a luta e a marcha das classes trabalhadoras, sendo

irrelevantes os fins ou objetivos finais: “Incapaz de acreditar, de todo, em finalidades, não

posso crer num objetivo final do socialismo” (BERNSTEIN, 1997, p.22). Assim,

sutilmente, resgataria a dicotomia idealista entre o “ser” e o “dever ser”, impondo ao

mesmo tempo o que seria para ele a correta hierarquia na apreciação daquelas duas

dimensões da existência. O “ser”, ou seja, a luta sindical “real” das massas trabalhadoras

movidas por interesses imediatos de melhorias materiais, seria a única condição válida a ser

levada em consideração pela teoria. O “dever ser” desta luta, ou seja, a meta da construção

de uma sociedade socialista, deveria permanecer apenas como uma utópica imagem no

horizonte. O socialismo como fim último apareceria aqui no máximo como o “imperativo

categórico” kantiano, a lei moral, segundo a qual se deveria agir por princípio, muito

embora o socialismo devesse permanecer no horizonte como motivação teleológica da

experiência possível dada pelo movimento socialista. A sociedade socialista, na condição

de um “dever ser”, seria o ideal moral de sociedade, apartado da experiência possível, mas

admitido como modelo a ser permanentemente buscado pela experiência social do

proletariado. Não por acaso Bernstein encaminha suas conclusões, no capítulo final do livro

(“Kant contra cant”), com as palavras seguintes:

Estou convencido de que a Democracia Social requer um Kant que julgue as opiniões recebidas e as examine criticamente com profunda acuidade, que revele onde seu aparente materialismo é a mais alta – e por isso a mais facilmente enganadora – ideologia, e advirta que o desprezo do ideal, a amplificação de fatores materiais, enquanto não se convertem em forças onipotentes da evolução, constituem uma auto decepção, que tem sido e será exposta como tal, em todas as oportunidades, pela ação daqueles que a proclamam (Idem, p.159).

18

Bernstein assumira à época o epíteto de revisionista, admitindo que o que fazia

seria, de fato, desenvolver a urgente necessidade de revisão teórica de princípios até então

fundamentais ao marxismo. Para ele, as condições sociais não se teriam desenvolvido com

a rapidez prevista por Marx e Engels no Manifesto comunista. Tal demora seria efeito de

uma série de inversões nas tendências apontadas por Marx relativas ao empobrecimento

gradativo do proletariado e das classes médias, à diminuição constante no número das

empresas capitalistas e à paralisação da economia capitalista devido a ciclos cada vez mais

curtos de crise na produção. Bernstein se referia às estatísticas da segunda metade da

década de1890 que apontariam melhorias nas condições materiais de vida das classes

trabalhadoras, bem como à diversificação, e não diminuição, das classes médias da

sociedade. Além disso, o aumento da riqueza social não teria sido seguido de uma

diminuição no número de grandes capitalistas, mas por um “aumento no número de

capitalistas de todos os graus” (Idem, p. 24).

Os principais argumentos políticos de Bernstein são a constatação da diminuição

das restrições legais para a organização do proletariado e o consequente aumento da

participação dos trabalhadores nos sindicatos e cooperativas, fenômeno que seria

responsável por estabelecer uma reação social contra as tendências exploratórias do capital.

Essas considerações as toma Bernstein como corroboradas previamente pela análise das

novas possibilidades de revolução levada a efeito por Engels no já referido prefácio de

1895 à Luta de classes na França, de Marx. Insistindo nas passagens onde Engels alude às

possibilidades táticas de se trabalhar pelo aumento de votos e inserção parlamentar da

socialdemocracia, Bernstein considera que Engels defenderia uma “lenta, mas ininterrupta

propaganda da atividade parlamentar” (Idem, p.25).10 Curioso que ele insistisse em ignorar

os protestos de Engels, pouco antes de morrer, contra o que considerava uma “distorção” de

seu pensamento. De todo modo, não é segredo a premência com que setores do SPD

consideravam a necessidade de alargar sua participação no parlamento ante o rápido

crescimento de filiados e adeptos do partido, e isso requeria uma justificação teórica à

altura da mudança de rumos.

10 Grifo nosso.

19

Para Bernstein, a conquista do poder político pelos trabalhadores e a expropriação

dos capitalistas não seriam objetivos em si, mas apenas meios adequados para se atingir

certos fins. Tal raciocínio levará décadas depois a considerações, por parte da

socialdemocracia, que se tais “fins” pudessem ser atingidos sem as referidas expropriação e

posse do poder político, essas então poderiam ser descartadas de uma vez por todas. No

entanto, o que importava naquele momento para Bernstein era a ampliação da posse, por

parte do proletariado, dos direitos políticos, o que garantiria uma participação cada vez

mais efetiva dos trabalhadores nas tomadas de decisão políticas pelo Estado (Idem, p. 27).

Um calvinista sem Deus. Assim Bernstein (Idem, p.34) define o “materialista”. Este

estaria convencido de que os “fatos mecânicos” definiriam todos os fenômenos da vida,

inclusive os que pareceriam movidos primordialmente pelas ideias. Seria o “movimento da

matéria”, para o materialista, que determinariam as formas das ideias e os rumos das

vontades (Idem). A interpretação materialista da história significaria, então, “a crença na

inevitabilidade de todos os acontecimentos e desenvolvimentos históricos”, havendo

necessidade apenas de saber “de que maneira o inevitável se cumpre na história humana”

(Idem, p. 35). Para chegar a essas conclusões Bernstein explora todo o potencial

determinista que se poderia encontrar no prefácio de Marx à Contribuição a Crítica da

Economia Política, de 1859. Após uma longa citação do texto, Bernstein se “impressiona”

com o que considera ser seu “fraseado dogmático”. Para ele, a relação entre consciência

humana e existência material estaria disposta no texto de modo a induzir o leitor à

conclusão de que os homens seriam apenas “agentes vivos” do poder da história, cujo

trabalho executariam de maneira alheia a seu conhecimento e vontade (Idem, 36). Antonio

Gramsci, ao estudar o mesmo prefácio, chegará a conclusões opostas às de Bernstein, o que

ainda analisaremos neste trabalho.

Que Marx e Engels tenham considerado a influência de fatores não econômicos no

curso da história não o nega Bernstein, mas, em suas palavras, tratar-se-ia de “uma questão

de proporção”, ou seja, em que medida aqueles fatores teriam sido considerados, ou qual

seria o significado histórico atribuído a eles. E conclui que em seus escritos iniciais Marx e

Engels teriam conferido aos fatores não econômicos uma influência muito menos

significativa sobre a “evolução da sociedade” (Idem, p.37). Seria nos últimos textos de

20

Engels, segundo Bernstein, que se encontrariam as premissas para o desenvolvimento

ulterior do revisionismo. É necessário atentar aqui para uma nada sutil tentativa de

Bernstein de se fundamentar no velho Engels. Já vimos acima a maneira pouco honesta

com que a direção do SPD utilizara-se do prefácio, escrito por Engels em 1895, à Luta de

Classes na França. No capítulo inicial de seu livro, Bernstein também se reporta

insistentemente a Engels por meio de citações interessantes e que, tomadas de uma forma

isolada, podem perfeitamente abrir caminho para a empreitada revisionista bernsteiniana. O

teórico socialdemocrata deixa entrever uma insinuante tentativa de corroborar suas teses a

partir da autoridade e precedência intelectual do velho parceiro de Marx. Lembremos que

Bernstein fora amigo de Engels, o que poderia aparecer como fiança para suas novas

posições teóricas. Vejamos algumas passagens referentes a isso que, em suma, visam

contrapor as posições do “último” Engels ao prefácio de 1859 à Contribuição para a

Crítica da Economia Política, de Marx:

Nos seus últimos trabalhos, Engels limitou, ainda mais, a força determinante das condições de produção – especialmente em duas cartas transcritas no Sozialistischen Akademiker, de outubro de 1895, uma escrita no ano de 1890, a outra no ano de 1894. Nesses textos, as “formas de lei”, as teorias políticas, legais e filosóficas, as intuições ou dogmas religiosos, são enumerados como forças que influenciam o curso das lutas históricas e, em muitos casos, “são fatores preponderantes na determinação de sua forma” (Idem).

Mais abaixo,

“A evolução política, jurídica, filosófica, religiosa, literária, artística, assenta na evolução econômica. Mas todas elas reagem separadamente, umas sobre as outras, e repercutem na base econômica” (Carta [de Engels] de 1895). Deve confessar-se que isto soa bastante diferentemente da passagem de Marx que transcrevemos há pouco [refere-se ao prefácio de 1859] (Idem).

Novamente,

Numa carta de Engels a Conrad Schmidt, datada de 27 de outubro de 1890, Friedrich Engels mostra de uma maneira excelente como, de produtos do desenvolvimento econômico, as instituições sociais se converteram em forças sociais independentes, com ações próprias, as quais podem reagir, por seu turno, sobre as anteriores e, segundo as circunstâncias, incentivá-las ou obstruí-las, ou mesmo desviá-las para outras direções (Idem, p.38).

E mais adiante,

Assim vemos hoje a concepção materialista da história numa forma diferente da que foi inicialmente apresentada pelos seus fundadores. Já se desenvolveu e sofre limitações na interpretação absoluta. Essa é, como já foi mostrado, a história de todas as teorias. Seria o maior retrocesso abandonar a forma amadurecida que Engels lhe deu nas cartas a Conrad Schmidt e voltar às primeiras definições do conceito, forçosamente rudimentares, emprestando-lhe a interpretação “monística” que nela se baseava. (...) Por fim, levanta-se a questão de saber até que ponto a concepção materialista da história

21

tem direito a tal nome, se continuarmos a dilatá-la, da maneira acima indicada, através da inclusão de outras forças. De fato, de acordo com as explicações de Engels, não é puramente materialista e, muito menos, puramente econômica (Idem, p.40).

Que Engels estivesse atento para necessárias atualizações da teoria co-fundada por

ele diante das novas circunstâncias estruturais da sociedade parece evidente. Como ignorar

o expressivo crescimento eleitoral da socialdemocracia alemã nos inícios da década de

1890? Como não considerar seriamente a propaganda e a atividade parlamentares novas

variáveis táticas na luta do proletariado? Como não se aproveitar das novas liberdades

políticas de organização e expressão? Mas tudo isso é diferente de mudar a estratégia da

tomada do poder de Estado e dos meios de produção pelo proletariado organizado em

classe dominante como única alternativa possível para a superação da sociedade de

exploração de classes. Afirma Bernstein:

Foi sustentado em certo setor que as deduções práticas a extrair dos meus temas seriam o abandono da conquista do poder político pelo proletariado, política e economicamente organizado. Eis uma dedução bastante arbitrária, cuja acuidade inteiramente nego (Idem, p.23).

E, no entanto, é essa estratégia que aparece refutada por Bernstein em seu descaso

com relação “aos objetivos finais” do socialismo, valorizando apenas os meios, “o

movimento”. Mais do que causa do movimento revisionista, Bernstein é a expressão

intelectual de uma tendência que já se consolidava no interior da socialdemocracia ante as

possibilidades inéditas de expansão de sua presença no parlamento e co-divisão do poder de

Estado, o que de fato viria a acontecer durante a República de Weimar. Embora não o

assumisse conscientemente, nem o desejasse autenticamente, Bernstein lançou as bases

teóricas que fundamentariam em definitivo a mudança de rumos que, no limite, faria com

que a socialdemocracia abandonasse o próprio projeto socialista algumas décadas mais

tarde.

22

1.2.1 As críticas de Bernstein à Teoria do Valor

Para Bernstein, o problema apresentado pela Teoria do Valor, tal como

desenvolvida por Marx, é que ela se mostraria apenas como uma hipótese fundada numa

série de abstrações e reduções em relação ao que de fato se passaria nas relações

econômicas reais. Assim, a própria mais-valia tornar-se-ia uma fórmula pura, ou uma

fórmula “que se apóia sobre uma hipótese” (BERNSTEIN, 1997, p.48). Na teoria surgida

no princípio do período manufatureiro, sobre a medida de valor através do trabalho, este

terminaria por ser considerado como origem única da riqueza, a partir do pressuposto do

trabalho como medida do valor de troca. A partir daí, segundo Bernstein, contribuiria mais

para confundir os conceitos de “valor suplementar do trabalho” do que para esclarecê-los. E

conclui:

O problema do trabalho como forma de valor de troca e os problemas concomitantes do valor e da mais-valia não estavam mais claros nessa fase da indústria do que estão hoje (...). Marx, sem dúvida, apega-se à ideia do valor do trabalho com maior firmeza do que Adam Smith, e concebeu-o de uma forma mais estrita, mas simultaneamente mais abstrata (...). Quer a teoria marxista do valor esteja correta ou não, ela é bastante imaterial, de qualquer modo, para provar a mais-valia do trabalho. É, a tal respeito, um meio apenas de análise e ilustração, não uma demonstração (Idem, p.49-51).

O objetivo de Bernstein ao considerar as teses sobre a mais-valia como mera

“ilustração”, e não como índice de demonstração de exploração da força de trabalho, parece

ser o de reduzir, ou pelo menos relativizar, a importância das conclusões políticas a que as

análises de Marx n’O Capital poderiam conduzir. Se a demonstração da exploração

capitalista não é mais demonstração, mas mera hipótese, as bases objetivas sobre as quais

se poderiam apoiar as reivindicações de superação do sistema capitalista deixam agora de

existir, e a própria necessidade de superação daquele sistema torna-se suspeita.

Um ponto comum entre as diversas análises revisionistas do marxismo, sobre as

quais ainda refletiremos adiante, parece ser um retorno às bases metafísicas das noções de

justiça social. Tais noções são assim enfatizadas, sobretudo, em sua dimensão moral, no

sentido do que é justo (uma justiça abstrata) para o homem em geral (um homem abstrato).

Contribui para isso o ambiente antipositivista que toma conta dessas análises, que

desenvolvem muita resistência à elaboração de leis que demonstrariam regularidades

observáveis no funcionamento da sociedade capitalista. Veja-se o que diz Bernstein:

23

A teoria do valor trabalho é, sobretudo, enganadora nesse ponto: que sempre aparece, uma vez e outra, como medida da real exploração do trabalhador pelo capitalista e, entre outras coisas, é a caracterização da taxa de mais-valia como taxa de exploração que nos reduz a tal conclusão. É evidente, pelo que fica dito, ser falsa tal medida, mesmo quando se principia por considerar a sociedade como um todo, e se coloca o montante global dos salários dos trabalhadores em oposição ao montante total de outras receitas. A teoria do valor empresta uma norma tão insignificante à justiça ou injustiça da partilha do produto do trabalho quão diminuta é a influência da teoria atômica na beleza ou fealdade de uma obra de escultura. Encontramos hoje, de fato, os trabalhadores melhor colocados, membros da ‘aristocracia do trabalho’, precisamente naqueles setores com uma taxa alta da mais-valia, os outros míseros trabalhadores rasteiros em setores de taxa bastante baixa (Idem, p.53-54).

As observações acima não parecem, contudo, desautorizar as elaborações marxianas

sobre a mais-valia. Em resumo, taxas elevadas de mais-valia não são incompatíveis com

aumentos absolutos da parte paga do valor-trabalho. Além disso, o peso conferido por

aquela “aristocracia operária” na “balança” da luta de classes, na Alemanha de então, com a

notória força política dos sindicatos da socialdemocracia, também é um fator a ser

considerado. Comentando a queda do valor dos meios de subsistência e reprodução da força

de trabalho, causada pelo desenvolvimento das forças de produção, sustenta Marx que

Se, por exemplo, em consequência do aumento da força produtiva do trabalho, o valor da força de trabalho cai de 4 para 3 xelins ou o tempo de trabalho necessário de 8 para 6 horas, então o preço da força de trabalho poderia cair apenas para 3 xelins e 8 pence, 3 xelins e 6 pence, 3 xelins e 2 pence etc., e a mais-valia portanto poderia subir a apenas 3 xelins e 4 pence, 3 xelins e 6 pence, 3 xelins e 10 pence, etc. O grau da queda, cujo limite mínimo são 3 xelins, depende do peso relativo que a pressão do capital, de um lado, e a resistência do trabalhador, de outro, jogam no prato da balança. (...) O valor da força de trabalho é determinado pelo valor de determinado quantum de meios de subsistência. O que muda com a força produtiva do trabalho é o valor desses meios de subsistência, não sua massa. A massa mesma, ao aumentar a força produtiva do trabalho, pode crescer simultaneamente e na mesma proporção para capitalista e trabalhador, sem nenhuma variação de grandeza entre preço de força de trabalho e mais-valia. (MARX, 1988a, p.111. Grifos nossos).

E, desde que o preço da força de trabalho seja mantido de fato, adquirindo, porém,

agora uma massa maior de meios de subsistência, tem-se que ela teria subido acima de seu

valor (Idem). Acrescentaríamos ainda que, nessas condições, mesmo um aumento no preço

da força de trabalho, garantido por aquela correlação de forças aludida acima, seria

suportável pelo capital, sobretudo em condições de crescente centralização. Tal

centralização não anula a queda tendencial das taxas de lucro, senão que funciona como

24

uma contra tendência, e taxas de mais-valia aumentadas, como há pouco dissemos, não

impossibilitam um aumento absoluto na parte paga do valor trabalho, tal como taxas de

lucro em queda não impossibilitam, ao contrário, condicionam, massas aumentadas de

lucro, mais uma vez, sob as condições de centralização do capital.11 Vejamos, no exemplo

de Marx, como a massa de lucro pode crescer mesmo com taxas de lucro em queda, a partir

de um aumento de capital global:

Quando, no exemplo anterior, a composição percentual era de 60c + 40v, a mais-valia ou lucro sobre isso era de 40, e portanto a taxa de lucro era de 40%. Supondo-se que nesse estágio da composição o capital global tenha sido de 1 milhão. Então a mais-valia global, e portanto o lucro global, ascendia a 400 mil. Ora, se depois a composição for = 80c + 20v [parte constante do capital global aumentada devido ao desenvolvimento das forças de produção], então a mais-valia ou lucro, com grau constante de exploração do trabalho, será para cada 100 = 20. Como, porém, a mais-valia ou lucro, conforme já demonstrado, cresce em massa absoluta, apesar dessa taxa decrescente da mais-valia para cada capital de 100, ela cresce digamos de 400 mil para 440 mil, então isso só é possível pelo fato de que o capital global, que se constitui simultaneamente com essa nova composição, aumentou para 2,2 milhões. A massa de capital global posto em movimento subiu para 220%, enquanto a taxa de lucro caiu 50% (MARX, 1988b, p.161.).

Fica a dúvida, portanto, se Bernstein de fato estaria se referindo a taxas de mais-

valia ou à massa total de lucro, cuja verificação estatística seria mais acessível. Há ainda

outra hipótese n’O Capital na qual é possível admitir um aumento absoluto no preço da

força de trabalho, supondo constantes a jornada de trabalho e a força produtiva do trabalho.

11 Não por acaso, Bernstein se dedica em grande parte do texto a demonstrar, por meio de tabelas estatísticas, que não haveria uma centralização de capital relevante na Europa de seu tempo. Para a Alemanha, por exemplo, ele faz o seguinte registro: “Não obstante as contínuas mudanças na agrupação de indústrias e na organização interna dos estabelecimentos, temos hoje este quadro, em conjunto: que as grandes indústrias não absorvem as médias e pequenas indústrias, continuamente, mas crescem a seu lado. Só as empresas muito pequenas declinam relativa e absolutamente (...). Mas no que respeita às indústrias pequena e média, elas aumentam, como se mostra, relativamente à Alemanha, pelos seguintes números de empregados na atividade:

1882 1895 Aumento percentual Pequeno negócio (1-5 pessoas)

2.457.950 3.056.318 24,3

Pequeno negócio médio (6-10 pessoas)

500.097 833.409 66,6

Grande negócio médio (11-50 pessoas)

891.623 1.620.848 81,8

A população aumentou no mesmo período apenas 13,5 %” (BERNSTEIN, 1997, p.67).

25

Encontra-se também no capítulo, em parte já citado acima, em que Marx discute a

“variação de grandeza do preço da força de trabalho e da mais-valia”. Aquelas duas

variáveis permanecendo constantes, trata-se de analisar a variação na intensidade do

trabalho. Vejamos literalmente:

A mesma jornada de trabalho não se representa, portanto, num produto valor constante, como antes, mas num produto-valor variável; a jornada de trabalho mais intensiva, de 12 horas, por exemplo, em 7 xelins, 8 xelins, etc., em vez de 6 xelins, como a jornada de trabalho de 12 horas de intensidade habitual. É claro: se varia o produto-valor da jornada de trabalho, digamos, de 6 para 8 xelins, ambas as partes desse produto-valor, preço da força de trabalho e mais valia, podem crescer simultaneamente, seja em grau igual ou desigual. O preço da força de trabalho e a mais-valia podem ambos crescer ao mesmo tempo de 3 para 4 xelins, se o produto valor sobe de 6 para 8. Aumento do preço da força de trabalho não implica aqui, necessariamente, elevação de seu preço acima de seu valor. Ele pode, pelo contrário, ser acompanhado por uma queda abaixo de seu valor (...). Isso ocorre sempre que o aumento do preço da força de trabalho não compensa seu desgaste acelerado (MARX, 1988a, p.113. Grifos nossos).

Em sua afirmação de que “os trabalhadores melhor colocados” encontrar-se-iam

“precisamente naqueles setores com uma taxa alta de mais-valia” parece explícita a ideia de

que a teoria do valor e a investigação das formas da mais-valia nada diriam sobre as

condições reais da vida material dos trabalhadores. Como demonstramos acima, Bernstein,

aparentemente, desconsidera algumas variáveis da análise de Marx, segundo as quais um

aumento absoluto na parte paga do valor-trabalho não seria necessariamente incompatível

com altas taxas de mais-valia, nem significaria de maneira obrigatória, por outro lado, que

teria havido um aumento real no preço dos salários. Além disso, há outros elementos não

levados em consideração por Bernstein que também enfraqueceriam sua hipótese. Por

exemplo, não se encontra em seu texto, de resto rico em estatísticas, nenhuma investigação

sobre um possível aumento na intensidade do trabalho diante do estabelecimento de

jornadas fixas. E, como já apontamos acima, Bernstein, paradoxalmente, não toma em

conta a importância do peso político da classe trabalhadora organizada pela

socialdemocracia no processo de reivindicação e aquisição de melhores salários, elemento

que seria perfeitamente admissível por Marx no ambiente, até certo ponto imprevisível, da

luta de classes. Este último “descuido” torna-se mais importante se considerarmos que fora

justamente aquele peso político, ou mais exatamente, o seu crescimento, que motivara

Bernstein em suas teses revisionistas.

26

Bernstein acompanha o desenvolvimento do raciocínio de Marx que leva às

demonstrações sobre o aumento da massa de capital constante, a diminuição da utilização

do trabalho vivo e a consequente tendência das taxas de lucro à queda. Está, em princípio,

de acordo com Marx sobre os elementos decorrentes desses fenômenos, quais sejam a

superprodução de bens de consumo manifestando-se também como superprodução de bens

de capital e a formação de uma superpopulação relativa da força de trabalho. São notórias,

porém, as reflexões de Marx sobre as chamadas contra tendências, ou “causas

contrariantes”. Concentram-se especialmente nos três capítulos da Seção III do Livro

Terceiro (“Lei da Queda Tendencial da Taxa de Lucro”) as densas passagens em que Marx

explica a chamada lei da queda tendencial da taxa de lucro, desenvolve as elaborações

sobre as “causas contrariantes” e finaliza com a apresentação das consequências das

“contradições internas da lei”, por meio das quais traça o quadro típico das crises

capitalistas, recorrentes em níveis cada vez mais agudos, que demonstram a possibilidade

de superação do sistema, mas não a garantia automática de que essa superação estaria

consolidada de antemão.12

A análise das “causas contrariantes”, contida no capítulo XIV da referida seção, se

dedica a mostrar a impossibilidade daquela garantia automática, sem ainda sequer levar em

consideração os elementos subjetivos da luta de classes, os quais conduzem, de tempos em

tempos, a burguesia a vitórias ainda mais retumbantes em determinada conjuntura histórica.

Seriam essas causas, tais como listadas por Marx, a “elevação do grau de exploração do

trabalho”, a “compressão do salário abaixo de seu valor”, o “barateamento dos elementos

do capital constante”, a formação de uma “superpopulação relativa” e o “comércio

exterior” (este atuando também através do barateamento seja do capital constante, seja do

capital variável), e o aumento do capital por ações (MARX, 1988b, p.168-173.). Bernstein,

como já dito acima, acompanha a análise de Marx no que diz respeito às causas das crises,

mas minimiza os elementos que se referem às contra tendências, sugerindo que Marx não

teria dado a devida atenção a eles, daí as falhas em suas “previsões”. Bernstein também

salienta a depreciação e consequente destruição do capital submetido à estagnação, a

compressão dos salários e a consequente formação de mão de obra superabundante. “Após

12

Cf. Bianchi, 2002, sobretudo para a discussão da queda tendencial das taxas de lucro e da crise econômica capitalista no pensamento gramsciano.

27

certo tempo”, as condições de investimento lucrativo do capital se restabelecem, mas com

suas contradições intrínsecas potencializadas (BERNSTEIN, 1997, p.55). Em seguida,

Bernstein surpreende ao ignorar a importância das análises das contra tendências presentes

em Marx, chegando mesmo a sugerir que tais análises não se encontrariam em sua obra.

Comentando a sequência lógica dos eventos que desencadeiam as crises no capitalismo,

arremata Bernstein:

Ora, tudo isso está certo? Sim e não. É verdade, sobretudo, como uma tendência. As forças descritas aí estão e atuam na direção indicada. E o modo de proceder também foi decalcado da realidade. A queda da taxa de lucro é um fato, a diminuição periódica de capital é um fato, a concentração e centralização de capital industrial é um fato, o recrudescimento da taxa de mais-valia é um fato. Até aqui estamos de acordo, em princípio, na constatação dos fatos. Quando não concorda com a realidade, não é porque se tenha dito algo falso, mas porque o que foi dito está incompleto. Fatores que influenciam as contradições descritas, ao limitá-las, são em Marx ou inteiramente ignorados ou, embora discutidos algures, abandonados mais tarde quando os fatos estabelecidos são resumidos e confrontados, de modo que o resultado social dos conflitos aparece muito mais forte e abrupto do que na realidade é (BERNSTEIN, 1997, p.55. Grifo nosso).

Estaria Bernstein querendo dizer que as contra tendências são mais poderosas do

que as imaginava Marx? Mas Marx já não as imaginaria poderosas o suficiente para se

contrapor às inúmeras interpretações mecanicistas de suas teses a respeito das contradições

internas ao sistema, interpretações levadas a efeito, entre outros, pelo líder da

socialdemocracia alemã, Karl Kautsky? Estaria Bernstein dirigindo-se mais especialmente a

Kautsky? Quanto a esta questão, a resposta provável é “sim”. Afinal, tratava-se também de

uma disputa entre os dois importantes líderes socialdemocratas sobre os rumos imediatos da

social democracia alemã, frente a novas configurações de seu potencial sindical e eleitoral.

De toda forma, Bernstein parecia acreditar na necessidade da tarefa de superar o que

considerava ser as contradições que pudessem estar presentes na teoria marxista.

Acreditava também que os discípulos de Marx não poderiam limitar-se constantemente a

repetir as “palavras de seu mestre” (ABELLÁN, 1990, p. XXII). Em sua revisão das teses

marxistas a respeito da passagem do capitalismo ao socialismo, ou sobre as vias desse

desenvolvimento histórico, Bernstein, como visto acima, afirmava estar tirando as

consequências das observações de Engels no já citado Prefácio a A Luta de classes na

França. Tais observações implicariam para Bernstein uma clara renúncia em considerar a

Revolução Francesa como modelo válido para a revolução proletária. Do Prefácio se

28

deveria concluir, segundo Bernstein, uma revisão da teoria marxista, fundamentalmente do

método dialético de abordagem do desenvolvimento histórico. Caso Engels tivesse levado

adiante tal revisão, deveria ter rompido definitivamente, segundo Bernstein, com a dialética

hegeliana (Idem, p.XXIII).

1.2.2 As críticas de Bernstein à dialética

Um dos elementos de fundo da crítica teórica de Bernstein ao marxismo é

exatamente o método dialético assimilado de Hegel, crítica que o autor desenvolverá no

segundo capítulo de seu As premissas do socialismo e as tarefas da socialdemocracia e

que, segundo Gustafsson (1975, p.143) seria o “capítulo central” deste livro.13 Para

Bernstein, a dialética manteria a teoria marxista presa a um molde pré-estabelecido, ou seja,

todas as suas conclusões a respeito da realidade observável e observada deveriam encaixar-

se rigorosamente em um esquema formal prévio de interpretação, no caso, a interpretação

dialética. Em linguagem figurada, Bernstein compara a dialética a um andaime já erigido,

em cujos limites deveria ser construído o prédio, ou seja, a teoria a respeito da realidade

observada. Nesse sentido, a teoria (o prédio) estaria limitada, constrangida pelo andaime

(dialética) à sua volta:

Onde o andaime pôs um limite ao progresso da construção, [Marx] mudou a planta do edifício, à custa das suas proporções corretas e ficando, assim, dependendo ainda mais do andaime. (...) Seja o que for, a minha convicção é que, onde esse dualismo se revele a si próprio, o andaime tem de ser destruído se quisermos que o edifício seja erguido nas proporções corretas e adequadas. É aqui, e não no resto, que se encontra o que é digno de sobreviver na obra de Marx (BERNSTEIN, 1997, p.152).

Criticando o influxo da dialética hegeliana na teoria socialista, Bernstein considera

que deduzir certas “evoluções” do real a partir de seus princípios engendraria formulações

arbitrárias. Isso seria tanto mais arriscado quanto o objeto de estudo em questão fosse

complexo, pelo número e heterogeneidade dos elementos que o comporiam e pela

multiplicidade de suas relações dinâmicas (BERNSTEIN, 1982, p.128). Ou seja, o sistema

da lógica dialética não daria conta de maneira suficiente da complexidade de interações e

relações dos elementos que compõem a realidade. Ocorre que, para Bernstein, o

13 A crítica à dialética marxiana também é feita, como veremos adiante, pelo revisionista francês Georges Sorel.

29

desenvolvimento por antíteses não se daria de forma tão “fácil e radical” na vida real

quanto na “construção especulativa” (Idem). Na opinião de Bernstein, Engels, no aludido

Prefácio a As Lutas de Classes na França, ter-se-ia dado conta das limitações do método

dialético, mas “não se poderia esperar que ele próprio empreendesse a revisão da teoria que

isso implicava” (Idem, p. 132).

Embora possa tê-lo percebido, não se poderia esperar do próprio Engels, segundo

Bernstein, que empreendesse a revisão da teoria que isso implicava, ou seja, a ruptura

completa com a dialética hegeliana: “Engels não o pôde ou não o quis fazer”

(BERNSTEIN, 1982, p.132). Para Bernstein, Marx e Engels, baseando-se na dialética

hegeliana, teriam elaborado uma doutrina plenamente afinada ao blanquismo. Eles teriam

unido à crítica social, que os operários herdaram das escolas socialistas de Owen, Fourier e

Saint-Simon, uma base econômico-materialista utilizando-se, porém, de argumentações e

construções de tipo hegeliano. Assim, o proletariado moderno teria passado, nas teorias de

Marx e Engels, por um verdadeiro processo de idealização, não apenas com relação às suas

possibilidades históricas, mas também quanto às suas inclinações e tendências. Em Marx,

assim, a revolução parcial transformara-se em uma utopia, apenas a revolução proletária

seria ainda possível. Segundo Bernstein, tal concepção conduziria diretamente ao

blanquismo (BERNSTEIN, 1982, p.134). E para prová-lo, argumenta Bernstein que seria

suficiente uma análise do escritos de Marx e Engels relativos à época da Liga dos

Comunistas. Tais escritos estariam completamente impregnados de espírito blanquista, ou

mais diretamente “babeuvista”, segundo o autor. No Manifesto comunista, por exemplo,

observa Bernstein a ausência de críticas aos escritos de Babeuf na parte que trata da

literatura socialista. E conclui: “O programa de ação revolucionária do Manifesto é

blanquista do princípio ao fim” (Idem).

Para Bernstein, o marxismo teria superado o blanquismo apenas com relação ao

método. Para além disso, jamais teria se desvinculado totalmente da concepção blanquista

que superestimava a força criadora da violência revolucionária para os fins de

transformação socialista da sociedade moderna (BERNSTEIN, 1982, p.136). A violência

assim empregada localizar-se-ia no auge do processo de aguçamento das contradições

estruturais da formação social capitalista, ou seja, num momento de grave crise econômica

30

engendrando grave crise política. Bernstein acusa o marxismo de se escorar na dialética

hegeliana ao considerar a revolução, ou a ascensão da violência revolucionária, como

inevitável num momento como esse, e enxergar a intensificação do processo revolucionário

como coroamento necessário do devir dialético do sistema capitalista. Aqui, segundo

Bernstein, encontra-se o ponto de contato do blanquismo com a teoria marxista, e seria

justamente esse o ponto fraco de ambos. Para Bernstein, nem Marx nem Engels poderiam

ter feito críticas consequentes ao blanquismo sem que tais críticas se transformassem ao

mesmo tempo numa autocrítica que se voltasse não apenas a aspectos superficiais da

doutrina, mas a seu próprio “edifício doutrinal e, sobretudo, como se pode comprovar, à sua

dialética” (BERNSTEIN, 1982, p.140). E conclui Bernstein:

O que Marx e Engels fizeram de verdadeiramente importante não foi com a ajuda da dialética hegeliana, mas apesar dela. E se por outro lado conviveram inabaláveis com o crasso erro do blanquismo a culpa foi, em primeiro lugar, do elemento hegeliano de sua teoria (Idem).

Assim, a utilização da dialética pelo marxismo desembocaria em um determinismo

empiricamente injustificável. O socialismo deveria ser entendido não como um resultado

puramente material da história, mas como um objetivo ético, cujo esforço de realização

deveria partir do sentimento do direito, da vontade de igualdade e justiça (ABELLÁN,

1990, p. XXVI). Dessa forma, a justificação da luta pelo socialismo ficaria transferida do

mundo do “ser” para o mundo do “dever ser”, convertendo-se o socialismo em um

postulado e um programa, não em um “mero reconhecimento científico das leis de

desenvolvimento histórico” (Idem). Bernstein teria sido, assim, o precursor de posteriores

esforços para fazer da ética kantiana a base do socialismo (Idem).

De toda forma, para o autor, mais importante do que a revisão demandada pela

teoria seria a correção de rumos na prática política da socialdemocracia, ou na concepção

interna de suas lutas e nas tarefas que a socialdemocracia haveria de cumprir como

representante do proletariado alemão. Tais tarefas deveriam passar a se motivar num novo

pressuposto, diferente daquele que se baseava na possível iminência de se alcançar o

objetivo final, a revolução socialista. Assim, escreve Bernstein:

31

Reconheço abertamente que para mim tem muito pouco sentido e interesse o que comumente se entende como “meta final do socialismo”. Seja o que for, essa meta não significa nada para mim, ao contrário, o movimento é tudo. E como tal entendo tanto o movimento geral da sociedade, quer dizer, o progresso social, como a agitação política e econômica e a organização que conduz a este progresso (BERNSTEIN, 1982, p.75).

Como se depreende pelo trecho acima, para Bernstein o importante seria o

movimento, o processo, ao passo que o objetivo final determinado a priori não seria

essencial para esse mesmo movimento. A formação de um objetivo geral para o movimento

operário deveria ser considerado como algo sem valor (ABELLÁN, 1990, p.XXX). Dessa

forma, toda a tentativa de formulação de um objetivo final que predeterminasse a direção e

o caráter do movimento operário acabaria necessariamente em utopismo e na paralização

ou obstrução do progresso real do próprio movimento (Idem, p.XXXI).

1.2.3 A tática bernsteiniana

Ao aparecer pela primeira vez assumindo-se revisionista, em 1899, Bernstein

procurou apoiar-se no prefácio de Engels para A Luta de Classes na França, redigido em

março de 1895. Como vimos, nesse texto Engels aparentemente defenderia que a

socialdemocracia se liberasse dos dogmas do passado e aproveitasse as vantagens da

legalidade e do parlamentarismo, já que não parecia mais possível que uma vanguarda

revolucionária, a frente de massas revoltosas, tomasse o poder do Estado de assalto. As

derrotas da revolução de 1848 e da Comuna de Paris em 1871 o teriam demonstrado

(GUSTAFSSON, 1975, p.101).

Bernstein teria percebido com clareza as novas oportunidades políticas para a

socialdemocracia. Fazendo-se receptivo ao novo elemento tático que se anunciava no texto

engelsiano, isolou-o do restante da reflexão apresentada por Engels e o desenvolveu por

conta própria (Idem, p.103). Investigando se, em consequência do fim da era das revoluções

violentas, ter-se-iam acabado também as condições para sua realização, acabou por adotar

um caminho que viria a fazê-lo substituir todo o edifício teórico marxista e a construir outro

em seu lugar. Essa seria a essência de sua revisão do marxismo. Bernstein passava assim a

criticar a concepção materialista da história, a dialética, a crença na importância das

32

revoluções, a teoria da mais-valia, a teoria da concentração e centralização do capital, a

teoria da crise e os pressupostos sobre o Estado. Em sua opinião, tratava-se agora da

realização gradual do socialismo por meio das cooperativas de consumo, o movimento

sindical e a política local (Idem, 103-104).

Bernstein construíra as bases teóricas para um socialismo reformista nos planos

político e econômico. No que diz respeito ao plano filosófico, sua inspiração teria sido a

filosofia kantiana. Afirmaria Bernstein que o socialismo, a partir daquele momento,

colocava-se no terreno kantiano. Dado o agnosticismo de Kant, ou seja, seu postulado da

impossibilidade de se conhecer a “coisa em si”, então tampouco o socialismo poderia ser

completamente acessível ao conhecimento científico. Resultava disso que o fundamento da

ação socialista seria de caráter idealista, ou seja, baseava-se em imperativos morais

(GUSTAFSSON, 1975, p.136). As mais importantes forças motrizes ideais que

sustentavam o socialismo seriam “a consciência moral ou a concepção jurídica” (Idem).

Trata-se aqui, então, do chamado imperativo categórico kantiano. A atitude socialista devia

ser adotada porque obedeceria a um imperativo moral da razão humana, qual seja o bem

alheio, sendo válida em si, encontrando-se num plano secundário os resultados concretos de

tal ação:

Uma ação por dever tem seu valor moral não no propósito que deve ser alcançado por meio dela, porém na máxima em conformidade com a qual foi decidida. Ela depende, portanto, não da realização do objeto da ação, mas somente do princípio da volição, em conformidade com o qual a ação foi empreendida, sem consideração de quaisquer objetos da faculdade de desejar (KANT apud WALKER, 1999, p.22).

Daqui a elaboração das premissas segundo as quais o socialismo seria, sobretudo,

uma questão moral, a ser traduzida em concepções jurídicas. Tal seria a ideia de socialismo

assumida por outros pensadores revisionistas da época, como Georges Sorel na França e

Saverio Merlino na Itália, além do belga Henri De Man, que se aproximaria dessas

conclusões. Daqui também a conhecida máxima bernsteiniana segundo a qual as finalidades

pouco interessariam, o movimento seria o único elemento importante na estratégia

socialista.

Para Bernstein haveria no próprio O Capital elementos que indicariam as

motivações morais de Marx, conscientemente ou não. Haveria assim, já, um juízo moral na

33

caracterização da relação salarial como exploração, pois esta se caracterizaria como uma

apropriação injusta de parte do trabalho do operário, um engodo (GUSTAFSSON, 1975,

p.136). Ou seja, do ponto de vista da prática política, fora das considerações teóricas

econômicas, a questão da mais-valia se colocaria, sobretudo, como um problema ético, que

seria de toda forma como a massa de trabalhadores o perceberia, ou seja, uma questão

moral, uma questão de justiça (Idem).

Para Gustafsson (1975, p.165-166) existiria nesse socialismo ético de Bernstein, de

maneira surpreendente, traços deterministas assimilados da teoria evolucionista de Darwin,

algo que seria bastante comum na socialdemocracia alemã da época (Idem). Dado a ação

moral, o “movimento” como o elemento mais importante na filosofia reformista de

Bernstein, os fins seriam alcançados automaticamente, evolutivamente, “cuidando-se, neste

caso, a evolução mesma das coisas que não se produzam transtornos súbitos e gerais”

(BERNSTEIN, apud GUSTAFSSON, 1975, p.165). Segundo Gustafsson (idem), nesta

concepção de história economicamente determinada, cujo determinismo se materializaria

como destino, não poderia haver lugar para a ação consciente, nem baseada em valorações

éticas. Para Marx e Engels, que eram dialéticos, seria na práxis, na ação revolucionária que

se encontrariam os elementos subjetivo e objetivo. Para Bernstein o elemento objetivo seria

algo mecânico, movimento autossuficiente, algo que viria por si mesmo. Deste modo, tal

teoria determinista da evolução não poderia se articular com o momento subjetivo, a não

ser sendo meramente completada por ele (GUSTAFSSON, 1975, p.166).

Bernstein teria divisado na própria economia capitalista tendências que atuariam na

aceleração da marcha ao socialismo (entre elas o que considerava ser a melhoria

progressiva das condições de vida dos trabalhadores, o sucesso das cooperativas de

consumo, todas características que ele procura demonstrar em seu livro). O socialismo

surgiria do próprio desenvolvimento do capitalismo, mas não de sua ruína precipitada por

suas contradições internas. Ao contrário, o desenvolvimento progressivo do sistema

capitalista produziria uma transição evolutiva em direção ao socialismo. Tal processo

evolutivo seria completado, todavia, pelas aspirações subjetivas da classe trabalhadora à

justiça social. O sistema capitalista não desmoronaria por conta de seus antagonismos

inconciliáveis, mas em função de suas injustiças. Mais uma vez, então, lutar pelo

socialismo não valeria tanto a pena por ser ele uma suposta necessidade objetiva, mas

34

porque tal luta representaria algo moralmente bom. Enfim, esta pretendida fundamentação

moral do socialismo passaria a ocupar um lugar central em todo o movimento revisionista

(GUSTAFSSON, 1975, p.137).

Com relação ao que seria o núcleo da teoria marxista, ou seja, a teoria do valor,

Bernstein estaria convencido de que não passava de uma hipótese (GUSTAFSSON, 1975,

P.145). Não seria intenção de Bernstein afirmar que não havia exploração, mas sim que ela

não era explicada pela teoria de Marx. A teoria do valor de Marx seria enganosa como

medida de exploração do trabalhador pelo capitalista. Daí algumas consequências políticas

importantes, como, por exemplo, não se poder concluir por uma justificativa científica do

socialismo ou do comunismo pelo fato isolado de o trabalhador não receber a totalidade do

produto de seu trabalho (Idem). O socialismo, assim, não se poderia fundamentar na teoria

da exploração e da mais-valia. Tampouco, portanto, sobre a teoria do desenvolvimento

histórico dessa relação de exploração, que levaria à derrocada final do capitalismo (Idem).

Bernstein, assim como Croce, contrapunha à teoria do valor-trabalho de Marx a

teoria da utilidade marginal da escola clássica de Gossen-Jevons, segundo a qual o valor de

troca de uma mercadoria seria determinado por uma combinação de sua utilidade, ou

capacidade de satisfazer as necessidades ou desejos do consumidor, com sua raridade,

combinação que determinaria sua utilidade final (ou marginal). Para Bernstein, a teoria do

valor de Marx não poderia pretender maior validez do que a teoria marginalista (Idem,

146). Em sua concepção, ambas as teorias seriam elaboradas a partir de abstrações, embora

se baseassem em relações reais. Assim, as duas teorias seriam justificáveis, ainda que

apenas dentro de certos limites. Tal posição mediadora entre a teoria do valor-trabalho e a

teoria da utilidade marginal tornar-se-ia outra característica importante de todos os

revisionistas da época (entre eles também Croce e Sorel) (Idem). Como para Bernstein o

valor não era senão um conceito, uma elaboração teórica, tal não seria diferente com a

mais-valia. Assim, se o valor não poderia aspirar a maior validez que enquanto fórmula

conceitual ou hipótese científica, a mais-valia passava a ser também mera fórmula, uma

fórmula baseada em uma hipótese (Idem).

Quanto a esta passagem da teoria revisionista, Rosa Luxemburgo (1979, p.107)

observa que, para Bernstein, tanto a teoria social de Marx quanto a teoria da utilidade

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marginal seriam bastante parecidas, ou seja, “abstrações puras”. Segundo a revolucionária

alemã, porém, Bernstein teria “esquecido” que a “abstração” de Marx não seria um invento,

mas um descobrimento, que existiria na economia de mercado e não gratuitamente na

cabeça de Marx (Idem). Não teria uma existência imaginária, mas uma verdadeira

existência social, tão real que poderia ser “cortada, moldada, pesada e convertida em

dinheiro”. Aponta Luxemburgo que o trabalho humano abstrato descoberto por Marx seria,

em sua forma mais desenvolvida, nada menos que dinheiro (Idem).

De toda forma, assim se consolidava teoricamente o reformismo de Bernstein, bem

como de todo o movimento revisionista da época, em diálogo com a obra do

socialdemocrata alemão, como veremos mais adiante. Estavam elaboradas as premissas

teóricas da nova política que ele queria ver posta em prática. Pretendia haver mostrado que

as tendências do desenvolvimento capitalista que, segundo Marx, possibilitariam a tomada

do poder pelo proletariado, não agiam absolutamente com a força que Marx havia suposto.

A socialdemocracia não poderia esperar a derrocada da ordem social capitalista, nem

tampouco a revolução do proletariado. Haveria, na realidade, apenas uma possibilidade:

agir pelo desenvolvimento pacífico e progressivo rumo ao socialismo (Idem, 149).

1.3 Lênin e Rosa contra Bernstein

Como se sabe, o revisionismo bernsteiniano sofreu forte contra-ataque da ala

esquerda da socialdemocracia alemã, sobretudo na figura de Rosa Luxemburgo. Tampouco

passou incólume às vistas de Lênin, à época às voltas com tendências reformistas na

própria Rússia. No curto texto “Marxismo e revisionismo”, publicado em outubro de 1908,

o revolucionário russo analisa brevemente o fenômeno.

Para ele, àquela época o chamado “socialismo pré-marxista” estaria vencido. Porém,

esse mesmo socialismo prosseguia sua luta não mais em vias próprias, mas ainda no plano

geral do marxismo, na forma revisionista. Lênin identifica no neokantismo o substrato

filosófico pequeno-burguês do revisionismo, atribuindo-lhe o caráter de um idealismo “mil

vezes mais mesquinho e raso que aquele de Hegel, enquanto davam [os neokantianos] de

ombros à dialética, com ar de desprezo” (LÊNIN, 1971, p.65). Escrevendo no final da

primeira década do século, indica Lênin que a crise mundial já observável à época, de resto

36

às vésperas da Grande Guerra, com o temível agravamento do desemprego por toda a

Europa, e a iminente crise industrial cujos sintomas se anunciavam, teriam resultado no

esquecimento momentâneo das teorias revisionistas, a começar mesmo por muitos de seus

próprios adeptos. Tal fato demonstraria, segundo Lênin, no mínimo as lições que a classe

operária deveria aprender a partir de tal instabilidade que seria típica de intelectuais (Idem,

p. 67).

Para Lênin, no âmbito político o revisionismo teria tentado inutilizar o que seria o

princípio fundamental do marxismo, qual seja a teoria da luta de classes. O reformismo

revisionista tentaria desautorizar o pressuposto da luta de classes a partir da constatação do

que consideraria conquistas, como a liberdade política, a democracia e o sufrágio universal.

Tais constatações tentariam, da mesma forma, segundo Lênin, desmentir o velho princípio

do Manifesto comunista segundo o qual os operários não têm pátria. A partir desse

momento, em que a democracia seria o predomínio da vontade da maioria, seria incorreto

enxergar o Estado como organismo de dominação de classe, tanto quanto recusar alianças

com a burguesia progressista, social-reformista, em detrimento dos elementos reacionários

da sociedade. Dessa maneira resume Lênin os postulados bernsteinianos, concluindo ainda:

“É incontestável que tais objeções revisionistas se resumiam em um sistema de concepções

bastante coerente, a saber: concepções burguesas liberais conhecidas de longa data” (Idem).

De acordo com Lênin, a história europeia da segunda metade do século XIX, tanto

quanto a história da revolução russa do início do século XX mostraria de maneira evidente

o absurdo daquelas concepções (Idem, p.68). Observa que com a liberdade do capitalismo

democrático, as diferenças econômicas, longe de diminuir, se intensificariam e se

agravariam. Mesmo as repúblicas parlamentaristas burguesas mais democráticas não

deixariam de ser organismos de dominação de classe, ao contrário, mostrariam tal caráter

com ainda mais clareza. Criando um ambiente propício à conscientização e organização de

massas da população infinitamente maiores que aquelas que, outrora, participavam

ativamente dos fenômenos políticos, a democracia parlamentar prepararia não a supressão

das crises e revoluções, mas o agravamento máximo da guerra civil durante as próximas

revoluções (Idem, p.68). De acordo com Lênin, os acontecimentos do verão de 1871 em

Paris e os do inverno de 1905 na Rússia teriam demonstrado de forma cabal tal acirramento

das circunstâncias revolucionárias (Idem).

37

Observava Lênin que seria necessário compreender a “inelutável” dialética interna

do parlamentarismo e democratismo burgueses, que conduziriam a soluções ainda mais

brutais que outrora, que causariam intervenções ainda mais agudas da violência das massas.

Tal compreensão seria imprescindível para a propaganda e a agitação revolucionárias com a

finalidade de preparar as massas operárias para estar em condições de participar

vitoriosamente daqueles conflitos (Idem). Essa preparação seria necessária para evitar o

desvio estratégico da revolução, para impedir alianças, acordos e blocos com o liberalismo

social-reformista que, tal como teriam mostrado as experiências no Ocidente europeu e na

revolução russa [de 1905], serviriam apenas para embotar a consciência revolucionária das

massas, enviesar a verdadeira direção de sua luta, aliando os combatentes do proletariado

aos elementos menos aptos a combater, muito mais preparados para a derrota e a traição

(Idem).

Lênin faria, assim, uma espécie de dissecação in vivo do que poderia ser

considerado o Frankenstein político formado pela junção de grupos socialistas de

estratégias opostas, excludentes mesmo. Revolução e reforma, enquanto estratégias, são

inconciliáveis por qualquer ângulo que se analise, como também veremos mais adiante ao

abordarmos a reação de Rosa Luxemburgo ao revisionismo no seio de seu partido.

A máxima bernsteiniana segundo a qual “a meta final é nada, o movimento é tudo”

traduziria, segundo Lênin, a natureza do revisionismo, pois seria o complemento natural de

suas inclinações econômicas e políticas e de sua maneira de considerar o que seria o

objetivo final do socialismo. Ou seja, a política revisionista seria caracterizada pela

adaptação aos eventos de última hora, pela versatilidade política, pelo “esquecimento” dos

interesses vitais do proletariado e sacrifício desses interesses em nome de vantagens

imediatas reais ou supostas (LÊNIN, 1971, p.68). Lênin aponta, com relação ao momento

histórico em que escreve, o caráter já totalmente internacionalizado do revisionismo, e

distingue entre “ortodoxos e bernsteinianos na Alemanha, guesdistas e jauressistas na

França, (...) bolcheviques e mencheviques na Rússia” (Idem, p.69) e observa que as

relações de antagonismo entre cada “par” são, no fundo, de mesma natureza, a despeito das

diferenças de condições nacionais. Para o líder bolchevique, no entanto, a possibilidade de

distinção clara entre reformistas e revolucionários em cada país se constituiria num grande

38

passo adiante em relação ao que se teria passado décadas antes quando, nos diversos países,

tendências diferentes afrontavam-se no seio de um único movimento socialista

internacional (Idem).

O interessante aqui é a alusão feita por Lênin ao que chama de “revisionismo de

esquerda”, que teria origem nos “países latinos”. Sendo o “revisionismo de direita”, bem

entendido, as correntes de matiz bernsteiniana aludidas acima, Lênin distingue o

revisionismo de esquerda identificando-o como um “sindicalismo revolucionário” que

adapta-se, ele também, ao marxismo, “corrigindo-o”. Labriola na Itália, Lagardelle na França, referindo-se o tempo todo a um Marx mal compreendido e um Marx bem compreendido.14 Não podemos nos demorar aqui na análise da substância ideológica desse revisionismo, que está ainda longe de se desenvolver como o revisionismo oportunista, não se internacionalizou e não sustentou praticamente nenhuma batalha importante com os partidos socialistas de nenhum país. Limitar-nos-emos, portanto, ao “revisionismo de direita” (Idem).

Há uma concessão tácita feita aqui por Lênin ao “revisionismo de esquerda”, o

reconhecimento de que “esse” revisionismo não seria oportunista, ou pelo menos não o

seria ainda, e estaria sujeito a enfrentar provações ideológicas nos países “latinos” onde se

desenvolvia. Poderia exercer alguma função revolucionária, ou pelo menos conteria alguma

proposição útil ao proletariado revolucionário o pensamento revisionista “de esquerda”?

Como o próprio Lênin enfatiza, o combate ao revisionismo de direita era prioridade, e não

havia tempo (e haveria cada vez menos a partir de então) para que ele pudesse se ocupar

detidamente do assunto.

Lênin se questiona sobre os motivos que tornam o reformismo inevitável na

sociedade capitalista. Pergunta-se por que o viés reformista dos movimentos socialistas

seria mais profundo inclusive que as particularidades nacionais e os diferentes graus de

desenvolvimento do capitalismo. Conclui que em todo país capitalista encontram-se

sempre, ao lado do proletariado, largas camadas da pequena burguesia, de pequenos patrões

(LÊNIN, 1971, p.69). Lembra ainda que a pequena produção engendrou, e continua a

engendrar, a viabilizar o capitalismo. Este criaria de forma constante e inevitável novas

camadas médias. Por sua vez, tais camadas médias seriam lançadas também

inevitavelmente às categorias do proletariado, o que tornaria perfeitamente natural que 14

Lênin se refere aqui ao sindicalista revolucionário italiano Arturo Labriola.

39

concepções pequeno-burguesas não cessassem de surgir nas fileiras dos grandes partidos

operários. Para Lênin, este seria um fenômeno que a classe operária necessariamente

sofreria até o momento de sua revolução, quando os desacordos e as incompatibilidades

estratégicas com o reformismo pequeno-burguês adquiririam proporções ainda mais vastas,

dados o grau de radicalização e polarização de interesses diversos e o agravamento de todas

as questões litigiosas e de divergência sobre pontos de valor imediato para a condução das

massas (Idem, p.70).

Assim, a socialdemocracia alemã estar-se-ia tornando, para Lênin, de partido da

revolução social em um partido democrático de reformas sociais. Tal transformação estaria

sendo construída por Bernstein a partir de uma série de argumentos supostamente novos e

cuidadosamente articulados, em nome do que o socialdemocrata alemão consideraria ser a

liberdade de crítica ao dogmatismo (LÊNIN, 1971a, p.117). Essa inversão nos rumos da

socialdemocracia viria acompanhada da crítica de todas as ideias fundamentais do

marxismo, sempre a partir das tribunas do parlamento e das cátedras universitárias,

negando sistematicamente a possibilidade de um fundamento científico ao marxismo,

negando a miséria crescente, a proletarização e o agravamento das contradições do

capitalismo, negando a revolução socialista como estratégia e a ditadura do proletariado e,

finalmente, refutando a teoria da luta de classes, que consideraria inaplicável a uma

sociedade estritamente democrática, administrada segundo o que consideraria ser a

“vontade da maioria” (Idem). Em tudo isso não haveria nada, segundo Lênin, de

desenvolvimento teórico na linha da chamada “liberdade de crítica ao dogmatismo”, mas

somente uma “transposição direta da literatura burguesa para a literatura socialista”:

Quem não fecha propositadamente os olhos não pode deixar de ver que a nova tendência “crítica” do socialismo é apenas uma nova variedade de oportunismo. (...) [Esta] “liberdade de crítica” é a liberdade da tendência oportunista na socialdemocracia, a liberdade de transformá-la em um partido democrático de reformas, a liberdade de implantar no movimento socialista as ideias burguesas e os elementos burgueses (LÊNIN, 1971a, p.118).

Lênin dedicava-se nesse momento (primeira década do século XX) a uma batalha

teórica contra o revisionismo no interior do próprio movimento socialista russo, que

considerava mais um herdeiro internacional de Bernstein. Rosa Luxemburgo, por seu turno,

lavrava sua batalha no “olho do furacão”. Exatamente um mês e quatro dias após a

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publicação de Premissas do socialismo... de Bernstein, Luxemburgo concluía seu famoso

título Refoma ou revolução, obra de polêmica direta contra o revisionismo daquele. Para

Luxemburgo, tratava-se de uma luta para garantir a influência e a participação do

operariado nos rumos do partido. Para ela, tal como para Lênin, a teoria de Bernstein

configurava-se numa tentativa de garantir a supremacia dos elementos pequeno-burgueses

que haviam ingressado no partido, de mudar o rumo de sua política e objetivos. O problema

de reforma ou revolução, de objetivo final e movimento seria fundamentalmente, e assim

deveria ser apresentado, como o problema do caráter pequeno-burguês ou proletário do

movimento operário.

Lembra Luxemburgo que os três fundamentos científicos do socialismo seriam os

seguintes: a anarquia crescente da economia capitalista, que conduziria necessariamente à

sua ruína; a socialização progressiva do processo de produção, que criaria os germes da

futura ordem social; as crescentes organização e consciência da classe proletária, que

constituiria o elemento ativo da revolução (LUXEMBURGO, 1979, p.65). Bernstein, ao

negar mais do que a tendência da ruína capitalista, ao negar sua própria possibilidade,

descartaria, em consequência, os outros dois pilares, em especial a possibilidade de

organização da classe trabalhadora como um fator revolucionário (Idem).

Rosa Luxemburgo contesta a tese de Bernstein segundo a qual as lutas sindicais pela

jornada de trabalho e pelo salário conduziriam a um controle cada vez mais amplo das

condições de produção, à medida que tais lutas pressionariam a legislação nesse sentido.

Afirma a revolucionária alemã que o alcance de ação dos sindicatos limitar-se-ia

essencialmente à luta pelo aumento de salários e redução da jornada de trabalho, ou seja,

esforços que tenderiam apenas a regular a exploração capitalista. Assim, os sindicatos de

forma alguma poderiam influenciar o próprio processo de produção (Idem, p.81). Além

disso, os próprios capitalistas, diante da necessidade de compensar as perdas sofridas no

mercado mundial, redobrariam seus esforços para reduzir a parte do produto total que

corresponderia aos trabalhadores na forma de salários (como um dos meios principais para

retardar a queda dos lucros). Desse modo, numa situação ainda mais desfavorável, a ação

sindical reduzir-se-ia necessariamente à simples defesa das conquistas já obtidas, e mesmo

isso se tornaria cada vez mais difícil. Como, segundo Luxemburgo, esta seria a tendência

geral da sociedade capitalista, a resposta para isso deveria ser exatamente o

41

desenvolvimento do aspecto político da luta de classe ou, mais especificamente, a luta

organizada e consciente por meio de um partido do proletariado (Idem).

Em contrapartida, segundo Luxemburgo, Bernstein qualificaria a mera legislação

trabalhista do Estado capitalista como “controle social” e aspecto já parcial do socialismo

que se almejaria. Como resultado dessa “artimanha de substituição”, observa ela, “as

inocentes leis trabalhistas formuladas pelo Conselho Federal da Alemanha se transformam

em medidas socialistas transitórias supostamente promulgadas pelo proletariado alemão”

(LUXEMBURGO, 1979, p.82). Tratar-se-ia, portanto, de uma evidente “mistificação”.

Lembra Rosa Luxemburgo que o Estado que impera seria representante da sociedade

capitalista, ou seja, um Estado classista. Assim, suas reformas não poderiam ser a aplicação

de uma espécie de “controle social”, ou seja, o controle da sociedade que decide livremente

seu próprio processo de trabalho. Seriam, ao contrário, formas de controle aplicadas pela

organização classista do capital para a produção de capital. Em outras palavras, as

chamadas “reformas sociais” são aplicadas em benefício da produção e reprodução do

capital mesmo (Idem). Bernstein estaria esperando uma larga sucessão de reformas no

futuro, todas a favor da classe trabalhadora, esperança que se tornaria, para Luxemburgo,

um erro semelhante à crença no desenvolvimento ilimitado do movimento sindical (Idem).

De acordo com Luxemburgo, seria fato que as relações de produção das sociedades

capitalistas se aproximariam cada vez mais das relações de produção da sociedade

socialista, mas apenas no que diria respeito à socialização da produção. Isso por que, de

outra parte, as relações jurídicas e políticas erigidas pelo sistema capitalista afastariam

sempre para mais longe a conclusão socialista desse desenvolvimento. Tal contradição

entre a socialização da produção e as relações políticas e jurídicas de propriedade só

poderia ser superada pela conquista do poder político pelo proletariado e, para isso, a

socialdemocracia não haveria que negar o caráter de classe de tal contradição (Idem, p.91).

Para Rosa Luxemburgo, deixando à parte a defesa da melhoria imediata da situação

dos trabalhadores, o que seria um ponto comum das duas posições, como se apresentariam

as diferenças práticas essenciais entre o reformismo bernsteiniano e a defesa estratégica da

revolução proletária? Para esta, que Luxemburgo considerava ser então (1899) ainda a

postura majoritária do partido, as atividades parlamentar e sindical seriam importantes para

o movimento socialista porque serviriam de preparo para o proletariado, ou seja, como

42

elemento de criação do fator subjetivo para a transformação socialista, para a tarefa de

realização concreta do socialismo. Para Bernstein, no entanto, aquelas atividades

reduziriam gradualmente a própria exploração capitalista. Retirariam da sociedade

capitalista seu caráter capitalista. Realizariam objetivamente a mudança social desejada. Na

opinião de Rosa Luxemburgo, as duas concepções seriam diametralmente opostas. Segundo

ela, apoiando-se no que consideraria serem constatações possíveis a partir da atividade da

socialdemocracia à época, como resultado de suas lutas sindicais e parlamentares o

proletariado se convenceria da impossibilidade de se alcançar mudanças sociais profundas

por meio dessas atividades e chegaria à compreensão de que a conquista do poder político

seria inevitável. A teoria de Bernstein, ao contrário, partiria da constatação de que tal

conquista seria impossível. Afirmaria que o socialismo somente poderia ser construído a

partir exatamente das lutas sindicais e da atividade parlamentar. Assim, segundo Bernstein,

as ações sindical e parlamentar revestir-se-iam de um caráter socialista porque exerceriam

uma influência socializante progressiva sobre a economia capitalista (LUXEMBURGO,

1979, p.93).

Para a revolucionária alemã, tal influência seria “imaginária”. As relações entre a

propriedade capitalista e o Estado capitalista desenvolver-se-iam em direções opostas, de

modo que a atividade prática cotidiana da socialdemocracia perderia, em última instância,

todo vínculo com a militância pelo socialismo (Idem). Do ponto de vista da mobilização

pelo socialismo, a luta sindical e a atividade parlamentar possuiriam uma grande

importância na medida em que despertariam no proletariado a compreensão e a consciência

socialistas e o ajudariam a se organizar como classe. Porém, se aquelas atividades forem

consideradas como ferramentas para a socialização direta da economia, não apenas

perderiam sua efetividade, mas deixariam de ser um meio de preparação da classe operária

para a conquista do poder (Idem). Não bastaria admitir, como faria Bernstein, que embora

sua proposta se reduzisse à reforma social e à luta sindical, não estaria descartado o

objetivo final do movimento operário porque cada passo adiante ultrapassaria os objetivos

imediatos e, assim, o objetivo final socialista estaria implícito como tendência de um

suposto avanço. Para Luxemburgo isso seria válido apenas se as lutas sindicais e por

reformas estivessem impregnadas de uma vontade firme e consciente de conquistar o poder

político (Idem, p.94). Mas se tal vontade estivesse separada do próprio movimento e as

43

reformas sociais fossem convertidas em fim em si mesmas, então as atividades sindicais e

parlamentares não apenas não conduziriam ao objetivo final do socialismo mas, em vez

disso, mover-se-iam em sentido oposto (Idem).

Segundo Rosa Luxemburgo, a conquista do objetivo final tal como suposta por

Bernstein apenas seria factível caso se pudesse construir uma cadeia sucessiva de reformas

que levassem do capitalismo ao socialismo sem interrupções, o que seria, adverte

prontamente, “fantasia pura” (Idem). Dadas as contradições intrínsecas a tal movimento, tal

cadeia romper-se-ia rapidamente e os caminhos que poderia tomar o considerado “avanço”

seriam muitos e variados.

Adotando sempre uma perspectiva interna ao partido, Luxemburgo se mostra

inquieta ante o que poderia ser uma iminente inflexão sem volta da socialdemocracia no

sentido do reformismo. Pergunta-se qual seria, para o SPD, o resultado imediato de tal

inflexão. Entende que, assim, apenas os chamados “resultados imediatos” adquiririam

importância e converter-se-iam em atividade principal do partido, ao passo em que a firme

e intransigente posição que se propõe a conquista do poder resultaria em inconveniente

cada vez maior. Para ela, isso significaria a adoção, pelo partido, do que ela chama de uma

“política de compensação”, ou seja, uma política de conciliação e trocas políticas

diplomáticas. A consequência inevitável de tal situação, para os trabalhadores, seria a

desilusão, já que as reformas sociais não poderiam oferecer mais que promessas vazias

(Idem). Ocorre que Bernstein não veria na estrutura econômica do capitalismo o processo

que conduziria ao socialismo. No entanto, para conservar seu programa socialista ao menos

formalmente, ver-se-ia obrigado a refugiar-se numa interpretação idealista, abstraída de

todo processo econômico, ver-se-ia obrigado a transformar o socialismo de etapa histórica

definida do processo social em princípio abstrato (Idem, p.109).

Fato é que tanto Lênin quanto Rosa Luxemburgo apercebem-se do problema mais

grave para o movimento socialista a partir das proposições reformistas, uma mudança

estratégica que poderia comprometer todo o futuro do socialismo a partir de então, qual seja

o abandono da perspectiva classista, da teoria da luta de classes, elemento nuclear de

qualquer concepção sobre a história ou a sociedade que se reivindique marxista. O

pressuposto da inelutável vigência da luta de classes como contradição principal da

44

formação social capitalista é condição necessária para qualquer teoria marxista. Assim

Luxemburgo expressa sua apreensão a respeito:

Não é certo que o socialismo surgirá automaticamente da luta diária da classe operária. O socialismo será consequência (1) das crescentes contradições da economia capitalista e (2) da compreensão por parte da classe operária da inevitabilidade da supressão de tais contradições por meio da transformação social. Quando, à maneira revisionista, se nega a primeira premissa e se repudia a segunda, o movimento operário se vê reduzido a um mero movimento cooperativo e reformista. Aqui nos deslocamos em linha reta em direção ao abandono total da perspectiva classista (LUXEMBURGO, 1979, p.95).

Não se trataria aqui, para Luxemburgo, que o revisionismo reconhecesse seu ponto

de vista verdadeiro, ou seja, de apologia do capital. Não negaria por livre vontade a

existência das contradições no capitalismo. Por outro lado, o que constituiria o eixo do

revisionismo e o distinguiria da posição até então adotada pela socialdemocracia é que não

sustentaria suas teses no fato de que o desenvolvimento lógico do capitalismo vigente

resultaria na superação das contradições do próprio capitalismo pela sua supressão (Idem).

Segundo a autora, a teoria revisionista ocuparia um lugar intermediário entre dois extremos.

O revisionismo não lidaria com a expectativa de ver amadurecerem as contradições do

capitalismo. Não proporia eliminar essas contradições por meio de uma transformação

revolucionária. Ao contrário, pretenderia diminuir, atenuar as contradições capitalistas, de

modo que o antagonismo existente entre produção e troca se reduzisse através da

eliminação das crises e a formação de cartéis capitalistas. O antagonismo entre capital e

trabalho seria resolvido melhorando a situação da classe operária e conservando as classes

médias. Por fim, a contradição entre Estado classista e sociedade seria eliminada por meio

do incremento do controle estatal e o progresso da democracia (Idem, 96).

O método revisionista não se guiaria, assim, pelo desenvolvimento do capitalismo,

pela perspectiva de que se agravem suas contradições. Tomaria por base a perspectiva de

que tais contradições fossem atenuadas. Luxemburgo o contesta, porém, afirmando que, se

é correto que o capitalismo seguirá se desenvolvendo na direção indicada até o momento,

por outro lado suas contradições necessariamente se agravariam, tornar-se-iam mais

agudas, em vez de desaparecer (Idem). Seguindo o raciocínio, a possibilidade de que se

atenuem as contradições capitalistas pressuporia que o modo capitalista de produção deteria

45

seu próprio avanço. Em síntese, segundo Luxemburgo, o pressuposto geral da teoria

bernsteiniana seria a interrupção do desenvolvimento capitalista (Idem).

Luxemburgo observa a mesma concepção, que considera mecânica, na ênfase dada

por Bernstein na perspectiva de fim das crises de “adaptação” da economia capitalista. As

crises seriam, assim, meros transtornos do mecanismo econômico. Cessando as crises, o

mecanismo funcionaria bem. Sustenta Luxemburgo, porém, que as crises não seriam

“transtornos” no sentido usual do termo. Seriam elas “transtornos” sem os quais a economia

capitalista não poderia avançar para lugar algum (LUXEMBURGO, 1979, p.98). As crises

seriam manifestações orgânicas inseparáveis da economia capitalistas, porque se

constituiriam na única maneira – e, portanto, a maneira normal – de resolver

periodicamente o conflito entre a extensão ilimitada da produção e os estreitos limites do

mercado mundial. Por essa razão, as crises apareceriam como instrumentos para reanimar,

na sequência, um novo ciclo de desenvolvimento capitalista. O fim das crises – seu fim

definitivo e não apenas temporário no mercado mundial – não provocaria um maior

desenvolvimento da economia capitalista, mas a destruiria (Idem, p.99).

O epíteto de “oportunismo” atribuído ao movimento reformista a partir de seus

críticos da ala esquerda da socialdemocracia não era de todo sem fundamento, se

considerarmos a maneira incisiva com que os escritos de Bernstein pareciam decretar

superada, em definitivo, uma determinada etapa da história do movimento socialista, em

particular na Europa. É flagrante a eurocêntrica falta de atenção à movimentação

imperialista em busca de mercados externos e ao caráter combinado do desenvolvimento de

um sistema econômico à época já internacionalizado e articulado pelo mundo. Tudo isso

ocorre já ao tempo em que os textos de Bernstein vêm a lume. Aquele “decreto de

superação” aludido acima parece possuir o caráter de uma escolha arbitrária sobre qual

caminho histórico dever-se-ia seguir a partir de então. Luxemburgo se insurgiria também

contra essa arbitrariedade. Segundo ela, reformas legislativas e revolução não seriam

diferentes métodos de desenvolvimento histórico que poderiam ser escolhidos à vontade ou

à revelia dos acontecimentos, “como se escolhe entre salsichas frias ou quentes”

(LUXEMBURGO, 1979, p.123). Sustenta a revolucionária alemã que reformas legislativas

e revolução seriam diferentes fatores de desenvolvimento da sociedade de classes. Ao

46

mesmo tempo em que se condicionariam e se complementariam mutuamente, também se

excluiriam reciprocamente, tal como seriam a burguesia e o proletariado (Idem).

Para Luxemburgo, cada sistema jurídico seria resultado, produto histórico de uma

revolução. Segundo sustenta, na história das classes sociais a revolução seria um ato de

criação política, ao passo que a legislação seria a expressão política de uma sociedade

previamente existente (Idem). Assim a reforma não possuiria uma força própria,

independente da revolução. Em cada período histórico a obra reformista realizar-se-ia

apenas na direção e nos marcos da forma social criada pela revolução anterior que dera

traços definidores a determinada sociedade. Este seria, afinal, o núcleo do problema. Desta

forma, a opção pelo método das reformas progressivas em lugar da conquista do poder

político e da revolução, por oposição a estas, seria não uma opção por um caminho mais

lento e tranquilo em direção ao mesmo objetivo, mas uma opção por um objetivo diferente

(Idem, p.124). Em lugar de optar pela construção de uma nova sociedade, seria a escolha

pela modificação superficial da velha sociedade.

Quanto à questão da modificação progressiva da sociedade por meio do

desenvolvimento da democracia, tal argumento reformista poderia contrapor

artificialmente, em lados antagônicos, democracia e revolução. A democracia, portanto,

também seria indispensável para o proletariado revolucionário, não, nesse caso, por tornar

supérflua a conquista do poder político pelo proletariado, mas, ao contrário, porque tornaria

tal conquista necessária e possível (Idem, p.129). De acordo com Luxemburgo, é o que

Engels estaria tentando esclarecer em seu prefácio de 1895 à A Luta de Classes na França,

de Marx. Ao revisar a tática do movimento operário moderno e aconselhar a luta legal em

contraposição às barricadas, Engels teria em mente a luta cotidiana contemporânea, e não o

problema da conquista específica do poder político. Ou seja, o velho parceiro de Marx não

se estaria referindo à atitude que o proletariado deveria assumir diante do Estado capitalista

no momento da tomada do poder, mas a atitude desse mesmo proletariado nos marcos do

Estado capitalista. Conclui Rosa Luxemburgo que “Engels formulara diretivas para o

proletariado oprimido, não para o proletariado vitorioso” (LUXEMBURGO, 1979, p.129).

É grande a importância dessas últimas linhas da autora, pois, como já se viu acima

neste trabalho, o próprio Engels rebelara-se contra a distorção deliberada de seu original

47

quando da publicação sob a responsabilidade da imprensa socialdemocrata. No sentido do

que nos aponta a autora, podemos afirmar que Engels estaria indicando nesse texto a

possibilidade da análise concreta das relações de força em determinado momento histórico

para a adequação do comportamento político do proletariado sem perder de vista seus

objetivos revolucionários. Engels forneceria ali um exemplo bastante claro de como

manter a teoria revolucionária como bússola em meio à luta de classes, sem perder-se no

empirismo puro ou seduzir-se ao dogmatismo doutrinário.

48

49

CAPÍTULO 2 - O REVISIONISMO “LATINO”: CONTEXTO HIST ÓRICO

E PRINCIPAIS REPRESENTANTES

Embora, como se verá adiante, não se possa considerar Eduard Bernstein como o

teórico pioneiro na revisão do marxismo, fato é que a socialdemocracia alemã se tornaria o

epicentro desse movimento por conta de sua importância e dimensão mobilizatória, sua

herança engelsiana, os contingentes operários dos sindicatos sob sua influência e sua

imprensa, tudo de envergadura incomparável com relação aos outros países europeus. De

toda forma, à sua volta, nos chamados países latinos, notadamente Itália, França e Bélgica,

se desenvolviam correntes teóricas de grande relevância para o movimento revisionista

como um todo e cujo diálogo entre si era intenso, como nos mostram as obras de seus

respectivos autores e as revistas socialistas da época. Classificaremos como “revisionismo

latino” aquele que se deu fora do epicentro alemão, influenciando-o inclusive, e passaremos

a discutir o contexto histórico em que se construiu e as ideias de seus autores principais.

Importante lembrar que teve influência decisiva no processo de revisão do marxismo nesses

países, além do debate socialdemocrata representado por cada um de seus respectivos

partidos socialistas, também a corrente sindicalista que passaria para a história como

“sindicalismo revolucionário”, de protagonismo, sobretudo, na Itália e na França.

2.1 Desenvolvimento e agonia do sindicalismo revolucionário

Segundo Antonioli (1997, p.127), a greve geral, na Itália do início do século XX,

não fazia parte do repertório de lutas nem da fração reformista, nem da fração

revolucionária do Partido Socialista. No entanto, durante o ano de 1902 e primeiros meses

de 1903 ter-se-iam verificado greves gerais por reivindicações salariais e melhores

condições de vida, ou seja, de caráter econômico, sucessivamente em Firenze, Torre

Annunziata e Roma. Tais greves revelariam o grau em que aquela forma de luta já estaria

radicada no comportamento operário antes que os futuros sindicalistas começassem a

refletir sobre ela. A utilização frequente da greve geral e a autonomia da decisão de recorrer

a ela por parte dos organismos de resistência operária, como expressão consciente da

solidariedade de classe, sugeririam a forma como o ambiente político e social estaria

50

propício ao desenvolvimento das primeiras expressões organizadas do sindicalismo

revolucionário (Idem).

Após o congresso de 1904 da Confédération générale du travail (CGT), em

Bourges, o sindicalista revolucionário francês Hubert Lagardelle saudaria o que

considerava então a formação de uma corrente com este nome no universo sindical francês.

Dois anos mais tarde, no nono congresso da CGT, na cidade de Amiens, o sindicalismo

revolucionário se oficializa como vertente do sindicalismo francês através da moção

votada, aprovada e transformada no documento que ficaria conhecido como La Charte

d’Amiens (GIANINAZZI, 2006, p.96). Enquanto isso, na Itália, um processo paralelo de

designação também ocorreria. No final de 1904, na sequência da primeira greve geral

nacional que tumultuara todo o país, a esquerda revolucionária do Partido Socialista

começaria a invocar o “sindicalismo revolucionário”. A referência ao movimento francês e,

de alguma forma, a sua paternidade seriam inegáveis, já que a própria palavra syndicat seria

desconhecida na Itália com a acepção utilizada pelos franceses, de “resistência” ou “liga”.

Isso permitiria que, na Itália, o termo fosse abreviado, designando tal corrente do

sindicalismo revolucionário simplesmente por “sindacalismo” (Idem).

À diferença do caso francês, o sindicalismo revolucionário representaria, junto

inclusive com o neologismo que o designava, uma grande novidade para a Itália. Mas seria

fora de dúvida que seu nascimento, tanto quanto posterior desenvolvimento na península, se

devia mais a razões nacionais, já que a simples importação das ideias teria resultado estéril

sem um terreno próprio à sua proliferação (Idem). Tanto quanto outras correntes sindicais,

o sindicalismo revolucionário encontrava no aumento da mão de obra operária italiana um

ambiente propício para o seu desenvolvimento. As estratégias sindicais de luta se inseriam

com coerência neste ambiente, marcado por um processo de industrialização que, além de

aumentar, diversificava a base dos trabalhadores. Entre os censos de 1901 e 1911, os

trabalhadores ligados à indústria passaram de 3.989.186 para 4.387.034 pessoas, chegando

a 16,5 por cento da população em idade ativa. O aumento de contingente devia-se apenas

aos trabalhadores assalariados – operários, serventes, vigilantes, aprendizes – que passaram

de 2.592.487 trabalhadores para 3.064.523. Já os trabalhadores “autônomos” em relação à

indústria, pequenos proprietários e artesãos, caíram em contigente, no mesmo período, de

1.396.699 para 1.322.511. Assim, a expansão industrial da “era giolittiana” ocorria pela via

51

“normal da proletarização e da liquidação da pequena produção autônoma, do artesanato e

das atividades domiciliares” (BARBADORO, 1998, p.54).

Na Itália, o curso liberal que Giovanni Giolitti imprimia aos governos que se

sucederam a partir da primavera de 1901 tratava com benevolência os parlamentares

socialistas, em troca de sua passividade nos conflitos sociais. Numerosas greves

espontâneas teriam sido bem sucedidas entre 1901 e 1902 (GIANINAZZI, 2006, p.96). O

movimento camponês, composto de trabalhadores assalariados e arrendatários, também se

manifestaria, sobretudo, em Emilia Romagna. Mas seria fraco o nível de organização e

disciplina dos trabalhadores do Mezzogiorno, que se exporiam, por ocasião dos conflitos

mais violentos a partir de 1903, ao fuzilamento pelas forças do Estado. Repetindo-se

regularmente, tais repressões sangrentas suscitariam nos operários politizados da Itália uma

indignação cada vez maior e difícil de conter. Em 1903, então, seria evidente que o fôlego

liberal do governo italiano, se alguma vez existira, estaria esgotado. Teria ficado evidente

também que o vale-tudo parlamentar do líder reformista Filippo Turati não possuiria já

muito espaço no seio do partido (GIANINAZZI, 2006, p.97).

Os socialistas revolucionários obteriam uma maioria limitada, mas barulhenta, por

ocasião do congresso regional da Lombardia, na cidade de Brescia, em fevereiro de 1904.

Em aliança temporária com a centro-esquerda do partido, liderada por Enrico Ferri,

chegariam à direção no congresso nacional de Bologna, que teria lugar no mês de abril

seguinte (Idem). Em setembro, o desencadeamento de uma grande greve espontânea na

sequência de dois outros massacres, na Sardenha e na Sicília, daria impulso aos partidários

do líder socialista e sindicalista revolucionário Arturo Labriola que, tomando à frente no

protesto, pretenderiam derrubar o governo. Imediatamente após o movimento grevista,

Labriola constataria que o Partido Socialista teria ficado à reboque do movimento. Segundo

declararia, o proletariado italiano estaria começando a desenvolver uma consciência bem

clara de sua posição de classe e não teria mais necessidade do apadrinhamento de um

partido político distinto das organizações de fábrica (Idem, p.98). Os partidários de Arturo

Labriola conjugariam então os temas da violência e da greve geral àquele da ação direta

que reforçaria a retomada das lutas operárias ao longo de 1904. O sindicalismo

revolucionário nascia na Itália (Idem).

52

Na Itália, o Partido Socialista exercia uma influência mais forte que na França sobre

o movimento operário. Ao contrário do caso francês, onde os partidos políticos de esquerda

fragmentaram-se e multiplicaram-se, na Itália o PS teria sido sempre o único desde sua

fundação em 1892 e haveria precedido, ainda, o nascimento da confederação sindical em

1906. Observa Gianinazzi que o socialismo seria uma referência nacional inevitável para

unificar politicamente, ou ao menos sentimentalmente, o conjunto dos oprimidos (Idem,

p.99). Seria natural, portanto, que o sindicalismo revolucionário tivesse surgido em seu

seio. A conjuntura impediria a maioria dos dissidentes de romper abruptamente com o

partido. Uma série de reveses incitaria à prudência: contraofensiva econômica patronal que

teria feito cair, em 1905, o número de greves vitoriosas; no mesmo ano, a desmoralização

que se seguiu à derrota da luta dos trabalhadores ferroviários, inspirada pelos sindicalistas,

pela defesa do direito de greve; e a derrota de uma nova greve geral em 1906 contra a

repressão mortífera das forças da ordem. Segundo o líder sindicalista revolucionário

italiano Arturo Labriola, o Partido Socialista Italiano não teria legitimidade para pretender

encampar uma política operária, mas seria necessário reconhecer, ainda por um tempo, seu

papel pedagógico (Idem).

O que seria interessante notar, segundo Gianinazzi, seria a diferença teórica que se

desenvolvera no sindicalismo revolucionário italiano em relação aos seus colegas franceses

e, particularmente, a Georges Sorel. A recusa em separar política de economia teria feito os

sindicalistas italianos defenderem o uso do parlamento pelas organizações operárias. Para

eles, a presença no parlamento poderia fornecer uma tribuna à defesa da ação direta e uma

maneira de controlar a legislação relativa às questões operárias, além de um meio para

vigiar a garantia dos direitos coletivos e individuais nos quadros particulares da monarquia.

Os sindicalistas italianos incitariam mesmo uma campanha, em 1905, a favor do sufrágio

universal (Idem, p.100).

Os reformistas interpretariam o fenômeno sindicalista como um infeliz

ressurgimento do anarquismo no seio do movimento socialista (ANTONIOLI, 1997, p.

159). A situação dos sindicalistas no interior do partido se deterioraria rapidamente. A

polêmica na qual se engajavam contra o partido, acusando-o de renunciar aos interesses de

classe para aumentar sua base eleitoral, teria contribuído para isolá-los mesmo entre a

esquerda socialista. As relações cada vez mais insustentáveis tê-los-ia obrigado, já

53

fracionados, a abandonar o partido de maneira prematura no congresso de Ferrara em

meados de 1907 (GIANINAZZI, 2006, p.100). Segundo Gianinazzi, tal decisão, “irrefletida

e impensada”, teria significado uma ruptura com a tradição do movimento operário

nacional que agregaria a visão política e a ação sindical, o que acabaria por sair caro ao

movimento sindicalista revolucionário na Itália. A cisão de 1907 teria acarretado

consequências nefastas: “A verdade era que o seu prestígio [no movimento operário]

provinha da influência moral que teriam sabido exercer no âmbito do partido” (LABRIOLA

apud GIANINAZZI, 2006, p.104).15 Desde então separados das massas e não representando

mais uma referência nacional unificadora, seus líderes históricos não teriam podido impedir

a fragmentação do sindicalismo em um mosaico de realidades locais isoladas entre si e sem

conseguir resolver as contradições inerentes ao movimento, aquelas ligadas aos lugares da

elaboração política e da ação de classe (Idem).

Vejamos agora qual a evolução do sindicalismo italiano à época em que Gramsci

surge no cenário político da Península. Em novembro de 1912, na cidade de Módena,

fundava-se a União Sindical Italiana (Usi) que passaria a contar, de início, com 52 mil

membros (Idem, p. 110). Seria um contexto de ascensão dos movimentos sociais e do

próprio sindicalismo revolucionário, num quadro do que poderíamos chamar hoje de

“reestruturação produtiva” que provocara a formação de novos sindicatos, agora por ramos

industriais e não mais profissionais. Segundo Gianinazzi (Idem, p.112), nesses anos

anteriores à Guerra, de acirrada luta de classes, o sindicalismo revolucionário italiano teria

fortalecido sua presença, penetrando mesmo em setores de trabalhadores até então

refratários às organizações operárias. A CGdL, burocratizada e lenta no engajamento a

favor dos trabalhadores, registraria queda de inscrições entre 1912 e 1914, enquanto a Usi

manteria uma ascensão acelerada em seu contingente (Idem).16 Em 1913, após uma

sequência de greves vitoriosas lideradas pelos sindicalistas revolucionários nos setores

metalúrgico e da construção civil, a Usi alcançaria o total de 101 mil membros, alcançando

a proporção de 1 para 3 em relação à CGdL.

15 Aqui se trata do líder sindicalista revolucionário italiano Arturo Labriola. 16A CGdL (Confederação Geral do Trabalho), constituída em 1906, esteve desde seus primórdios controlada por maioria reformista e sempre em confronto com o sindicalismo revolucionário (GIANINAZZI, 2006, p.108).

54

Em agosto do mesmo ano, porém, fracassaria a tentativa de organização de uma

greve geral unindo vários setores de trabalhadores italianos. Ter-se-ia tornado evidente,

então, que os sindicalistas revolucionários não teriam condições de alternar suas greves

setoriais com mobilizações gerais sobre todo o território (Idem, p.112). Já em março do ano

seguinte a Usi passaria a se opor ao que consideraria como “greves intempestivas”, numa

tentativa de não dispersar forças em iniciativas locais arriscadas e iniciar a organização de

um grande movimento nacional para 1915. Mas um evento decisivo, ocorrido

imediatamente antes do início da guerra, seria determinante para uma mudança profunda

nos rumos do sindicalismo italiano.

Em 7 de junho de 1914, dia nacional da ação contra o militarismo, uma repressão

mortífera em Ancona desencadearia no campo uma vasta onda de protestos que adquiriria

contornos quase insurrecionais e se estenderia, sob a forma de uma greve geral e de

sangrentos combates de rua, a praticamente todo o país (GIANINAZZI, 2006, p.113).

Porém, a falta de coordenação, de objetivos claramente definidos e as preocupantes

“contramanifestações” de nacionalistas indicariam que não haveria ainda condições para

uma revolução. A cúpula do movimento sindicalista revolucionário se ressentiria

profundamente por tal falta de resultados políticos. Contrariamente ao que teriam

acreditado e proclamado Georges Sorel e Arturo Labriola, a greve, por maior que fosse, não

desembocava na marcha ao socialismo (Idem). Uma “revisão” se faria necessária. Tal

revisão seria levada a cabo pela retomada de objetivos parlamentares entre os sindicalistas

revolucionários. A proposta então seria que, sobre o terreno da política, todas as forças

revolucionárias e democráticas concorressem formando conjuntamente um “bloc rouge”.

Assim, o líder sindicalista revolucionário Alceste De Ambris, por exemplo, seria eleito

deputado por Parma.

A Usi, à medida que seus líderes nacionais envelheciam e permaneciam em número

insuficiente, não poderia concentrar apenas em si as expectativas de uma revolução

desejada por todas as partes. Sintomático de suas dificuldades de organização teria sido a

convocação de seu primeiro congresso pós-guerra apenas no final de 1919 (Idem, p.119).

De toda forma, a Usi permaneceria à espreita de uma situação totalmente adequada à que

ela teria sempre preconizado e que teria sido sancionada no referido congresso: a

transferência de toda iniciativa revolucionária à massa operária. O momento seria, no pós-

55

guerra, de realização da exigência soreliana, então evocada e sustentada por Gramsci,

segundo a qual o movimento proletário deveria criar suas próprias instituições. Teria sido

exatamente o caso em Turim, com a criação dos conselhos de fábrica que o terceiro

congresso da Usi (o acima citado, de 1919) saudava, e logo a seguir seria o caso em Sestri

Ponente, sob a liderança da própria Usi (Idem).

A partir de fevereiro de 1920, a Usi impulsionaria ocupações de fábricas

siderúrgicas em Sestri Ponente com a implantação da autogestão, rapidamente reprimida.

Conduziria também outras lutas importantes, principalmente junto aos operários agrícolas

da Puglia e aos mineiros de Valdarno e pedreiros de Carrara, que obteriam significativa

redução da jornada de trabalho. No plano nacional, a Usi teria lutado para preparar o

terreno a uma ofensiva operária que resultasse na derrubada dos poderes do Estado e

patronal. Com este objetivo, teria impulsionado a generalização e simultaneidade dos

movimentos grevistas. Criticaria, ao mesmo tempo, a tática de greves demonstrativas e

limitadas, adotadas pelos socialistas e pela CGdL, e ainda a traição desta última, por conta

da qual o movimento das ocupações de fábrica de setembro de 1920 não teria logrado uma

conclusão insurrecional (Idem).

A Usi havia aderido à III Internacional em junho de 1919, mas logo as dissensões

internas teriam início por conta das acusações de que o governo Bolchevique estaria

reprimindo os sindicatos e retirando sua independência. Na verdade, ao menos desde

outubro de 1920, a central estaria sofrendo perseguições do governo italiano e ataques de

grupos fascistas, tendo sua atividade dramaticamente afetada, reduzindo-se praticamente à

solidariedade e ajuda às vítimas de perseguição política. A Usi se dissolveria formalmente

em 1925. A maior parte de seus dirigentes partiria para o exílio, juntando-se à luta

antifascista (Idem, p.121).

2.2 O Biennio Rosso e a “origem” de Gramsci

Este período histórico é considerado por Coutinho (1999, p.33) como o da

maturação em Gramsci da ideia de partido como instrumento necessário para a construção

da estratégia da classe operária para além da fábrica. Marcaria também o desenvolvimento,

em Gramsci, da ideia da construção da democracia socialista por meio de organismos de

56

base, ou seja, surgiria em Gramsci a concepção que vê a dominação proletária como algo a

ser exercido por uma pluralidade de organizações (Idem, p.34). Trata-se de um contexto

histórico cujo início se pode localizar em 1919, ano em que teria começado o que Angelo

Tasca definira como “a revolução democrática italiana” (TASCA, 2003, p.47), no sentido

de romper a dominação das velhas castas sociais italianas e levar as massas à participação

na vida política, a construir um Estado popular. A “fratura massa-nação”, tão clara nos

meses de intervenção italiana na guerra, estaria ainda aberta e, em muitos aspectos, estaria

mais profunda que antes (COLARIZI, 2007, p.107). Ao fim do conflito seriam 1.148.000

os mortos entre civis, 600 mil a mais em relação aos níveis de mortalidade pré-guerra. Ao

todo, um número de baixas superior àquele dos outros países beligerantes e quase igual ao

das vítimas entre os soldados do front (Idem). Ali, teriam sido mortos em combate mais de

400 mil italianos, 169 mil teriam morrido de doenças diversas e outros 100 mil em prisões.

Os feridos teriam sido mais de um milhão, quase a metade deles permanecendo inválida.

Um custo em vidas humanas demasiadamente alto para a massa popular, que teria “vivido

os anos de guerra alimentando o ódio” (Idem, p.108).

Embora a propaganda militarista oficial animasse relativamente a tropa em combate,

o “front interno” teria permanecido frio e ameaçador. Não foi a perspectiva de uma vitória

militar, mas a da Revolução Russa que ofereceu uma esperança de salvação ao proletariado

faminto do campo e aos operários da cidade, oprimidos no limite do suportável pela

disciplina de trabalho nas fábricas militarizadas (Idem). Os danos materiais teriam pesado,

sobretudo, sobre os estratos mais pobres da população. A guerra teria custado aos cofres

italianos 157 bilhões de Liras e, em relação a 1914, o debito público teria quadruplicado,

enquanto a renda nacional teria caído de 94 bilhões para cerca de 75 bilhões. Além disso,

ter-se-ia acentuado a heterogeneidade do tecido econômico e social do país. Diante de um

desenvolvimento industrial extraordinário – a indústria metalomecânica teria aumentado

em dez vezes o número de empregos nos três anos e meio de guerra – ocorreria, por outro

lado, uma vultuosa queda da produção agrícola. Embora a Itália se tivesse tornado uma

potência industrial, seu sistema financeiro seria ainda muito frágil e o campo ainda muito

atrasado em técnicas produtivas (Idem). A importação de grãos e gêneros alimentícios

ocorreria agora em quantidades muito maiores do que no passado. Os estoques estariam

reduzidos e a falta de adubo teria diminuído sensivelmente o resultado das colheitas. Em

57

1920, a dívida da Itália com os Estados Unidos e a Grã-Bretanha chegaria a 2 bilhões de

dólares e a quase 400 milhões de libras esterlinas, respectivamente (Idem).

A aceleração inflacionária seria o primeiro efeito desta equação. No verão de 1919,

manifestações contra o alto custo de vida explodiriam em Liguria e Toscana, espalhando-se

pelo restante da Itália e chegando às cidades mais importantes, como Roma e Milão. Saques

de lojas e prédios públicos multiplicam-se, ao mesmo tempo em que se intensificam as

passeatas e os confrontos com polícia e exército. Revoltas de camponeses em todo o país

somar-se-iam aos movimentos dos trabalhadores urbanos, como em Toscana, Umbria,

Lazio, Puglia e Sicilia (Idem, p.110). Na região do centro-sul italiano, exatamente a de

maior atraso, as lutas se transformariam espontaneamente em ocupações de terra.

O fenômeno das ocupações, no entanto, transferido do campo para os grandes

centros urbanos industriais, causaria um impacto completamente diferente na opinião

pública, conquistando imediatamente um significado revolucionário que as ocupações de

terras pelos camponeses não teriam adquirido até então (Idem, p.113). Preocupariam o

patronato, sobretudo, as novas iniciativas que se começavam a realizar na FIAT onde,

seguindo o exemplo dos então recentes acontecimentos na Rússia, os operários

organizariam os primeiros conselhos de fábrica no verão de 1919. Torino, então a fortaleza

do proletariado industrial mais revolucionário, teria se tornado o laboratório da revolução.

Nesta cidade, em maio de 1919, Antonio Gramsci e Angelo Tasca, futuros fundadores do

partido comunista, iniciariam a publicação da revista L’Ordine Nuovo, que exerceria certa

influência na ala mais à esquerda do sindicato metalomecânico, uma das mais fortes

federações pertencentes à Confederazione Generale del Lavoro (Idem, p.112). Em 25 de

abril um grupo de jovens socialistas anuncia no Avanti! o programa da nova revista. Seria

publicada a partir de 1º de maio e não pretendia ser uma revista de partido, mas uma

ocasião de discussão para todos aqueles que estariam insatisfeitos com as formas nas quais

estariam se cristalizando o debate político no interior do PSI. O grupo do L’Ordine Nuovo

parecia então ser mais capaz para interpretar a nova situação política e econômica nas quais

se encontravam os trabalhadores italianos (MAIONE, 1975, p.21).

Em 1919, a classe operária turinesa demonstra, através de diversos sintomas, não se

reconhecer mais em suas organizações tradicionais, o Partido Socialista Italiano e a

58

Confederação Geral do Trabalho (CGdL). O movimento dos conselhos de fábrica é uma

expressão do conflito latente entre as bases e a cúpula sindical. O grupo reunido em torno à

revista L’Ordine Nuovo torna-se intérprete desse descontentamento, conduzindo-o e dando-

lhe uma direção política, submetendo-o, ao mesmo tempo, à teorização ideológica

(MAIONE, 1975, p.7). Nesse ambiente, é a jornada de oito horas de trabalho que alcança o

primeiro plano das reivindicações. A primeira reunião importante entre patrões e

empregados para a solução dos conflitos ocorre em 10 de janeiro de 1919, e teria sequencia

em três longas reuniões posteriores. Pouco a pouco, aos operários da FIAT juntam-se

outros metalúrgicos e, enfim, todas as categorias de trabalhadores industriais. Ao final dos

primeiros encontros, os industriais haviam se mostrado bem dispostos. A concessão das

oito horas ocorre no dia 19 de janeiro de 1919 e as negociações se prolongam ainda por um

mês em torno de acordos para o aumento de salários que deveriam compensar

proporcionalmente a diminuição das horas de trabalho. O acordo final ocorre em 20 de

fevereiro de 1919, em Milão (Idem, p.9).

Apesar das concessões salariais, reposições, horas extras etc., houve apenas

compensações e não aumento real de salários (Idem, p.10). Além disso, a parte do acordo

que regulava as futuras reivindicações dos trabalhadores fora amplamente favorável aos

empresários. No que se refere ao desenrolar dos futuros conflitos, estabelece-se um longo

procedimento. Em primeira instância devem se encontrar a comissão interna de fábrica e a

direção. Em caso de insucesso nas negociações, as reivindicações seriam enviadas às

respectivas federações industrial e de categoria. Se ainda persistisse o impasse, passava-se

às respectivas confederações da indústria e do trabalho. Apenas na hipótese de não se

chegar a um acordo após a demanda atingir as instâncias nacionais de negociação é que os

operários teriam “permissão” para entrar em greve (Idem). Acorda-se que qualquer uma das

partes que tome iniciativas unilaterais antes do cumprimento de todas as etapas previstas

seja punida com pesadas multas. As comissões internas de fábrica poderiam receber as

reclamações dos operários apenas aos sábbados. O acordo entrou em vigor a partir de 1º de

março de 1919 e os patrões solicitaram três anos de trégua salarial para poder absorver os

ônus decorrentes das reduções nos horários de trabalho. Os sindicalistas condicionariam a

aprovação deste último ponto à ratificação por uma assembleia de operários. No entanto,

por ocasião da assembleia, os líderes sindicais impuseram a aprovação de todos os pontos

59

do acordo em seu conjunto, e não item por item, o que tornou inócua, na prática, aquela

restrição (Idem).

Tratava-se de um acordo não vantajoso para os operários. Deslumbrados pela ideia

da conquista “histórica” das oito horas, os sindicalistas não se teriam dado conta,

aparentemente, como esta pôde ser conseguida sem um dia de greve sequer (Idem). Da

mesma forma, aparentemente não se percebeu o fato dos sacrifícios feitos no plano

normativo das relações capital-trabalho. De toda forma, ambos – sindicatos e patrões –

encontrar-se-iam pouco tempo depois diante de um fenômeno não previsto nem desejado

por nenhum dos dois lados: a insurgência de uma rebelião operária com a força de mandar

pelos ares todos os propósitos de acomodação considerados “necessários” naquele período

delicado de reconstrução econômica (Idem, p.11). Os primeiros choques das novas

inquietações ocorreriam a partir da metade de março de 1919. As greves nesse período –

200 mil metalúrgicos no Norte, 200 mil trabalhadores agrícolas nas províncias de Novara e

Pavia, os tipógrafos de Roma e Parma, os operários têxteis em Como, marinheiros em

Trieste e outras – conseguem apenas repor as perdas salariais da inflação, sem aumento real

(TASCA, 2003, p.45). As lutas reivindicativas não conseguem acalmar os mais

impacientes, no entanto. A partir de junho, e durante algumas semanas, as massas

exasperadas invadem as lojas, obrigam o rebaixamento dos preços e chegam inclusive a

realizar saques. Toda a Itália encontra-se nas ruas, a ponto de o governo não possuir mais

forças de segurança suficientes para intervir em todos os lugares ao mesmo tempo (Idem).

A agitação contra o custo de vida adquire rapidamente caráter nacional. Não há, no

entanto, direção nem coordenação para conferir ao levante popular um objetivo específico e

realizar o avanço que ele representaria, nem por parte do PSI, nem por parte da CGdL

(Idem, p.46).

As ocupações de fábrica em agosto-setembro de 1920 assinalam o ápice dos

conflitos iniciados no pós-guerra e que perduraram por dois anos, o “biennio rosso”, tal

como definido. Chegado ao poder, o fascismo relembrará desta fase como a antessala da

revolução, evitada por um fio, graças à ação dos fasci di combattimento (COLARIZI, 2007,

p.114). Na verdade, conquanto o conflito de classes aparecesse no máximo de sua

radicalização, o papel bastante marginal do Partido Socialista levaria a excluir a existência

não apenas de um efetivo plano revolucionário, mas mesmo uma vontade amadurecida de

60

levar a cabo as mesmas atitudes dos bolcheviques (Idem). Para Maione, seria também

evidente que os ordinovistas não possuiriam ainda os instrumentos teóricos para apreender

o que de fato estaria ocorrendo nas fábricas turinesas e, de maneira geral, em todo o

capitalismo italiano do pós-guerra (MAIONE, 1975, p.24). Isso teria feito com que Gramsci

e seus companheiros permanecessem recuados em relação às exigências postas pelos

operários, os quais estariam suportando diretamente o peso das mudanças no âmbito

produtivo do capitalismo e reagindo a elas de maneira instintiva. Não ter distinguido quais

seriam as dificuldades principais do adversário e, consequentemente, não ter voltado sobre

elas todo o peso da própria iniciativa política explicariam a falência prática do movimento

dos conselhos (Idem).

Para Colarizi é bastante convincente a hipótese de que não existissem na Itália de

1920 as condições reais para que o biennio rosso pudesse ter uma conclusão revolucionária

vencedora, sobretudo porque os primeiros a não acreditar nessa perspectiva seriam os

próprios dirigentes do PSI, de quem se poderia esperar a tarefa de guiar a revolução

(COLARIZI, 2007, p.116). Não teria sido culpa dos reformistas da CGdL, nem daqueles do

partido. A principal hesitação teria como centro os próprios maximalistas e mesmo os

comunistas do PSI, convencidos de estar ainda muito isolados e frágeis para assumir

sozinhos o peso de tamanha responsabilidade (Idem). De resto, ao permanecer recuados, os

chefes socialistas teriam se limitado apenas a perceber um fato real, qual seja a ausência de

uma estratégia revolucionária. Estariam também convencidos que não haveria nada de

irremediável em sua estratégia, que consistiria num adiamento, até que as estruturas

organizativa e política estivessem prontas para a revolução. Não se teriam dado conta de

que, historicamente, não se trataria de um adiamento, mas do fim do sonho revolucionário.

“E o despertar seria duríssimo” (Idem).

2.3 A questão estrutura “versus” superestrutura

Para se compreender o movimento teórico marginal de revisão do marxismo e a

parca e mal sucedida resistência que se lhe opôs, é necessário observar as ligações materiais

daquele movimento com seu contexto histórico europeu, ou seja, o período que vai da

virada dos séculos XIX-XX até o primeiro pós-guerra. Foi neste sentido que, no item

61

anterior, procuramos fazer uma exposição mínima dos eventos históricos necessária à

compreensão dos principais elementos teóricos que nos ocupam aqui, quais sejam a prática

histórica do sindicalismo revolucionário e o contexto italiano que impulsiona o

amadurecimento das reflexões de Antonio Gramsci. Mesmo assim, a compreensão não se

faz automaticamente. Não há determinismo possível que possa rapidamente apontar as

consequências políticas ou teóricas de determinados eventos históricos. Como lembra Dias,

“a história nada tem de fatal e é composta tanto pelas determinações econômicas quanto

pelas ideológicas (intelectuais, morais, etc.)” (DIAS, 2000, p.112).

O problema, assim, se deslocaria para o conjunto das relações sociais, pois seria

onde se localizaria o desenvolvimento da vontade social (Idem, p.113). Não se trataria aqui

de voluntarismo, mas de “interpenetração entre vontade e história” (Idem). Seria na

articulação das relações sociais que se realizaria a intervenção humana, ou seja, a história.

O conhecimento da realidade seria ele próprio parte da realidade que agiria sobre ela:

Falamos da determinação da estrutura passando pela interpretação da própria estrutura. As propostas políticas nada mais são do que uma intervenção na estrutura a partir do que se “conhece” dela. Os reformistas atuam de certo modo e os bolcheviques de outro. Não existindo em si mesma, a estrutura altera-se historicamente (DIAS, 2000, p.115).

A alteração das estruturas, em sua natureza histórica, seria possível também no

próprio ato de conhecê-la. O ato de conhecimento é um ato de intervenção no sentido de

que se possa alterar mesmo a própria escrita da história, já que a intervenção política não é

prerrogativa exclusiva do presente. Não é apenas o passado que interfere no presente. Pode-

se interferir, a partir do presente, no passado. Segundo Bensaïd, "Marx perscruta o segredo

dos ciclos e dos ritmos econômicos para renovar a escrita da história." (BENSAÏD, 1999,

p.73). Para ele, uma das dificuldades de se apreender o desenrolar do caráter contra

temporal da história seria, por exemplo, a leitura evolucionista do marxismo marcada pelo

chamado "primado unilateral das forças produtivas", uma leitura que, ao contrário do que se

possa pensar, não jaz na tumba da II Internacional, mas apareceria ainda hoje aqui e ali, nas

práticas partidárias e nas acadêmicas. Segundo Bensaïd, a interpretação que traz para o

plano da prática política a abstração teórica da determinação em última instância das forças

produtivas travaria a leitura dialética dos processos históricos, separaria, no plano concreto,

"as forças produtivas e a luta de classes – como se as modalidades da luta fossem exteriores

62

e indiferentes ao desenvolvimento das forças, e como se a luta já não estivesse dada entre

as determinações das forças produtivas" (Idem). Sustenta ainda Bensaïd que, numa relação

concreta de determinação recíproca, a própria resistência dos trabalhadores à exploração de

sua força de trabalho, movimento que se enquadraria evidentemente no âmbito das relações

de produção (ou como prefere Bensaïd, no âmbito das lutas de classe), "tende a liberar

novas forças produtivas e a encontrar novas minas de produtividade" (Idem).

Porém, as diferenças mesmas entre os ritmos de tempo e espaço das lutas de classes

(ou seja, a maneira mais ou menos desenvolvida, mais ou menos avançada, mais ou menos

radicalizada nos diferentes tempos e espaços históricos) fariam com que não fosse

historicamente necessário, obrigatório, um desfecho revolucionário. Ocorrendo tal desfecho

revolucionário, aquelas mesmas diferenças de ritmo fariam com que não fosse

historicamente obrigatória, historicamente dada por antecipação a vitória da revolução.

Bensaïd atualizaria assim a tese gramsciana segundo a qual se pode prever apenas a luta,

mas não os seus resultados (Q11,§15, p.1403,C; Q8,§197,p.1059,A). Ou, nas palavras de

Bensaïd, “diferentemente da predição física, a antecipação histórica exprime-se dentro de

um projeto estratégico” (BENSAÏD, 1999, p.79). Assim, para ele, tal qual para Gramsci, a

“história é negócio de política, não de predições” (Idem, p. 80).

No mesmo sentido da tese gramsciana exposta acima, Daniel Bensaïd sustenta que a

tão aguardada superação de um determinado modo de produção, ou mais especificamente, a

superação socialista do modo de produção capitalista, não seria a única maneira possível de

sua superação histórica, nem o significado aqui da palavra superação carregaria

necessariamente uma conotação relativa a ascensão revolucionária ou avanços na luta

emancipatória. A superação socialista do atual modo de produção capitalista seria apenas

uma das possibilidades reais, inscrita como possibilidade concreta apenas até onde avança

concretamente a luta consciente das classes subalternas. Para Bensaïd, não haveria recuos

cronológicos no movimento histórico, mas um conjunto indefinível de possibilidades

simultâneas, entre as quais a barbárie social se faria sempre presente de forma particular,

como barbárie contemporânea (Idem, p.74). Nas suas palavras, “a dialética dos possíveis é

também cumulativa. O aniquilamento de virtualidades liberadoras [ou seja, derrotas no

63

campo de forças da luta de classes] inventa ameaças desconhecidas e não menos

aterradoras” (Idem).

2.4 O movimento da história e a questão estrutura “versus” superestrutura

As diferentes leituras e interpretações das relações entre as assim chamadas

estruturas econômicas e superestruturas ideológicas influenciaram e influenciam

diretamente a noção de movimento da história que informa o materialismo histórico. Na

obra de Marx, a passagem mais citada para ilustrar o pressuposto da “determinação em

última instância” da estrutura econômica (seja negativamente, como exemplo do

“determinismo marxista”, seja positivamente, como se fora a descoberta de uma verdadeira

lei da história) encontra-se no Prefácio de 185917. Grande parte da literatura revisionista

teve origem insurgindo-se contra as interpretações economicistas – sobretudo no âmbito da

II Internacional - dos textos de Marx, consideradas que foram como o “marxismo oficial”,

ou o único marxismo possível.

Desse modo, para os que defendessem a atualidade e validade do materialismo

histórico enquanto nova concepção de mundo, não seria suficiente lutar contra as

interpretações economicistas e mecanicistas do marxismo, haveria que se lutar também

contra o revisionismo resultante da crítica absolutizada do marxismo, a partir de suas

leituras mecanicistas. Esta seria uma das tarefas que se propusera Gramsci. Segundo

Bianchi, Gramsci teria levado a cabo tal intento a partir da leitura da obra histórica de

Marx, não se limitando aos textos metodológicos (BIANCHI, 2008, p.121). Assim, ao

longo da obra de Gramsci, 17 Notadamente em seus princípios fundamentais, que reproduzimos a seguir: “(...) A transformação da base econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração material – que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa – das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência desse conflito, levando-o às suas últimas consequências. Assim como não se julga um indivíduo pela ideia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo contrário, explicar essa consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de produção novas e superiores se lhe substituem antes que as condições materiais de existência destas relações se produzam no próprio seio da velha sociedade. É por isso que a humanidade só levanta os problemas que é capaz de resolver e assim, numa observação atenta, descobrir-se-á que o próprio problema só surgiu quando as condições materiais para o resolver já existiam ou estavam, pelo menos, em vias de aparecer” (MARX, 1983, p.25).

64

Seria possível perceber uma tenaz tentativa de fusão daqueles materiais da obra de Marx que resultaram da reflexão metodológica (como, por exemplo, o “Prefácio de 1859” e Miséria da Filosofia) e os que provêm da análise histórica e política concreta (principalmente O dezoito brumário de Luís Bonaparte) (Idem).

Seria a partir dessa operação que Gramsci procuraria postular o sentido dialético da

relação entre as duas instâncias aludidas acima, superando inclusive a noção de

determinação em última instância. Segundo Bianchi, no lugar de conceber a estrutura como

algo imóvel e absoluto, a filosofia da práxis, a partir da pena de Gramsci, a conceberia

como “a própria realidade em movimento”. Em vez de destacar a estrutura das

superestruturas, reconheceria o desenvolvimento histórico das mesmas como intimamente

conexo e necessariamente recíproco (Idem, p.133). A questão das superestruturas também

seria, em Gramsci, objeto de extenso tratamento. Gramsci destacaria o nexo que elas

manteriam com as estruturas, com base no “Prefácio de 1859”. A modificação introduzida

pela leitura de Gramsci daquele texto diria respeito exatamente ao “princípio subjetivo”

(Idem,p.140). Tratar-se-ia, segundo Bianchi, de “revalorizar, no texto marxiano, o lugar

ocupado pela intervenção humana, introduzindo o tema da vontade” (Idem). O próprio

Gramsci assim apresentaria o problema:

A proposição de que “a sociedade não coloca diante de si problemas para cuja solução ainda não existam as premissas materiais”. É o problema da formação de uma vontade coletiva que depende imediatamente desta proposição. Analisar criticamente o significado da proposição implica indagar como se formam as vontades coletivas permanentes, e como tais vontades se propõem objetivos imediatos e mediatos concretos, isto é, uma linha de ação coletiva (Q8, §195, p.1057, B).

Deste modo, o resultado de tal rearranjo do texto de Marx de modo a enfatizar

aquilo que seria seu “núcleo racional” seria uma poderosa ferramenta de análise capaz de

desvendar as interações dialéticas entre estrutura e superestrutura (Idem). Assim

interpretado, o “Prefácio de 1859” teria seu conteúdo revalorizado. Para Bianchi, na

interpretação hegemônica no interior da socialdemocracia alemã, aquele texto apenas

indicaria o destino final a que levaria o acúmulo gradual das forças do proletariado, alçadas

à frente pelo desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo e pelas sucessivas

vitórias eleitorais do partido. O proletariado não teria, assim, outra coisa a fazer senão

aguardar o desenlace final, no surgimento da sociedade socialista (BIANCHI, 2008, p.141).

65

Conclui ainda o autor que o “Prefácio”, na formulação gramsciana, se transformaria,

finalmente, numa “vigorosa denúncia de todo economicismo e automatismo” (Idem).

Para Burgio (2002, p.65), Gramsci recorreria várias vezes ao texto do “Prefácio”

provavelmente por que nele estariam contidos elementos úteis para a reflexão sobre a

lógica de transição de épocas. Gramsci distinguiria nos “cânones” e “princípios” presentes

naquele texto marxiano critérios teóricos adequados para a compreensão daquele período

histórico italiano. Tratar-se-ia de analisar o sentido das questões relativas àquele período

histórico para compreender em que modo aquelas breves páginas de Marx poderiam servir

para estudar desenvolvimentos históricos muito diferentes entre si (Idem). Apresentar-se-ia,

assim, a inadequação de se apreender o processo de modernização europeu de um ponto de

vista cronológico e homogêneo, dada a diversidade dos quadros históricos em questão.

Gramsci utilizaria os pressupostos do “Prefácio” de maneira diferente, não dogmática e

nem teoricamente rígida, conforme se trate de casos como a Revolução Francesa ou a

modernização passivizante do Risorgimento (Idem).

O que Gramsci extrairia de Marx quando ao aplicar as reflexões deste em conexão

com a ideia de “revolução passiva” seria substancialmente um critério útil para a análise da

persistência das formações sociais. Tal critério derivaria do pressuposto – crucial na

argumentação marxiana – segundo o qual a capacidade de resistência de uma formação

social dependeria da existência de margens de desenvolvimento das forças produtivas em

presença (Idem, p.66). Neste sentido, Gramsci enfatizaria a ideia da possibilidade de um

“movimento ulterior progressivo” das forças produtivas no seio da formação social dada, o

que inviabilizaria a expectativa do desenvolvimento de novo modo de produção, ou de

“relações de produção mais altas” nas próprias bases da velha sociedade. O nexo entre uma

teoria da persistência e a ideia de revolução passiva seria evidente, segundo Burgio, dado

que, pensando ao menos no exemplo da Restauração europeia, se verificaria uma

“revolução passiva” quando uma formação social, embora velha e desafiada por uma crise

radical (que Gramsci chamaria “orgânica”), disporia, todavia, de resíduos de energia

histórica, que lhe permitiriam sobreviver – embora se transformando – no contexto de

transição a uma formação social nova (Idem). No âmbito de uma reflexão concernente às

razões da capacidade de resistência de uma forma social justificar-se-ia também a retomada

de outro princípio do “Prefácio” de Marx, relativo às relações entre as “tarefas” que a

66

“sociedade se propõe” (ou não) e o estágio de desenvolvimento até então atingido (Idem).

Também neste caso o nexo lógico com a análise dos processos “reformadores” de

modernização seria claro, considerando que todas as “revoluções passivas” do século XIX

seriam consequência de atraso, ou seja, exatamente da inexistência (ou imaturidade) das

“condições necessárias” à solução de tarefas novas e superiores (Idem).

Ao lado desta forma de revolução passiva (relativa à “modernização conservadora”)

Gramsci teorizaria outra, funcional à interrupção do processo histórico, e não ao avanço,

embora conservador e em chave reacionária (Idem). A questão que se colocaria a seguir

seria a de saber de que maneira os “princípios marxianos” do “Prefácio” poderiam

contribuir à compreensão de um desenvolvimento histórico antitético à revolução passiva.

A resposta seria que, nas páginas de Marx, Gramsci encontraria não apenas uma teoria da

persistência das formações sociais, mas também uma teoria dos limites das inovações

concretamente possíveis (Idem, p.67). Esta teoria seria um instrumento analítico importante

para se compreender, por exemplo, a conclusão do processo revolucionário francês

(concretamente, o conflito que contrapõe a burguesia finalmente vitoriosa ao proletariado,

até à trágica conclusão da Comuna de Paris). Assim, para Burgio, aqueles dois princípios

teóricos do “Prefácio” de Marx permitiriam a elaboração de duas teorias diversas porque

Gramsci, em cada caso específico, alteraria a prioridade daqueles princípios (Idem).

O primeiro “princípio” se teria revelado fundamental tratando-se de países “sem

revolução”, ou seja, onde ainda haveria margem residual de desenvolvimento da “velha

formação social” (Idem). No caso da Revolução Francesa, por exemplo, o raciocínio

principal se daria em torno ao segundo princípio, relativo às condições necessárias para que

uma sociedade pudesse se colocar e efetivamente enfrentar determinados problemas. O tipo

de abordagem a que daria margem este segundo princípio não seria mais relativo à dialética

entre o “novo” (ainda débil porque não maduro) e o “velho” (capaz ainda de persistir em

virtude da debilidade do “novo”), mas o embate entre um “novo” já forte e vital e um

“novíssimo” ainda prematuro (Idem, p.68). Por um lado, essas forças “novíssimas”

desenvolveriam um papel ativo e influente em toda a primeira fase do processo de

modernização, ao qual confeririam força e um elevado nível de radicalização. Por outro – e

precisamente este lado do problema o segundo princípio formulado no “Prefácio” ajudaria a

enfocar – as instâncias de transformação que aquelas forças “novíssimas” afirmam se

67

revelariam excessivamente avançadas e, neste sentido, anacrônicas. O sucesso da revolução

– devido em grande parte exatamente ao despertar das forças populares que se aliaram à

burguesia - apresentaria questões novas, mas prematuras em seu tempo, que ainda não

poderiam ser resolvidas, e desencadearia forças insustentáveis no quadro da nova

legalidade institucional (Idem).

Assim, segundo Burgio, (Idem, p.69), apenas levando em consideração tal

complexidade seria possível apreender a lógica das referências feitas por Gramsci ao

“Prefácio de 1859” como esquema teórico geral, sendo útil tanto para a análise dos

processos de “revolução passiva”, quanto para o estudo do modelo revolucionário francês.

Sabe-se que, a partir da análise do “Prefácio”, Gramsci alcança uma caracterização

do movimento histórico calcada, sobretudo, na ideia de relações de força ou, em última

análise, na política. A relação estrutura-superestrutura evolui, na análise dialética de

Gramsci, para diferentes momentos de relação de forças, num quadro modelar de

desenvolvimento de determinada formação social:

I)Uma relação de forças sociais estreitamente ligada à estrutura, objetiva, independente da vontade dos homens, que pode ser medida com os recursos das ciências exatas ou físicas (...). II) Um momento sucessivo que é a relação de forças políticas, ou seja, a avaliação do grau de homogeneidade, de autoconsciência e de organização alcançado pelos vários grupos sociais (...). III) O terceiro momento é aquele da relação de forças militares, imediatamente decisivo em cada caso (o desenvolvimento histórico oscila continuamente entre o primeiro e o terceiro momento, com a mediação do segundo) (...) (GRAMSCI,Q13,§17,p.1583-1585, C; Q4, §38, p.455-457, A).

O que Gramsci classifica como primeiro nível de relações de forças, aquele que se

refere diretamente ao desenvolvimento da estrutura econômica de uma determinada

formação social, já estaria definido e consolidado na fase atual do desenvolvimento

capitalista:

A maturidade das condições objetivas, aquelas explicitadas no primeiro dos princípios que constituem o “Prefácio de 1859”, parece ser para Gramsci um dado sobre o qual não é necessário insistir, trata-se de uma questão constante. A questão decisiva colocada por Gramsci – “como nasce o movimento histórico sobre a base da estrutura” – estava, pois, na solução do segundo princípio, aquele que dizia respeito à maturidade das condições políticas e ideológicas (BIANCHI, 2008, p.141).

Segundo Cospito (2000, p.100), Gramsci já estaria refinando o tratamento da

questão relativa às relações entre estrutura e superestrutura ao analisar a crise econômica de

68

1929, ao considerar que se trataria de um processo com possibilidade de várias definições,

sendo-lhe impossível apontar uma única causa.18 Seria, para Gramsci, um processo com

múltiplas manifestações, cujas causas e efeitos estariam entrelaçados (Idem). Tais

observações de Gramsci forneceriam duas importantes conclusões gerais, a saber, que a

crise de 1929, ao não provocar a esperada derrocada final do capitalismo, contribuiria para

estimular em Gramsci a refutação de uma relação estreitamente causal entre estrutura e

superestrutura e, finalmente, que tal refutação significaria na realidade negar a própria

imagem de uma “base” sobre a qual se elevaria uma determinada superestrutura destinada a

ruir no momento da desorganização daquela base. Daí, segundo Cospito, a necessidade de

se superar o próprio postulado do problema em termos de relações entre estrutura e

superestrutura (Idem, p.101).

Aponta Cospito que, já em 1930, em conversas com seus companheiros de prisão,

Gramsci, para romper com aqueles que acusariam o marxismo de mecanicismo, fatalismo,

determinismo econômico, etc., sugeriria que não se falasse mais em “estrutura” e

“superestrutura”, mas apenas em “processo histórico”, do qual todos os fatores fariam parte

(Idem, 104). Para Gramsci, isso seria assim, segundo Cospito, porque seria necessário

evitar a colocação da questão em termos “intelectualísticos”, e sim colocá-la em termos

“histórico-políticos”. A estrutura-superestrutura se converteria então na dialética entre

forças subjetivas e objetivas, que seria muito menos dicotômica já que, para Gramsci,

“objetivo” significaria “humanamente objetivo” e, assim, também “humanamente

subjetivo” e, portanto, “universal subjetivo” (Idem, p.105).

Para Burgio, existiria uma possibilidade de leitura múltipla da análise gramsciana

das relações de força (BURGIO, 2002, p.114). Segundo a leitura mais simples, os três

“momentos” da relação de força (social, político e militar) representariam o âmbito de

referência da análise social-política, que deve mover-se a partir do reconhecimento da

composição social, aferir o estado das subjetividades políticas e, finalmente, preparar o

terreno dos conflitos internacionais (Idem). Neste sentido, poder-se-ia dizer que o objetivo

teórico da “tripartição da relação de força” seria fornecer um quadro geral das articulações

18 Gramsci analisa a crise de 1929 em um texto B (Q15,§5,p.1755-1756,B), escrito em fevereiro de 1933 segundo a datação do filólogo Giani Francioni (FRANCIONI apud COUTINHO, 2002, p. 463).

69

da totalidade político-social, a partir das quais se desenvolveriam conflitos em condições de

determinar uma crise histórica (Idem).

Assim, quando absolutizada, a relação das “forças sociais” constituiria a

representação do conflito de classe pela ótica economicista, própria, por exemplo, do

sindicalismo revolucionário, não por acaso objeto de crítica de Gramsci. A relação de

forças políticas, por outro lado, corresponderia à teoria crítica elevada ao nível de

complexidade correspondente à análise marxiana do capital como relação social (Idem).

Neste terreno, os sujeitos seriam constituídos como forças “sociais-políticas” que se

determinariam num contexto de relações relativamente independentes do processo de

produção imediato e com base na elaboração crítica das próprias funções. Finalmente, a

relação das forças militares refletiria a análise madura dos conflitos bélicos enquanto

projeções externas (e manifestações extremas) das contradições do sistema capitalista. A

esta análise estaria subjacente à ideia – central na análise leniniana sobre o imperialismo -

de que a dinâmica da acumulação capitalista conduziria inevitavelmente à guerra, dadas as

conexões das economias nacionais ao âmbito internacional pela via das tensões referentes

ao controle monopolista de mercados de consumo, matérias primas e recursos energéticos

(Idem).

A concepção dialética do nexo estrutura-superestrutura seria uma característica

definidora do marxismo de Gramsci e um dos eixos fundamentais de sua crítica

antideterminista e antieconomicista, reconhecendo a capacidade do momento subjetivo de

incidir sobre terreno estrutural (Idem, p.121). Do ponto de vista do materialismo histórico, a

natureza dialética (de ação recíproca) daria significado ao nexo estrutura-superestrutura em

todas as formações sociais. A relevância dessa questão conferiria à análise gramsciana um

significado específico e historicamente referido. A ênfase recairia sobre as consequências

práticas (políticas) da natureza dialética das relações. Por sua vez, tais consequências – a

atualização da perspectiva revolucionária como possibilidade concreta – remeteriam aos

progressos alcançados pela massa subalterna no terreno da autoconsciência e do

desenvolvimento histórico concreto da sociedade moderna (Idem, p.122).

As relações entre estrutura e superestrutura consideradas em sua natureza dialética e

em sua dimensão única de práxis podem ainda ser tratadas pelo ângulo de outro conceito

70

axial para a filosofia da práxis tal como postulada por Gramsci, qual seja o de “tradução”,

ou “tradutibilidade”. Para Frosini (2010, p.171), o tema da tradutibilidade das linguagens

constituiria uma forte ligação com o status filosófico do marxismo. A forma radical da

tradução, ou seja, aquela que tornaria possível todas as outras traduções, seria a tradução da

filosofia em política (Idem). Isso significaria a compreensão peculiar da “realidade” das

“relações humanas de conhecimento” de acordo com seu desdobramento específico em

seus vários contextos nacionais, isto é, o modo como filósofos e intelectuais em geral

realizam a unidade entre filosofia e o senso comum à luz de suas respectivas tradições e

linguagens nacionais (Idem, p.175). Uma vez que aquela tradução da filosofia em política

esteja feita, o que deveria ser elucidado em seguida seria a função específica da articulação

“filosofia-cultura”, o que seria de fato apreendido no espaço do fenômeno da “catarse”

(Idem)19. Neste sentido, para Frosini (2010, p.173), o “Prefácio de 1859” forneceria as

bases para a tradutibilidade da filosofia à política, da unidade do pensamento em ação. Tal

tradutibilidade tornaria possível o momento catártico e explicaria o movimento histórico na

base da estrutura, na verdade em articulação dialética com essa. Na verdade, Gramsci

apresentaria a filosofia da práxis como capaz de “traduzir” a filosofia idealista em termos

realistas graças ao conceito de “catarse”, ou seja, de descobrir e atribuir valor ao que é

“historicidade” (ou seja, política) no idealismo (Idem, p.173). O tema concernente à

tradutibilidade de linguagens constituiria uma parte integral do projeto de Gramsci de

repensar a filosofia (Idem, p.171).

Para Lacorte (2010, p.213), a tradutibilidade seria a base teórica do conceito de

práxis em Gramsci20. Este usaria o conceito de “tradutibilidade” para teorizar a unidade

19 Fundamental lembrarmo-nos aqui de um dos momentos nos Quaderni em que Gramsci define o conceito de catarse com maior clareza: “Pode-se empregar o termo ‘catarse’ para indicar a passagem do momento meramente econômico (ou egoísta-passional) ao momento ético-político, isto é, a elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens. Isto significa também a passagem do ‘objetivo’ ao ‘subjetivo’ e da ‘necessidade’ à ‘liberdade’. A estrutura da força exterior que esmaga o homem, o assimila a si, o torna passivo, se transforma em meio de liberdade, em instrumento para criar uma nova forma ético-política, em origem de novas iniciativas. A fixação do momento “catártico” torna-se assim, a meu ver, o ponto de partida para toda a filosofia da práxis; o processo catártico coincide com a cadeia de sínteses que são resultado do desenvolvimento dialético (recordar os dois pontos entre os quais oscila este processo: - que nenhuma sociedade se coloca tarefas para cuja solução não existam já, ou estejam em vias de desenvolvimento, as condições necessárias e suficientes – e que nenhuma sociedade perece antes de haver expressado todo seu conteúdo potencial) (Q10, II, §6, p.1244, B). Grifo nosso. 20 Apesar de perpassar sempre as notas mais importantes de todos os Quaderni, Gramsci trata diretamente do tema da “tradução/tradutibilidade” em Q7,§35,p.886,B;Q11, §§46 e 47, p.1468, C; Q10, §6, p.1245, C.

71

entre teoria e prática, insistindo que as superestruturas seriam realidade objetiva e

operativa, e não falsa consciência ou algum produto não dialético que pudesse ser

apreendido fora das estruturas econômicas. Gramsci, na verdade, iria além, superando a

distinção orgânica entre “estrutura” e “superestrutura” e utilizando tal distinção apenas para

fins “didáticos” (Idem).

Em Gramsci, a tradutibilidade constituiria o reconhecimento teórico de que tudo

deve ser interpretado em termos de práxis (ou atividade humana), na medida em que não se

poderia, na verdade, transcendê-la.21 (Idem,p.214). A tradutibilidade seria concebida como

necessária para ativar o que os antigos conhecimentos e modos de concepção haviam

neutralizado, ou seja, a ideia de que o conhecimento pode ter uma função revolucionária.

Tradução e tradutibilidade não seriam termos meramente linguísticos ou intelectuais, no

sentido abstrato. Eles envolveriam práxis, luta política e transformação da vida cotidiana,

modos de pensamento e de produção (Idem). Os jacobinos no passado, e Lênin

contemporaneamente, teriam traduzido as necessidades de seu tempo em política efetiva,

conforme avaliaria Gramsci, segundo (LACORTE, 2010, p.215). A realização da

hegemonia na Rússia junto à sua tradução italiana na forma dos conselhos de fábrica

constituiria a base teórica da crítica gramsciana. Isso significaria que Gramsci pensa a

tradutibilidade em conexão com a experiência leninista. Para demonstrá-lo, Lacorte cita o

curto parágrafo 2 do caderno 7, que se trata na verdade da primeira redação do parágrafo 46

do caderno 11, que reproduzimos aqui: “Em 1921, tratando de questões de organização,

Vilici escreveu e disse (mais ou menos) assim: não soubemos ‘traduzir’ nas línguas

europeias a nossa língua” (Q11, §46, p.1468, C; Q7, §2, p.854, A).

Segundo Lacorte, (2010, p.216), isso confirmaria que os eventos históricos

contemporâneos a Gramsci constituiriam uma parte essencial de sua inovadora perspectiva

filosófica e revolucionária, que não poderia ser negligenciada. Gramsci perceberia assim

que tanto ele quanto Lênin teriam sido precedidos por Marx com relação ao uso (não à

teorização) do que ele chamará mais tarde de tradutibilidade (Idem). A filosofia da práxis

21 Interessante atentarmo-nos aqui para a passagem que fecha o §35 do aludido caderno 7, texto B: “Tudo é política, também a filosofia ou as filosofias (...) e a única “filosofia” é a história em ato, isto é, a própria vida. É neste sentido que se pode entender a tese do proletariado alemão como herdeiro da filosofia clássica alemã – e se pode afirmar que a teorização e a realização da hegemonia feita por Ilitch foi também um grande acontecimento ‘metafísico’” (Q7, §35, p.886, B).

72

teria sua própria maneira autônoma de abordagem da história que estaria baseada no

conceito de tradutibilidade, ou seja, a teoria da impossibilidade da “partenogênese”, ou

geração espontânea, de qualquer ideia ou linguagem, inclusive o marxismo, que conceberia

suas próprias verdades como históricas e políticas (Idem, p.217).

Para Lacorte poder-se-ia dizer que a filosofia da práxis junto com seu núcleo teórico

(ou seja, a tradutibilidade) não poderia ser pensada sem a Revolução Russa e seu impacto

sobre Gramsci e os países ocidentais. Lênin não seria apenas o símbolo de um evento

histórico-político crucial no qual a linguagem teórica teria demonstrado sua realidade e

valor ideológico na prática por meio da tradução, mas também aquele que teria colocado a

questão da hegemonia em termos de “tradução” ao tempo de Gramsci (Idem, p.219).

Hegemonia e igualdade real pressuporiam a unidade entre prática e teoria. Esta unidade,

entretanto, não existiria antes de ser construída. Primeiramente, a possibilidade de tal

unidade existiria apenas em relação ao surgimento de determinadas condições em

determinadas relações de força históricas. Assim, nos Quaderni, Gramsci teria

desenvolvido teoricamente a tradutibilidade como consciência, que deveria ser construída

na atividade prática a partir do fato de que teorias, linguagens teóricas ou modelos

heurísticos de conhecimento, tanto quanto qualquer outra linguagem, não podem ser

abstrata ou mecanicamente transferidos de uma esfera do conhecimento para outra (Idem).

O resultado de tudo isso seria que os conceitos gramscianos de “superestrutura” ou

“ideologias” seriam desenvolvimento e tradução da passagem do “Prefácio de 1859”

segundo a qual “os homens se tornariam conscientes de sua posição social e, portanto, de

suas tarefas, no terreno da ideologia” (MARX, 1983, p.25), ou seja, da política. Gramsci

reinterpretaria o conceito de Marx simultaneamente de acordo com os conceitos e as

experiências de hegemonia de Lênin e seus próprios. Isso demonstraria a continuidade entre

esses três autores e o fato de que fenômenos históricos contemporâneos seriam a base para

Gramsci repensar Marx e Lênin e para a tradução, por Gramsci, das posições prático-

teóricas daqueles pensadores (LACORTE, 2010, p.215).

73

2.5 Os pensadores do revisionismo “latino”

Neste item passaremos a apresentar e discutir as ideias dos principais elaboradores

do pensamento revisionista fora da socialdemocracia alemã. Nesta ordem serão vistos

Saverio Merlino (eis o pioneiro, se quisermos um), Benedetto Croce, Henri De Man e

Georges Sorel. Na sequência, em itens posteriores, veremos as reações ao revisionismo em

geral, e ao revisionismo “latino” em particular, nos pensamentos de Antonio Labriola e

Antonio Gramsci, mostrando e debatendo os momentos em que este último se utiliza da

assimilação crítica do pensamento soreliano para sua empresa mais geral de recomposição

do que ele próprio chamara de “ortodoxia marxista”.

2.5.1 Saverio Merlino

Saverio Merlino, italiano, fora antecessor de Bernstein e, dos revisionistas, seria um

dos menos contemplados pela crítica (GUSTAFSSON, 1975, p.280). Após militância

anarquista na juventude e alguns anos de cadeia na Itália, teria começado a moderar suas

ideias políticas, processo que resultou na publicação do livro Pro e contro il socialismo, em

1897. No mesmo ano, Merlino divulgaria uma síntese das ideias contidas no livro, de cuja

publicação francesa e prefácio se encarregara Georges Sorel. O livro de Merlino sairia na

França com o título Formes et essences du socialisme (Idem). O livro teria encontrado

maior recepção na França do que na Itália, e é provável que Bernstein tenha tomado contato

com a edição francesa antes mesmo de publicar o seu Premissas do socialismo e as tarefas

da socialdemocracia, em 1899. Sabe-se que Bernstein teria enfatizado, em uma carta a

Labriola, a coincidência entre suas concepções e as de Merlino (Idem).

A força axial do pensamento de Merlino não difere fundamentalmente da de outros

pensadores revisionistas já analisados aqui. É, em suma, a defesa da consolidação de ideais

morais de justiça social e da concretização de tais ideais em bases jurídicas, como

alternativa oposta ao reconhecimento de interesses material e inexoravelmente antagônicos

entre o proletariado e a burguesia em suas variadas frações, e a consequente luta de classes

que daí adviria. Merlino fora o primeiro a apresentar de maneira sistemática uma alternativa

revisionista como proposta de superação de materialismo histórico.

74

O autor sugere que a igualdade social a se desejar não seria uma igualdade “exterior

ou material”, ou seja, que consistiria na igual repartição de terras e riquezas acumuladas,

nem uma obrigação de igual quantidade de trabalho. Defende que a igualdade a se

preconizar seria uma “igualdade moral”, resultante do conjunto das condições e “fatos

fundamentais da sociedade”. Tal igualdade moral seria capaz de reprimir os monopólios,

manter a equidade nas trocas, inculcar a todos os homens a obrigação do trabalho e evitar

que os que não trabalhem vivam à custa dos outros (MERLINO, 1909, p.85). Merlino

define a injustiça social da maneira seguinte:

A coação que se exerce por meio do dinheiro é semelhante, mesmo na linguagem comum, à violência física: meter-lhe a faca aos peitos é a expressão popular para cada contrato em que um dos contratantes, aproveitando-se das necessidades do outro, lhe impões condições injustas. Os monopólios, certos jogos da bolsa, as coligações para aumentar os preços, o trucksystem, certa usura, são verdadeiras extorsões. Todas as relações entre indivíduos que se encontram em condições sociais desiguais são necessariamente injustas (MERLINO, 1909, p.87).

Como Merlino espera construir a justiça por meio do desenvolvimento de preceitos

morais? Ele sugere, em primeiro lugar, que aqueles que possuem um grande capital ou um

grande talento para o comércio e o mercado não usem essas vantagens “até o extremo”.

Essas pessoas deveriam restringir sua atividade ao limite de suas necessidades e de suas

famílias, para que os outros pudessem ter espaço para viver atendendo também com

suficiência suas necessidades (Idem). A justiça humana, diferenciando-se da “justiça

inferior”, deveria evitar a luta, proibindo as agressões diretas e indiretas e garantindo a

todos os homens a vida e uma liberdade iguais (Idem). Ou seja, trata-se da preponderância

absoluta da noção moral de justiça que Merlino mobiliza aqui. Para ele, existem três

gêneros de relações entre os homens: as relações de luta, as relações de reciprocidade e as

relações de solidariedade. O primeiro gênero ficaria completamente fora dos domínios do

que se poderia chamar de justiça. Esta deveria ser baseada nos outros dois tipos de relações

(Idem, p.89). Aqueles outros dois tipos seriam caracterizados respectivamente pela

proporcionalidade de recompensa no trabalho e acessibilidade às fontes de trabalho a todo

indivíduo desejoso de trabalhar. Esses dois tipos de “princípios de justiça econômica”,

como também os chama Merlino, não demandariam a extinção da propriedade privada ou a

instauração da coletivização da riqueza. Exigiriam, em vez disso, a “posse do instrumento

de trabalho pelo trabalhador” (!) (Idem, p. 100). Prossegue Merlino afirmando que essa

75

posse poderia ser individual (a cada trabalhador o seu utensílio) ou coletiva (a todos os

trabalhadores todos os utensílios), desde que no primeiro caso todos os trabalhadores

tivessem um direito igual, e que a posse privada fosse cercada de condições que a

impedissem de “degenerar em monopólio” (Idem).

Para Merlino, os princípios de justiça econômica não prescreveriam que todos os

trabalhadores defendam a coletivização em economia, ou que todas as indústrias sejam

monopolizadas ou apropriadas pelo Estado. Considera que isso de fato seria impossível. A

produção cooperativa e a produção privada seriam preferíveis, ao menos para certas

indústrias. A coletividade teria apenas a necessidade de impor condições para salvaguardar

os interesses e para assegurar a todos a igual possibilidade de trabalho (Idem, p.101).

Enfim, segundo o autor, os princípios de justiça econômica exigiriam que as trocas fossem

equitativas, mas não seria necessário que todas as trocas fossem feitas por intermédio da

sociedade. As formas de organização econômica poderiam variar, mas deveriam

desaparecer as graves desigualdades das condições econômicas. Dadas as diferenças

naturais de recursos e condições de trabalho (terras mais e menos férteis, minas mais e

menos ricas, máquinas mais e menos aperfeiçoadas), não se poderiam igualar de maneira

direta as situações e, portanto, os proventos do trabalho. A solução seria então coletivizar

toda a riqueza que excedesse o rendimento ordinário do trabalho, como renda da terra,

juros, etc. Sustenta Merlino que seria necessário, portanto, “socializar a renda” (Idem,

p.103).

Para Merlino, da mesma forma que a organização econômica da sociedade, também

a organização política seria resultado de uma longa elaboração, e não poderia ser

modificada radicalmente de um dia para outro. Além disso, sendo o objetivo de toda

organização política manter relações estáveis e equitativas entre os homens, atender a

grandes necessidades sociais e resolver os conflitos que surgiriam entre os membros de

uma comunidade, seria impossível deixar de considerar como indispensável a qualquer

sociedade algum tipo de organização política (Idem, p.108). Segundo Merlino, o que

tornaria inviável o sistema parlamentar que se conhece seria o fato de haver uma grande

oposição de interesses entre os diferentes agrupamentos sociais. Além disso, o fato também

que um governo demasiado poderoso estaria acima de toda representação nacional e, por

fim, a própria situação de desorganização das massas populares (Idem, p.110). Assim, a

76

desorganização do povo, a hierarquia das classes e a centralização governamental tornariam

impossível toda representação verdadeira dos interesses da comunidade. Por isso, dever-se-

ia empreender a reforma política a partir do estabelecimento da reforma social, com

condições sociais iguais para todos. Aquela reforma política seria constituída pela

especialização, ou seja, “as funções legislativas, administrativas, executivas e judiciárias

(...) serão confiadas a indivíduos com a educação necessária para cumpri-las bem” (Idem,

p.111). Estranha tal concepção “igualitária” de Merlino, partindo do pressuposto de atribuir

as funções do poder apenas a pessoas com a “educação necessária”, indo na contramão do

que mesmo os movimentos socialistas mais moderados considerariam como democrático

para a classe trabalhadora. A participação que Merlino reserva à população aqui seria a

“fiscalização efetiva do povo ou dos interessados diretos”, que poderiam consentir ou

recusar as decisões tomadas por seus representantes (Idem).

Para Merlino, a revolução pressuporia que certa transformação já se teria produzido

na sociedade. Uma grande parte da constituição social que a precedera permaneceria ainda,

e ao lado dela surgiriam novas instituições. Desse modo, seria pela criação de novas

instituições, mais do que pela demolição das antigas, que o socialismo se realizaria (Idem,

p.118). Sugere Merlino que um dos traços característicos do que ele chama de “evolução

social” seria que “o novo cresce sob o velho”. A humanidade, “da mesma forma que se

serviria de velhos vocábulos para exprimir ideias novas ou indicar coisas novas, da mesma

forma que se serve de velhos edifícios para novos usos”, pela própria lei de economia das

forças continuaria durante certo tempo a servir-se das velhas instituições, mudando-lhes o

conteúdo (Idem). A sociedade aumentaria constantemente e a sua organização se tornaria

cada vez mais complexa. Da mesma forma, a circulação dos produtos, capitais e moedas

tornar-se-ia mais ampla e mais rápida, como também os processos industriais mais

complicados. Completa Merlino que aperfeiçoar tal mecanismo, e não destruí-lo, seria a

missão do socialismo (Idem). Para o socialista italiano, para se alcançar tais objetivos, a

política deveria ser privada de qualquer espírito de dominação, e a economia de qualquer

espírito de monopólio:

Desta maneira, a distinção do que é essencial com o que é acidental e formal na constituição social nos conservará igualmente afastados do empirismo e do doutrinarismo, um e outro estéreis, e nos permitirá conceber uma organização prática da sociedade socialista (Idem, p.121).

77

O pressuposto evolucionista de Saverio Merlino fica claro mais acima, ao refletir

sobre a tarefa de aperfeiçoamento que caberia ao socialismo. Dessa maneira, estaria ele

alinhado com Bernstein. Permanecer afastado tanto do empirismo quanto do doutrinarismo

é também uma das máximas de Antonio Labriola, talvez ele a tenha encontrado em

Merlino. Este, porém, parece se posicionar nos dois campos ao mesmo tempo, dado aquele

evolucionismo.

Merlino afirma que a formação de novos princípios de justiça que deverão governar

as relações sociais sob o regime socialista engendraria a formação também de uma nova

moral, que animaria e sustentaria as novas relações jurídicas (MERLINO, 1909, p.181). Tal

fenômeno seria constituído por modificações que se produziriam em nossa consciência

moral, em relação com ao aperfeiçoamento do mecanismo social. Contra o fundo de uma

moral antiga se estenderia e se consolidaria uma moral nova que seria composta por

sentimentos de solidariedade, de igualdade e de independência. Para o autor, o ponto mais

importante desta evolução da moralidade seria a extinção gradual da diversidade de conduta

correspondente à divisão da sociedade em classes. Em sua definição, “a moralidade é a

coordenação das condutas dos homens na vida social”. Sustenta Merlino que a história da

colonização e da emigração nos mostraria o homem civilizado tornando-se bárbaro desde o

momento em que se afasta de seu meio e de sua sociedade. Encontrando-se com “raças

inferiores” ou com indivíduos de nacionalidade, língua e origem diferentes da sua, aquele

homem civilizado teria sua moral enfraquecida por conta do afrouxamento de seus laços

sociais. Conclui Merlino que “o grau de desenvolvimento da moralidade é também

proporcional ao grau de intensidade das relações sociais” (Idem, p.183).

Afirma o autor que as práticas comerciais e bancárias então em voga tornariam

impossível a reconciliação com as relações sociais que as suportariam (Idem, p.184). A

corrupção, as intrigas, as ambições dos políticos não seriam, por sua vez, menos

censuráveis do que as fraudes dos fabricantes e os acordos para elevar os preços das

mercadorias. Tais homens, que descurariam de seus deveres de cidadãos, não seriam menos

culpados do que aqueles que negligenciariam seus deveres familiares (Idem, p.184). Para

Merlino, o aperfeiçoamento da consciência moral seria condição prévia da realização do

socialismo. Caso os homens continuassem a ser o que seriam no presente momento,

nenhum sistema socialista poderia funcionar. Haveria tirania de opinião pública em vez de

78

tirania de governo, monopólios estatais em vez de monopólios de capitalistas. A reforma da

sociedade exigiria a reforma prévia do indivíduo. Assim, a missão principal do socialismo

seria precisamente a de moralizar as massas pela propaganda e pela prática dos princípios

de solidariedade e de reciprocidade (Idem, p.185).

Gustafsson (1975, p.281) observa que Merlino procedera à separação teórica entre

marxismo e socialismo. A força a impulsionar o socialismo seria o desejo de justiça social

e, para isso, a ideia socialista se faria presente em praticamente tudo: política, literatura,

arte, religião, etc. Desta forma, para Merlino o socialismo não seria um sistema social

determinado, mas um impulso para a justiça social (GUSTAFSSON, 1975, p.281). Tal

impulso seria, em sua essência, moralmente equivalente à luta de classes em extinção. O

fato mesmo que existisse luta de classes seria o resultado da organização defeituosa da

sociedade, e cada progresso significaria uma redução do princípio daquela luta (Idem).

Para Gustafsson (Idem), Merlino não ocultaria que seu ideal de justiça seria o da

sociedade burguesa em seus primórdios. Estaria muito claro no revisionista italiano que ele

julgaria a ordem social existente com base no que seriam os pontos de vista dos pequenos

empresários e da pequena burguesia (isso fica claro se lembrarmos das passagens em que

Merlino defende que quem tenha grande capital ou grande talento não deveria usá-los para

suplantar demais os outros, ou para criar monopólios). Para que este ideal de justiça social

pudesse ser realizado, não se deveria destruir a organização social existente, mas, ao

contrário, ampliá-la e reformá-la (Idem, p.282).

Gustafsson analisa qual seria o significado prático em relação aos objetivos

programáticos do movimento operário socialista. Os partidos que se baseassem no

marxismo possuiriam um programa máximo, ou seja, o socialismo, e um programa mínimo

que consistiria em uma série de reivindicações de reformas econômicas e políticas (Idem,

p.283). Observa Gustafsson que, segundo Merlino, isso seria falso: se a luta em prol de

reformas nos marcos do capitalismo constituiria uma parte da luta pelo socialismo então

não haveria nenhum motivo para distinguir entre programa máximo e programa mínimo.

Ao contrário, Merlino sustentaria que o programa máximo deveria ser abandonado para que

as forças do movimento operário socialista pudessem se concentrar, assim, totalmente em

metas próximas e concretas (GUSTAFSSON, 1975, p.283).

79

Para que fosse possível levar a cabo tal reorientação da linha do movimento

operário, seria necessário, antes, reformar a teoria socialista. Assim, Merlino teria chegado,

partindo de uma fixação de objetivos políticos práticos, às mesmas exigências que

Bernstein, ou seja, revisão do marxismo e, em primeiro lugar, da concepção materialista da

história, da teoria da mais-valia, da concentração capitalista e da luta de classes (Idem).

Uma comparação entre o pensamento de Merlino e o que Bernstein exporia nas suas

Premissas do socialismo mostraria como tanto o ponto de partida como a análise, o método

e o objetivo seriam, em grande parte, idênticos (Idem).

Um elemento interessante a notar na teoria de Merlino seria toda esta ênfase na

necessidade de uma reforma moral. Decerto que não se trata da reforma intelectual e moral

gramsciana, mas já contempla a indicação de que a formação de novas mentalidades deverá

acompanhar a construção de uma nova sociedade, ou a construção de um novo bloco

histórico, por assim dizer. A formação de nova concepção de mundo é parte concreta e

central da formação de um novo bloco histórico. Mas a reforma de Merlino mantém muita

distância das relações materiais da luta de classes que a condicionam. Merlino praticamente

apela aos corações humanos. E, como não poderia deixar de ser, os principais problemas do

capitalismo acabam sendo atribuídos à má conduta moral dos homens. A noção moral de

justiça, no sentido em que postula Merlino, encontra-se superada em Marx pelo suposto de

que não são pessoas tocadas emocionalmente pela injustiça do sistema capitalista que se

mobilizarão para superá-lo. Isso às vezes pode acontecer e até acontece, mas a força

material de choque e destruição do capitalismo nasce das próprias classes exploradas,

materialmente submetidas. O que as impele a ação não é, predominantemente, um

sentimento de autocomiseração pela injustiça que sofrem, mas as condições materiais de

degradação a que estão submetidas. Postular o primado dos princípios éticos como

superação da luta de classes é admitir também que as contradições com as quais o

capitalismo deve lidar encontram-se fora de qualquer dimensão de classe. Sequer a criação

de um sentimento moral de classe, como seria o caso do soreliano “sentimento de cisão”,

poderia ajudar muito se não for articulado com a cisão material que se propõe a superar. O

revisionismo de forma geral, ao menos enquanto reivindique sinceramente o avanço rumo

ao socialismo, comete o erro capital de esvaziar o conteúdo material da luta de classes ao

80

erigir em motores principais do movimento socialista os imperativos éticos e a pura

dimensão moral da conduta humana.

2.5.2 Benedetto Croce

Nos três prefácios que elaborou para sua obra Materialismo Histórico e Economia

Marxista, em 1899, 1906 e 1917, é possível notar em Croce um afastamento progressivo

em relação às concessões que inicialmente fizera à teoria marxista, até o último prefácio em

que, para ele, o marxismo fica praticamente relegado à seara da história das ideias

(CROCE, 1948, p.13-14). No primeiro, Croce faz questão de afirmar que nunca fora

marxista, mas admite a existência do que ele considera ser um “núcleo são e realista” no

pensamento de Marx (CROCE, 1948, p.11) e compara ainda sua crítica ao marxismo com a

que Georges Sorel estaria empreendendo na França (Idem). Para Dias (2000, p.29), “a luta

real contra o revisionismo teria que ser travada contra Croce”. Após um rápido interesse

pelo marxismo, ele acabaria se tornando o principal líder revisionista italiano, chegando a

influenciar Sorel e mesmo Bernstein (DIAS, 2000, p.29).

O livro de Croce se constitui, na verdade, de um conjunto de ensaios publicados

separadamente entre 1896 e 1899 na Itália e na França (nesta, na revista Le Devenir Social),

período preciso das polêmicas revisionistas. Trata-se também, em grande parte, de um

acerto de contas com seu então amigo e professor de filosofia em Roma, Antonio

Labriola.22 A passagem de Croce sobre nunca se ter considerado marxista levaria à

conclusão lógica, que é de fato sua intenção, de não poder ser tomado, portanto, como parte

do movimento revisionista. A premissa, nesse caso, não tem relação lógica necessária com

a conclusão. Basta que se atente à simpatia manifestada pelo jovem Croce diante do

marxismo, e ao mesmo tempo seus esforços para torná-lo apenas mais um instrumento,

uma ferramenta a mais, ou – como ele mesmo prefere – “cânone” de auxílio na

interpretação da história. Ademais, ocorre com alguma frequência que, além dos homens e

das épocas históricas, também não seja possível julgar um texto pelo que dele diz o próprio

autor. Assim, se Croce não admite o epíteto de revisionista, é forçoso que se avente tal

22

Ao cabo do qual Labriola seguiria mantendo firme convicção no marxismo “integral” até sua morte, em 1904.

81

hipótese se considerada a clara afinação com teses importantes presentes em Bernstein e

Sorel, por exemplo. Santarelli (1977, p.70) considera necessário estudar o revisionismo

croceano na Itália porque este teria agido no marxismo da península de maneira “indireta e

profunda”, pouco visível numa primeira abordagem de todo o processo revisionista no país.

Logo no início da obra, afirma Croce que pretende discutir o materialismo histórico

do modo como o teria apresentado Labriola em “Del materialismo storico, dilucidazioni

preliminari”, de 1896 (CROCE, 1948, p.20). Considera não ser possível uma filosofia da

história, por não ser concebível uma filosofia que conseguisse abranger todos os fenômenos

isolados num único fato histórico. Sugere que teria encontrado em Labriola o mesmo

caminho de raciocínio. O professor de Roma teria “livrado” o marxismo da tentativa de ser

uma filosofia da história (Idem, p.22). Assim, Croce cita as críticas que Labriola faria ao

positivismo e às tentativas de previsibilidade em relação aos fenômenos históricos. O

descarte de um e outras, segundo Croce, seria justamente a atitude que oporia a concepção

materialista da história a uma filosofia da história.

Para Croce, o materialismo histórico não seria nem nova filosofia da história, nem

novo método, mas apenas uma “soma de novos dados”, de “novas experiências”, “que

penetram na consciência do historiador” (Idem, p.25). Croce tenta demonstrar que Labriola

faria tantas concessões ao imponderável no devir histórico que acabaria por admitir que o

materialismo histórico não seria exatamente uma teoria, mas um conjunto de observações

aproximativas, em que há sempre um “quase” ou um “aproximadamente”, que ajudariam a

compreender a vida e a história. Tudo isso estaria assim muito próximo do que ele próprio,

Croce, admitiria, ou seja, o materialismo histórico como novo auxílio para compreensão

das formações sociais (Idem).

Apesar da base filosófica materialista, a moral não perderia, para Croce, seu caráter

absoluto no materialismo histórico. Ou seja, permaneceria intacta a questão do ideal moral,

de seu valor universal e intrínseco (Idem, p.33). Observa Croce que a literatura socialista de

então estaria fortemente impregnada por uma corrente relativista que consideraria a moral

como vã imaginação. Tal corrente, prossegue o autor, teria sido determinada principalmente

pela necessidade em que se encontrariam Marx e Engels de afirmar, antes as diversas

categorias de utopismo, que a questão social, para a qual cuidavam de conferir

82

fundamentação científica, não seria uma questão moral que pudesse se resolver com a

simples boa vontade dos corações humanos (Idem). Para Croce, tal relativismo teria

recebido suporte também na origem hegeliana do pensamento dos dois fundadores do

socialismo científico, já que na filosofia de Hegel a moral teria perdido a rigidez conferida

pelo pensamento kantiano.

Assim, postula Croce que a “idealidade” ou o absolutismo da questão moral em seus

sentidos filosóficos seria premissa necessária para o socialismo, e o justifica de forma

claramente revisionista no âmbito político-filosófico:

O interesse que nos move a construir um conceito de mais-valia, não se diria melhor um interesse moral ou social? Em economia pura pode-se falar de mais-valia? O proletário não vende sua força de trabalho pelo que ela vale, dada a sua situação econômica na sociedade presente? E, sem esse suposto moral, como se explicaria, não somente a ação política de Marx, mas também o tom de violenta indignação e de amarga sátira que se adverte em cada página do Capital? (CROCE, 1948, p.33-34).

Ou seja, seria um suposto moral que moveria a formação do conceito de mais-valia,

a ação política de Marx e a indignação presente n’O Capital. Tal como fará Bernstein um

pouco depois, Croce despe o núcleo da teoria marxista de qualquer fundamento científico.

Assim como o socialdemocrata alemão postula, a categoria de mais-valia equivaler-se-ia

aqui a uma abstração construída a partir de uma hipótese sem comprovação científica. Sem

estar relacionado à noção moral de exploração da força de trabalho, o montante relativo à

mais-valia não seria senão, em sua origem no processo produtivo, uma das partes do valor

total final atribuído a uma mercadoria. Ainda assim, só faria sentido se se tomasse o

trabalho social como a origem do valor, e não a utilidade social dessa mercadoria. A

observação empírica do sofrimento de parcelas da classe operária desperta o dever moral da

indignação e da ação política com vistas a minorar tal sofrimento, e isso seria o máximo a

que se poderia chegar no âmbito das “comprovações”. Nada disso faria parte, no entanto,

da ciência econômica propriamente dita.

Para Croce, a concepção do valor na obra de Marx seria a “determinação da

particular formação do valor, que ocorre numa sociedade dada (capitalista) enquanto

diverge da que ocorria numa sociedade hipotética e típica” (CROCE, 1948, p.46). Dessa

forma, Marx só conseguira chegar ao seu conceito de valor por meio de uma “comparação

elíptica” com aquela sociedade hipotética e típica (Idem). “Comparação elíptica”, ou seja,

83

comparação que não se mostra claramente, e esta seria, segundo Croce, uma das maiores

dificuldade para se compreender o conceito de valor de Marx. Croce prossegue em sua

crítica afirmando que “em economia pura, o valor de um bem equivale à soma dos esforços

(penas, sacrifícios, privações, etc.) necessários à sua reprodução; e tanto os salários quanto

os lucros do capital são economicamente necessários, dada a sociedade capitalista” (Idem).

A partir daqui começa a se delinear o grosseiro equívoco de Croce em sua crítica à teoria

do valor, separando organicamente os processos de formação de capital e salário, que fica

definitivamente estabelecida na passagem que segue:

É impossível chegar, por dedução puramente econômica, a restringir o valor das mercadorias apenas ao trabalho, excluindo dele a parte do capital, e considerar consequentemente o lucro como originado pelo sobretrabalho não pago, e os preços como desvio dos valores reais graças à concorrência dos capitalistas – se não se considerar, em confronto, como tipo, outro valor particular, isto é, aquele que teriam os bens aumentáveis com o trabalho numa sociedade em que não existissem os impedimentos da sociedade capitalista e em que a força de trabalho não fosse uma mercadoria (CROCE, 1948, p.46).

Ora, o que Croce nos diz parece ser que Marx descartaria a utilidade do capital na

formação do valor das mercadorias, considerando apenas o elemento “trabalho”, o que não

poderia ser feito, já que na sociedade capitalista o capital seria tão importante quanto o

trabalho na formação dos valores. Esta separação orgânica empreendida por Croce,

conscientemente ou não, distorce a elaboração teórica marxiana da teoria do valor, segundo

a qual capital e mercadoria constituem-se fundamentalmente por relações sociais cuja base

orgânica é exatamente a extração de sobretrabalho. De modo que Marx não estaria

“excluindo” um suposto papel do capital na formação do valor senão que, exatamente ao

contrário, estaria a um só tempo explicando a própria formação do capital.

Croce reitera, no trecho acima, a alusão à “comparação elíptica” supostamente

efetuada por Marx com uma sociedade não existente. Julgando identificar o momento n’O

Capital em que tal comparação seria confessada por Marx, sugere Croce:

Reflexione-se sobre o trecho em que Marx diz que a natureza do valor não pode aparecer claramente senão numa sociedade em que “o conceito de igualdade humana alcançou a firmeza de uma convicção popular”; e assim também as observações acerca dos conceitos de Aristóteles (CROCE, 1948, p.46).

Croce refere-se exatamente ao seguinte trecho d’O Capital:

84

O segredo da expansão do valor, a igualdade e a equivalência de todos os trabalhos, porque e na medida em que são trabalho humano em geral, somente pode ser decifrado quando o conceito de igualdade humana já possui a consciência de um preconceito popular. Mas isso só é possível numa sociedade na qual a forma mercadoria é a forma geral do produto do trabalho, por conseguinte também a relação das pessoas umas com as outras enquanto possuidoras de mercadorias é a relação social dominante (MARX, 1988 a, p.62).

O argumento croceano da “comparação elíptica” supõe que Marx considera uma

sociedade onde a igualdade humana estaria “suposta e afirmada”, e transportaria tal

consideração, de maneira artificiosa, para a sociedade capitalista, para daí sacar os

conceitos de sobretrabalho e mais-valia baseados na injustiça suposta dessas que seriam

apenas hipóteses. A citação do trecho acima d’O Capital deixa claro que Marx não está

supondo nenhuma sociedade abstrata, mas refere-se a todo o momento apenas à formação

social capitalista. De outra forma, qual seria esta sociedade em que “a forma mercadoria é a

forma geral do produto do trabalho”, ou em que “a relação das pessoas umas com as outras

enquanto possuidoras de mercadorias é a relação social dominante”? Se, de fato, Marx se

refere a um momento em que o “conceito de igualdade humana já possui a consciência de

um preconceito popular”, não pode estar se referindo senão ao momento crítico da

formação social capitalista, então completamente desmascarada por aquela consciência

popular, o momento em que a extração de sobretrabalho apareceria clara e definitivamente

à massa dos trabalhadores.

O Capital, para Croce, seria obra abstrata cujas categorias não se encontrariam

concretizadas como tal em nenhum lugar do mundo. Não seria um tratado de economia em

geral, mas restringir-se-ia a uma particular forma econômica, qual seja o capitalismo.

Segundo ele, a proposição a partir da qual Marx iniciaria sua investigação seria a igualdade

entre valor e trabalho, ou seja, de que o valor dos bens é igual à quantidade de trabalho

socialmente necessário para produzi-los. Porém, afirma Croce que Marx não teria dito

jamais qual ligação teria esta proposição com as leis da sociedade capitalista, ou qual papel

desempenharia ela na investigação científica, e qual seu significado intrínseco (CROCE,

1948, p.72).

Croce enfatiza a linha de raciocínio adotada pelo revisionismo da época segundo a

qual a lei do valor de Marx não seria um fato empírico, mas um “fato de pensamento”, ou

seja, um fato lógico, que serviria de auxílio às investigações para se compreender as coisas

85

da vida econômica (Idem, p.73). Na tentativa de fundamentar tal opinião, Croce recorre a

artigo póstumo de Engels em que este teria admitido que a lei do valor de Marx “não podia

ser acusada de inexatidão, mas que era ainda demasiadamente vaga e que convinha expô-la

com maior precisão” (Idem)23. Tratar-se-ia ainda de considerar a teoria de Marx como mero

auxílio para a pesquisa histórica. Considera Croce que Marx procederia com correção

enquanto se situasse nos limites da hipótese. Sugere, entretanto, que seria um equívoco

confundir hipótese com realidade, ou seja, o modo de propor e medir com o modo de ser da

realidade social (Idem, p.75). Procedendo de acordo a esse método, não se pode tirar da

igualdade entre valor e trabalho, portanto, uma máxima de justiça. Tal máxima se fundaria

sobre ordens de consideração absolutamente distintas de uma simples equação econômica.

Para Croce, que, tal como Bernstein, considera a teoria da utilidade marginal em pé de

igualdade “hipotética” com a teoria do valor de Marx, o valor-trabalho deveria ser

explicado como um fato entre outros. “Não é um fato dominante absoluto”, mas também

não é “um fato inexistente ou simplesmente imaginário” (Idem. p.77-78). Aplicando a

premissa da igualdade entre valor e trabalho social à sociedade capitalista, Marx

transformaria tal igualdade em apenas uma parte de si mesma, já que, para tal

procedimento, precisaria abstrair da sociedade tudo que não lhe fosse eminentemente

econômico. Assim que, para Croce, o materialismo histórico não seria nem uma nova

filosofia da história, nem um novo método do pensamento histórico, mas, simplesmente,

um cânone de interpretação histórica. Um cânone de rica sugestão, que poderia ser útil em

alguns casos e inútil em outros (Idem, p.88). Croce arrisca um exemplo de como o

materialismo histórico seria um instrumento de interpretação aproximativa da realidade

histórica: sobre a história como luta de classes, afirma ele que tal luta só ocorreria quando

existissem classes, quando houvesse interesses antagônicos e quando existisse, no seio

dessas classes, consciência desse antagonismo. Dadas as variáveis históricas necessárias

para se fazer valer o “cânone” marxista, estaria dada sua confirmação para determinado

caso específico. Ou seja, com relação a esse caso específico, “a história só é luta de classes

23 Segundo indicação bibliográfica do próprio Croce, a citação teria sido retirada da edição italiana do terceiro volume d’O Capital, de 1896, com prefácio e comentários de Engels, à p.39. As tentativas recorrentes de fundamentar em Engels a argumentação revisionista parecem denunciar certa fragilidade teórica inconsciente do movimento, que buscaria no velho parceiro de Marx a autoridade necessária para suas ideias no seio do partido e entre os trabalhadores. Como se percebe, o oportunismo não seria apenas político, mas teórico também.

86

quando [houver] luta de classes” (Idem, p.93). Croce sugere, por fim, num exercício

especulativo um tanto lamentável, a possibilidade de que os próprios Marx e Engels

aceitassem essa caracterização para sua doutrina (Idem, p.90).

Como já apontado acima, Croce dedica parte de suas reflexões nesse escrito ao

diálogo com Antonio Labriola, o que se tornará mais tarde, como veremos, franca polêmica

e desilusão mútuas. Nesse momento, porém, Croce procura buscar em seu amigo de Roma

pontos de apoio e confirmação para sua própria crítica teórica ao marxismo. Assim, lembra

Croce que Labriola não teria considerado a teoria do valor como um fato empírico ou

simples posição lógica, mas como “premissa típica”, sem a qual todo o resto seria

ininteligível (Idem, p.74). Para Croce, mais fiel à sua própria visão do marxismo enquanto

cânone de pesquisa, o valor-trabalho, com relação à sociedade capitalista nas indagações de

Marx, teria mais o papel de “termo de comparação”, de “medida”, de “tipo”. De toda

forma, Croce insinua que Labriola também inclinar-se-ia a aceitar o materialismo histórico

como “cânone” (Idem, p.95), já que distinguiria o materialismo enquanto interpretação da

história e enquanto concepção geral da vida e do mundo. Para Croce, todas as leis

científicas possuiriam um caráter abstrato. Não haveria, assim, um ponto de passagem entre

o abstrato e o concreto justamente porque o abstrato “não seria realidade” (Idem, p.106). O

abstrato seria um “esquema de pensamento”, um “modo de pensar”. O conhecimento de

tais leis possuiria a função de esclarecer nossa percepção do real, mas não poderia jamais

converter-se na própria percepção (Idem). De acordo com Croce, seria com tais intuições

em mente que Labriola teria se mostrado insatisfeito com a denominação de “socialismo

científico”, propondo sua substituição para “comunismo crítico”.

Detenhamo-nos agora sobre a questão de saber se, para Croce, o problema moral

possuiria alguma relevância na obra de Marx. Segundo ele, o problema das “máximas

éticas”, com o qual teve que lidar a obra maquiaveliana, seria de natureza semelhante ao

que se apresentaria então para a obra de Marx (CROCE, 1948, p.110), ou seja, uma questão

fora de lugar. Tanto Maquiavel quanto Marx não possuiriam como proposta teórica o

estudo dos pressupostos éticos ou da filosofia moral vigente em seus respectivos contextos

históricos, mas sim com o funcionamento objetivo das realidades política e social de suas

respectivas sociedades. De todo modo, Croce identifica a educação política do proletariado

87

por meio de seus jornais, associações, sindicatos e congressos como sendo, ao mesmo

tempo, educação moral, aquisição de novos valores morais (Idem, p.111).

Sustenta Croce que as conclusões de Marx e Engels em relação ao papel da moral

nos movimentos sociais e com relação ao método de educação do proletariado não

conteriam nenhuma contradição com princípios éticos gerais (Idem,p.112).

Definitivamente, porque “suas opiniões pessoais acerca dos princípios da ética não

adquiriram em suas obras uma forma cientificamente elaborada” (CROCE, 1948, p.112).

Mesmo assim, Croce não descarta de maneira absoluta a possibilidade de se levantar

questões e problemas de cunho moral na obra de Marx e Engels: “A análise [marxiana]

apresenta os princípios fundamentais e diretivos da moral, que originam problemas que

podem ser, isto sim, diversamente resolvidos” (Idem, p.113). Note-se aqui que o que Croce

ainda considera como uma possibilidade secundária, tanto Bernstein quanto Sorel,

sobretudo este, tomarão como elemento central de suas teses sobre o caráter jurídico da luta

socialista.

Há ainda outros temas em que sugestões críticas de Croce aparecerão,

coincidentemente ou não, desenvolvidas no livro de Bersntein As premissas do socialismo e

as tarefas da socialdemocracia, publicado dois anos depois (1899). Por exemplo, a questão

da “concentração da propriedade privada em poucas mãos”; a desacreditada tese, segundo

Croce, da “lei férrea dos salários”24; e, enfim, a crítica da proposição segundo a qual o

proletariado seria o herdeiro da filosofia clássica alemã (CROCE, 1948, p.113).

Para Croce, a suposta e anunciada “dissolução do marxismo” em sua época poderia

ser muito benéfica se significasse, no fim das contas, “uma rigorosa revisão crítica do

mesmo” (Idem), expressão um tanto ambígua se considerarmos como fato óbvio que uma

“revisão crítica rigorosa” devesse significar exatamente o revigoramento de determinado

24 Embora Croce chame de “lei férrea”, a rigor chamava-se “lei de bronze do salário”, era de autoria de Lassalle e confundiria, segundo Marx em sua Crítica ao Programa de Gotha, valor – ou preço – do trabalho com valor – ou preço – da força de trabalho e cuja essência consistiria em que o operário receberia sempre o mínimo de salário possível devido à constante abundância de operários. Cf. Karl Marx. Crítica ao Programa de Gotha. In: MARX, K., ENGELS, F. Textos. São Paulo: Ed. Sociais, 1975, p.236 (O programa de Gotha já continha em germe as teses reformistas e revisionistas. A socialdemocracia já nasce, podemos assim dizer, revisionista. E Marx é, por meio desse texto, o primeiro a criticá-la. As passagens em que Marx critica o Programa pelo abandono da questão da luta de classes, pela reivindicação do Estado como responsável pela educação pública e de impostos progressivos conforme à renda são alguns dos indícios do caráter estrategicamente reformista do Programa de Gotha).

88

sistema teórico e não sua dissolução. De todo modo, os principais traços da reflexão de

Croce até então em relação ao materialismo histórico resumir-se-iam na concepção da

economia marxista enquanto economia sociológica comparativa, que, abstraindo outras

dimensões, trataria das condições do trabalho nas sociedades; a compreensão do

materialismo histórico como “cânone” de interpretação histórica; finalmente, a “negação da

intrínseca amoralidade ou da intrínseca anti-eticidade do marxismo” (CROCE, 1948,

p.114).25

Para Croce, embora o materialismo histórico não pudesse ser considerado como

ciência, ele possuiria uma grande importância em seus ensinamentos de como penetrar na

chamada “realidade efetiva da sociedade”. Por tal capacidade, Croce confessa espanto por a

ninguém ter ocorrido até então classificar Marx como o “Maquiavel do proletariado” (Idem,

115). De todo modo, alerta Croce para o fato de que, se a nenhuma ciência da sociedade

seria dado conter os elementos de um programa social, e muito menos ao marxismo, que

ele não considera uma ciência, também a prática política marxista não poderia estar, ao

menos totalmente, contida num conjunto de “princípios gerais” (Idem). Sustenta Croce que

as contingências e complicações da história não podem encontrar categorias teóricas

prontas para a aplicação. Na continuação da obra científica de Marx, os marxistas teriam

caído, por vezes, num dogmatismo “bem pouco elogiável” (Idem, p.116). Conclui Croce

que a continuação política seria bem mais difícil que a primeira, e estaria portanto mais

sujeita a perverter-se “num dogmatismo de péssimos efeitos, qual seja o dogmatismo

político” (Idem). Seria contra tais dogmatismos que estariam empenhados, segundo Croce,

“conspícuos marxistas”, como “Kautski e Bernstein na Alemanha, Sorel na França e

Labriola na Itália” (Idem).

Como teria agido o revisionismo de Croce na assimilação do marxismo na Itália?

Para Santarelli (1977, p.71), tal influência se teria caracterizado primeiro por uma ação de

crítica, já então externa ao movimento socialista, que obrigaria à réplica de Antonio

Labriola (SANTARELLI, 1977, p.71). Aquela ação de crítica teria feito com que os

socialistas italianos perdessem sua confiança no que seria o “conteúdo científico” do

25 Croce desenvolveu esta análise primeiramente na revista francesa Le Devenir Social. Cf. Benedetto Croce. Essai d’interprétation et de critique de quelques concepts du marxisme. Le Devenir Social, 4e anné, n.3, mars 1898, p.248.

89

marxismo. Em segundo lugar, a crítica croceana teria exercido uma influência direta sobre

a juventude intelectual, que dataria da fundação de sua revista La Critica (novembro de

1902) e que, misturada às diversas correntes pragmatistas que participariam do chamado

“renascimento do idealismo”, teria repercussão junto à juventude socialista atuante nos

campos político e sindical (Idem). Finalmente, na segunda década do século XX, Croce se

teria transformado num pensador antidemocrático e antissocialista e utilizado tudo quanto

havia assimilado do materialismo histórico, adentrando assim no que seria uma sua nova

fase histórica pessoal. Nesta nova fase, o revisionismo cuidadoso e “científico” de 1896-

1899 tornar-se-ia instrumento de conservadorismo político e social. Croce, assim, revisaria

os resultados de seu próprio amigo Antonio Labriola e chegaria a proclamar inclusive a

“morte do marxismo”, em texto de polêmica com aquele (Idem).26

Segundo Santarelli, assim, uma linha “involutiva” caracterizaria o pensamento

croceano da segunda fase em relação à primeira, ou seja, a passagem do revisionismo

crítico ao conservantismo (SANTARELLI, 1977, p.71). Tal passagem teria sido um salto

de qualidade, que se verificaria entre 1911 e 1921, quando Croce iria então “acertar as

contas” com o marxismo de sua anterior experiência juvenil, assumindo diante desta um

posicionamento substancialmente negativo (Idem). De toda forma, Croce, que teria

participado de maneira ativa do movimento de estudo e “revisão” do marxismo, depois de

um breve momento de adesão entusiasmada ao socialismo, teria retomado seus hábitos de

estudioso bastante distante das questões práticas imediatas (Idem, p.73).

Ao longo daqueles anos, todavia, o movimento operário e socialista teria

desenvolvido a consciência de uma situação social nova, de uma realidade que teria

escapado às especulações idealistas e contemplativas, exatamente e ao mesmo tempo em

que o amadurecimento do pensamento de representantes do movimento operário como

Antonio Gramsci distinguiria de forma precisa a relação existente entre o pensamento de

Croce e o marxismo (SANTARELLI, p.72). O marxismo restabeleceria, nesta

oportunidade, sua autonomia. Polemizando com Croce, analisando seu revisionismo,

demonstrando suas contradições internas e o “absurdo” de suas conclusões, Gramsci teria

26 Cf. Benedetto Croce. Come nacque e come morì il marxismo teórico in Italia (1895-1900). In: LABRIOLA, Antonio. La concezione materialistica dela storia. Bari: Gius. Laterza & Figli, 1938, p. 267-312. Faremos alusão a esse texto adiante.

90

desenvolvido nesse sentido (exatamente o da autonomia do pensamento marxista) os

elementos já apontados anteriormente por Antonio Labriola, enquanto ao mesmo tempo

assimilaria e reelaboraria os ensinamentos revolucionários de Lênin (Idem). A abordagem

mais precisa do pensamento de Gramsci, no entanto, será tratada à frente neste trabalho.

Na época de sua colaboração para a revista francesa Le Devenir Social, Antonio

Labriola depositaria esperanças em que também Croce pudesse atuar como um pioneiro do

marxismo teórico na Itália (GUSTAFSSON, 1975, p.264). Assim, ele mesmo, Croce e

Sorel poderiam formar o que denominava de forma bem humorada a “santíssima trindade”

do marxismo latino. Porém, segundo Gustafsson (Idem), ainda que Labriola acreditasse ter

encontrado um colega marxista capaz de tornar-se seu sucessor, Croce mesmo já não

parecia considerar as coisas assim. No ensaio em que, a pedido de Labriola, critica as teses

supostamente marxistas do professor Achille Loria, Croce já expressaria dúvidas sobre a

validade das teorias de Marx, mais especificamente quanto à validade da teoria do valor

(Idem).27 Para Croce, a importância fundamental do marxismo residiria em que dele poder-

se-iam extrair elementos para tornar a filosofia mais completa e assim compreender melhor

a história (Idem). A ruptura definitiva de Croce com o marxismo ocorreria após a

publicação em Le Devenir Social, entre fevereiro e março de 1898, do artigo Para a

interpretação e a crítica de alguns conceitos do marxismo. O texto fora de fato publicado

originalmente em francês naquela revista, e Bernstein o teria lido ali (GUSTAFSSON,

1975, p.265).

Sobre este artigo, escreverá Croce mais tarde que nele estaria retomando as soluções

as quais já havia anteriormente chegado sobre o materialismo histórico e a teoria do valor,

enriquecendo-as com muitas outras questões (CROCE, 1938, p.298-299). Negaria ali todas

as teses filosóficas e científicas de Marx, reconhecendo nele principalmente não um

filósofo ou cientista, mas, sobretudo, um homem de grande talento político e gênio

revolucionário, que teria conferido ímpeto e consistência ao movimento operário, armando-

o de uma doutrina historiográfica e econômica elaborada exatamente para ele (Idem,

p.299). Como observa Gustafsson, (1975, p.265), este artigo de Croce teria sido escrito em

resposta ao terceiro ensaio do livro de Labriola Discorrendo di filosofia e di socialismo, na

27 Cf. Benedetto Croce. Les théories historiques de M. Loria . Le Devenir Social, 2e anné, n.11, novembre 1896, p.890.

91

verdade uma coletânea das cartas enviadas por Labriola a Sorel entre 1897 e 1899. O

terceiro “ensaio” em questão é na verdade uma carta de maio de 1897, em que Labriola

critica o que considerava serem interpretações “simplistas” da teoria do valor, que

conduziriam a juízos equivocados da teoria de Marx (LABRIOLA, 1969, p.56). Esse debate

começaria a estabelecer as distâncias teóricas e pessoais entre Croce e Labriola

(GUSTAFSSON, 1975, p.265).

Para o Croce revisionista, o socialismo não seria o resultado inexorável do

desenvolvimento do capitalismo (Idem, p.268). Em vez disso, Croce referir-se-ia à

importância histórica dos pontos de vista morais. Pretenderia interpretar como categorias

éticas não apenas o movimento socialista em sua diversidade, como também os enunciados

teóricos do marxismo (Idem). Para Croce, seria necessário estabelecer um ponto de vista

analítico que não tivesse relação com nenhuma teleologia ou metafísica, que não

estabelecesse nenhum vínculo necessário entre a concepção da história e o socialismo. Daí

negar à concepção materialista da história as qualidades de filosofia da história, de teoria da

história e inclusive de método histórico, admitindo-a apenas como algo que “completava o

arsenal do historiador” (Idem, 269).

Como lembra Gustafsson (1975, p.269), O Capital seria, para Croce, uma pesquisa

abstrata. O filósofo napolitano acredita que Marx investigava naquela obra uma sociedade

capitalista que não existiria historicamente, como a França ou a Inglaterra, mas seria uma

sociedade ideal e formal, deduzida de certas hipóteses que nunca teriam podido comprovar-

se na história (Idem). Também este seria o motivo pelo qual as categorias marxianas não

poderiam ser encontradas em nenhum lugar como realidades vivas. Tal interpretação, que

também se encontraria em outros filósofos idealistas da época, teria como base a

incompreensão, por parte de Croce, da dialética entre o concreto e o abstrato e entre o

lógico e o histórico, ou seja, sua incompreensão da ideia de que o abstrato poderia derivar

do concreto e o teórico do histórico, assim como ocorreria com a dialética no marxismo

(GUSTAFSSON, 1975, p.270). Daí que nada de novo acrescentaria Croce ao seu

tratamento do materialismo histórico. Em sua interpretação, como se sabe, o materialismo

histórico reduzir-se-ia a uma mera regra de interpretação histórica, ou “cânone”. A

importância de tal regra residiria em que a atenção se voltava à base econômica da

sociedade, com a qual se tornariam mais inteligíveis as formas e transformações sociais

92

(Idem, p.271). Essa regra ou cânone seria um “fio condutor” e teria uma origem “puramente

empírica” (Idem).

Croce teria, contudo, consciência da insuficiência de suas conclusões, e tentaria

ainda encontrar um princípio explicativo que servisse de base para sua interpretação da

história (Idem, p.273). Identificaria tal princípio com a “constante ética” kantiana, o

chamado “imperativo categórico”. Assim que, para Croce, a luta do movimento operário

socialista tornar-se-ia essencialmente uma “luta moral” (Idem). Sua crítica do socialismo

marxista resultaria numa defesa cautelosa do socialismo ético que, sob a influência da

filosofia neokantiana, delineava-se no seio do movimento operário socialista. Para Croce o

marxismo estaria essencialmente superado (Idem).

Segundo Gustafsson (1975, p.274), entre os três pensadores italianos envolvidos no

debate revisionista (Labriola, Croce e Saverio Merlino), Croce seria o que mais influência

teria exercido sobre o pensamento de Bernstein. Os inspiradores italianos de Bernstein

teriam fornecido importantes aportes às suas concepções, teriam “codeterminado” a forma

específica da concepção bernsteiniana reforçando-a, além disso, sobre a base já

previamente constituída na socialdemocracia alemã. Tais aportes e codeterminação referir-

se-iam, muito particularmente, a Croce (Idem).

A influência de Croce ter-se-ia manifestado em Bernstein pela primeira vez em seu

artigo O momento realista e o momento ideológico no socialismo, publicado em 1898 como

um dos artigos que comporiam a série Problemas do socialismo, publicados entre 1896 e

1898 no periódico Die Neue Zeit, revista teórica do partido socialdemocrata alemão dirigida

por Kautsky (Idem).28 Bernstein teria redigido o texto acima entre fevereiro e março de

1898, ou seja, paralelamente à sua leitura do artigo de Croce de crítica do marxismo que

havia sido publicado na revista francesa Le Devenir Social. O artigo de Bernstein seria

exatamente uma crítica ao marxismo a partir de uma perspectiva neokantiana (Idem). Da

mesma maneira que Croce, Bernstein combateria a utilização do conceito de “científico”

com relação ao socialismo moderno. No entanto, a influência de Croce apareceria mais

claramente nos esforços de Bernstein em guiar pelos caminhos da Ética o marxismo e as

tendências do movimento operário socialista. Com este objetivo, Bernstein utilizaria 28 A série de artigos está compilada na edição em espanhol da editora Siglo Veintiuno de Las premissas del socialismo y las tareas de la socialdemocracia, de 1982. Cf. referências bibliográficas ao final.

93

inclusive os “mesmos exemplos que Croce” (Idem). Seria importante observar, no entanto,

que as concepções mesmas de Croce com relação a essa questão não seriam originais, mas

procederiam da filosofia neokantiana alemã da época (Idem).

Tratar-se-ia, tanto para Croce quanto para Bernstein, de colocar toda a ênfase nos

fatores ideológicos e, entre estes, em primeiro lugar nos fatores éticos (GUSTAFSSON,

1975, p.275). Para além desses fatores, contudo, haveria também a concordância entre as

teorias do valor defendidas por Croce e Bernstein. A forma, o modo segundo o qual

Bernstein teria agrupado e exposto as diferentes partes integrantes de sua argumentação

remeteriam fortemente a Croce (Idem). Isto se manifestaria, por exemplo, nas afirmações

de Bernstein, em seu As premissas do socialismo de que as categorias da teoria marxista

seriam “abstrações”, argumentação idêntica à utilizada por Croce em seu Materialismo

histórico e economia marxista (Idem). Bernstein teria podido encontrar em Croce também a

ideia de que a teoria do valor, da mesma forma que toda a teoria econômica de Marx,

serviria para o estudo de uma sociedade produtiva abstrata (Idem, p.276), ao que parece

uma alusão à tese da “comparação elíptica” de Croce. Assim também ambos seriam

contrários ao conceito de mais-valia, por considerá-lo, por um lado, uma abstração e, por

outro, um fato típico (Idem, p.278). A diferença aqui estaria somente em que, enquanto

Croce desenvolveria tal ideia analisando a produção do valor pelo trabalho, Bernstein o

faria analisando a produção da mais-valia pelo trabalho (Idem). Por fim, Bernstein teria

encontrado sustentação em Croce para sua opinião segundo a qual a teoria marxista do

valor-trabalho e a teoria da utilidade marginal deveriam ser abordadas como descrições

complementares do sistema de trocas da sociedade capitalista (Idem).

Seria possível afirmar, assim, que Croce teria significado um apoio para a

empreitada de Bernstein de reinterpretar o marxismo segundo um espírito idealista, ou mais

exatamente neokantiano (GUSTAFSSON, 1975, p.279). Croce teria servido para mediar ou

reforçar a ideia de Bernstein de que o prefácio de Engels de 1895 à A Luta de classes na

França poderia significar um abandono da concepção materialista da história enquanto

teoria unitária (“monista”), ao mesmo tempo que um passo para uma teoria positivista

realista (Idem). Croce e Bernstein coincidiriam na opinião de que o feito mais significativo

da concepção materialista da história residiria no fato de haver incluído a estrutura

econômica na explicação da história (Idem). Quanto a suas abordagens da teoria econômica

94

do marxismo, Bernstein ter-se-ia apropriado antes de Croce, ou paralelo a este, de uma

parte dos elementos conceituais sobre os quais Croce teria construído seu pensamento.

Porém, o modo e a forma que Bernstein teria utilizado para combinar tais elementos

remeteriam essencialmente a Croce (Idem).

No post-scriptum à edição francesa de seu Discorrendo di socialismo e di filosofia,

redigido em 10 de setembro de 1898, Antonio Labriola cuidou de elaborar uma resposta ao

texto de Croce de crítica ao marxismo publicado meses antes na Le Devenir Social.

Labriola, procurando já a partir desse momento distanciar-se teoricamente de Croce e

tomando todos os cuidados para evitar ser inserido entre os revisores do marxismo, assim

começa sua resposta:

Ainda que aquele texto pareça concebido (e assim o diz o autor na página 3) como uma “resenha livre” de meu Discorrendo29, o fato é que, à parte muitas observações úteis de metodologia histórica e de algumas notas sagazes de tática política, contém enunciados teóricos que não tem nada a ver com minhas publicações e opiniões; são, aliás, diametralmente opostas às minhas ideias. (...) Deixo com prazer ao livre resenhador a liberdade de suas opiniões, sempre que estas não apareçam aos olhos dos leitores como complemento das minhas e por mim aceitas (LABRIOLA, 1969, p.187).

Para Labriola, não passariam de “distinções escolásticas” os procedimentos de

Croce para estipular a existência de uma “sociedade real” e uma “sociedade econômica”, ou

entre a “ciência pura” (provavelmente Labriola se refira aqui ao conceito de “economia

pura” de Croce, para quem não seria possível estipular a existência da mais-valia) e a

“ciência aplicada”, entre o homem “œconomicus” e o homem “moral”, enfim, entre “ser e

dever ser” (LABRIOLA, 1969, p.188). Pergunta-se Labriola, em certo tom de indignação,

como Croce poderia ter concebido a ideia de uma “economia pura”, para além de todas as

economias que se teriam sucedido na história, que sozinha forneceria a chave de

interpretação para todas aquelas formas de “prosaica experiência” (Idem). E por meio de

uma ironia de óbvio significado, conclui: “[Seria a “economia pura”] um animal-em-si, para

além de todos os animais visíveis e aparentes?” (Idem, p.189).

Labriola discorda, evidentemente, da aceitação que Croce faz da teoria da utilidade

marginal, segundo a qual o valor e, por conseguinte, o lucro, proviria do grau final de 29 Cf. Benedetto Croce. Essai d’interprétation et de critique de quelques concepts du marxisme. Le Devenir Social, 4e anné, n.2, février 1898, p.99.

95

utilidade dos bens presentes e futuros. Para Labriola, o que caracterizaria Marx como um

pensador efetivamente crítico e inovador estaria em seus esforços para buscar a produção e

a distribuição da mais-valia justamente nas relações de produção da sociedade (Idem,

p.190). Labriola refuta as intenções de Croce de complementariedade entre as explicações

da escola utilitarista e da teoria do valor de Marx. Para Labriola, Croce ver-se-ia na

obrigação de construir um Marx diferente do real, para que seus princípios pudessem

resultar conciliáveis com os princípios “hedonistas” (Idem, 190).

Segundo Labriola, a escola utilitarista representaria, para Croce, esta “economia

pura” cujas leis imutáveis, a-históricas, seriam as vigentes na sociedade capitalista “real”,

em contraposição ao que Croce considera como a “economia marxista” que estudaria a

“sociedade abstrata dos trabalhadores” (LABRIOLA, 1969, p. 192). Para Labriola, tal

“economia pura” não seria, nem em suas premissas nem em seus métodos, senão uma

variante teórica da interpretação “dos mesmos dados empíricos da vida econômica

moderna”, que teriam constituído sempre o objeto de estudo das demais escolas (Idem). O

que significa, poderíamos considerar, que não possuiria nada de inovador e nem de original

com relação a economia clássica burguesa e conservadora. Para Labriola, entretanto, a

diferença em relação à escola clássica estaria na tendência a um grau maior de abstração e

generalização (Idem). Tentaria, a escola utilitarista, deixar mais em evidência os estados

psíquicos que precederiam e acompanhariam os atos e as relações econômicas; usaria

excessivamente dos expedientes matemáticos (Idem); utilizaria com bastante frequência

exemplos de “robinsonadas, disfarçadas por um véu de sutil psicologia individualista”

(Idem, p.193); tomaria os pressupostos liberais atuais de maneira extrema, como a liberdade

de trabalho e a liberdade de concorrência levadas hipoteticamente ao máximo. Tratar-se-ia,

enfim, de uma interpretação forçada e unilateral da experiência real (Idem). Além do mais,

Labriola se insurge diante da possibilidade de “meros desejos” acrescentarem valor ao que

quer que seja, lembrando as metáforas de Marx sobre a mercadoria constituir-se em

“gelatina de trabalho humano”, ou “trabalho cristalizado”, a qual conteria uma parte do

próprio trabalhador, suas energias mecânicas dirigidas por sua vontade, por sua atenção

voluntária (LABRIOLA, 1969, p.198).

96

Dessa forma e a partir dessa crítica, Labriola se afasta em definitivo de Benedetto

Croce e se firma como opositor do movimento revisionista que se desenvolvia na Europa e

possuía como carro chefe a socialdemocracia alemã.

2.5.3 Henri De Man

De agitada vida política e pessoal, desde a militância estudantil e formação

intelectual na Alemanha do começo do século XX até às acusações de colaboracionismo

com o ocupante nazista no final dos anos 1940, Henri De Man foi dos principais

representantes francófonos do revisionismo socialista.30 A base de sua teoria estaria

fundamentalmente calcada na ideia de “socialismo ético”, o que, de maneira geral, não

apresentava grande discrepância em relação a todo o resto do movimento europeu de

revisão do marxismo. De Man nos mostra, por seus esforços intelectuais e pela atenção com

que é rechaçado por pensadores como José Carlos Mariátegui e Antonio Gramsci, como

veremos adiante, a força do pensamento revisionista na Europa já de fins dos anos 1920,

praticamente três décadas e uma guerra mundial depois de se ter iniciado oficialmente pela

pena de Bernstein.

Escrevendo em dezembro de 1926, De Man sugere que a questão da renovação do

pensamento socialista a partir de uma impulsão claramente oposta aos fundamentos

filosóficos do marxismo já se apresentava ou se apresentaria em breve em todos os lugares,

mas não da mesma forma e nem com a “mesma urgência” (DE MAN, 1929, p.VII).

Motivado por algumas decepções pessoais e aparentemente atraído pelo surgimento da

psicanálise, detalhe de que nos ocuparemos mais adiante, assim justifica De Man seu

projeto intelectual:

A modificação dolorosa das razões que, de um antimilitarista e internacionalista inveterado fizeram um combatente engajado até o fim na guerra contra a Alemanha, minha decepção diante da derrota da Internacional, a revelação diária do caráter instintivo dos impulsos das massas, que inoculavam até na classe operária socialista o vírus dos ódios nacionais, o fosso cada vez mais profundo que me distanciava de meus antigos correligionários marxistas convertidos ao bolchevismo, tudo isso me torturou de escrúpulos e de dúvidas (...). Eu me distanciava da concepção determinista e econômica do socialismo para me aproximar de uma concepção que colocasse em primeiro plano o homem como sujeito de uma reação psicológica (DE MAN, 1929, p.XII).

30 Cf. arquivos da Université du Quebec, em http://classiques.uqac.ca/classiques/de_man_henri/de_man_henri_photo/de_man_henri_photo.html, consultado em 15/01/11.

97

Sua oposição aos princípios fundamentais do marxismo seria assim manifestada

pela aplicação, segundo autor, de um método de interpretação dos fatos sociais que partiria

de premissas filosóficas “completamente diferentes”. O marxismo passava a ser, para ele,

uma das inúmeras formas históricas do pensamento socialista das quais o importante seria

desvendar as “causas psicológicas” (DE MAN, 1929, p.XIII). Sustenta o socialista belga,

referindo-se aos eventos que levaram à Grande Guerra, que o marxismo não teria mostrado

aos socialistas a via que os poderia ter conduzido ao cumprimento de seu “dever moral para

com a humanidade”. Para De Man, o marxismo não teria compreendido de maneira

suficiente como fazer isso, daí pesar sobre ele uma “dívida de sangue” (DE MAN, 1929,

p.XIII). Em resumo, De Man parece jogar à soleira do marxismo os cadáveres da Grande

Guerra.

De Man anuncia então, por meio de seus esforços, a redução do marxismo a um

valor histórico relativo e, sobretudo, a negação do marxismo enquanto valor educativo para

o momento histórico em questão. Como “marxismo” o autor considera o conjunto dos

elementos da doutrina de Marx que continuariam a viver no movimento operário socialista

sob a forma de julgamentos de valor, de símbolos afetivos, de motivos instintivos ou

habituais, de desejos coletivos, métodos de ação, princípios e programas (DE MAN, 1929,

p.XV).

De Man explica a adaptação dos socialistas à sociedade burguesa como uma

necessidade inescapável ao exercício parcial do poder, tal como os representantes do

movimento operário nos parlamentos não teriam até então podido evitar. De Man procura

demonstrar como cada operário eleito para o parlamento, para um conselho municipal, para

um corpo administrativo qualquer, ou seja, cada membro do partido que se torne

funcionário com a missão de consolidar a influência socialista deve, para poder cumprir

suas funções, adaptar-se ao gênero de vida de seu novo ambiente (Idem, p.204).

Dessa forma, no começo de seus “mandatos”, cada intervenção apareceria como

oposição puramente propagandista, mas chegaria sempre um momento em que a oposição

se tornaria forte a ponto de suas próprias reivindicações ficarem obstaculizadas se a

responsabilidade do poder não fosse assumida ao menos parcialmente pelos representantes

98

operários. “O comunismo”, afirma De Man, “escapará tão pouco desse destino quanto o fez

o socialismo”, referindo-se aos bolcheviques (Idem). Da mesma forma o autor se refere ao

movimento cooperativo, que não teria condições, por mais que se organizasse em cadeias

de produção e consumo, de escapar às limitações determinantes do meio social de mercado

no qual estaria inserido.

Em todos os países com movimento operário desenvolvido ter-se-ia formado assim

uma camada superior de funcionários, que, por seu próprio exemplo, orientariam as massas

que representariam e as conduziriam em direção às normas da cultura burguesa. O dirigente

operário se tornaria, assim, o intermediário entre a massa e a civilização burguesa (DE

MAN, 1929, p.206). Para De Man, tais consequências seriam um efeito involuntário, não

previamente planejado por aqueles dirigentes. Porém, a submissão do movimento e de seus

dirigentes a uma inelutável lei de evolução naquele sentido seria cada vez mais evidente.

Esta lei, segundo ele, faria com que, em longo prazo, todos os meios empregados para a

realização de um objetivo ainda distante se tornassem objetivos em si mesmos. Segundo a

natureza dos meios, estes novos objetivos poderiam, inclusive, tornar-se muito diferentes

do objetivo buscado originalmente (Idem).

De Man, a seguir, apresenta a explicação de cunho psicológico que orientaria sua

nova concepção dos movimentos socialistas. Segundo ele, toda esta metamorfose entre

meios e objetivos finais seria um fenômeno que estaria baseado numa “particularidade

psicológica” que ele classifica de “heterogeneidade dos objetivos”. Tal particularidade se

manifestaria através de um desvio das motivações, causado pela influência das atividades

que aquelas próprias motivações teriam desencadeado (Idem). Nos casos em que, como em

todos os movimentos de massa, motivações de natureza diferente ou mesmo opostas

atuariam ao mesmo tempo, poderia ocorrer que, num prazo maior, o “centro de gravidade”

das motivações se deslocasse de um “polo psicológico em direção a outro”. O que

favoreceria tal “evolução” seria o fato de ela permanecer em grande parte alheia à atenção

consciente e produzir-se, fundamentalmente, nas “profundezas do subconsciente” (Idem).

Como lembra De Man, é necessário o elemento “poder” para realizar os ideais

políticos e sociais pelos quais existe entusiasmo. Para alcançar este poder, que em princípio

é concebido apenas como “meio”, se desenvolveria a motivação especial da “vontade de

99

poder”. Então, quando tal poder é conquistado, torna-se maior o esforço para conservá-lo e

para aumentá-lo. Finalmente, o que teria sido o objetivo inicial pelo qual se almejara o

poder serviria apenas como ilusão a esconder o fato real de que a vontade de poder, de meio

para se atingir aqueles ideais políticos e sociais, tornara-se na verdade o próprio objetivo

final (Idem, p.207).

Para De Man, a identidade entre meios e fins estaria onde as mesmas motivações

psicológicas se exprimissem em ambos. Por sua vez, o índice mais preciso de tal identidade

seriam as reações emotivas que se refeririam aos fins e presidiriam o emprego dos meios

(Idem, p.209). O efeito de uma política seria determinado não pelas ideias contidas em seu

programa, mas pela qualidade afetiva das motivações que ela representaria ou animaria. As

construções intelectuais que serviriam para justificar os meios pelo fim a ser atingido

obedeceriam à vontade das tendências lógicas e racionais, mas os efeitos psicológicos pelos

quais uma atividade, considerada como meio, transformaria os seres humanos até suas

motivações mais íntimas seriam uma realidade indiscutível e inelutável. Seria impossível,

assim, atingir bons objetivos através de maus meios: realizar a liberdade pelo despotismo, a

democracia pela ditadura, a não violência pelo emprego da violência (Idem).

Dessa forma, De Man não acredita que a ditadura do proletariado poderia abrir

caminho para a construção de uma sociedade sem classes. Sugere que novos antagonismos

de classe tomariam o lugar dos antigos (Idem, p.210). Afirma que já existiria, inclusive,

uma quantidade de conflitos sociais de interesses outros que aqueles apenas de patrões e

empregados. Seria ingênuo da parte do marxismo acreditar na determinação das motivações

psicológicas dos indivíduos a partir de fins racionalmente concebidos (Idem). De Man

utiliza o exemplo concreto da Rússia, aplicando contra o jovem país socialista suas críticas

revisionistas baseadas nessa perspectiva psicológica. Afirma que uma ditadura do

proletariado já não se justificaria por definição, pois o destino de qualquer ditadura seria a

tentativa constante para sua perpetuação por parte dos indivíduos investidos de poder.

Referindo-se ao regime russo, sugere que, enquanto a ditadura seguiria sendo justificada

como necessária para a própria consolidação da revolução, os homens que a exerceriam não

seriam mais, com o tempo, os mesmos que a começaram. Seus sucessores seriam homens

novos, crescidos num ambiente intelectual diferente daquele onde teriam nascido os ideais

originais da revolução. O que seria realmente apenas um “meio” para os conquistadores

100

originais do poder revolucionário, ter-se-ia tornado um objetivo final para seus sucessores

administrativos. De Man incita, por fim, a comparar “a atmosfera do regime burocrático

atual no Kremlin de Moscou com o período de efervescência entusiástica que levara Lênin

ao poder” (Idem, p.213).

Para De Man, pois, uma divergência crescente se manifestaria, ao longo do tempo,

entre uma parte das motivações que sustentariam as atividades do movimento operário e

seus objetivos iniciais. Resultaria daí um deslocamento das motivações que poderia ser

caracterizado como uma transição gradual da mentalidade revolucionária para a

mentalidade reformista (Idem, p.213). As causas desta evolução deveriam ser procuradas,

ao lado dos efeitos psicológicos gerais da ascensão social dos operários sobre as próprias

massas, em primeiro lugar em suas organizações. Seja na cooperativa operária, no sindicato

ou na sua própria imprensa, as vantagens materiais de uma organização, que para os

precursores teriam sido apenas um meio para ganhar as massas a um ideal, ter-se-iam

tornado sua força principal de atração. Diante das massas, à época dos sacrifícios sem

vantagens segue-se a das vantagens sem sacrifício. A partir do progresso das organizações e

das tarefas técnicas que disso decorre, aumentaria o fosso social entre as massas e seus

dirigentes. O dirigente se teria tornado um profissional, e sua atividade um trabalho de

escritório. Consumar-se-ia, assim, a mudança gradual nas motivações iniciais da

organização (Idem).

A crítica inicial que poderíamos fazer ao argumento de De Man é que ele

empreende uma espécie de naturalização do fenômeno que descreve. Há em seu

pensamento uma des-historicização do comportamento dos grupos políticos e movimentos

operários e socialistas, apesar de seu recurso a vários exemplos históricos fornecer a

aparência do contrário. No limite, sugere tacitamente a aceitação de uma essência humana

egoísta. Assim, sua crítica recai em generalizações a-históricas e essencialistas. A questão

da oposição material de classe aparece a todo tempo minimizada por considerações

relativas a motivações subjetivas, psicológicas e emocionais dos agentes.

De tudo isso, então, De Man deduz a passagem necessária da mentalidade

revolucionária para a reformista (Idem, p.216). Para ele, o reformista seria aquele para

quem a reforma, ou seja, a realização cotidiana, imediata e tangível, seria a motivação

101

predominante para a ação. Já as ações do revolucionário seriam dominadas por motivações

escatológicas da transformação radical e absoluta da ordem social. O autor argumenta que

ambas as posições poderiam se juntar num domínio teórico “de fórmula comum”, e conclui

que o que distinguiria uma de outra seria “uma simples diferença de ênfase psicológica”

(Idem). A ênfase numa motivação emocional particular no movimento de massas seria, para

De Man, um fenômeno bem mais essencial que uma mudança de fórmulas teóricas, porque

seria a motivação emocional que determinaria a ação. “Revolucionarismo” e reformismo

seriam, em suma, modos diferentes de reação dos agentes sobre sua própria atividade

social. Ambos os estados de espírito poderiam, em princípio, coexistir num mesmo

indivíduo e num mesmo sistema teórico. Porém, sustenta De Man, na prática teórica dos

movimentos de massas seriam opostos porque, nesse caso, uma das motivações não

poderiam provocar efeitos emocionais e volições senão em detrimento da outra (Idem).

Tudo isso não significaria, para o autor, negar o caráter indispensável da organização como

meio para se atingir um objetivo final, mas constatar que todo movimento intelectual

organizado acaba atingindo um estado de desenvolvimento em que o poder de sua

organização terminaria por se tornar o obstáculo principal para o alcance de seus objetivos

iniciais.

Para De Man, no momento histórico em que escreve, a principal tarefa dos partidos

operários seria velar para que a economia e o Estado, ameaçados que se encontrariam de

diversas maneiras pelas tendências destrutivas desencadeadas pela Guerra Mundial,

permanecessem em condições de funcionamento (Idem, p.227). Segundo de Man, não

haveria alternativa, porque o bem estar da classe operária dependeria em primeiro lugar da

marcha contínua e ordenada da produção, porque o Estado democrático seria um dos

baluartes de sua luta e porque sua tarefa primordial e urgente seria a pacificação do mundo.

Tudo isso, segundo De Man, não poderia ser realizado senão por uma colaboração mais

íntima de todas as forças econômicas essenciais, ou seja, pela reconstrução da economia

mundial capitalista (Idem).

Essas últimas considerações de De Man mostrariam de forma menos velada em que

consistiria a real e concreta diferença entre as posições revolucionária e reformista, para

além de considerações psicologizantes. Essa diferença residiria no fato de que, para o

reformismo, a aliança com frações da burguesia é mais do que uma possibilidade, é uma

102

necessidade. Trata-se mesmo de uma questão estratégica para o pensamento reformista, já

que este não consideraria mais a necessidade da luta pela efetiva superação da formação

social capitalista. Naquele contexto do pós-guerra, sustenta De Man que seria praticamente

impossível à classe operária de qualquer país industrial garantir uma existência decente

sobre a base das forças produtivas existentes, antes de se livrar da situação herdada da

guerra mundial, que impediria o desenvolvimento dessas forças produtivas por conta dos

antagonismos nacionais, e ameaçaria inclusive empregá-los novamente para as finalidades

destrutivas da guerra (Idem, p.228). Para De Man, seria melhor para a classe operária

juntar-se aos capitalistas que estivessem interessados nos mesmos objetivos de reconstrução

e paz mundial. Do ponto de vista do materialismo histórico, a situação à época se

encontraria sob condições exatamente opostas às conclusões de De Man. O

desenvolvimento daquelas forças produtivas, encerrado num regime de acumulação

privada, é que teria engendrado a possibilidade da guerra mundial. Ou seja, não seria o caso

de livrar-se da “situação herdada da guerra”, mas, antes, de livrar-se das relações de

produção que engendraram a possibilidade da guerra mesma. A devastação causada pela

guerra teria legado um campo fértil para ambos os discursos: por um lado, o da necessidade

de superação imediata de um sistema cujo regime de acumulação teria levado à destruição

física de milhões de trabalhadores, além da devastação urbana e rural; de outro, o da

urgência da reconstrução nacional e a imprescindível união de todas as classes sociais para

tal tarefa, um verdadeiro esforço patriótico. Ambos os lados avançaram para o

enfrentamento em armas nos anos que sucederam à Grande Guerra. Como se sabe, à

exceção da Rússia, as incursões revolucionárias foram derrotadas, constituindo-se em

exemplos importantes o “biennio rosso” italiano (1919-1920) e a revolução alemã (1918-

1923).

De Man prossegue em suas justificativas psicológicas para a necessidade e mesmo

evolução dos movimentos socialistas em direção à aliança de operários e capitalistas de um

determinado país com vistas à sua reconstrução e desenvolvimento. Segundo afirma, o

deslocamento das motivações, que ocorreria no tempo sob a forma da evolução rumo ao

reformismo, se acompanharia de uma evolução no espaço que transformaria a motivação

original do cosmopolitismo socialista em social-patriotismo (DE MAN, 1929, p.230).

Segundo sustenta o autor, desde a Primeira Internacional o movimento operário teria

103

sofrido uma diferenciação nacional crescente nas mentalidades e nos métodos, uma

tendência crescente das organizações nacionais em direção à autonomia intelectual e uma

acentuação progressiva das motivações que precipitariam a integração da classe operária de

cada país à comunidade nacional. O marxismo teria, por seu lado, encontrado dificuldades

para compreender a importância do imperialismo como um fato novo, não tendo

conseguido apreender o significado completo do fenômeno devido à ênfase exclusiva que

daria aos conflitos de interesse entre os grupos capitalistas. A importância dos efeitos

políticos, sociais e psicológicos do nacionalismo, sobretudo com relação à mentalidade

operária, teria escapado completamente ao marxismo, segundo o autor (Idem, p.231). O

marxismo não teria compreendido que os antagonismos de interesses econômicos entre os

povos à época do imperialismo afetariam da mesma forma a classe operária dos diferentes

países. Nem todos os interesses dos operários seriam opostos aos de seus patrões, estando

os dois grupos interessados na prosperidade geral de sua indústria.

O autor, dessa forma, atendo-se, sobretudo, às necessidades de reconstrução da

economia europeia do pós-guerra, classifica de social-patriotismo o novo desenvolvimento

dos interesses da classe operária. A partir de então, seria um erro supor a permanência de

um determinado interesse de classe universal contra o sistema capitalista, já que a cada país

se apresentariam necessidades específicas de soerguimento que se caracterizariam muito

mais como interesses nacionais do que como interesses classistas. O marxismo, agora,

cairia no erro de concluir pela unidade universal da vontade política a partir de uma abstrata

universalidade de interesses de classe. Enfim, afirma De Man que a diferenciação nacional

crescente possuiria causas muito mais profundas que simples oposição de interesses (Idem,

p.233). Essas causas profundas estariam relacionadas à capacidade de determinado

fenômeno social gerar vontades políticas a partir de motivações passionais na coletividade

de indivíduos.

A conclusão relativa à viabilidade da aliança de classes De Man a desenvolve,

portanto, ao tratar do que chama de passagem do cosmopolitismo operário ao social-

patriotismo. No entanto, a instabilidade de tal aliança mostrou-se principalmente nos países

derrotados (Itália e Alemanha) ou com um alto custo para a população pelo envolvimento

na guerra (Rússia), todos palcos de radicalização revolucionária por parte expressiva de

suas respectivas classes operárias. De Man utiliza como exemplos de sua tese a reação da

104

classe operária alemã à ocupação do Vale do Ruhr pelas tropas francesas em 1923-1924,

supostamente em defesa do Estado alemão, e a formação da União Soviética, esta a

expressão da “vontade de poder” passionalmente cultivada na classe operária, “vontade de

poder” que se expressaria na formação do novo Estado em seu nome e da nova

nacionalidade (DE MAN, 1929, p.237) (poderíamos responder afirmando que, no primeiro

caso, tratar-se-ia, sobretudo, da resistência operária alemã contra uma ocupação promovida

pela burguesia francesa; no segundo caso, que não se poderia comparar a experiência

revolucionária soviética, que se chocava mortalmente com a burguesia e a aristocracia

russas, com a política socialdemocrata alemã de conciliação de classes no âmbito do Estado

capitalista).

Segundo o autor, a fé inabalável em leis deterministas do desenvolvimento histórico

rumo à revolução causaria sobre os representantes da socialdemocracia uma espécie de

imobilismo e um conformismo quase conservador (De Man, 1929, p.308), que teria sido

demonstrado por ocasião da revolução alemã [1918-1923], iniciada “contra a vontade da

imensa maioria dos dirigentes marxistas” (Idem). É fato, como afirma o autor, que a maior

parte da direção socialdemocrata se posicionara contra a revolução, tendo inclusive

responsabilidade direta em sua derrota. Mas De Man silencia completamente a respeito do

papel representado pela ala espartaquista da socialdemocracia alemã, e sequer de passagem

menciona nomes fundamentais no processo, como Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht.

Ambos, inclusive, já faziam a crítica ao enrijecimento burocrático e pequeno burguês do

partido alemão, enrijecimento que De Man prefere atribuir a uma suposta natureza “a-ética”

e “determinista” do marxismo.

De Man apresenta uma interpretação do marxismo que fora peculiar a todo o

movimento revisionista, ou seja, uma doutrina determinista, mecanicista, que tentaria

insuflar na classe operária o cumprimento de uma missão que, de qualquer modo, já estaria

pré-determinada pelo movimento das inexoráveis leis da história. Dessa forma, o

sentimento de confiante segurança, que estimularia nos jovens movimentos sua função

“missionária”, seria tomado por efeitos psicológicos cuja característica nefasta se

manifestaria particularmente nos estágios mais avançados do movimento. A crença no

dever natural, afirma o autor, criaria um sentimento que enfraqueceria a crença no dever

105

moral. Tal sentimento teria enfraquecido o marxismo, reprimindo a ação das motivações

éticas nos movimentos dominados por ele (Idem, p.304).

Eis também aqui o viés ético pelo qual o revisionismo avaliava o marxismo. Este,

ao reivindicar-se ciência e supor um destino final da sociedade capitalista

deterministicamente inescapável, faria com que quedassem inúteis quaisquer motivações

éticas baseadas em sentimentos morais de necessidade de justiça social. É por meio do

apelo ao senso ético que De Man pretende desautorizar finalmente o marxismo enquanto

ciência. Nega, ao mesmo tempo, a possibilidade de formação de uma ética classista,

afirmando que o marxismo a reduziria a uma simples “ética baseada nos interesses

econômicos do proletariado” (Idem, p.305). Como já afirmamos mais acima, o viés da

análise de De Man é tomar por absolutos e inevitáveis, portanto independentes do momento

histórico de que se trate ou da vontade dos agentes, a burocratização dos partidos,

sindicatos e movimentos operários por meio de castas de dirigentes apegados aos

privilégios da organização. Em conclusão, em vez da crítica estrita ao processo de

enrijecimento burocrático, o reformismo idealista ao qual adere De Man procura atribuir

aquele processo à natureza mesma do marxismo, e parte para o abandono de suas teses

centrais.

O fato de colocar em primeiro plano os valores psicológicos e éticos do movimento

operário, do todo modo, não significaria a possibilidade de refutação da filosofia da práxis.

Assim se expressa Gramsci a respeito da principal tese de De Man (GRAMSCI, Q11,§66,

p.1501, C; Q8,§167, p.1041, A). Para Gramsci, seria óbvio que “o mundo das ideologias”

se encontraria em estado mais atrasado de desenvolvimento que as relações de produção.

Assim, por exemplo, dizer que a grande maioria dos homens encontra-se ainda na fase

“ptolomaica” não poderia significar que a doutrina de Copérnico devesse ser refutada

(Idem). Para Gramsci, seria natural que a filosofia da práxis devesse estudar aquilo que os

homens pensam de si mesmo e dos outros, mas não deveria aceitar como eterno aquele

modo de pensar (Idem). Do contrário, seria exatamente este, e não o que De Man aponta

contra o marxismo, o “pior dos mecanicismos e dos fatalismos”. A tarefa de cada iniciativa

histórica seria a de modificar as fases culturais precedentes, de tornar homogênea a cultura

a um nível superior da precedente (Idem). Afirma Gramsci que a filosofia da práxis teria

106

sempre trabalhado “neste terreno que De Man acredita ter descoberto, mas para inová-lo,

não conservá-lo passivamente” (Idem).

Segundo Gramsci seria essencial a conexão sentimental entre intelectuais e povo

nação para se fazer política e, no mesmo sentido, história. Não se poderia “saber”, ou seja,

um intelectual não seria verdadeiramente um intelectual estando distinto e destacado do

povo nação, sem sentir as paixões elementares do povo. Na ausência dessas condições, as

relações entre intelectual e povo nação reduzir-se-iam a relações de ordem puramente

burocrática e formal, tornando-se os intelectuais “puramente uma casta ou um sacerdócio”

(Idem, p.1505). Em suma, a existência daquela relação orgânica entre intelectuais e povo-

nação, entre dirigentes e dirigidos seria condição de formação de um novo bloco histórico

(Idem). Para Gramsci, De Man apenas estudaria os sentimentos populares, mas não

possuiria o menor comprometimento com transformação daqueles sentimentos, com sua

superação. Permaneceria, assim, burocrática e formalmente à distância (Idem). No entanto,

Gramsci faz uma interessante concessão ao estudo de De Man. Mesmo que como “reflexo

pedante de uma exigência real”, haveria no livro deste a sugestão de que os sentimentos

populares fossem conhecidos e estudados de maneira objetiva, como se apresentam, e não

considerados como coisa insignificante, inerte no movimento histórico (Idem).

Um dos pioneiros do marxismo latino-americano, talvez o mais importante, o

peruano José Carlos Mariátegui chegou a escrever vários artigos de crítica ao livro de De

Man, publicados em 1934 em sua obra póstuma Defensa del Marxismo. Mariátegui lembra,

antes de tudo, que o propósito de De Man não seria apenas empreender uma revisão do

marxismo, mas sua “liquidação” (MARIÁTEGUI, 1969, p.19). E observa que a tentativa

não seria original, já que desde fins do século XIX, tendo já sua maior expressão em

Bernstein, o marxismo viria sendo sistematicamente acometido por tais investidas. Sustenta

Mariátegui que De Man, por uma espécie de impossibilidade de aceitar e compreender a

revolução, recorreria aos maus humores e desilusões do pós-guerra, do proletariado

ocidental, como expressão dos sentimentos e da mentalidade socialista de então (Idem,

p.22). Classifica-o Mariátegui de “reformista desenganado”. Desiludido que se encontraria

da práxis reformista (já que, como salienta o marxista peruano, De Man teria sido discípulo

da socialdemocracia alemã) não se decidira a seguir o caminho da revolução. A “liquidação

do marxismo”, com a qual se ocuparia então, resultaria no fim das contas de sua própria

107

experiência pessoal, ter-se-ia operado na consciência de De Man, que, como socialista

intelectual com o egocentrismo peculiar à sua mentalidade, se apressaria em identificar com

sua experiência o “juízo da história” (Idem, p.22).

Para Mariátegui, um dos elementos mais importantes no livro de De Man seria a

crítica à política reformista que ele conteria (no sentido da burocratização, aparelhamento e

estagnação das organizações operárias). Porém, adverte o marxista peruano, o ambiente no

qual se situaria De Man para a análise das motivações e impulsos do proletariado seria o

ambiente “medíocre e passivo” no qual teria combatido: o sindicato e a socialdemocracia

belgas (Idem, p.22). Desta maneira, De Man ignoraria a emoção, a paixão revolucionária. O

objetivo de liquidar e superar o marxismo o teria conduzido a uma crítica minuciosa de um

meio sindical e político que não seria absolutamente o meio marxista (Idem, p.23). Segundo

Mariátegui, todas as incoerências e distâncias que De Man observaria entre a teoria e a

prática da socialdemocracia alemã não seriam, enfim, atribuíveis ao marxismo em si, a não

ser que se quisesse chamar “marxismo” a algo que o teria deixado de ser haveria muito

tempo (Idem).

Da mesma forma que Gramsci, Mariátegui sugere que o que haveria de positivo na

obra de De Man seria exatamente colocar em discussão o estudo dos elementos psíquicos

da política operária, concedendo ainda que De Man faria a este respeito observações “muito

sagazes” (Idem, p.26). Sustenta Mariátegui, contudo, que nenhuma das comprovações a que

chega De Man diminuiria a validade do método marxista que buscaria a causa econômica

“em última análise”. A investigação psicológica conduzida por De Man, afirma Mariátegui,

da mesma forma que seus questionamentos teóricos, teriam tido como objeto o reformismo.

O quadro sintomático que De Man ofereceria em seu livro, qual seja o estado afetivo do

operariado industrial, corresponderia à sua experiência individual nos sindicatos belgas

(Idem, p.30). De Man, segundo o marxista peruano, conheceria o campo da reforma, mas

ignoraria o da revolução e não teria nada a ver com esta. Em seu livro seria possível

reconhecer a alma pequeno-burguesa de “um país tampão”, prisioneiro da Europa

capitalista, cujos limites proibiriam qualquer autonomia de movimento histórico (Idem,

p.30).

108

Mariátegui reserva ainda algumas observações sobre a questão da ética no

marxismo, reclamada especificamente por De Man, mas também, de maneira geral, pelo

conjunto do movimento revisionista. Para Mariátegui, a função ética do socialismo deveria

ser buscada na criação de uma moral de produtores pelo próprio processo da luta

anticapitalista (Idem, p.57). Segundo ele, quando De Man cobra um “conteúdo ético” ao

socialismo, esforçando-se em demonstrar que o interesse de classe, por si só, não poderia

ser o motor suficiente para uma nova ordem, não estaria indo “para além do marxismo”,

nem falando de coisas que não teriam ainda sido abordadas pela própria crítica

revolucionária (Idem, p.59). Seu revisionismo atacaria, ao contrário, o sindicalismo

reformista, em cuja prática o “interesse de classe” se contentaria com a satisfação de

aspirações materiais limitadas. Uma moral de produtores, segundo Mariátegui, não surgiria

mecanicamente a partir do interesse econômico, mas a partir da luta de classes, conduzida

“com alma heroica e vontade apaixonada” (Idem). Para que o proletariado pudesse cumprir,

em seu progresso moral, sua missão histórica, seria necessário adquirir consciência prévia

de seu interesse de classe, mas isso, por si só, não seria suficiente.

Lembrando flagrantemente a notória passagem de Gramsci em Americanismo e

Fordismo, segundo a qual a hegemonia começaria na fábrica, Mariátegui sustenta que a

fábrica atuaria no trabalhador “psíquica e mentalmente”, e a “educação” que ali começaria

seria completada pelo sindicato e, enfim, pela luta de classes (Idem, p.61). Ainda de acordo

com Mariátegui, De Man não ignoraria a “função pedagógica e espiritual do sindicato e da

fábrica, ainda que sua experiência seja mediocremente socialdemocrata” (Idem, p.61). O

que De Man consideraria meritoso nessa pedagogia, no entanto, estaria apenas na medida

em que ela pudesse aumentar no operário seu apego ao bem estar material. “Paradoxos do

idealismo pequeno-burguês!” (Idem, p.63).

109

2.5.4 Georges Sorel: do revisionismo ao sindicalismo revolucionário

A filosofia da práxis tornou-se um momento da cultura moderna, uma atmosfera difusa, que modificou os velhos modos de pensar por ações e reações não aparentes e não imediatas. O estudo de Sorel é especialmente interessante desse ponto de vista, porque através de Sorel e de seu destino podem-se encontrar muitos indícios a esse propósito (GRAMSCI, Q16, §9, p.1856, C; Q4, §3, p.422, A).

Uma das particularidades principais do revisionismo soreliano se encontraria no fato

de se colocar na corrente contrária das “revisões” empreendidas pela socialdemocracia

alemã, fosse com relação à adequação dos princípios teóricos do marxismo para fazê-los

condizer com a então já consagrada prática eleitoral e de atuação parlamentar do Partido

Social Democrata (Bernstein), fosse com relação à influência positivista e cientificista que

inspiraria a considerar o socialismo como uma marcha histórica “necessária” em termos de

desenvolvimento do próprio modo de produção capitalista (Kautsky).31 Em Sorel é tanto a

aversão à política representativa quanto o anticientificismo, suposta condição do

antipositivismo, que se colocam como crítica às posturas acima. O pensador francês recusa

o que considera ser a cientificidade reivindicada por Marx e Engels e eleva a primeiro

plano o voluntarismo e o espontaneísmo da ação política como atitudes revolucionárias por

excelência (SOREL, 1992). Daí a eleição do “mito” da greve geral como horizonte

revolucionário e a aposta no movimento espontâneo das massas trabalhadoras, motivada

não por uma vanguarda que tivesse analisado “cientificamente” as condições objetivas e

subjetivas para a sublevação, mas pela paixão nutrida pela imagem messiânica do mito.

Embalado pela causa anticientificista, Sorel propunha a crítica do marxismo não com o

intuito de negá-lo como teoria social, mas para empreender uma "decomposição", depurá-lo

de aspectos supostamente positivistas, reencontrar nele o que considerava serem suas bases

metafísicas (morais) e finalmente reagrupar e reestruturar os elementos do sistema

marxiano que pudessem servir à causa do socialismo (SOREL, 1982). Gramsci, num

movimento se superação da crítica revisionista, utilizar-se-á também do método soreliano,

31 Cf. Fetscher (1982) e também Gustafsson (1975), entre outros.

110

mas para sua própria empresa de “recomposição” da teoria marxista como uma filosofia da

práxis.

Entre os anos de 1895 e 1897, período em que editou a revista francesa Le Devenir

Social, Sorel considerava-se adepto e divulgador do marxismo em seu país. Acreditava o

pensador francês que a obra de Marx fosse composta por partes essenciais e partes não

essenciais, ou “casuais” (accidentale). Entre as últimas estaria tudo o que o pensador

alemão escrevera sobre a revolução propriamente dita, e tais partes não teriam valor,

segundo Sorel, perante o restante da obra. Sustentava ainda que, certo de se encontrar às

vésperas da revolução, Marx não estaria preocupado em saber por que mecanismo exato

esta se daria, nem como seria a futura sociedade socialista após sua morte. Bastariam a ele

as constatações empíricas feitas sobre o andamento dos fenômenos econômicos de sua

época (SOREL, 1975, p.97). Apontava Sorel, porém, que justamente a superestimação

daquelas partes “casuais” da obra de Marx teria sido responsável pelo surgimento das

certezas da socialdemocracia de que o mundo caminhava em direção a uma revolução

inevitável. Essa a origem, segundo o autor francês, do determinismo ou “fatalismo”

presente nos socialdemocratas da época. Afirmava ainda que Marx não consideraria jamais

como lei imutável o que não era senão um conjunto de “relações empíricas” (Idem, p.101).

Como se depreende do exposto acima, o marxismo heterodoxo de Georges Sorel já

o predispunha ao caminho revisionista que viria em breve a adotar. Após a extinção de Le

Devenir, Sorel já se assumia como pensador independente e começara a empreender

esforços no aprimoramento da fundamentação teórica do sindicalismo revolucionário. A

estratégia política do sindicalismo revolucionário tinha uma postura de inspiração

nitidamente anarquista com relação ao Estado, à organização dos trabalhadores e à forma

de luta social. Quanto ao primeiro, pregava a abolição imediata da organização estatal. A

revolução não consistiria na tomada do Estado pelo proletariado, nem na criação de uma

ditadura do proletariado, mas na eliminação completa de toda estrutura estatal

(WALDENBERG, 1982, p.248). Caso contrário, os trabalhadores não estariam fazendo

senão uma “troca de amos”, um grupo privilegiado por outro grupo privilegiado. Quanto à

organização dos trabalhadores, o sindicalismo revolucionário defendia exclusivamente a

estrutura sindical como típica do proletariado. A organização em partido político bem como

111

a participação no sistema parlamentar eram consideradas um desvio estratégico. Enquanto

os sindicatos eram produto da organização operária oriunda das fábricas, os partidos eram

frutos de intelectuais que se arrogavam o comando dos trabalhadores. Os partidos seriam

desnecessários, ademais, pelo fato dos operários não almejarem o poder político, mas sua

destruição. Além disso, a consciência revolucionária se formaria a partir da luta direta das

massas e não da prática parlamentar. Por fim, no que se referia à forma da luta social, a

revolução seria realizada por meio da greve geral. A greve geral seria o formato típico da

prática revolucionária dos sindicatos. Seria ao mesmo tempo o modo de educar as massas

operárias no espírito revolucionário e a derradeira forma da revolução (Idem, p. 249).

A greve geral é o mais importante tema das Reflexões sobre a violência, obra mais

conhecida de George Sorel, publicada em 1908 na França. Por meio da greve geral Sorel

esperava que fosse construída a “nova moral dos produtores”. Seria a escola da nova ética

dos criadores da futura sociedade socialista. Em Sorel haveria a ideia de um valor moral a

ser resgatado através da prática sindical. Tal restauração moral dever-se-ia realizar por

meio do progresso da sociedade em direção a uma forma organizativa mais alta, em que “o

novo protagonista da história, o proletariado, deverá realizar, contra o egoísmo da

sociedade burguesa-industrial, a ética do socialismo” (SOREL, 1975, p.17).

Sorel considerava que a revolução ocorreria, antes de tudo, na consciência. Isso

explica porque rejeitava a cientificidade econômico-material do marxismo. Mostrava-se

convicto da não validade das teorias centrais da doutrina de Marx: a teoria do valor, da

pauperização, da concentração das riquezas e da produção. A teoria de Marx seria, assim,

apenas um método de aproximação da realidade (SOREL, 1975, p.19).32 De fato, Sorel não

era adepto do método dialético preconizado por Marx a partir de Hegel. Para ele, “o

processo de evolução do mundo humano [...] não era determinado nem por um processo

32 Aqui Sorel deixa clara a inspiração em seu amigo Croce, notadamente na obra Materialismo Histórico e Economia Marxista, publicada pelo filósofo napolitano em 1899: “Se o materialismo histórico deve exprimir algo que seja criticamente aceitável, tal não deve ser [...] nem uma construção a priori de filosofia da história, nem um novo método do pensamento histórico, mas, simplesmente, um cânone de interpretação histórica” (CROCE, 1948, p.88). Croce exercia grande influência sobre o pensamento de Sorel. Mantinham uma amizade que fora sempre muito estreita. Os escritos de Croce seriam, para Sorel, uma das principais fontes para a formulação de suas concepções acerca das questões históricas, filosóficas, políticas e literárias de seu tempo (FURIOZZI, 1975, p.56).

112

dialético, nem por uma evolução natural e necessária, mas por uma passagem violenta de

uma fase histórica a outra” (SOREL, 1975, p.22).

A última etapa do desenvolvimento do marxismo de Sorel seria sua visão do

marxismo como mito. O mito, para Sorel, corresponderia às “convicções de um grupo” e

seria diferente da utopia por ser uma produção coletiva e não a teorização de poucos

intelectuais. E sua preservação enquanto tal, enquanto simbologia coletiva, estaria garantida

apenas pela ação espontânea das massas, devendo essas evitar sua subordinação a qualquer

tentativa de direção por uma minoria. “O mito, por conseguinte, é ao mesmo tempo

‘sistema de imagens’ e massas que ‘se apaixonam’” (DE PAOLA, 1984, p.80).

Para Sorel, a violência ocorrida com o surgimento do cristianismo, da Reforma

Protestante e da Revolução Francesa teria formado momentos históricos equivalentes,

porque funcionaria como “mito”, isto é, como conjunto de imagens percebidas

instantaneamente, intuições, capazes de evocar com a força do instinto o sentimento de luta

(SOREL, 1975, p.23). Sorel parecia divisar, na violência proletária, uma espécie de ação

resgatadora da condição moral de uns e outros, burgueses e proletários. Paradoxalmente a

uma visão da história que se orientasse pelo pressuposto da luta de classes, sustentava que a

violência proletária fortaleceria a burguesia decadente, incitando-a a assumir seu papel

histórico por excelência, que outro não seria senão revidar à violência proletária com a

força e a voragem capitalistas dignas das burguesias mais avançadas do mundo. O

socialismo de conciliação, ou o socialismo parlamentar, entorpeceria os sentimentos

revolucionários do proletariado e acomodaria a burguesia num estágio histórico indigno de

seu nome:

Tudo pode ser salvo se, pela violência, ele (o proletariado) conseguir consolidar de novo a divisão em classes e devolver à burguesia um pouco de sua energia. [...] A violência proletária, exercida como uma manifestação pura e simples do sentimento de luta de classes, aparece assim como algo belo e histórico (SOREL, 1992, p. 110).

O pensador francês concebia a violência como maneira de manter viva a cisão entre

as classes, bem como meio de empreender constantemente a reforma moral do proletariado.

Nesse sentido aparecia em Sorel a ideia de um estado permanente de guerra contra a classe

burguesa: “Manter a ideia de guerra, hoje que tantos esforços se fazem para opor ao

113

socialismo a paz social, parece mais necessário que nunca” (SOREL, 1978, p.15). Contra os

argumentos que advogariam a paz social e a conciliação entre as classes, afirmava Sorel

que haveria uma diferença nítida entre a guerra entre Estados e a guerra social. Na primeira,

seria buscado o poder baseado num ideal de equilíbrio, e a paz poderia ser alcançada por

meio de concessões mútuas. Já no caso da guerra social, o proletariado não procuraria

concessões, mas a ruína completa de seus adversários (Idem). A luta de classes, para Sorel,

seria o “aspecto ideológico de uma guerra social empreendida pelo proletariado contra

todos os chefes de indústria [...]; o sindicato é o instrumento da guerra social” (Idem, p.18).

A luta de classes assim definida seria, segundo o pensador francês, o que o marxismo

possuiria de verdadeiro e superior a todas as fórmulas sociais (Idem). Da ideia da luta de

classes quase como uma disposição de espírito do proletariado, o papel da violência como

promotora da cisão social apareceria como sustentador da noção da divisão dicotômica da

sociedade nas mentes dos militantes. As greves e a propaganda do proletariado

perseguiriam tal resultado (ROTH, 1980, p.52).

Percebe-se que a luta de classes tem, para Sorel, um aspecto sobretudo ideológico,

um estado de espírito do proletariado. Isso não seria acaso. Sorel consideraria o conceito de

classe não como um dado objetivo, passível de ser observado cientificamente, mas como

uma gradual conquista da consciência de classe, conquista que surge aqui como um

elemento humano e moral (SALVATECCI, 1980, p.78). A luta de classes seria um fato

real, mas só observável na manifestação de suas respectivas elites, isto é, suas minorias

conscientes. A minoria consciente da burguesia reduziria as relações sociais aos aspectos

econômicos. A minoria consciente proletária consideraria os valores humanos e morais

daquelas relações. A história seria movida, assim, pelo choque entre as elites proletárias e

burguesas, e não pelo confronto dialético de forças que Sorel consideraria cegas e

deterministas (Idem, p. 85). Para Sorel, portanto, a perspectiva dialética continuaria sendo

uma perspectiva determinista.

Sorel aborda, de uma forma supostamente racional, as condições da ação irracional.

Irracional não apenas porque sem um plano concebido de forma metódica e supostamente

científica. O autor francês assume a existência de uma instância inconsciente da ação

humana que teria força de determinação histórica, e a reconhece como potência principal do

processo revolucionário. É assim que ele pretende se colocar em uma posição oposta à de

114

Kautsky, por exemplo. Neste, a razão recomendava aguardar as condições objetivas para o

irrompimento da revolução, o que redundaria numa tática reformista. Em Sorel, as

condições para a revolução não são objetivas, nem pensadas subjetivamente, mas

instintivas, a inconsciência coletiva trazida à tona de modo violento pela força do mito.

Contrapondo-se à suposição de que a história possuiria um movimento quase automático

em direção ao socialismo, e que a este se chegaria sem grandes sobressaltos, Sorel põe em

primeiro plano a ação espontânea do proletariado, a crença no mito, sem a qual a mudança

revolucionária não seria conquistada.

O mito, embora considerado por Sorel apenas enquanto tal, adquiriria concretude

cotidiana por motivar a ação revolucionária do presente na forma da greve geral. Sorel não

se preocupa com o modo pelo qual a greve geral poderia ser levada a cabo. O que importa é

que ela seja uma esperança permanente no imaginário da classe trabalhadora, gerando

atitudes concretas por parte do proletariado combativo. Essa é a ideia do mito (a greve

geral) gerando a ação revolucionária. Seria uma elaboração imagética de forças latentes,

inconscientes, presentes na insatisfação geral do proletariado e canalizadas pela violência

da ação revolucionária. Vejamos a definição de mito segundo o próprio Sorel:

[...] Os homens que participam dos grandes movimentos sociais representam sua ação imediata sob a forma de imagens de batalhas que asseguram o triunfo de sua causa. Propus chamar de mitos essas construções [...]: a greve geral dos sindicalistas e a revolução catastrófica de Marx são mitos. [...] É preciso tomá-los em bloco como forças históricas e, sobretudo, não comparar os fatos consumados com as representações aceitas antes da ação (SOREL, 1992, p. 41).

E ainda:

Pode-se falar indefinidamente de revoltas sem provocar jamais um movimento revolucionário, enquanto não houver mitos aceitos pelas massas. [...] (Os mitos) não são descrições de coisas, mas expressões de vontades. [...] Um mito não poderia ser refutado, pois no fundo é idêntico às convicções de um grupo, é a expressão dessas convicções em linguagem de movimento, sendo portanto indecomponível em partes que possam ser aplicadas num plano de descrições históricas (Idem, p. 49-50).

Sorel toma o mito como uma crença religiosa na revolução, mas uma crença que

impele à ação e não à contemplação de um suposto devir inexorável. O autor acredita na

capacidade do sindicalismo revolucionário em desenvolver uma nova cultura no seio do

proletariado, fruto da aprendizagem advinda das lutas contra o Estado e os patrões. Assim,

a nova moral dos produtores não seria fundada numa educação estética transmitida pela

115

burguesia, mas nos sentimentos que as lutas travadas pelos trabalhadores contra seus

patrões desenvolveriam nesses trabalhadores, sendo o esteio da edificação de uma nova

concepção de mundo (Idem, p. 55).

Como já apontado anteriormente, Sorel despreza o socialismo parlamentar e a

participação dos socialistas no sistema eleitoral. Usa a todo o momento a metáfora da

guerra para descrever a luta de classes, mas considera tal guerra quase literalmente, como a

prática de ações diretas violentas, sem considerar válidas as disputas parlamentares.

Violência que o autor distingue da noção de força. Segundo ele, a força seria o instrumento

típico da imposição de uma ordem social regida por uma minoria sobre a maioria. A ação

do Estado por excelência. Já a violência seria o meio de destruição dessa ordem, a arma das

classes subalternas contra a opressão daquela minoria (SOREL, 1992, p.195).

Com relação à força, em determinada passagem Sorel faz uma análise que é bastante

próxima da visão gramsciana de coerção, sendo a força um elemento presente não apenas

por meio da brutalidade física, mas também do direito:

O socialismo considera essa evolução (do Direito, da Economia e do Estado) como sendo uma história da força burguesa e não vê mais que modalidades onde os economistas crêem descobrir heterogeneidades: quer a força se apresente sob o aspecto de atos históricos de coerção, ou de opressão fiscal, ou de conquista, ou de legislação do trabalho, quer esteja completamente envolvida na economia, trata-se sempre da força burguesa agindo, com maior ou menor habilidade, para produzir a ordem capitalista (SOREL, 1992, p.198).

À força, portanto, Sorel opõe a violência. Segundo ele, não se deve condenar a

violência física de maneira absoluta, pois sua existência e também seu julgamento moral

dependem das condições materiais históricas, mais especificamente do desenvolvimento

econômico de cada sociedade. Com relação a delitos criminosos, que ocorreriam de acordo

com os interesses mesquinhos dos homens, são cometidos mais por violência física quanto

menos economicamente desenvolvida for uma sociedade, e mais por meio da astúcia e da

corrupção quanto maior for tal desenvolvimento. Mas como impelir os homens à ação

violenta de classe, em que interesses coletivos estão acima dos interesses individuais

mesquinhos? Sorel apela aqui para o que chama de “sentimento do sublime”. Segundo ele,

a luta na qual o proletariado se engaja só pode terminar de duas formas: seu triunfo

completo ou sua escravidão, ambos os casos envolvendo todo o conjunto dos trabalhadores.

116

Em tais circunstâncias, de acordo com o autor, o sentimento do sublime (a abnegação

altruísta) brotaria naturalmente das condições da luta (SOREL, 1992, p. 238).

A participação do proletariado no processo parlamentar ou eleitoral seria

completamente nociva para os objetivos do sindicalismo revolucionário. O

desenvolvimento do capitalismo não é possível sem a corrupção e os delitos movidos pela

astúcia. O envolvimento do movimento dos trabalhadores com a política parlamentar seria

o envolvimento com a pequenez moral e a astúcia. O papel da violência proletária seria

forjar nos trabalhadores valores morais elevados, o “sentimento do sublime”, uma espécie

de reforma moral levada a cabo no espírito do proletariado por meio da guerra contra o

capitalismo, por meio da prática de luta.

2.5.4.1 A luta de classes como luta “jurídica”

Veremos neste item como o autor empreende a crítica do marxismo a partir de

pressupostos éticos e morais relativos à conduta da classe trabalhadora. Tomando como

ponto de partida o que considera ser o caráter jurídico da luta de classes, Sorel conduz seu

pensamento até às proximidades da concepção do conceito de “mito”, que traria à luz anos

mais tarde. Nas elaborações sorelianas que se seguem, é a rejeição da violência imediata e a

construção do socialismo como um objetivo moral que tomam o centro de suas reflexões.33

Em seu artigo “La crise du socialisme” (SOREL, 1982, p. 77), publicado em 189834,

Georges Sorel já se mostraria a par da discussão no interior da socialdemocracia alemã

sobre os rumos da teoria marxista. O autor inicia o texto apresentando sua própria posição a

respeito, sugerindo que até então o socialismo teria se caracterizado por abandonar suas

aspirações morais e por apegar-se afins exclusivamente econômicos (Idem). Mostra-se

33 Supomos que a esta altura um esclarecimento se faz necessário. Neste “primeiro movimento” de revisão que faz Sorel, durante mais ou menos os últimos dois ou três anos da década de 1880, o principal argumento é a ênfase que se deveria dar ao caráter moral e, em última consequência, jurídico da luta de classes. Ele não se remete, ainda, diretamente à ação da violência proletária. Mesmo assim, no auge de suas “reflexões” sindicalistas, já nos primeiros anos do século XX, tal violência não deve ser entendida exclusivamente como ações físicas diretas, mas também e, quiçá, sobretudo, como a ameaça de violência, a demonstração da disposição para a violência e, finalmente, ações de resistência. Daí o corolário da ideia de greve geral. 34 Publicado em Revue politique et parlementaire, t. XVIII, 1898, p. 597 à 612, conforme indicado na coletânea aqui utilizada e apontada na bibliografia.

117

desejoso de que o socialismo retornasse a seus contornos “sentimentais e humanitários” de

1848, mas acredita que não é o que estaria por se passar.

O “sentimentalismo” e o “humanitarismo” sorelianos são traços patentes do seu

romantismo socialista que encontraria o auge nas Reflexões sobre a Violência, a mais

célebre obra do autor e que se publica pela primeira vez no ano de 1907. Objetivos morais e

humanitarismo formariam então, nesse momento, as bases do socialismo soreliano. Para

Georges Sorel, entretanto, o marxismo acabaria por se tornar uma teoria ineficaz, por

motivos que discutiremos de forma ainda pormenorizada. Mas para o marxismo do século

XX a recíproca seria verdadeira? Não se tratará, e pretendemos que isto esteja claro a partir

daqui, de superestimar a obra de Sorel em seu significado de crítica ao marxismo e além.

Nosso intuito é apenas (embora “apenas”, nesse caso, esteja longe de significar “fácil”)

ensejar uma discussão específica sobre a influência de um importante autor acerca do

debate sobre a crise do marxismo na virada dos séculos XIX-XX. Em momento ulterior,

focalizaremos nossa atenção à intervenção de sua obra na construção do pensamento do

marxista italiano Antonio Gramsci.

Para Sorel, é necessário que se faça uma separação, na obra de Marx, entre as teses

fundamentais e o que ele chama de afirmações “acidentais”. Segundo o autor, ter-se-ia dado

no movimento socialista grande importância a uma lei de desenvolvimento histórico da

qual se deduziria a necessidade da “grande catástrofe” (SOREL, 1982, p. 79). Acreditar-se-

ia que a revolução estaria às portas e que resultaria de alguma grande crise do mundo

industrial. Mas observa o autor que, qualquer que tenha sido a “superstição científica” da

época (ele se reporta aos vinte anos anteriores) ela não teria se implantado entre os

trabalhadores se não houvesse causas históricas precisas agindo sobre seus “espíritos”

(SOREL, 1982, p. 80). Tais causas históricas, interpretadas pelo movimento socialista à luz

daquela “superstição científica”, teriam fornecido ao socialismo os contornos antiéticos que

Sorel condena.

Para ele, toda a discussão sobre o socialismo até então ter-se-ia ocupado

demasiadamente das ideias, teses e abstrações, o que seriam coisas secundárias. Segundo

suas próprias palavras:

118

Pode-se dizer exatamente que a ideologia socialista não é senão um reflexo das condições em meio às quais a classe trabalhadora adquire a noção do papel que ela pode preencher; de modo que as relações sociais, nas quais ocorre a luta de classes, predominam sobre as teorias e que estas estão sempre notavelmente em atraso com relação ao movimento do social (Idem).

Escrevendo antes da revolução bolchevique de 1917, registra o autor a maneira

como a história do socialismo da época seria dominada pela “lenda” da Comuna de Paris.

Lembra que se trataria de uma insurreição não inspirada pelas “teorias marxistas”. Para

Sorel, a Comuna não teria sido uma tentativa de governo pelo proletariado organizado, mas

sim tornado-se tal pela força da lenda. O momento chave que teria dado força de realidade

à lenda seria uma circular da Primeira Internacional, redigida por Marx, na qual a Comuna

seria celebrada como a “aurora da nova era”, ponto de vista que teria sido adotado por

quase todos os autores marxistas, Labriola entre eles. Arremata Sorel que, assim, “um erro

histórico torna-se uma grande verdade sociológica” (SOREL, 1982, p. 81).

A questão social, que apareceria aos utopistas em toda sua grandeza como questão

política, jurídica, econômica e moral, teria sido concentrada e condensada na questão

trabalhista pelo marxismo por influência da Comuna de Paris. Tais teriam sido, de acordo

com o autor, as condições históricas que dariam ao marxismo uma influência preponderante

à época. Acrescenta Sorel que tais particularidades históricas teriam conferido ao marxismo

uma aparência particularmente simplista e brutal. O estudo científico da obra de Marx

deveria ter por objetivo demonstrar que a luta de classes, tal como a concebe Marx, seria

uma luta jurídica (Idem, p. 82). A influência da Comuna teria impedido tal abordagem

científica e deixado a impressão de que a violência imediata seria o único elemento a ser

considerado. Ainda sobre a Comuna, escreve Sorel:

Nesta guerra civil encontravam-se em presença um do outro a plebe dos trabalhadores, com um rudimento de organização, e a velha burguesia francesa. Esta, jamais reunida, não representou senão as classes médias, a tradição e o espírito geral da França provincial. A luta se desenvolvia despojada de toda atmosfera política, sem nenhuma preocupação ética, como uma luta de violências. O povo foi vencido; grandes proscrições seguiram-se à derrota; e, desde então, cada aniversário da tomada de Paris é a ocasião de conflitos entre trabalhadores socialistas e os agentes de autoridade, de modo que a lenda se mantém intacta na nova geração. (...) A lição das coisas trouxe seus frutos: todos os esforços tentados sob o império para desenvolver as ideias mutualistas foram perdidos; as teorias de Proudhon, tão fortemente marcadas por preocupações jurídicas e morais, foram consideradas reacionárias;

119

não houve zombarias que bastassem sobre a ética dos antigos socialistas (SOREL, 1982, p.81).

Para Sorel, trata-se então de resgatar ao socialismo todas as dimensões perdidas pela

ênfase na necessidade da “violência imediata” por parte da classe trabalhadora. Tais

dimensões seriam precisamente as instâncias jurídica e moral. Uma verdadeira tentativa de

se “humanizar” o processo revolucionário encontrar-se-ia nas teorias jurídicas, que

ensejariam, devemos supor, a normatização de preocupações éticas e morais. Mas por que o

autor de Reflexões sobre a violência, obra na qual defende a mesma violência contra a força

do Estado, ou seja, a violência contra a força, porque ele a condena aqui, num escrito de

meia década antes de sua consagrada obra?35 Além de, de fato, Sorel mudar

significativamente sua opinião ao cabo desses poucos anos, talvez a pergunta correta, assim

reformulada, fosse: o quê Sorel classifica como violência em cada passagem a respeito?

O autor parece sugerir que a violência imediata da Comuna e, antes, dos

acontecimentos da revolução de 1789 teriam prejudicado análises detidas sobre as diversas

naturezas da violência. Assim, os atos executados por funcionários do Estado, de acordo

com regras ordenadas em um código determinado, seriam também atos de violência em seu

conteúdo. Tal conteúdo é o que deveria ser objeto da análise sobre a violência. Começam a

fazer sentido , deste modo, as exortações de Sorel às dimensões moral e jurídica da

“questão social”, a segunda sendo a materialização normativa da primeira. Entende-se

também agora porque, para o filósofo francês, a luta de classes em Marx deve ser entendida

como uma luta jurídica. Não seria Marx que teria se equivocado a respeito da natureza

científica da luta de classes, mas os marxistas, na medida em que teriam elevado em ação

revolucionária por excelência a violência imediata da Comuna, impingindo assim às

análises de Marx sobre a luta de classes um caráter “simplista e grosseiro” (Idem).

Sorel permanece, assim, no âmbito do socialismo utópico de assumida inspiração

proudhoniana. Parece rejeitar a violência do embate físico (não que, em seu conjunto, as

doutrinas consideradas utópicas pelo marxismo também a rejeitem de forma geral – vejam- 35 Em Reflexões Sobre a Violência, à violência organizada do Estado Sorel classifica como força. À reação espontânea do proletariado contra tal força e contra o sistema fabril capitalista Sorel chama violência (SOREL, 1992).

120

se as diversas formas de anarquismo), para usarmos termos mais claros, como possibilidade

eficaz de rebelião social. E por quê? Aparentemente, por conta de uma suposta

“desumanização” das relações sociais que tal método engendraria, “desumanização”

causada pela ausência de preocupações éticas e morais.

Em princípio, parece fácil constatar o idealismo que alicerça tais considerações.

Supor a possibilidade da manutenção de preocupações morais e jurídicas no âmbito de uma

encarniçada luta classista, como foi o caso da Comuna de Paris, sugere um projeto político

que, no limite, preza pela manutenção do que teria sido, até então, a construção de valores

sociais pautados pelo humanismo individualista inspirado nas revoluções burguesas. Mas

não arrombemos portas abertas. O que importa problematizar em Sorel, para nossos

propósitos imediatos, é a maneira como nosso autor se insere no debate que pretende

revisar o marxismo na virada do XIX para o XX. Chegamos, até aqui, à detecção de um

importante elemento no revisionismo soreliano, que redundará em significativo aporte aos

reformismos posteriores, dada a importante presença e envergadura do filósofo francês nos

debates de então. O fato é que, diferentemente do que ocorre no âmbito da

socialdemocracia alemã, o principal recurso de revisão em Sorel não é econômico, e sim

político-moral (se pudermos assim definir). Não é o socialismo como sentido inevitável da

história dado o inelutável desenvolvimento das forças produtivas, nem uma suposta

inverossimilhança do processo de crescente proletarização das camadas médias, tampouco

a pretensa falibilidade da lei do valor em Marx os elementos que protagonizam, em Sorel, a

crítica ao socialismo marxista. O cerne do revisionismo soreliano está em sustentar que, em

Marx, a luta de classes seria uma luta jurídica.36 Deixemos para adiante o desenvolvimento

das principais consequências de tal afirmação. Por ora, permaneçamos seguindo a trilha

argumentativa de nosso autor.

36 Esse viés não está, no fim das contas, de todo afastado dos pressupostos predominantemente econômicos, em princípio, das críticas de Bernstein. Lembre-se a insinuante argumentação de base moral na seguinte passagem do socialdemocrata alemão: “A teoria do valor empresta uma norma tão insignificante à justiça ou injustiça da partilha do produto do trabalho quão diminuta é a influência da teoria atômica na beleza ou fealdade de uma obra de escultura. Encontramos hoje, de fato, os trabalhadores melhor colocados, membros da ‘aristocracia do trabalho’, precisamente naqueles setores com uma taxa alta de mais-valia, os outros míseros trabalhadores rasteiros em setores de taxa bastante baixa.”(BERNSTEIN, 1997, p. 46). Ver ainda o capítulo II (O desenvolvimento econômico da sociedade moderna), item a (Sobre o significado da teoria marxista do valor) para mais detalhes sobre a crítica de Bernstein à Teoria do Valor.

121

Analisando o que considera serem os novos socialistas de seu tempo (aqueles que

estariam fora da tradição socialista engendrada pela Comuna de Paris), Sorel sustenta que

eles se inspirariam bem mais em livros de Marx do que em “vulgarização deles”. Escreve

ainda que a principal contribuição desses jovens socialistas seria o “espírito teórico e

especulativo tão caro a Marx e Engels” (Idem, p.84). Na sequência do texto que aqui

comentamos, Sorel empreende a crítica do chamado socialismo parlamentar. Ou, mais

exatamente, dos deputados socialistas de então. Em resumo, condena-lhes o abandono do

projeto socialista em nome de um reformismo que a duras penas manteria o socialismo no

horizonte. Ataca o que considera ser uma tática hipócrita. Ou seja, tais deputados gostariam

de fazer crer que estariam apenas dissimulando, momentaneamente, seus verdadeiros ideais

coletivistas para atrair para sua causa a massa dos camponeses pequenos proprietários.

Contra tal manobra, dispara Sorel:

Essa tática é bem ingênua e mostra naqueles que a concebem um conhecimento bastante débil das teses marxistas: o que importa na história não é o que escondem em sua consciência íntima os ideólogos de um partido, mas o que compreendem e o que sentem as massas, de quem tais ideólogos se crêem líderes (Idem).

De forma geral, Sorel descreve como os deputados socialistas dos últimos anos do

século XIX, na França, consentem em não ir além de projetos de reforma social,

recorrendo, esses deputados, a uma retórica ambígua que combinaria abolição da

propriedade privada com manutenção da “propriedade individual”, o que quer que

significasse tal combinação. Acima de tudo, sustenta o filósofo francês que haveria, na

verdade, uma ação lenta dos fatos sobre o espírito dos socialistas, que ainda não teriam

conseguido atualizar sua terminologia e suas propostas, não teriam conseguido colocá-las à

altura dos fatos (Idem, p. 86). Mas o que seria “atualizar sua terminologia e suas

propostas”? Seria abandonar a retórica socialista quanto à questão da propriedade e assumir

programaticamente o reformismo no interior do sistema capitalista? Sorel é pouco claro a

respeito, mas é possível que seja esse seu argumento. Depreender-se-ia daí, portanto, que os

“fatos” seriam as condições econômicas, políticas, materiais em geral que teriam conduzido

aqueles “espíritos” à acomodação política.

122

Agora bem. Se assumirmos que a luta de classes, tal como os marxismos a

concebem, seria passível de ocorrer em diversos níveis de uma determinada formação

social capitalista (ideológico, econômico, político, cultural), ela ocorreria também no plano

da representação política, ou na cena política. Ou mais especificamente, no Parlamento.

Sorel não parece considerá-la nesse nível. O discurso reformista contraditório dos

deputados socialistas não é, para Sorel, uma variável resultante da luta classista, mas uma

“ação dos fatos sobre [aqueles] espíritos”. Ainda não sabemos de que se trata a luta de

classes tal como concebida por Sorel a partir de sua leitura de Marx, mas conhecemos mais

um pouco do que ela não é, ou outro lugar em que não se encontra: a atividade parlamentar.

Se Sorel não concebe a possibilidade da luta de classes no âmbito da “violência imediata”,

ou seja, no embate físico e direto, na guerra literal entre as classes no momento mais radical

da política – aquele da definição das relações de força pela força - também não a localiza

no Parlamento, no que poderia ser sua forma verbal, sua representação gestual,

comportamental, sua face histriônica. Nem violência imediata, nem disputa parlamentar.

Nem fogo, nem palavra. Afinal, de que tipo de violência trata Sorel ao conceber a luta de

classes como uma luta jurídica? Sigamos.

Para fugir às arbitrariedades e corrupção da administração do Estado, Sorel

preconiza como solução as “associações dos trabalhadores”. Cooperativas, sindicatos,

mutualismo, etc. Condena o considerado “espírito avançado” dos franceses pelo culto ao

Estado. Considera o filósofo francês que tais associações de trabalhadores tenderiam a

desenvolver o sentimento de responsabilidade que a política ameaçaria aniquilar (Idem,p.

89). Note-se, portanto, que em Sorel, o Estado, a burocracia, a administração são inimigos

em si mesmos da classe trabalhadora. Seriam instâncias que oprimiriam os trabalhadores

não porque representantes de interesses mais gerais ou mais específicos da burguesia, mas

porque seriam possuidores de uma natureza essencialmente autoritária. As críticas

sorelianas dirigem-se frequentemente aos “homens políticos”, ao “Estado”, à “Comuna” 37.

Sigamos com a questão que importa aqui, qual seja aferir o modo pelo qual as ideias

de Sorel inserem-se no debate de revisão do marxismo no final do século XIX. Há um

37 Não se trata a todo momento de uma referência à Comuna de Paris, mas a qualquer comuna em seu sentido de administração municipal.

123

trajeto peculiar em Sorel e Croce38, por exemplo. São ambos autores que começam pela

tentativa de “corrigir” o marxismo, mas que em poucos anos deságuam num deliberado

intento de aniquilamento do mesmo, embora Croce o fizesse pelo caminho da direita

liberal, e Sorel pela ultraesquerda voluntarista. Uma interessante investigação seria procurar

os elementos para esclarecer se seriam aqui de projetos teóricos ou projetos políticos. A

resposta mais provável é que se trataria de ambas as coisas. Defenderíamos que se trata

sempre de ambas as coisas, na medida em que sustentamos o pressuposto de que a luta de

classes também se reproduz no campo teórico, na produção intelectual, mesmo que, às

vezes, os agentes a empreendam de forma inconsciente. Mas considerar que Sorel também

trabalhava em prol de um projeto político de “superação” do marxismo não resolve nosso

problema de determinar a legitimidade teórica com que faria isso (legitimidade no sentido

de repercussão e aceitação, não de correção ou equívoco).

Embora o processo teórico-político de revisão do marxismo no final do século XIX

atraia os holofotes historiográficos para o debate no interior da socialdemocracia alemã, é

importante que se dê a justa atenção à crítica política de Sorel com relação ao pressuposto

da luta de classes em sua forma generalizável. Uma crítica que nega a luta de classes no

âmbito da violência imediata, que também a nega no parlamento e que, por fim, a nega na

máquina burocrática. Veja-se que se trata de uma negação algo sofisticada, que não refuta

de forma sumária a luta classista nesses âmbitos, mas a transforma em opressão política

naturalizada em essência, desprovida de vínculos econômico-materiais históricos e de

classe. Entre as consequências políticas de tal análise está a desconsideração de um

aparelho de Estado como elemento necessário à transição socialista. As preferências de

Sorel para os diversos tipos de “associações de trabalhadores” já foram mencionadas aqui.

Mas Sorel considera extrair tais conclusões de uma análise “científica” do próprio Marx.

Este é um dos elementos de seu revisionismo que, nos parece, deixa rastros ainda hoje em

práticas políticas que se reivindicam marxistas.

São bastante comuns as referências elogiosas de Sorel às práticas anarquistas.

Compreensível, pois se acomodam bem ao seio do pensamento anarquista as premissas

socialistas de repúdio sumário das instituições estatais e das lideranças partidárias, além da

38 Cf. Materialismo histórico e economia marxista de Croce, por exemplo.

124

valorização do espontaneísmo das massas nos momentos de levante social. Argumenta o

autor que os grupos anarquistas seriam mal conhecidos na França, apesar de se ligarem de

maneira bastante íntima à tradição socialista francesa. Em seu meio encontrar-se-iam

excelentes trabalhadores que causariam repulsa entre os homens da política. Sustenta, de

maneira convicta, que naquele momento do quadro social francês os anarquistas seriam

uma espécie de sinônimo da organização das classes trabalhadoras fora dos “conciliábulos”

políticos (SOREL, 1982, p. 90).

Na continuidade de sua argumentação, segue apostando o filósofo francês no

momento em que os trabalhadores possam se aperceber que a divisão do movimento

socialista no que considera “seitas” não se interessaria pelos problemas reais da classe

trabalhadora. Seria apenas um “socialismo dos socialistas”, formado por teóricos que

teriam muito mais a aprender com o movimento sindical do que o contrário. Sorel aqui faz

referência explícita a seu texto L’Avenir socialiste des syndicats.39

Para Sorel, as diferenças entre as diversas tendências socialistas partidárias se

esvaneceriam diante das discussões a respeito das reformas sociais a ser empreendidas pelo

Estado, precisamente porque tais reformas teriam se tornado essenciais para o futuro do

socialismo na França, observa ironicamente. Tratar-se-ia, na verdade, de uma adaptação ao

que Sorel considera ser o movimento imposto à máquina social pelo Estado. Antes de levar

em consideração eventuais interesses imediatos em cargos e benefícios eleitorais, ele parece

considerar que esse seria um movimento natural e inevitável das instituições partidárias

socialistas, cuja raiz encontrar-se-ia em sua própria origem institucionalizada. Para tal

operação de adaptação, os “dialéticos do socialismo” manipulariam sutilmente as

abstrações de suas teorias (Idem). Seriam os trabalhadores em ação, portanto, que fariam o

que Sorel chama de “verdadeira ciência social”, que seguiriam as vias correspondentes às

“teses fundamentais e essenciais de Marx” (Idem). Esta última observação aparece

empregada de maneira bastante vaga nesse momento, tornando-se difícil deduzir aqui de

maneira mais precisa quais seriam essas “teses fundamentais de Marx”. Tudo se passa

como se os partidos e as lideranças políticas estivessem essencial e necessariamente

39 Trata-se de obra que analisaremos posteriormente.

125

fadados a compor com os agentes do Estado, o capital, etc., tanto quanto as teorias

socialistas destinadas a uma constante adaptação para servir àquela composição.

Sorel refere-se às divisões entre as diversas tendências socialistas em disputa por

espaço no Estado ou por favorecimentos advindos deste. A despeito de criticar a

convergência superficial de tais divisões partidárias no interior do movimento socialista

francês, o autor defende o que chama de “unidade essencial do socialismo” (Idem). Supõe

reconhecer tal sentimento de unidade em alguns intelectuais colaboradores da então recém-

fundada revista L'Humanité nouvelle (entre eles o deputado socialista Enrico Ferri, que se

tornará defensor das ideias de Sorel no sindicalismo revolucionário italiano, e Benedetto

Croce, que Sorel ainda classifica aqui como marxista). Segundo o filósofo francês, haveria

um sentimento comum que os separaria da sociedade burguesa, sentimento expresso na

noção que Sorel chama de “catástrofe moral”. Esta seria um diagnóstico, a nova avaliação

de todos os valores morais pelo proletariado militante. Sustenta o autor que não haveria

grandes diferenças entre um anarquista e um socialista, se ambos estivessem engajados no

movimento sindical (Idem,p.91). Eles compreenderiam as relações sociais, a conduta

privada e o direito quase da mesma maneira.

Podemos supor, portanto, que seria o engajamento direto no movimento sindical, a

militância dos e entre os trabalhadores no âmbito dos sindicatos o que conferiria a

convergência essencial, a unidade na análise dos problemas sociais, políticos e o comum

estabelecimento de novos valores morais na tentativa de superação da “catástrofe moral”

por parte do proletariado. Seria no âmbito da prática da luta direta que se construiria essa

nova unidade moral entre os trabalhadores. Neste âmbito, e, ao que nos parece, somente

nele, o proletariado estaria protegido das acomodações e desvios da autêntica luta

socialista promovidos tanto pelos políticos parlamentares quanto pelos intelectuais teóricos.

Nas palavras do autor,

Não se deve, portanto, conceder senão uma importância bem medíocre às fórmulas e às reivindicações dos programas. Bem longe de caracterizar a decadência do socialismo, a crise atual do socialismo científico marca um grande progresso: ela facilita o movimento progressivo liberando os entraves do pensamento (Idem).

126

Mas o que caracteriza o que Sorel identificaria como autêntica luta socialista?

Voltamos aqui à problemática da luta de classes como uma luta jurídica, algo que se

condensaria predominantemente numa espécie de plano político-moral. Político porque

luta, inserida num domínio de relações de força. Moral porque se trataria, sobretudo, da

edificação de novos valores éticos no seio do proletariado combatente. Seria ancorado

nesses novos valores, e não numa condição material específica, que o proletariado manter-

se-ia coeso em torno de um ideal socialista isento de desvios políticos e teóricos e firme em

sua posição antagônica aos interesses burgueses, numa clara e inflexível diferenciação de

classe (o que Sorel passará logo a denominar “cisão” de classe).

Vê-se, portanto, que, para Sorel, trata-se de uma crise do “socialismo científico”,

não de todo tipo de socialismo. Trata-se, mais exatamente, de uma crise do marxismo. E

segue o autor por um breve desenvolvimento dessa tese. Afirma que por longo tempo se

acreditou que o socialismo poderia extrair suas conclusões de teses científicas e apresentar-

se assim como uma ciência social aplicada. Considerando Benedetto Croce um autorizado

intérprete de Marx, indica que o filósofo napolitano já teria demonstrado que tal operação

não seria viável. Sustenta Sorel que a ciência deveria se desenvolver “livremente”, sem

nenhuma preocupação sectária. Conclui o raciocínio afirmando que a sociologia e a história

existem para todos da mesma maneira e que a socialdemocracia não poderia valer-se de

uma ciência apropriada às suas aspirações, da mesma forma que os católicos não poderiam

almejar a uma “ciência católica” (Idem).

Sorel parece acreditar na neutralidade científica, ou pelo menos em alguma espécie

de neutralidade epistemológica para cada área da ciência. Como interpretar de outra forma

a afirmação de que a história e a sociologia existem para todos da mesma forma, senão

como a aceitação do pressuposto de que existe algum método universalmente válido para

essas áreas do conhecimento, independente dos valores ou do contexto social e político de

quem o constrói? Seria, em última análise, um método a ser descoberto, não inventado.

Nota-se então, em Sorel, uma provável influência durkheimiana, que de todo modo poderia

127

ser deduzida do estudo que ele faz de As regras do método sociológico, estudo que abre o

primeiro número de Le Devenir Social, em abril de 1895.40

Existe uma condição permanente nas formulações do autor, qual seja a

desconfiança de parte significativa de instituições sociais que possam se vincular, de

alguma forma, a disputas diretas pelo poder político. É a desconfiança, de inspiração

tipicamente anarquista, de tudo o que conforma alguma instituição. Nesse caso Sorel

enquadra os poderes de Estado, as doutrinas políticas, os grupos intelectuais, os partidos. O

curioso é que nesse conjunto não se encontrem nem a ciência, nem os sindicatos. Parece-

nos que o autor vislumbra nas duas últimas instituições uma espécie de blindagem à

constituição de poderes internos que viessem a desviá-las de seus propósitos

essencialmente coletivistas. De que forma o filósofo francês justifica a localização da

ciência e da atividade sindical em instâncias privilegiadas da ação social? Com relação à

ciência, tratar-se-ia de sua suposta neutralidade política e ideológica, pressuposto

assimilado a partir de uma clara influência positivista, pelo menos neste caso (visto que,

como já salientamos, o próprio Sorel se apresenta como crítico do positivismo que

identifica em determinadas vertentes do socialismo da II Internacional). Já seu entusiasmo

pelos sindicatos e o sindicalismo é um dos elementos sobre os quais continuaremos a nos

debruçar na sequência deste trabalho, em momento adequado.

Voltemos por agora a nos ocupar da problemática jurídica que Sorel estabelece

existir na obra de Marx41. Sustenta que haveria uma opinião equivocada segundo a qual o

direito e a moral, naquela obra, seriam produtos derivados, não possuindo senão uma

existência efêmera, onde a ciência social estaria reduzida à ciência econômica. Adverte

que, embora não tratando especificamente da questão da moral, seria necessário saber se a

moral e o direito manteriam ou não “relações estreitas de dependência mútua” (SOREL,

2007, p. 173). De saída, julga ser um problema obscuro. Em princípio, recorre ao marxista

italiano Antonio Labriola para dissecar a questão. Lembra que em seu livro Del

40 Cf. Sorel (1895). 41 Basear-nos-emos aqui no artigo Les idées juridiques dans le marxisme, publicado originalmente na Rivista di Storia e di Filosofia del dirito, agosto de 1899 (SOREL, 2007,p. 173), mas ao qual tivemos acesso por meio da coletânea de textos de Sorel publicada em 2007 pela editora L'Harmattan, de título Essais de critique du marxisme, organizada por Patrick Gaud, da Universidade de Nice, conforme indicado nas referências bibliográficas.

128

materialismo storico – Dilucidazione preliminare, Labriola aproximaria a moral, em dois

diferentes momentos, primeiro ao direito, depois à religião e à arte. Argumenta que, a seu

ver, é a segunda abordagem que estaria mais próxima do pensamento de Marx, pois a

primeira situaria a moral num nível inferior da superestrutura social, aquele sobre o qual a

estrutura econômica exerceria uma ação direta. Já na segunda abordagem, a moral estaria

em relação longínqua com a economia (Idem).

De todo modo, Sorel salienta que não haveria em Marx uma definição clara da

moral ou de seu papel nas sociedades, Marx não teria procurado se aprofundar na história

das ideias morais. Já apresentando aqui sua opinião sobre a fonte dos valores morais,

sustenta o autor que esta ausência de precisão sobre questões morais em Marx dar-se-ia

porque este não teria descoberto o lugar que conviria atribuir à família na sociedade,

evocando uma suposta hesitação daquele autor em toda ocasião em que precisou abordar tal

assunto em seus escritos.

Segundo Sorel, seria pelo estudo da família que se poderia atribuir à moral uma

infraestrutura pertencente à “vida prática”, como se teria podido fazer com o direito em

relação à produção da vida material (Idem, p. 174). Dessa maneira o autor espera aqui

revelar a suposta falsidade que haveria em considerar a esfera da moral como

significativamente separada daquela do direito. Sorel desenvolve de maneira bem mais

completa a tese dessa ligação inextricável entre moral e direito num artigo intitulado Os

sentimentos sociais, nos números 7-8 de Le Devenir de 1896.42 Neste artigo, Sorel

desenvolveria a tese de que a divisão do trabalho começaria no interior da família, cujos

valores morais se desenvolveriam em relação direta com essa condição material. Daí a

relação de “proporcionalidade” família/moral e sociedade/direito. Comentando esta ideia,

sustenta Gaud que “A evolução da família reenviaria assim à divisão do trabalho e às

condições de existência. Por isso, ela está intimamente ligada à moral” (GAUD, 2007,

p.193). A passagem abaixo do referido artigo torna mais clara a relação de

condicionamento recíproco entre economia e moral:

Parece-me que seria melhor procurar definir exatamente as condições da vida econômica nos diversos tipos de família: chegaremos a entender assim os sistemas de ações inteligíveis, a compreender os sentimentos que se desenvolvem nos grupos e a compreender, senão suas origens, ao

42 Cf. Sorel,1896.

129

menos a razão de ser de sua manutenção e as possibilidades de mudança (pelo contato com uma nova economia) (SOREL, 1896, p. 674-675).43

Estabelecida a relação cognoscível entre economia e valores morais, e, portanto,

entre valores morais e o direito, prossegue o autor na classificação da natureza de tal

relação. Encontramos aqui parte do esforço de crítica ao “determinismo econômico” que

estaria presente nas interpretações da obra de Marx à época. As relações estabelecidas pelo

“espírito” entre as diferentes formas ideológicas da superestrutura e a ciência econômica

não poderiam se expressar senão por meios de figuras de linguagem. Argumenta o autor

que se houvesse relações diretas e determinantes entre as coisas, poder-se-ia assim criar

uma terminologia específica e evitar a recorrência às metáforas (SOREL, 2007,p. 174). Ao

frequentemente tomar tais figuras de linguagem na obra de Marx ao pé da letra, os

marxistas teriam pretendido substituir a história por algum tipo de mitologia.

Lembrando-se da polêmica de Engels contra Dühring, especificamente o momento

em que o revolucionário alemão sustentaria que a economia é mais importante na história

que a força, porque esta seria um meio e aquela um fim, Sorel sustenta que o que pode ser

dito da força, neste caso, também poderia ser dito com relação ao direito. Isto porque

quando novas regras são estabelecidas, quando o direito de sucessão é modificado, etc.,

tudo isso seria feito em vista de certos fins econômicos: as regras jurídicas não seriam

senão meios para atingi-los. Porém, é aos meios que concede a condição de criação humana

por excelência. Segundo ele, “meios” seria o que temos em nossas mãos, o que construímos

nós mesmos, nosso instrumento, nossa “obra pensada”. O “fim”, por sua vez, escaparia em

grande parte a nosso poder. Jamais conseguiríamos realizá-lo tal como concebido por nós.

Ao contrário, poderíamos mesmo chegar a resultados opostos aos que havíamos imaginado

43 Chamemos atenção aqui para o fato de que este postulado teórico estabelecendo as bases dos valores morais da sociedade no núcleo familiar é um dos momentos ilustrativos dos traços proudhonianos de Georges Sorel, em que Proudhon aparece literalmente referido. Sobre a questão da família como base da sociedade, Proudhon argumenta: “Entre o amor e a justiça, em outros termos, entre o casamento e a sociedade, ou Estado, existe uma ligação íntima, um laço de solidariedade, que tem sido reconhecido em todos os tempos, em virtude do qual todo atentado à justiça e à liberdade pública é destrutivo para a família e, por conseguinte, para o próprio amor; e, reciprocamente, todo atentado ao amor e ao casamento é destrutivo para a sociedade e o Estado. O casamento, órgão natural e formador da justiça, é a base da sociedade. As liberdades públicas têm por base e por salvaguarda os costumes domésticos. Os mesmos preceitos pelos quais arruinam-se os direitos dos povos são aqueles pelos quais arruina-se a ordem das famílias” (PROUDHON, 1967, p. 321-322. Grifos nossos.)

130

no início. “O ‘meio’ é mais humano e mais livre; o ‘fim’, mais natural e mais sujeito à

necessidade”. O autor assevera aqui que é justamente porque a economia seria um sistema

de certa forma análogo à natureza, que apresenta uma maior sujeição a leis necessárias, que

Engels a colocaria na base da escala (Idem,p.175).

Estabelecida a ligação entre direito e pressupostos morais (ligação necessária para

sustentar sua crítica ao primado da violência imediata, como vimos acima), Sorel passa à

tentativa de demonstração de como o estudo da teoria da mais-valia seria tão eivado de

fatores jurídicos quanto econômicos. Sugere que seria possível perceber o cuidado com que

Marx indica todos os detalhes jurídicos de tal teoria (SOREL, 2007:176). Analisando O

Capital, o autor acompanha os argumentos iniciais com respeito à formação do valor no

processo de circulação de mercadorias. Tal ocorreria, conforme lembra Sorel, na base da

troca de equivalentes. Mesmo que baseada na troca de equivalentes, a circulação das

mercadorias deve permitir a formação do capital. As diferenças ocasionais de ganho entre o

comprador e o vendedor não seriam suficientes para explicar a existência de um lucro

normal para o conjunto da classe capitalista. De acordo com o autor, Marx definiria com

precisão a condição jurídica do contrato por meio do qual se efetuaria a venda da força de

trabalho. Tal princípio não seria outro senão que o comprador e o vendedor são pessoas

juridicamente iguais. O vendedor seria livre e deveria permanecer livre, não podendo

alienar sua força de trabalho senão por um período bem limitado (Idem, p. 176). Sorel

salienta a naturalização ocorrida, ao longo da história, com relação ao fato do “vendedor”

da força de trabalho não ser possuidor de meios de produção. Seria um fato que não

suscitaria preocupações em ninguém, tão diretamente incorporado que estaria às condições

sociais.

O autor prossegue em sua análise, indicando a especificidade da venda da força de

trabalho. Seria um processo a crédito. De resto, é o que ocorreria com toda venda de

mercadorias na qual o valor de uso está alienado do processo pela venda, sem ser

transmitido ao mesmo tempo ao comprador. Este, então, adia o pagamento até que a

“coisa” comprada tenha servido como valor de uso (Idem, p.176). Tal crédito, que nesse

caso específico o trabalhador “concederia” ao capitalista, seria justamente a aplicação de

uma “regra jurídica geral” (Idem, p.176). Assim, para Sorel, Marx nos faria observar, na

fábrica, o processo jurídico que acompanharia o processo de produção. A relação de

131

propriedade seria parte desse processo jurídico, na medida em que pertenceriam ao

capitalista tanto a força de trabalho comprada ao trabalhador quanto os meios de produção

apresentados a essa força de trabalho para a obtenção do produto final. Este produto, por

sua vez, não seria outra coisa senão propriedade, também, do capitalista.

Tais seriam até aqui, para Sorel, os liames concretos característicos de uma relação

jurídica no processo de obtenção de mais-valia, tão prevalecentes quanto os elementos

econômicos, ou que constituiriam, inclusive, os próprios elementos econômicos:

propriedade legal, por parte dos capitalistas, dos meios de produção; propriedade legal,

pelos mesmos capitalistas, da força de trabalho comprada ao trabalhador; plena liberdade

dos possuidores da força de trabalho de dela dispor ou não numa relação legal de compra e

venda com o capitalista; absoluta liberdade civil de cada um agir por sua própria conta e

arbítrio nesse que seria, portanto, um processo de compra e venda de mercadorias, sendo a

força de trabalho a mercadoria específica do caso em questão. O autor detém-se aqui sobre

as observações de Marx segundo as quais o lucro proviria de uma combinação muito

proveitosa para o comprador (o capitalista), cuja legalidade em nada feriria os direitos do

vendedor (o trabalhador). A lei das trocas restaria, assim, rigorosamente observada,

trocando-se equivalente por equivalente (Idem, p.177).

Sorel comenta a seguir as observações de Engels em um dos prefácios à Miséria da

Filosofia (edição não indicada por ele), no qual o parceiro intelectual de Marx nos

indicaria, segundo Sorel, as razões que teriam estimulado Marx a lidar com tais detalhes

jurídicos. A justiça e a igualdade de direitos seriam apontadas por Engels como os pilares

sobre os quais a burguesia desejaria erigir seu edifício social.44 A livre troca que se produz,

a partir da determinação do valor das mercadorias pelo trabalho, entre duas partes

possuidoras de direitos iguais: tais seriam os reais fundamentos sobre os quais se

44 Cf., na tradução brasileira, o “Prefácio à Primeira Edição Alemã-1884”, de Engels, em Karl Marx. Miséria da Filosofia. São Paulo: Centauro, 2001, p.13-14, em que passagem aludida por Sorel é a seguinte: “Mas a determinação do valor de Ricardo, apesar dos seus nefastos caracteres, tem um aspecto que a torna cara aos nossos bons burgueses. É o aspecto pelo qual faz apelo, com uma força irresistível, ao seu sentimento de justiça. Justiça e igualdade de direitos: eis os pilares com a ajuda dos quais o burguês dos séculos XVIII e XIX queria construir o seu edifício social. Sobre as ruínas das injustiças, das desigualdades e dos privilégios feudais. A determinação do valor das mercadorias pelo trabalho e a livre troca que se faz de acordo com essa medida de valor entre os possuidores iguais face ao direito, tais são, como já o demonstrou Marx, os fundamentos reais sobre os quais se edificou toda a ideologia jurídica, política e filosófica da burguesia moderna” (ENGELS, 2001, p.13-14).

132

sustentaria toda a ideologia da burguesia moderna (Idem). Esse seria, segundo o autor, o

caminho que faria parte do plano de Marx de se colocar sobre o terreno do direito ideal o

mais rigoroso, tal como podia concebê-lo a sociedade saída das revoluções do século

XVIII. “Vemos assim a teoria do valor iluminada por uma nova luz, plena de preocupações

jurídicas” (Idem).

A história real da produção capitalista, segundo o autor, nos arrastaria para longe

das hipóteses liberais, sobre as quais se fundaria sua análise jurídica da mais-valia. Ele

inicia aqui a crítica dos fundamentos liberais que promovem, permitem, legalizam a

exploração da força de trabalho na fábrica. Com o “vasto” desenvolvimento dos

“instrumentos de trabalho”, o trabalhador ter-se-ia tornado um auxiliar que não poderia

permanecer ocioso um instante sequer. Enquanto o direito liberal suporia livres de

constrangimentos ambas as partes contratantes, descobre-se, na verdade, que o trabalhador

não é um agente livre, mas que o tempo pelo qual ele poderia escolher vender sua força de

trabalho é, na verdade, o tempo pelo qual ele é constrangido a vendê-la, assim se

concretizando sua escravização pelo capitalista no sistema geral (Idem). Baseando-se em

Marx, Sorel enfatiza a ruína a partir daí causada na relação jurídica entre comprador e

vendedor da força de trabalho, de modo que toda a transação deste gênero perderia a

aparência de um contrato entre pessoas livres.

Acompanhando de perto as clássicas elaborações de Marx n’O Capital, a intenção

de Sorel até aqui é percorrer com a ênfase que acredita adequada as críticas marxianas que

recairiam especificamente sobre as estruturações jurídicas do sistema capitalista. É na

denúncia dos traços jurídicos de tal sistema, traços que sustentariam a exploração da força

de trabalho dos operários, mais do que da relação direta de tal exploração, que repousam as

intenções de Sorel de elaborar uma crítica mais eficaz do capitalismo. Ao que parece, para

o autor, é a força ideológica de tal estruturação jurídica que sustentaria o processo de

produção de mercadorias. Um esquema ideológico com eficaz força material, de aparência

inquestionável. Daí que a violência imediata pareça, em princípio, inócua para Sorel, tal

como a refuta por ocasião do levante de Paris de 1871.

A partir disso, o autor preconiza o que considera ser um novo sistema jurídico, a ser

erigido pela pressão coletiva dos trabalhadores, que modifique o atual sistema de venda de

133

sua força de trabalho aos capitalistas, terminando, juridicamente, com a diferença entre o

valor de troca e o valor de uso da força de trabalho. Um sistema jurídico que surgisse em

oposição à ideologia dos direitos do homem e do cidadão (Idem, p.178). Em contraposição

aos direitos absolutos que, na realidade, deixariam os pobres sem direitos efetivos, Sorel

defende a criação dos direitos específicos dos trabalhadores. À argumentação de que,

assim, estar-se-ia remetendo à antiga distinção entre pessoas, que teria já sido condenada

pela filosofia do século XVIII, responde o autor que não se trataria, na verdade, de

reinstituir diferenças entre pessoas, mas de reconhecimento de diferenças “profissionais”

(Idem, p.178). Não seria pela qualidade de pobre que o proletariado seria protegido, mas

pela sua condição de vendedor de uma mercadoria específica, possuidora de certas

características gerais que demandariam tratamento específico.

De acordo com o autor, o tratamento liberal dado até então aos contratos de

trabalho, a partir dos pressupostos de uma “igualdade abstrata”, que consideraria,

sobretudo, os qualificativos “meu” e “teu” na relação contratual (Idem,p.178), não teria

permitido a compreensão real do caráter da legislação trabalhista, daí que se imporia aos

trabalhadores a tarefa de fazê-lo por meio de um seu próprio direito. Sorel argumenta que,

nas considerações até então feitas sobre a mais-valia, o direito teria sido abordado de um

ponto de vista puramente formal, o que, segundo ele, seria uma operação incompleta. Isto

porque, considerando-o a partir da ideia política que o geraria, o direito compreenderia três

momentos: 1- uma divisão das relações humanas em lícitas e ilícitas; 2- uma definição, ao

menos simbólica, de cada um dos tipos ordinários dessas relações, tanto lícitas quanto

ilícitas; 3- uma interdição do que é ilícito (Idem). Observa o autor que, em nome das

operações capitalistas e comerciais, de uma maneira geral haveria uma grande flexibilidade

na determinação das relações lícitas e ilícitas, restando muito poucas ilícitas no que se

refere às atividades de acúmulo de capital. Aponta que o direito civil seria mais severo

quanto a essa flexibilidade, mas que no caso dos contratos de venda da força de trabalho o

abuso é a regra.

Sorel assevera assim que as analogias de forma existentes entre a venda comercial e

a venda da força de trabalho não possuiriam qualquer valor, dado que haveria óbvias

diferenças de conteúdo. Tais analogias, que seriam assimiladas formalmente, possuiriam

valor apenas na prática dos tribunais. Levando-se em consideração a ideia política geradora

134

do direito, tais assimilações não seriam jurídicas (Idem). Note-se aqui a definição de

jurídico referindo-se a uma “ideia política geradora do direito”. A nosso ver, tal definição

remeteria a uma provável diferença entre o direito na sociedade capitalista e um eventual

“direito dos trabalhadores”, conferindo ao primeiro um status de mistificação da realidade,

embora mistificação com eficaz força material, e ao segundo o conceito de “jurídico”.

Assim, tal conceito conteria, na concepção soreliana, o autêntico “reflexo” das relações

materiais da sociedade, que por ser autêntico só pode ser o reflexo de relações reais, não

mistificadas.

Sorel critica o ato de se pretender defender o direito “absoluto” ao sustentar-se que

este nivelaria o proletário ao burguês, ao passo que o primeiro seria tratado como um ser

inferior por um direito “específico”. E esse raciocínio não permaneceria apenas no terreno

formal. Escolher-se-ia duas classes de pessoas e pretender-se-ia justificar, por meio de uma

ideia política, a assimilação que passaria a uma fórmula jurídica. Porém, de acordo com o

autor, na pretensão de não distinguir o proletário do burguês, recusa-se igualmente a

constatação daquilo que há de ilícito nas práticas atuais, ou seja, de que o trabalhador

encontra-se privado de toda proteção legal (Idem, p. 179).

Sorel passa então a analisar de forma mais pormenorizada o caminho pelo qual a

luta dos trabalhadores assume o caráter de uma luta jurídica, ou como se dá o surgimento

do conflito que tomaria os contornos de uma luta social e desembocaria sobre a legislação

concernente à duração da jornada de trabalho. Segundo o autor, esse conflito é apresentado

por Marx numa forma jurídica. Encontrar-se-ia n’O Capital o resumo dos argumentos

jurídicos que os trabalhadores poderiam opor aos capitalistas. Sorel defende aqui que, por

toda a obra, Marx se colocaria do ponto de vista dos trabalhadores ingleses que teriam

conservado a tradição da Idade Média, uma concepção jurídica do trabalho contraria àquela

que decorreria do direito natural (Idem). Portanto, a ideia de que o trabalho é propriedade

dos homens que adquiriram o privilégio da profissão por meio das corporações deveria,

assim, estar sempre presente no espírito dos autores que estudassem o sindicalismo inglês.

De acordo com o autor, tal ideia estaria, até o momento em que escreve, excessivamente

negligenciada (Idem).

135

A luta contra o capitalista se daria então em torno de um eixo de reivindicação bem

definido: para que o contrato seja justo, o trabalhador deve poder reproduzir sua força de

trabalho, por meio de seu salário cotidiano, para que a possa vender novamente no dia

seguinte. Ver-se-ia aqui uma concepção que serviria de base à teoria do valor. Este existe

no âmbito de uma operação normal, que se produziria através de uma lei invariável,

conferindo movimento uniforme à “máquina social”. A força de trabalho dever-se-ia

reproduzir da mesma maneira que se preserva um mecanismo (Idem, p.180). Neste caso, o

trabalhador se colocaria no terreno do direito burguês. Compararia seu corpo a uma

máquina, sendo sua força de trabalho a mercadoria a ser vendida no mercado. Seu corpo

seria seu patrimônio. Por conseguinte, tratar-se-ia de uma negociação entre detentores de

meios de produção.

Citando Marx, Sorel procura demonstrar o que seria o viés jurídico apontado pelo

autor d’O Capital.45:

O capitalista faz valer seu direito de comprador, quando tenta prolongar a jornada...; [201/202] O trabalhador faz valer seu direito de vendedor quando pretende restringir a jornada de trabalho a uma duração normalmente determinada (em relação à natureza especial da mercadoria vendida)... Direito contra direito, ambos portando a chancela da lei que rege a troca de mercadorias. Entre dois direitos (Rechten) iguais, quem decide? A força (Gewalt) (MARX apud SOREL, 2007, p. 180).46

Sorel sustenta que a reivindicação do proletariado não seria uma revolta brutal de

pessoas que recorreriam à violência imediata para alcançar seus objetivos. Não se trataria,

aqui, de algo como uma revolta de camponeses ou escravos. Nem se trataria, tampouco, de

uma reivindicação formulada em nome de algum ideal mais ou menos engenhoso. Tratar-

se-ia, sim, de uma verdadeira reivindicação jurídica, fundada sobre razões de direito

45 Em nota, o organizador nos informa que Sorel cita diretamente, aqui, a partir da terceira seção d’O Capital, capítulo X, fim do parágrafo I e depois parágrafos IV e V (Idem, p. 194). Esta referência específica parece equivocada, pois, a rigor, não há capítulo X em nenhuma das terceiras seções dos três livros. O capítulo X do livro I é o primeiro da quarta seção que, de fato, trata da produção da mais-valia relativa, mas a passagem reproduzida por Sorel não se encontra ali literalmente. Sorel, por si mesmo, limita-se a citar a página da edição francesa a que tem acesso. De todo modo, as passagens d’O Capital aqui referidas por Sorel encontram-se no capítulo “A Jornada de Trabalho”, capítulo VIII da terceira seção do livro um. 46 Ou diretamente em Marx: “O capitalista afirma seu direito como comprador, quando procura prolongar o mais possível a jornada de trabalho e transformar onde for possível uma jornada de trabalho em duas. Por outro lado, a natureza específica da mercadoria vendida implica um limite de seu consumo pelo comprador, e o trabalhador afirma seu direito como vendedor, quando quer limitar a jornada de trabalho a determinada grandeza normal. Ocorre aqui, portanto, uma antinomia, direito contra direito, ambos apoiados na lei do intercâmbio de mercadorias. Entre direitos iguais decide a força” (MARX, 1988, p.181).

136

buscadas na mesma fonte que aquela que constitui o direito da burguesia (Idem). Curioso é

que o autor pareça ignorar a conclusão da própria passagem que cita: “Então quem decide?

A força”. Obviamente, Sorel não a ignora. Provavelmente a interpreta não no sentido da

violência imediata, como demonstrado acima, mas como medição de forças no plano

jurídico, entendido então como “ideia política geradora do direito”. O que acompanha tais

conclusões é sempre o pressuposto previamente anunciado, e por nós apresentado páginas

acima, de que a luta de classes em Marx teria, na verdade, um caráter jurídico, seria uma

luta jurídica.

Para o autor, o conflito resultaria do fato de que os trabalhadores teriam alcançado

uma nova visão de sua verdadeira situação, da qual não haveriam tido ainda uma

consciência exata. Expressariam esta nova visão por meio de uma interpretação jurídica das

relações de produção. Obviamente, os patrões interpretariam essas manifestações de

maneira completamente diferente. Em todas as operações que realizariam no mercado de

trabalho e nas fábricas, não enxergariam nada que não estivesse sendo feito de forma

estritamente correta (Idem). A força de trabalho seria vista pelo próprio trabalhador como

uma mercadoria, que seria produzida por seu corpo. A partir do momento em que os

trabalhadores refletissem sobre sua própria posição e procurassem compreender as relações

capitalistas de seu próprio ponto de vista, chegariam à demanda de uma jornada de trabalho

equivalente às necessidades para manutenção e reprodução daquela força de trabalho, não

mais que isso.

De acordo com o autor, o capitalista não desejaria participar do processo pelo qual

esta mercadoria é produzida. Teria bem pouco interesse sobre isso, já que a mercadoria

força de trabalho seria superabundante no mercado. Do ponto de vista de seus direitos,

também não vê como poderia ser impedido de se utilizar daquilo pelo que pagou.

Sobretudo, trabalhador e capitalista estariam de acordo quanto às definições: a força de

trabalho é uma mercadoria e o corpo do trabalhador é a máquina que a produz. Portanto,

desde que o trabalhador tivesse adquirido a clara consciência desta sua posição, julgaria

todas as coisas conforme a teoria jurídica referida anteriormente. O capitalista “roubaria”

tempo de trabalho do trabalhador, tempo necessário fora da fábrica para usufruto das

condições necessárias à própria reprodução da mercadoria força de trabalho (Idem, p.181).

137

Segundo Sorel, não se teria até então compreendido o verdadeiro sentido das

passagens d’O Capital em que Marx compararia os capitalistas a corruptos, usurpadores e

bandidos. Onde se teria apenas enxergado fórmulas literárias, haveria necessidade de se

compreender que se trataria de reivindicações jurídicas feitas em nome da classe

trabalhadora, cujo único meio de existência encontrar-se-ia ameaçado pela prática

capitalista. Marx procuraria conferir maior relevo aos princípios jurídicos da luta, porém

num tom bastante violento, violência que persistiria no discurso de Marx (Idem).

Para Sorel, uma luta social não se conduziria apenas com os argumentos que as

partes em litígio poderiam esgrimir num tribunal civil. Ela residiria, ao menos por um longo

período, num conjunto de violências que dissimulariam, aos olhos do observador

superficial, a alma jurídica que o historiador das instituições saberia descobrir. Seria nas

lutas sociais que assistiríamos à gênese do direito. Uma luta social atingiria seu fim por

meio de leis que seriam aceitas por todos como justas. Na origem, porém, seria natural que

aqueles que empreendem suas reivindicações fizessem se ouvir a voz de um oprimido que

gritaria por vingança, que procura denunciar delitos, que toma em suas ações uma linha

criminal mais que civil. Tratar-se-ia, porém, de uma lei geral da história que o conflito

criminal preceda o conflito civil e seja transbordante de violentas emoções (Idem).

Na sequência dos acontecimentos, adviriam os compromissos e as leis excepcionais,

que se estenderiam de um caso a outro e terminariam por tornarem-se gerais de acordo com

o desenvolvimento do capitalismo. Sorel vislumbraria assim, por meio das lutas entre

trabalhadores e patrões, um processo evolutivo de acordo com o qual se constituiria a

história das sociedades capitalistas e suas instituições. Tal evolução chegaria a termo da

seguinte forma: os homens poderosos, contra os quais se havia erguido a rebelião,

terminam por aceitar as regras que eles haviam durante muito tempo considerado

opressivas de sua liberdade econômica. Conclui o autor que o direito, portanto, acaba por

modificar-se sem que a força tenha deixado qualquer traço permanente de sua passagem. A

ciência teria assim demonstrado a necessidade histórica do resultado a que se chegou.

Partindo-se do domínio dos sentimentos, das reivindicações apaixonadas, chegar-se-ia à

forma mais intelectual da atividade humana, ou seja, a constituição de um novo direito

(Idem, p.181). Sorel aqui se aproximaria de Vico, ou antes, seria por ele influenciado em

suas considerações sobre a evolução do direito na história humana, como o autor mesmo

138

sugere ao indicar a leitura de seu artigo sobre Vico no número de Devenir Social de

outubro-dezembro de 1896.47 A passagem a seguir ilustra a concepção geral de Sorel sobre

o surgimento do direito na história:

O direito não é um produto espontâneo da consciência humana. Da mesma forma que a ciência, ele é o produto de uma longa evolução do espírito, que passa de formas primitivas, totalmente impregnadas de instinto, a formas superiores dirigidas pela inteligência. O direito é o resultado do pensamento filosófico se exercendo sobre os costumes, da mesma forma que a ciência é o resultado desse pensamento que tenta passar do empirismo às leis. Os procedimentos do espírito são sempre os mesmos, qualquer que seja o domínio no qual exerça sua atividade. As sequências se reproduzem sempre seguindo uma mesma lei de desenvolvimento. Por outro lado, a lei do eterno retorno se exerce aqui como em todas as esferas humanas; as contingências reconduzem o espírito, de tempos em tempos, às formas primitivas; os sentimentos rejuvenescem a evolução, fazendo nascer novos processos que, partindo do impulso apaixonado, estão destinados a atingir as regiões da razão – se as circunstâncias lhes derem tempo para fazê-lo. Não existe uma evolução do direito propriamente dita, mas múltiplas evoluções, que se entrecruzam às vezes completamente ao acaso e que dependem de acidentes históricos (SOREL, 1900, p.390).

Assim, assevera o autor que não seria pela violência imediata que um conflito social

atingiria seu fim. A força que lhe daria termo, no caso o Estado, teria sua intervenção

finalmente motivada por razões jurídicas. No caso da luta dos trabalhadores, as relações

sociais permaneceriam formalmente o que teriam sido até então: o contrato continua a ter

por objeto a mercadoria força de trabalho; esta continua a produzir mais-valia. Mas sua

utilização não estaria mais abandonada aos caprichos do capitalista, já que este não pensaria

suficientemente no futuro. Uma modificação teria ocorrido (SOREL, 2007, p.182). O que

teria sido, no início, o interesse exclusivo de uma classe, torna-se interesse público. Haveria

uma transformação ao nível da forma, mas conservação do conteúdo (o regime de

trabalho). Esta mudança de forma seria em si mesma notável, já que tornaria o proletariado

o gerador das ideias políticas que exerceriam uma ação sobre o futuro da sociedade. Dessa

maneira, o proletariado estaria empreendendo sua missão histórica, ou seja, encarnar todas

as reivindicações do interesse geral (Idem, p. 183).

Certo que há em Marx a ideia de que o proletariado é a única classe na história

potencialmente capaz de erradicar da humanidade a “exploração do homem pelo homem”,

a classe que “encarnaria” o interesse geral da humanidade de eliminar a exploração de

classe das sociedades, devido justamente à característica do sistema capitalista de

47 Sorel, 1896a.

139

universalizar seu funcionamento a todas as sociedades e a todos os níveis das relações

sociais. O curioso é que Sorel admita essa característica do proletariado mantendo-a nos

limites da sociedade de classes, inscrevendo-a não além do horizonte histórico de um

sistema social que se mantém e reproduz justamente a partir da exploração da força de

trabalho deste proletariado, já que a mais-valia seguiria sendo produzida, mas desta vez no

“interesse geral”.

Qual teria sido aqui, de acordo com Sorel, o processo resumido dessa “evolução do

espírito” social? Os proletários reivindicaram a proteção de sua “riqueza”, ou seja, sua vida.

Os legisladores aceitaram tal reivindicação. Porém, ao aceitá-la, não a teriam considerado

mais do ponto de vista dos interesses de uma classe, mas a teriam transformado numa

questão concernente a toda sociedade. Poderíamos nos perguntar como a reivindicação por

uma menor jornada de trabalho poderia ser assimilada pelo direito como concernente aos

interesses de toda a sociedade, e não apenas da classe trabalhadora. Sorel estaria assumindo

assim a existência de valores universais a-históricos e, portanto, não classistas, que

deveriam se estabelecer por meio de um processo evolutivo do “espírito” social, em nome

do bem comum final? Conforme se pode concluir a partir da citação acima, parece ser esse

o caso aqui.

O autor desconsidera as permanentes contradições de classe do sistema capitalista

ao não levar às últimas consequências sua análise sobre a luta pela redução das jornadas. Se

o fizesse, poderia concluir que, ao assimilar como regra geral menores jornadas de trabalho,

a legislação estatal atende a uma reivindicação central da classe trabalhadora, que sem

dúvida ascende a condições de vida menos penuriosas, mas não faz apenas isso. Tal medida

serve, como não poderia ser diferente, para arrefecer momentaneamente os ânimos rebeldes

por parte dos operários, ao verem sua demanda contemplada. Ao mesmo tempo, cuida de

“civilizar” o próprio sistema capitalista não como uma medida que demonstraria a

“evolução do espírito” social, não como uma iniciativa que serviria ao interesse geral da

sociedade, mas como reforço da ordem na lógica do próprio capitalismo. Trata-se de

garantir a sobrevivência do sistema de exploração da mercadoria força de trabalho, não de

torná-lo “superior” de algum ponto de vista. Trata-se de salvar o capitalismo da sanha dos

próprios capitalistas, ao evitar que extenuem ao extremo a fonte de sua própria riqueza, ao

140

impedir que concentrem uma bomba de ódio mortífero no interior de suas fábricas.48 Os

evidentes pressupostos idealistas de Sorel o fazem descurar da análise de classe que

começava por empreender e o levam a considerar como se fossem de interesse universal

medidas que também reforçam, ordenam e consolidam o funcionamento do sistema social

de produção de mais-valia, embora possuam real valor no que se referem ao alargamento

dos direitos sociais.

Sorel tem o propósito de enveredar-se justamente pelo que considera serem

“lacunas” em Marx. Sustenta ser lamentável o que, segundo ele, seria a ausência em Marx

de um estudo aprofundado da jurisprudência inglesa. Tal estudo poderia mostrar como a

nova legislação estaria ligada às tradições e por que, no entanto, os magistrados mostrariam

tanta má vontade em aplicá-la. Afirmar, como faria Marx, que a jurisdição inglesa esteve

sempre ao serviço do capital apenas constataria o problema, mas não o explicaria (Idem,

p.183). Segundo o autor, a dificuldade seria bem grande quando se estuda as ideias sobre a

importância decisiva da forma do direito. Considera que Marx levaria em conta apenas as

manifestações exteriores dos contratos de trabalho, o que o faria classificá-los

independentemente de seu verdadeiro conteúdo, negligenciando, assim, a ideia política pela

qual o direito se gera e nasce das condições sociais.

De acordo com Sorel, a antiga legislação teria tido por objetivo romper a resistência

organizada dos trabalhadores. O delito de conspiração teria sempre preocupado os

magistrados ingleses, que mostrariam uma particular obstinação na utilização de todos os

pretextos que pudessem lhes fornecer as antigas leis a fim de quebrar os sindicatos.

Pareceria a esses magistrados que as novas regras seriam exceções, e, para eles, seria

necessário restringir cada vez mais as agitações com objetivo de reclamá-las. Observa Sorel

que contra os trabalhadores em luta com seus patrões pesaria a chamada presunção

criminal, uma prática remanescente das antigas leis trabalhistas, não prevista teoricamente

nas novas, mas exercida em todos os tribunais. Mesmo levando-se em consideração as

semelhanças formais entre a antiga e a nova lei, os magistrados teriam conservado, com

48 Assim pode ser interpretado o eficaz trabalho dos inspetores de fábrica na Inglaterra na produção de estatísticas e de registros sobre as condições de vida e de trabalho dos operários, informações abundantemente utilizadas por Marx na redação do capítulo sobre a Jornada de Trabalho, n’O Capital.

141

relação aos direitos das classes trabalhadoras, as antigas ideias políticas, das quais a

jurisprudência relativa à conspiração seria uma expressão (Idem, p. 184).

O autor segue acompanhando e demonstrando brevemente o histórico da que era a

então recente evolução da legislação trabalhista inglesa e suas manobras conservadoras,

com o objetivo de manter um percurso paralelo ao de Marx n’O Capital quanto ao tema,

visando críticas pontuais às análises marxianas. Observa que várias vezes Marx teria

insistido, por exemplo, na grande importância dos inspetores de fábrica e sua influência

sobre os trabalhadores. Lembra a influência “considerável” que as pesquisas e relatórios

desses inspetores teriam exercido sobre os trabalhadores, induzindo-os mais de uma vez a

refletir sobre seus direitos e a protestar contra a “tirania dos patrões” (Idem). Entretanto,

Marx não teria logrado explicar como os inspetores teriam sido levados a um papel tão

importante. Para o autor, isso não poderia ser explicado a partir de princípios de

interpretação econômica, princípios que, a seu ver, seriam frequentemente impotentes

quando se tratasse de estudar as instituições (Idem).

Constatando que a legislação trabalhista teria se estendido pouco a pouco, Sorel

considera que poderia ser interessante acompanhar esse movimento e verificar como

instituições embrionárias chegariam a modificar um sistema jurídico. Sustenta que Marx

forneceria poucas explicações a esse respeito, limitando-se a informar que os patrões

ficariam descontentes com o fato de não serem submetidos a uma legislação uniforme. Esta

seria, segundo Sorel, uma razão bastante fraca, uma explicação artificial baseada no

pressuposto dos interesses individuais, explicação que seria frequentemente fornecida pelos

economistas e jamais aceita pelos historiadores (Idem). Para ele, aparentemente

acompanhando as análises sobre a história das lutas sobre a jornada de trabalho na

Inglaterra no capítulo homônimo d’O Capital, a lei que se estabelece em 1867 (Factory

Act), após décadas de luta por parte dos trabalhadores, registraria uma modificação na

maneira de compreender os direitos da classe. Tal lei demonstraria que uma importante

transformação jurídica ter-se-ia produzido para que tivessem sido decretados, e numa escala

considerável, as medidas extraordinárias contra os “excessos da exploração capitalista”

(Idem,p.185). Tratar-se-ia na verdade de uma transformação jurídica produzida por razões

ideológicas, já que os trabalhadores não estariam, por si mesmos, suficientemente fortes

para obter a realização de direitos reconhecidos no plano teórico (Idem). Salienta a

142

observação de Marx de que a má vontade com que o novo princípio jurídico fora

implantado demonstraria a ousadia das ideias que animariam essa lei.

A observação mais acima, por parte de Sorel, de que Marx não se teria detido

suficientemente na importância dos inspetores de fábrica para a aquisição daquelas medidas

trabalhistas por parte da classe operária, somada à opinião de que esta não as teria

conseguido por suas próprias forças e somada ainda à importância conferida por Sorel à

história das instituições legais concernentes a tal legislação, constituem até aqui o tripé

empírico no qual o autor pretende apoiar sua tese de “evolução do espírito” na produção de

conquistas de “interesse universal”. De alguma forma, a insuficiente força da classe

trabalhadora agiria ideologicamente sobre as ideias políticas geradoras de princípios

jurídicos agora novos, instituidores de um novo direito (trabalhista, no caso) assumido pelo

Estado. Parece ocorrer aqui uma estranha dialética, na qual a síntese não é uma superação

da tese via sua negação, mas fusão harmoniosa entre tese e antítese na forma de novos

princípios jurídicos.

Referindo-se à parte final do capítulo de Marx sobre a jornada de trabalho, sustenta

o autor que seriam ali encontrados poucos detalhes sobre a influência que a legislação

inglesa teria exercido sobre os outros países do continente. Segundo ele, mesmo assim

Marx consideraria que a experiência inglesa não deveria desaparecer e que os países

industriais poderiam aproveitá-la a partir de seus resultados finais. Não teriam assim que

passar por todos os percalços da luta e os sofrimentos pelos quais o proletariado inglês teria

passado por cinquenta anos. A vitória do proletariado inglês deveria assim, segundo Sorel

aponta em Marx, ocorrer em proveito do conjunto dos trabalhadores do continente (Idem, p.

185).49

O autor remete também ao prefácio à primeira edição d’O Capital, aos parágrafos

concernentes ao tema, nos quais Marx dirigir-se-ia aos trabalhadores alemães incitando-os a

aproveitar a experiência inglesa.50 Segundo Sorel, Marx convidaria a Alemanha a levar em

consideração os males que teriam afligido à Inglaterra nesse processo; tais males seriam

49 Ver em Marx item 7 do capítulo sobre a jornada de trabalho: “A luta pela jornada normal de trabalho. Repercussão da legislação fabril inglesa em outros países” (MARX, 1988, p.226-229). 50 Em Marx: “Caso o leitor alemão encolha, farisaicamente, os ombros ante a situação dos trabalhadores ingleses na indústria e na agricultura ou, então, caso otimistamente se assossegar achando que na Alemanha as coisas estão longe de estar tão ruins, só posso gritar-lhe: De te fabula narratur!” (MARX, 1988, p.18).

143

inerentes ao regime capitalista e deveriam se reproduzir a despeito das tradições morais

alemãs (Idem, p.185). Para o autor, se os legisladores seguissem os conselhos de Marx, a

“evolução” em outros países ocorreria a partir de um modelo de certa maneira inverso

àquele que o próprio Marx teria descrito para a Inglaterra (Idem). A transformação jurídica

se faria por deliberação, na plena consciência do princípio que deve dirigir a política social.

As lutas não existiriam e a evolução seria puramente e completamente ideológica. Sorel não

acredita que tal seja possível. Para o autor, essa evolução ocorreria pelos mesmos meios

que na Inglaterra, e não aconteceria ao acaso. Ele pretende apontar aqui o que considera

como “lacunas do materialismo histórico”: “Marx pode colocar bem os problemas, mas não

detém os princípios suficientes para seguir seu desenvolvimento passado, nem para dirigir

seu futuro” (Idem, p.86).

Prosseguindo em suas reflexões sobre o caráter jurídico da luta de classes, o autor

julga impossível considerar a economia independentemente das regras exteriores da vida

em comum, ou das regras jurídicas. Seria o mesmo que considerar a matéria sem sua forma

(Idem). Haveria fenômeno econômico quando se produz um conjunto de relações jurídicas

similares. Na realidade, para o autor, o direito e a economia não procederiam de causas

distintas, já que o modo de produção não possuiria o privilégio de engendrar as

transformações sociais. Os pensamentos, os desejos, esforços, desenvolver-se-iam todos na

tendência de transformar o direito para adaptá-lo harmoniosamente à “matéria”. Do ponto

de vista do método de análise histórica, o autor julga um equívoco considerar, de forma

geral, os fenômenos sociais como resultantes de fatores históricos e esses fatores, por sua

vez, como “seres” que se gerariam segundo uma ordem constante: o que apareceria

primeiro seria o “pai” dos outros e a causa fundamental. Vendo as coisas desta forma,

sugere o autor que a violência poderia ser considerada a causa primeira (Idem).

Segundo Sorel, Marx descreveria com esmero as condições jurídicas da vida social

antes de descrever suas particularidades econômicas. Estaria preocupado principalmente

com os resultados práticos. Teria estudado a história e as instituições com o único objetivo

de esclarecer o movimento do proletariado moderno em direção à revolução social. De

acordo com o autor, a abordagem sobre a evolução da legislação inglesa teria mostrado de

que forma Marx queria tratar o problema: ele consideraria a luta social como um conflito

jurídico sem solução por meio do direito, porque o povo conceberia seu próprio direito sob

144

uma forma e em virtude de ideias que estariam em contradição com os princípios vigentes.

Seria necessário, portanto, a intervenção do ato de legislar, da força organizada e

representativa da ideia política, que destrinçaria o litígio em nome de um interesse comum

reconhecido, que proclamaria a nova ideia (Idem).

O conflito, ainda segundo Sorel, nasceria a partir das transformações advindas da

prática econômica, no âmbito do modo de produção. Os abusos sobre a força de trabalho

seriam tão intensos que haveria a necessidade da intervenção do Estado para contrabalançar

as forças do capital (Idem, p.187). Mas a importância histórica dos fenômenos econômicos

não se limitaria a isso. Seria nas condições da vida industrial que o proletariado buscaria

todos os princípios do novo direito; na luta contra os capitalistas as massas trabalhadoras

alcançariam tornar-se “um só coração e uma só mente”, pensariam como proletariado e

alcançariam uma nova subjetividade (Idem). Assim, sob as influências da luta cotidiana, os

trabalhadores elaborariam novas concepções jurídicas e apresentariam suas reivindicações.

Tais reivindicações surgiriam no seio de uma agitação política.

Vemos aqui delinearem-se os traços da tese geral que Sorel defenderá em seu

trabalho de alguns anos mais tarde, Reflexões sobre a violência. Tal tese sustenta que os

trabalhadores erigiriam novos princípios éticos e uma nova concepção de mundo, uma

concepção que seria própria de sua classe e sua condição material, a partir de sua luta

econômica, mais especificamente no âmbito sindical. O confronto nas fábricas seria a força

motriz dessas novas concepções jurídicas, ou ainda, de novas concepções morais, de uma

verdadeira “reforma moral”. Esse embate possuiria, para Sorel, uma manifestação bastante

concreta na forma das greves, mantendo-se no horizonte o objetivo mais amplo e histórico

da greve geral. Ainda segundo o autor, o cultivo da idéia da greve geral dever-se-ia

constituir no combustível revolucionário dos trabalhadores, o “mito” a manter crepitando a

chama da insubordinação. Esta seria a manifestação autêntica da atividade revolucionária,

já que a aproximação dessa atividade com partidos, líderes ou práticas políticas

inexoravelmente conduziria a luta para uma direção autoritária, ou antes, de submissão ao

autoritarismo de intelectuais partidários e políticos profissionais (SOREL, 1992). Em

passagem do texto “Os aspectos jurídicos do socialismo”, o autor desenvolve os mesmos

princípios expostos acima:

145

Os homens unem-se facilmente quando não se lhes faz apelo à reflexão e ao raciocínio sobre o futuro: quando somos deslocados para os confins da vida animal, pela influência de sentimentos de luta violenta, não concebemos senão o presente e não vemos outras dificuldades na vida que aquelas que podem imediatamente satisfazer nossa paixão de destruição. Estando muito próxima da defesa pessoal, a revolta nos leva a não enxergar os obstáculos que encontraremos no dia seguinte, ao lado de nossos aliados. Nossa personalidade torna-se tão intensamente exaltada que o mundo como que se reduz a nós mesmos e ao que nos toca de muito perto, cremos que todos nossos sonhos são realizáveis. O que descrevo aqui não se encontra, naturalmente, em estado completo a não ser nos casos em que a revolta toma características as mais ardentes, mas na origem de toda evolução jurídica encontram-se fenômenos atenuados de negação e protesto. Não se deve crer, como se tem feito freqüentemente, que a evolução sempre se produzirá automaticamente e de uma maneira completa. A experiência nos mostra que isso não acontece a não ser em presença de circunstâncias favoráveis. Em um grande número de casos, acontece mesmo uma interrupção do desenvolvimento, sobretudo quando as emoções são mantidas por tempo demasiado em estado agudo (SOREL, 1900, p.396).51

É em função da direção definitiva que seu pensamento ainda tomará em poucos

anos que, num movimento retroativo, podemos perceber os cuidados de Sorel ao tratar das

características e condições políticas das lutas dos trabalhadores. Ao apontar que suas

reivindicações surgiriam no seio de uma agitação política, o autor tem o cuidado de

salientar que, a seu ver, Marx nunca teria tentado provar que o movimento proletário

tivesse esse caráter. Mas o próprio Marx teria, segundo Sorel, constatado duas coisas. A

primeira, que a luta de classes se estenderia sobre a idéia de direito; a segunda, que a

agitação política seria um meio de fazer amadurecer as reivindicações políticas dos

trabalhadores (SOREL, 2007, p. 187).

De acordo com o autor, as comissões designadas a elaborar sobre códigos de

trabalho, a compor novas legislações a respeito, teriam sobretudo o objetivo de atribuir

forma jurídica aos conflitos, de torná-los precisos, de reconhecer com exatidão as forças

presentes e de as definir. Mas não se poderia permitir que as designações ou status dessas

comissões (conselhos arbitrais, conciliatórios, etc.) dissimulassem a nossos olhos o motivo

de fundo, a causa fundamental do movimento dos trabalhadores, qual seja a luta de classes

pela conquista de direitos. Sorel faz aqui uma remissão a Vico, observando que este autor já

teria distinguido de forma adequada a luta pela conquista de vantagens propiciadas pelo

51 Sorel, 1900.

146

poder da luta pelos direitos. Seria, para Sorel, uma distinção da mais alta importância, que

deveria sempre se fazer presente quando examinássemos a história dos conflitos

contemporâneos do ponto de vista da evolução das ideias jurídicas52 (SOREL, 2007, p.187).

Seria necessário ainda, segundo Sorel, atentar para o fato de que se deveria falar em

luta pela conquista de direitos e não pelo direito, para enfatizar, do ponto de vista do

materialismo histórico, que se trataria do direito da classe que luta para afirmá-lo

hegemonicamente e evitar uma referência a um direito universal ou natural que privaria o

homem da iniciativa de sua gênese (do direito) e, portanto, das possibilidades de sua

transformação (GAUD, 2007, p.195). Para o autor, frequentemente se teria pretendido que

Marx tivesse negado a existência de noções essenciais do direito, justamente porque com

frequência ele teria considerado ridícula a pretensão de se fundar o socialismo com base no

direito natural. Sorel aponta aqui a necessidade de se fazer duas distinções que considera

importantes: uma coisa seria reconhecer a existência de categorias jurídicas, coisa diferente

seria proclamar os princípios do direito natural como liberdade, igualdade, etc. Afirma o

autor que quase todos admitiriam, nos dias em que escreve, esta distinção que, no entanto,

não estaria muito clara para as gerações anteriores. O trabalho de elaboração das categorias

ainda não estaria acabado, sustenta o autor. É por isso que, por exemplo, com relação à

família, ainda não se teria sabido separar as diferentes partes que a compreenderiam53

(SOREL, 2007, p. 187).

Seria certo para Sorel que em 1847, quando escreve o Manifesto (obra que, segundo

Sorel, conteria passagens obscuras que apontariam as noções de liberdade e de justiça como

destinadas a desaparecer), Marx não possuiria uma idéia perfeitamente satisfatória da

transformação social e que teria conservado, durante toda sua vida, ilusões de juventude

que teriam obstruído seus estudos científicos. Nunca saberíamos bem, segundo o autor, se

Marx estaria se referindo à sociedade que surgirá da evolução do capitalismo por via da

transformação, da qual conheceríamos já alguns elementos, ou se tratar-se-ia de uma

sociedade plenamente comunista, onde a máxima a cada um segundo suas necessidades 52 Sorel refere-se aqui a seu artigo “Etude sur Vico”, publicado em Le Devenir social, II (11), décembre 1896.

Cf. Sorel, 1896. 53 Neste momento Sorel não vai além sobre a questão da família. Pode-se supor, contudo, que o autor se refira a diferentes funções morais dos integrantes da família, havendo necessidade, então, de diferentes conceitualizações. Necessário recordarmo-nos aqui da importância, para Sorel, da família como equivalente da unidade moral da sociedade.

147

devesse ser aplicada. Neste último caso Sorel se pergunta o que se tornariam as categorias

jurídicas, incrementando a pergunta pela dúvida de se não seria, segundo o caso, um

“simples sonho de utopistas” (Idem, p. 186).

Sorel indica que consideraria em suas análises a sociedade da qual trata O Capital,

ou seja, segundo ele a sociedade que deverá surgir do capitalismo atual. Marx nos falaria,

assim, de liberdade, de posse, de divisão dos produtos (do trabalho), de apropriação

individual. Na carta sobre o Programa de Gotha, Marx se estenderia longamente a respeito

do caráter jurídico da repartição dos produtos e sobre a necessária desigualdade que daí

resultaria. O que deveria desaparecer, de acordo com Marx, na leitura de Sorel, seria o

sistema das categorias capitalistas: seríamos assim levados a distinguir, no âmbito do

direito, uma parte constante e uma parte acidental, entre o que seria essencial à vida social e

o que seria específico de um período político. Sorel acrescenta que nesse caso seria a

mesma distinção feita por todos os filósofos do direito. O que estaria destinado a

desaparecer seria tudo o que teria se incorporado ao capitalismo sob os nomes de liberdade

e justiça (Idem, p. 188).

De acordo com o autor, poder-se-ia pensar que a partir de 1847 Marx se teria dado

conta da impossibilidade na qual se encontraria um jurista para se representar uma

sociedade comunista. Seria esta uma das razões pelas quais, segundo Sorel, o Manifesto

seria por vezes obscuro: Marx se veria obrigado a não ofender os preconceitos de seus

leitores e, por isso, não teria jamais ousado renegar o comunismo em nenhum momento de

sua vida. Sua situação de homem de partido não lhe teria deixado a liberdade de sempre

aprofundar a análise dos problemas sociais de acordo com seus princípios (Idem, p.186).

Para Sorel, o Manifesto conteria uma dificuldade “grave”, que não teria ainda

chamado suficientemente a atenção. Questiona a afirmação de Engels de que Marx não

teria fundamentado suas reivindicações comunistas no direito. Para o autor, isso não seria

verdade, e cita a passagem que atestaria a incapacidade da burguesia de “reinar” justamente

por não conseguir garantir a sobrevivência de seus “escravos” nas próprias condições de

sua “escravidão”. Assevera o autor que se trata, aqui, de um raciocínio jurídico, pois se a

burguesia explora o trabalho do proletariado, ela teria o dever de lhe assegurar uma

existência normal, em meio às condições que fariam do trabalho assalariado um modo

148

racional de produção, que asseguraria, portanto, a conservação dos elementos sociais (Idem,

p.188). Para o autor, sem uma teoria jurídica da sociedade, a obra de Marx seria pouco

interessante. E o pensamento de Marx seria, todavia, suficientemente claro a respeito: “O

escravo tem o direito de viver ao trabalhar” (Idem). Se tal situação não é assegurada,

sustenta Sorel, a ideia política do direito seria reduzida ao absurdo, pois a revolta far-se-ia

necessária justamente para alcançar, a partir de um Estado revolucionário, um Estado

jurídico. E o proletariado seria suficientemente forte para cumprir tal missão (Idem, p. 188).

Segundo Sorel, sobre as revoluções Marx teria fundamentado uma lei de

transformação jurídica, de grande importância, que consistiria no seguinte: quando uma

classe torna-se revolucionária, ela se identificaria (subjetivamente) com toda sociedade;

constituiria o direito sobre a base de seu modo particular de apropriação, considerado como

o modo normal de toda sociedade civilizada. Isso teria sido precisamente o que se verificou

quando da chegada da burguesia ao poder, ou seja, todos aqueles que não se enquadravam

nas condições burguesas foram, por um bom tempo, fora-da-lei. Segundo o autor, se o

proletariado se constitui em classe-para-si, ou seja, se chega a possuir um conjunto de

concepções jurídicas com relação a sua própria maneira de viver, e triunfa, não poderá fazer

outra coisa que impor um sistema jurídico que seja conforme à sua maneira de praticar e

compreender a apropriação (Idem,p.189).

Prossegue o autor, afirmando que o proletariado conheceria apenas uma forma de

propriedade, que seria a que Marx denominaria de propriedade individual, resultado do

trabalho efetuado por meio de instrumentos que os trabalhadores não possuem. Seria a um

sistema análogo que a sociedade deveria alcançar, almejar: uso comum dos meios de

produção e propriedade individual dos meios de existência obtidos pelo trabalho. Pode-se

representar o que será essa organização do futuro por meio da questão do salário. Sustenta

Sorel que, quando se fala de salário, é necessário evitar dois erros que estariam bastante

difundidos na imprensa socialista. Certos autores considerariam como “assalariados” os

altos funcionários das sociedades anônimas: tanto o diretor de uma empresa ferroviária

quanto o último homem de sua hierarquia seriam assalariados nesse caso. Para o autor,

tratar-se-ia de jogo de palavras. Assim, por “assalariado” dever-se-ia entender as pessoas

que vivem nas condições normais do proletariado. Por outro lado, segundo Sorel,

normalmente se acredita que o salário será conservado em sua realidade econômica quando,

149

na verdade, o socialismo não o conservará senão como uma interpretação jurídica levada a

efeito seguindo-se as novas idéias políticas. Sorel rejeita, assim, o que chama de

“pretendido socialismo de Estado”, que conservaria o assalariamento existente (Idem, p.

189).

O autor se questiona a seguir por que, em Marx, deveriam desaparecer as distinções

de classe e, por consequência, o Estado. A explicação estaria no fato de que, para Marx, o

proletariado estaria organizado como um “corpo indivisível”, desprovido de frações com

privilégios característicos. Assim, os trabalhadores não encontrariam em seu próprio seio

nenhuma base para uma nova divisão em classes na sociedade futura. O Estado não poderia

sobreviver, a não ser no caso em que os trabalhadores tivessem já organizado

administrações às quais confiassem seus interesses e que apresentassem algumas analogias

com a administração estatal. Por isso seria de grande importância que a sociedade dos

trabalhadores se organizasse de maneira verdadeiramente nova, sem imitação de

instituições burguesas (Idem).

Sorel pretende demonstrar que não haveria assim nada de mecânico na ascensão da

sociedade dos trabalhadores. Argumenta que a “solução marxista” para a sociedade não

dependeria de poucas hipóteses. Não haveria nela nenhum movimento inevitável,

obrigatório, e o socialismo não derivaria necessariamente da evolução econômica

perseguida pelo capitalismo moderno. O socialismo só poderia se produzir sob a influência

de certas idéias jurídicas que se desenvolveriam no seio do proletariado. O direito, afirma o

autor, possuiria uma grande liberdade em relação à infra-estrutura econômica, o que

poderia inclusive permitir que o proletariado, em determinados países, não seguisse a

evolução prevista por Marx, desviando-se assim da experiência da Inglaterra (SOREL,

2007: 189). O movimento econômico, ao contrário, poderia levar a surpresas que não

tivessem nada de socialista (Idem, p. 189).

Para Sorel, porém, Marx não teria sustentado a tese de que todos os países devessem

passar pelas fases de evolução dos países ocidentais para chegar ao socialismo. No entanto,

o ponto de vista contrário seria o mais difundido entre os marxistas. Sustentariam esses, por

exemplo, que a propriedade comunal deveria desaparecer na Rússia, que ali a burguesia

deveria se desenvolver, que o regime parlamentar deveria se esgotar e que o povo deveria

150

conhecer todas as misérias que decorrem da concentração de riquezas antes que a Rússia

pudesse conhecer a revolução socialista. Sorel cita aqui o prefácio redigido por Marx à

edição russa do Manifesto Comunista em 1882, onde o filósofo alemão sustentaria que se a

revolução russa sinalizasse a revolução dos trabalhadores para o ocidente, de tal modo que

ambos os lados se completassem um ao outro, neste caso a propriedade comunal russa

poderia servir de ponto de partida para uma evolução comunista. Indica o autor que, desde

1844, Marx já combateria ideias fatalistas.

Conclui Sorel que a revolução social dependeria assim muito menos do grau de

evolução do processo político que das condições do pensamento. Seria necessário para ela,

sem dúvida nenhuma, um “motor”, no caso o proletariado. Mas as preocupações morais não

seriam menos importantes do que as considerações sobre a força que aquele “motor” tenha

adquirido. Voltando ao prefácio à edição russa do Manifesto Comunista em 1882, lembra a

observação de Marx de que o proletariado da Alemanha se desvencilharia de todo obstáculo

local quando estivesse esclarecido. Nesse momento estaria apto a colaborar com uma

revolução parcial ou universal. Sorel comenta a partir daí o que considera uma “interessante

curiosidade”. Marx teria afirmado, em seus escritos de 1844, que já era chegado o momento

de negar a antiga filosofia alemã, e que o proletariado realizaria tal negação na história.

Indica o autor que Engels, em um artigo sobre Feuerbach escrito quarenta anos depois, diria

que a alta cultura teria sido abandonada pela classe burguesa, mas que a classe trabalhadora

teria mantido o sentido teórico da revolução e que o proletariado alemão seria o herdeiro da

filosofia clássica alemã. Para compreender tal opinião de Engels, segundo o autor, seria

necessário reportar-se ao que teria escrito Marx em 1844. Dessa forma, poder-se-ia

constatar que Engels teria conservado as idéias, antes defendidas por seu amigo, da “função

da inteligência” (Idem, p.191). De acordo com Sorel, a base da teoria seria sempre a

mesma. Haveria ainda duas coisas essenciais a considerar. Primeiro, a força material do

proletariado (“produto automático da grande indústria”); segundo, sua força intelectual,

produto de sua participação voluntária na alta cultura. Sorel considera razoável concluir

então que a missão histórica do proletariado proviria do fato que ele encontraria em suas

condições de existência uma nova condição jurídica realizável, de que seria capaz de

elaborar reivindicações de caráter universal devido à condição universal de sua exploração.

Na verdade, ao enfatizar a força intelectual do proletariado, o autor defende que este tenha

151

a tarefa de modificar o mundo a partir do momento em que muda a avaliação moral que faz

dele (Idem).

Ao sustentar que a revolução social dependeria muito menos do grau de evolução do

processo político que das condições do pensamento, e que as preocupações morais não

seriam menos importantes do que as considerações sobre a força material que o

proletariado tenha alcançado, Sorel separa, numa operação não materialista, as condições

subjetivas das condições objetivas para a revolução socialista. Ora, a partir disso, não seria

impróprio pensar, como parece fazer Sorel, que o proletariado alemão alcançaria a

consciência revolucionária a partir das “condições de pensamento” alemãs? O autor parece

desconsiderar, em prol da defesa da proeminência de questões morais no processo

revolucionário, os desenvolvimentos materiais alcançados pelo capitalismo europeu em seu

conjunto, a despeito das circunscrições espaciais específicas de tal desenvolvimento. O

desenvolvimento econômico e político, em Inglaterra e França, não deixariam de afetar

ideologicamente o proletariado europeu, e cremos que Marx trata exatamente disso. Sorel

parece começar a admiti-lo para, em seguida, isolar as variáveis morais de suas

interconexões econômicas e políticas, no sentido de afirmar o que considera ser a força

independente da mudança dos julgamentos morais do proletariado com relação à sociedade

alemã. É sem dúvida a questão de uma reforma moral que se espreita ao fundo das

considerações sorelianas, mas apartada de seus mútuos condicionamentos face às lutas

políticas e econômicas.

Na tentativa da elaboração de um viés jurídico para a leitura de Marx, Sorel

debruça-se também sobre o tema da ética do socialismo e a contraposição entre direito

natural e direito histórico.54 Sustenta Sorel que os autores que se ocupam da questão

estariam mais interessados em demonstrar como é necessário resolver a questão social, no

lugar de interpretar o movimento socialista. No entanto, defende que os movimentos sociais

deveriam ser tratados como fenômenos naturais, tal a dimensão e nitidez que teriam já

adquirido (SOREL, 1982, p. 118). No estudo do socialismo, assim, não seria adequado

54 A partir daqui analisamos o artigo L’éthique du socialisme, publicado originalmente na Revue de Métaphysique et de Morale, mai 1899, 7 année, nº 3, (SOREL, 1982, p. 118), mas ao qual tivemos acesso por meio da coletânea de textos de Sorel publicada em 1982 pela editora PUF, de título La décomposition du marxism, organizada por Thierry Paquot, conforme indicado nas referências bibliográficas.

152

limitar-se a discutir as opiniões emitidas pelos escritores socialistas notáveis, já que a

experiência nos mostraria que o povo escapa com frequência à direção daqueles que creem

conduzi-lo (Idem).

Outra questão incomoda o autor, que seria a atribuição de única causalidade para os

fenômenos sociais, a que seriam muito afeitos os socialistas de então. Para ele, o estudo da

história mostraria que seria impossível remeter a um princípio único qualquer grande

movimento social. Encalharíamos sempre que quiséssemos definir uma época por uma

fórmula abstrata, que jamais se aplicaria exatamente aos fatos que pretendesse explicar. Por

toda parte, aliás, encontrar-se-ia uma mistura de dois princípios que se fundiriam, se

chocariam e se combinariam, sem que os atores de tal drama tivessem consciência do

complexo papel que desempenhariam e da heterogeneidade dos motivos de suas ações

(Idem, p. 119). Os dois princípios a que alude o autor seriam, segundo ele, as duas

concepções éticas reconhecíveis no socialismo de então: a do direito natural e a do direito

histórico. A primeira seria inspirada nas tradições da burguesia liberal, ligada à Revolução

Francesa. A segunda, desenvolvida principalmente sob a influência de Marx, tiraria seus

princípios do estudo das condições sociais produzidas pela grande indústria. De todo modo,

Sorel adverte que não haveria uma corrente ou escola totalmente pura. Nenhum socialista

permaneceria sempre fiel a um princípio único (Idem).

Para o autor, o direito natural teria fornecido excelentes armas aos homens que

atacavam os poderes estabelecidos. Teria sido utilizado pelos grupos os mais diversos,

porque forneceria apenas resultados negativos e sua ação possuiria características

puramente destrutivas: quando chegasse o dia da revolução, o grupo social melhor

posicionado para retomar a sucessão do poder restauraria a autoridade em seu próprio

proveito. De acordo com Sorel, os primeiros socialistas teriam empregado contra a

burguesia as mesmas armas que essa teria empregado contra os antigos estratos

privilegiados. Teriam invocado os princípios do século XVIII e sustentado que o “Quarto

estado” deveria fazer a sua parte (Idem, p. 119).

A língua política teria sido construída pelos teóricos do direito natural, assevera

Sorel, dada a autoridade exercida sobre o indolente espírito da época pela lógica abstrata,

pela tradição e pela analogia. A essas razões de ordem intelectual seria necessário

153

acrescentar outra, de ordem sentimental, para explicar a permanência das teses do direito

natural: seriam muito numerosos os homens desejosos de imitar as classes superiores, em

uma sociedade perpassada de espírito hierárquico. Assim, seria natural que se imaginasse as

transformações democráticas ainda por ocorrer segundo o tipo de transformação que havia

conferido o poder ao Terceiro Estado (Idem).

Para o autor, o verdadeiro movimento socialista, aquele definido pela segunda das

concepções éticas apresentadas acima, possuiria características de revolta e organização,

obra própria do proletariado criado pela grande indústria. Proletariado que se insurgiria

contra a hierarquia e a propriedade, organizaria grupamentos com vistas à ajuda mútua, à

resistência comum, à cooperação entre os trabalhadores. Tudo isso, segundo Sorel, de

acordo com um projeto de impor à sociedade do futuro os princípios que este proletariado

elaboraria em seu próprio seio, por sua vida social própria. Esperaria, o proletariado, inserir

a razão na ordem social suprimindo a direção da sociedade pelos capitalistas (Idem, p.120).

O manifesto inaugural da Internacional proclamaria, salienta Sorel, que o principal objetivo

a atingir seria a emancipação econômica dos trabalhadores. Tal manifesto explicaria que

essa emancipação consistiria na supressão da oposição entre as classes e na organização do

trabalho cooperativo. O trabalho assalariado deveria desaparecer diante da forma superior

do trabalho associado (Idem).

Retomando a questão da frequente acusação que Marx sofreria de haver reduzido a

questão social a um problema quase estritamente econômico, o autor sugere que, se algum

erro existe nisso, ele não viria de Marx. Provavelmente encontrar-se-ia em seus discípulos,

talvez por meio do exagero do papel que a razão devesse ter na sociedade futura. Para

Sorel, seria necessário empreender uma interpretação filosófica do movimento socialista

(Idem). Primeiramente, considera o autor que seria preciso deter-se sobre as ideias gerais de

Marx e Engels com relação ao direito e à moral, ideias essas que teriam sido confundidas

com frequência pelos marxistas. Nesse caso seria essencial, para melhor compreender

Marx, remontar-se sempre a Hegel. Este teria considerado, lembra Sorel, o “sistema de

necessidades” como o primeiro momento da sociedade civil. Seria, portanto, natural que

Marx tenha dito que a sociedade repousa sobre uma infraestrutura econômica (Idem, p.

121). De acordo com o autor, levando em conta as íntimas conexões entre os modos de

pensar de Hegel e de Marx, seria espantoso verificar a frequência com que se procurou

154

definir as relações abstratas de dependência que supostamente existiriam entre o direito e a

economia. Para Sorel, a noção de sistema não corresponderia de forma alguma às relações

de “produto”, de conseqüências, de reflexos, que se teriam proposto para interpretar o

marxismo (Idem).

Considera o autor que a matéria econômica não poderia ser estudada sem a forma

jurídica, o fenômeno econômico consistiria em uma repetição de fatos compreendidos

numa mesma definição jurídica. A economia isolada, assim, resultaria em mera tecnologia.

Ou seja, em suma, a economia não poderia explicar o direito (Idem). A rigor, ao tratar da

teoria da mais-valia, Marx não estaria raciocinando de uma maneira muito diferente dessa,

assevera Sorel. Marx definiria com precisão as regras jurídicas aplicadas naquele processo

a cada momento da produção, consideraria o sistema jurídico como a ossatura sobre a qual

se estenderia o movimento econômico. Argumenta o autor que o problema se apresentaria,

assim, bem mais sob uma forma ética que sob uma forma econômica. Veríamos aparecer

em Marx, assim, personagens típicos. Todos os capitalistas reunir-se-iam na classe

capitalista que operaria como um só personagem. Todos os trabalhadores, por sua vez,

seriam remetidos a um tipo uniforme também. Seria uma pesquisa metafísica o que faz

Marx. “Cavalgaria”, de alguma forma, sobre o direito e a economia, para determinar o

comportamento geral e os princípios essenciais da sociedade capitalista (Idem).

Segundo Sorel, Marx não seria estudado como um autor com preocupações de

estabelecer um sistema moral, o que se constituiria num equívoco por parte de seus

estudiosos. De acordo com o autor, Engels demonstraria que Marx, no final da vida,

mostraria preocupações de completar seus estudos por uma teoria da família (Idem, p. 122).

Comentando a obra de Engels A origem da família, da propriedade privada e do Estado,

afirma Sorel que há uma direção importante apontada pelo livro que seria o pressuposto de

considerar a família para além da função de reprodução da espécie. Para Sorel, seria

essencial considerar as relações afetivas que se manifestam no interior da família. Para ele,

os marxistas não teriam ainda tomado em devida conta essa questão (Idem).

O autor sustenta que a instituição família poderia ser analisada de um triplo ponto de

vista, de acordo com a história das instituições. Primeiro, simplesmente, como um grupo

governado por um chefe; assim, sugere que a legislação sobre a família estaria em estreita

155

correlação com os princípios da legislação política – os socialistas pretenderiam fazer

desaparecer de maneira completa, segundo o autor, a autoridade no seio da família, daí sua

demanda de que as crianças sejam educadas pelo Estado. Segundo ponto de vista: tratar-se-

ia de um grupamento de interesses econômicos: também aí uma característica ameaçada

pelos socialistas, que insistiriam na independência econômica da mulher. O terceiro ponto

de vista é o que consideraria a família como um grupo afetivo. Para Sorel, na concepção de

Engels a família se reduziria a isso no futuro. Observa que tal simplificação pode parecer

excessiva dada a tendência de complexificação, e não de simplificação, dos fenômenos

sociais. Porém, salienta a importância que seria conferida pelo socialismo às relações

afetivas, importância que estaria em evidência dada a tentativa de exclusão dos dois outros

gêneros de relação no interior da família (Idem).

Para o autor, Engels insistiria sobre as seguintes características essenciais da união

sexual: devotamento, reciprocidade e respeito. Engels rejeitaria assim a “coação” legal do

casamento para que os “cônjuges” não se corrompessem em eventuais disputas de

processos de divórcio. Uma nova moral surgiria, então, quando novas formas de união

sexual se consolidassem. Engels enxergaria, de acordo com Sorel, que a vida familiar

estaria estreitamente ligada à ética (Idem,p.123). Percebe-se mais uma vez a referência de

Sorel a Proudhon, ao tomar a instituição família como unidade fundamental da constituição

ética e moral da sociedade. Reconstruindo sumariamente os passos do autor até aqui, pode-

se concluir que a trama de relações morais condensadas naquela unidade fundamental da

sociedade se projetaria para o coletivo social como um todo na forma de fundamentos

jurídicos para a constituição de uma ideia política de direito. Daí então que as contradições

e lutas nascidas no âmbito daquele coletivo social seriam principalmente contradições e

lutas de caráter jurídico.

Algumas questões imediatas se nos apresentam a partir do caminho acima, se bem

compreendemos a argumentação de Sorel. Se os fundamentos morais da sociedade

encontram-se no seio da família, devemos considerar então que há grupos familiares com

fundamentos morais contraditórios entre si? Afinal, se assim não for, como vislumbrar o

surgimento das mortais contradições de classe que, de resto, são reconhecidas por Sorel?

Como abordar a noção de classe social a partir de fundamentos jurídicos independentes de

determinações econômicas? E como, afinal, poderiam ser tais fundamentos independentes

156

de determinações econômicas se as classes sociais, numa definição minimalista que seja,

constituem-se a partir de diferentes posições econômicas no que tange à produção material

e aos modos de apropriação dessa produção, o que também é reconhecido por Sorel?

Sorel empreende o que considera ser uma divisão da vida moral em partes que

constituiriam um sistema. Para o autor, tal interpretação seria “plena” de “espírito

marxista”, já que atenderia a uma necessidade de se completar o materialismo histórico por

meio justamente de sistemas que abrangeriam os desenvolvimentos de outras dimensões da

vida social, como considera ser a religião e a vida pública (Idem, p.123). Enfim, naquele

sistema seriam reconhecíveis três momentos, segundo o autor: a família, considerada no

que ela possuiria de essencial do ponto de vista afetivo; o altruísmo, que se oporia à

família, porque aplicaria aos estranhos sentimentos observados, primeiramente, no interior

do grupo familiar; a justiça humanitária, que formaria a unidade dos dois primeiros

momentos e que atribuiria uma postura peculiar à família desde que reconhecida como

“soberana”. Segundo o autor, para Proudhon seria este o “elemento essencial do direito”

(Idem).

Para o autor, essas seriam abordagens que esclareceriam os princípios da moral.

Chegar à noção proudhoniana do amor pareceria de fato inevitável nesse momento, e Sorel

não faz diferente. Segundo ele, o amor nos mostraria a energia com que o homem

executaria atos desprovidos de qualquer obrigação legal. Enquanto, para ele, a história da

jurisprudência seria a história dos meios imaginados para se subtrair às regras jurídicas, a

história da moral nos mostraria que a noção de virtude se identificaria com a submissão

absoluta aos engajamentos livres. O amor nos revelaria, ainda, a separação profunda que

haveria entre o direito e a moral, porque não levaria em conta as “massas jurídicas”,

personagem criado pela história e que exprimiria certas relações sociais. Restaria apenas o

homem, o “indivíduo” sensível, do qual tratariam os escritores do século XVIII, por

exemplo (Idem).

Na abordagem do processo de formação do direito histórico com vistas ao estudo do

socialismo chamado “contemporâneo” por Sorel, o autor adverte que seriam empregados

alguns métodos artificiais insuficientes para esclarecer a questão. Alguns equívocos

cometidos seriam remeter todo o processo histórico a uma evolução da lógica, comparar a

157

humanidade à evolução de um ser vivo, ou mesmo emprestar imagens da física e da

termodinâmica para explicar os mecanismos sociais. O autor considera que haveria dois

princípios fundamentais a serem levados em conta para o estudo do socialismo, que seriam

a luta de classes e a “missão histórica do proletariado”. Sustenta que, ao lutar contra os

adversários defensores do direito natural, os marxistas teriam acreditado na necessidade de

menosprezar todas as preocupações éticas e de insistir apenas no lado material da luta.

Subestimariam as instituições jurídicas como procedimentos maquiavélicos, empregados

pelas classes dirigentes com o objetivo de manter a ordem em seu próprio proveito (Idem,

p. 124). Segundo o autor, as “bases morais” da “missão” teriam sido deixadas às sombras e

falar-se-ia da vitória do proletariado sem se atentar para as qualidades éticas do conflito.

Tal doutrina, que Sorel classifica como materialista no “pior sentido da palavra”, teria

encontrado sua expressão mais completa, segundo ele, na obra de Loria, que veria o direito

e a moral como “instituições conectivas” destinadas a assegurar a dominação dos mais

fortes. O autor afirma, com algum grau de indignação, que os marxistas se resumiriam a

acusar Loria de plagiar Marx, quando na verdade deveriam tê-lo denunciado pela distorção

de suas ideias (Idem).

Mais que uma tentativa de “corrigir” Marx, Sorel insiste com frequência que a

questão seria de interpretá-lo adequadamente. Com relação à luta de classes, por exemplo,

como vimos demonstrando, seria necessário apontar que se trataria de uma luta jurídica.

Mais uma vez remete aqui ao exemplo da luta do proletariado inglês pela diminuição da

jornada de trabalho das mulheres e crianças, apontando que a lei das dez horas teria sido

não apenas um sucesso prático, mas o triunfo de um princípio, uma nova concepção de

economia que teria sido introduzida na sociedade inglesa (Idem). Compara esse momento

da luta de classes na Inglaterra à Guerra dos Trinta Anos, e a lei das dez horas ao Tratado

de Westphalia. De acordo com o autor, nos dois casos o direito teria recebido novos

princípios fundamentais, princípios cuja aplicação não se resumiria a apenas um país ou aos

países envolvidos, mas a todos os países civilizados (Idem).55

55 E Sorel esquece-se de acrescentar aqui que em nenhum dos dois casos a “assimilação” de novos princípios pelo direito o fez capaz de torná-los satisfatoriamente efetivos na prática, seja por conta das violações da lei das dez horas, de resto apontadas por Marx, seja por conta da permanência histórica das violações de soberanias territoriais, soberanias essas acordadas pelo Tratado de Westphalia e que confeririam centralidade ao Estado-Nação nas relações internacionais.

158

Para o autor, como luta jurídica, durante o conflito as duas classes esboçariam

sistemas jurídicos para defender suas pretensões. Cada uma delas conceberia de maneira

própria a política que o Estado deveria exercer para contemplar interesses particulares tanto

quanto os comuns. Para os patrões, a prosperidade do país estaria ligada ao jogo cego da lei

da oferta e da procura. Perturbaria a ordem tudo o que fosse proposto contra esta lei natural,

seria contrário à ciência e se constituiria num abuso. Ao contrário, para os trabalhadores, a

produção deveria ser controlada pela previdência social. O sobretrabalho destruiria a

“substância” da classe trabalhadora e constituiria um abuso a ser reprimido pela política

trabalhista do Estado, com o objetivo de salvaguardar o futuro do país (Idem, p. 125).

O autor admite que não seria toda luta de classes que apresentaria características

assim tão bem definidas. Observa que teria tomado exemplos da Inglaterra numa época em

que as classes teriam atingido um alto grau de organização. Seria necessária uma longa

evolução para que as classes chegassem a formas tão avançadas e fossem assim penetradas

por ideias éticas. Mas seria manifesto que somente num estado mais avançado de

desenvolvimento poderiam ser reconhecidas as verdadeiras leis sociais. Os “agregados”

ainda mal definidos mostrariam apenas “acidentes sem lei” (Idem). É defendida aqui a ideia

de que a teoria da luta de classes deveria ser completada pela teoria da ajuda mútua, o que

seria uma maneira de moralizar o conflito social, segundo Sorel. A observação da história

do socialismo mostraria que tal doutrina estaria inclusa naquela de Marx. Trinta anos antes

do que escreve aqui o autor, a Internacional, lembra ele, teria proclamado a necessidade de

opor às forças capitalistas a solidariedade dos trabalhadores de um mesmo país, além da

união fraternal entre os trabalhadores dos diversos países. O socialismo estaria, por toda a

parte, levando a efeito a tarefa de agrupar os trabalhadores sob as formas as mais diversas e

se esforçaria por fazer nascer entre eles maneiras comunistas de pensar (Idem). Marx, ao

falar com frequência da vitória do proletariado, demonstraria a percepção de que, por toda

parte, a solidariedade entre os trabalhadores estaria crescendo, ao passo que os capitalistas

permaneceriam divididos entre si. Para o autor, seria a união das inteligências e dos

corações que comporiam, em Marx, a característica do pleno desenvolvimento de uma

classe (Idem).

De acordo com Sorel, muitas pessoas, enganadas por associações de ideias que

derivariam de simples jogo de palavras, teriam afirmando que o socialismo faria apelo aos

159

sentimentos de ódio e aos instintos violentos ao falar de luta de classes, ameaçando a

civilização moderna por um transbordamento de paixões selvagens. Considera o autor que

o ódio seria um sentimento de importância considerável na história das religiões e no

desenvolvimento da ideia de pátria, mas que seria estranho ao socialismo. O ódio poderia

provocar perturbações, arruinar uma organização social, precipitar um país na era das

revoluções sangrentas, mas não produziria nada (Idem, p. 126). Para o autor, as gerações

passadas teriam acreditado que seria suficiente inverter o poder para que a razão

prevalecesse, mas a experiência adquirida até então seria suficiente para impedir já a crença

nesta que seria uma “ingenuidade otimista”. A sucessão da autoridade não ficaria vaga por

muito tempo jamais, a tirania sucederia rapidamente a tirania. Os socialistas, assim, não

deveriam investir neste terreno (Idem).

Para Sorel, o ódio encontraria bem menos elementos sustentadores no direito

histórico que no direito natural. Quando se dissesse aos pobres que os detentores do poder

(seja político ou econômico) seriam ladrões que, durante séculos, usurpariam o que não

lhes pertence; quando se conclamasse aos pobres para se levantarem e tomarem o que lhes

é devido; quando se lhes apresentassem as classes superiores como o único obstáculo que

impediria a felicidade do povo, nessas circunstâncias, os pobres chegariam rapidamente à

idéia de que as piores violências seriam permitidas contra os inimigos da humanidade

(Idem). Os excessos da revolução teriam demonstrado a que extremos poderiam chegar

homens de uma natureza dócil quando atingissem ódio de tal gênero, fundado sobre uma

concepção apaixonada de direito natural. O socialismo defendido por Sorel estaria tão

longe dessa maneira de pensar que, segundo ele, seria frequentemente reprovado por

“ensinar” uma sorte de indiferença fatalista e, assim, enrijecer as energias populares (Idem).

Outra ideia corrente à época que, segundo o autor, seria fonte de equívocos entre os

socialistas, seria a de evolução da revolução, da qual ele distingue três momentos. No

primeiro, a revolução seria um conjunto de acidentes ocorridos num curto espaço de tempo,

atos de violência que se sucederiam ao acaso, que acabariam por levar a consequências

importantes, sobretudo num momento em que as circunstâncias se mostrem favoráveis à

eclosão de ideias novas e reformas práticas são empreendidas. Acrescenta aqui Sorel que

frequentemente reformas práticas desejadas pela maioria fariam passar com elas reformas

de outro caráter, que agiriam como um fermento revolucionário mais tarde (Idem, p. 127).

160

Teria sido assim que o ano de 1848, com seus eventos imprevistos, incoerências de

governos, insurreições e repressões, acabou por levar a uma transformação profunda nas

maneiras de compreender as questões sociais (Idem).

No segundo momento apontado pelo autor, uma mudança capital apareceria na

noção de revolução, quando os revolucionários inovadores não depositariam mais suas

principais esperanças nos atos de violência, mas passariam a acreditar que podem agora

utilizar as forças do Estado existente e as empregar para objetivos completamente

diferentes que aqueles para os quais a sociedade as tem organizado (Idem). Chegar-se-ia

assim ao que o autor denomina de revolução legalista, da qual Engels teria falado no

prefácio à A Luta de classes na França. A oposição deste momento em relação ao

precedente seria tão perceptível que muitos socialistas acreditariam que tal revolução

constituiria o abandono de todos os antigos princípios. Em oposição a eles permaneceriam

os líderes dos sindicatos de trabalhadores, que dificilmente acreditariam que o movimento

proletário deveria limitar-se a procedimentos parlamentares (Idem, p. 128). Sentiriam esses

trabalhadores, de uma maneira mais ou menos confusa, que não poderiam contentar-se com

uma solução deste gênero, enquanto os chefes do socialismo parlamentar pareceriam querer

parar neste estágio (Idem).

No terceiro momento, a noção de revolução atingiria seu inteiro desenvolvimento

quando o espírito ético lhe penetrasse completamente. A violência permaneceria, mas não

seria mais que o esforço necessário para derrotar as velhas correntes, para arejar as criações

novas e plenas de vida, para assegurar a vitória às novas instituições postas à prova. Não

seria senão a antecipação de uma unanimidade que se formaria de forma incessante e que

proporcionaria reformas intocáveis (Idem).

Sorel não discorda exatamente do conteúdo de cada fase, senão do fato de que elas

possam constituir um sentido evolutivo. Para ele, na vida real, tais distinções não existiriam

com a clareza que se lhes poderia conferir a partir de uma análise filosófica. O

desenvolvimento não cessaria de ocorrer, mas não suprimiria os momentos anteriores, que

subsistiriam sob formas subordinadas e com frequência fortemente alteradas (Idem).

Encontrar-se-ia a violência imediata na origem da história do direito e ao longo de toda a

história, mas seu papel seria mais ou menos considerável e seus efeitos mais ou menos

161

duvidáveis. Na medida em que avança nas etapas de sua evolução, perderia suas

características de contingência cega e irresistível. Tornar-se-ia, ao mesmo tempo, menos

sangrenta. Primeiramente, tratar-se-ia apenas de destruição. Pouco a pouco se proporia a

criar ou atribuir a criações esboçadas uma extensão que elas não poderiam alcançar se não

triunfassem sobre a opressão exercida pelo Estado tradicional (Idem). Tal evolução

começaria por um momento onde se conservaria a forma jurídica antiga, sem que se tenha

ainda construído um conteúdo ético capaz de se afirmar com independência. Seria este o

momento legal, ou “legalitário”, que seria ainda pleno de violência e no qual se imaginaria

haver triunfado sobre a revolução brutal, porque certas formas de governo seriam aqui

respeitadas. Tratar-se-ia de um momento necessário, como nos ensinaria a história das

instituições. Seria necessário, acrescenta o autor, passar por tal formalismo para alcançar

um novo direito. O terceiro período seria aquele no qual se introduz o socialismo (chamado

por Sorel de “contemporâneo”) com suas organizações de trabalhadores. Encontrar-se-ia

assim o “direito em ação”, ou o “momento da ética viva” (Idem).

Segundo o autor, o motor de todo o movimento socialista seria a oposição que se

produziria entre a moral e o direito, desde que a moral atingisse um determinado grau de

refinamento, que o homem ousasse observar e refletir, que pensasse sobre as aplicações

contestáveis das regras jurídicas (Idem, p.129). Então entrariam em conflito a condição

histórica, base de toda organização social, e a condição humana, que a moral nos tornaria

capazes de considerar. Tal oposição pode permanecer muito tempo sem efeito

(principalmente levando em consideração a prática do altruísmo, o que seria essencial para

amenizar a rigidez da lei), mas seriam comuns os casos em que as reivindicações do

indivíduo oprimido pareceriam mais sagradas que as tradições, as necessidades da ordem e

os princípios sobre os quais repousaria a sociedade. Nesse momento o direito histórico se

estremeceria e seria considerado indigno do homem. A moral não forneceria nenhum meio

para construir um sistema jurídico novo, ela não ensejaria senão negações. Seguindo seus

hábitos de espírito, sua educação e suas tendências gerais, os homens esboçariam novas

formas de direito (Idem).

Fornecendo um exemplo de tal oposição histórica entre a moral e o direito, Sorel

menciona Renan e nos informa que este teria demonstrado como Roma e Grécia possuiriam

um rígido direito, uma civilização demasiadamente “dura”. A esta tradição o povo hebreu

162

acrescentaria as preocupações morais com o “grito do povo”, a reclamação obstinada

daquele que tem “sede de justiça” (Idem). Da mesma forma, tal espírito moral teria já

penetrado a sociedade contemporânea, numa elaboração moral que alimentaria a luta de

classes. Nesta elaboração seriam divisáveis três elementos que o autor traz em grande

conta: primeiro, seria o desejo de garantir ao maior número de pessoas um maior respeito

pela dignidade humana, leis mais justas, e um controle mais eficaz na aplicação das leis a

partir de uma consciência moral mais refinada; o protesto do indivíduo oprimido, que

invocaria sua condição contra as “superioridades” históricas, sendo o momento em que o

indivíduo se colocaria contra o Estado; a esperança de tornar as novas gerações mais

felizes, mais esclarecidas e mais sensíveis do ponto de vista moral, sendo esse o instante em

que se sentiria completamente o “progresso ético” (Idem).

Para Sorel, frequentemente se esqueceria que esses elementos não derivariam da

natureza humana, mas de certas condições históricas. Seria essencial, portanto, saber por

quais razões a sociedade contemporânea apresentaria as condições favoráveis a este

movimento moral, sem o qual o socialismo não existiria (Idem). Viver-se-ia por meio de

recursos acumulados de gerações passadas, restaria saber se se poderia legar a moralidade

adquirida para as gerações futuras. Sustenta o autor que muitos socialistas vislumbrariam o

futuro com certa desconfiança, já que quase todos os marxistas lamentariam intensamente o

exagero com o qual por muito tempo teriam exaltado as belezas do materialismo (Idem).

Pode ser verossímil, segundo o autor, que o homem não tenha uma tendência bem

definida em direção ao progresso, e que as gerações passadas se tenham embalado por

ilusões sobre esta questão, bem como sobre várias outras. Também não se deveria supor

que o homem possa agir sob a influência de uma ideia abstrata, que ele se entusiasme pela

felicidade da humanidade futura (Idem). Observa Sorel que desde os primeiros ensaios do

que ele classifica como socialismo contemporâneo, a noção do progresso indefinido teria

sido abandonada e ter-se-ia perseguido a realização próxima de um estado melhor. Hegel

teria interpretado perfeitamente a ideia nova quando disse que o objetivo de nossa ação não

deveria ser um objetivo que fugisse constantemente de nós (Idem, p. 130). O socialismo

teria, assim, transformado a noção de progresso. Porém, teria errado com frequência ao

apostar num paraíso terrestre muito próximo. Provavelmente o “grande dia” estaria ainda

bem distante (Idem, p. 131).

163

O sentimento de progresso ao qual se refere o autor estaria ligado, segundo ele, à

disposição de sacrifício em prol das gerações futuras, das crianças as quais se desejaria

tornar pessoas melhores. Para ele, os teóricos do socialismo teriam até então negligenciado

o estudo da família desse ponto de vista. Porém, aponta que a prática, nesse caso, teria sido

superior à teoria, já que nos países industrializados os trabalhadores preocupar-se-iam

bastante com a sorte futura de seus filhos, procurando instruí-los e desejando lhes assegurar

um destino melhor do que eles próprios teriam conhecido até o momento. Sorel assim

atribui uma importância fundamental ao papel da mulher no desenvolvimento do

socialismo. Segundo ele, aquele sentimento de progresso seria bem mais potente na mulher

que no homem (Idem). Isso porque a mulher seria a “grande educadora do gênero humano”,

menos talvez das crianças que do próprio homem. E ao homem, ela educaria pelo amor, o

que transformaria e disciplinaria os instintos masculinos. A mulher moralizaria o homem,

sendo este papel essencial na marcha para o socialismo (Idem).

Dos momentos em que Sorel se refere à família como unidade fundamental da

reprodução de uma moral nova na sociedade, esse talvez seja o mais espantoso. Em

princípio, ao tratar do assunto, percebe-se que o autor sequer menciona a possibilidade de

mudança na estrutura familiar tradicional, no núcleo monogâmico modelo formado por um

casal reprodutor de crianças, cuja educação lhe estaria confiada até a idade do trabalho e

mesmo depois, dependendo da precocidade com que o indivíduo começasse sua atividade

produtiva. Embora a hipótese, a defesa mesmo de mudança dessa estrutura já se

encontrasse em Engels desde seus Princípios do Comunismo, Sorel parece ignorá-la e mais,

faz do núcleo familiar tradicional o motor ético do avanço para o socialismo. Mas nada

demonstra com tamanha ênfase o paradoxal conservadorismo moral soreliano do que essas

supostas homenagem e exaltação do papel da mulher na luta socialista, na verdade

atribuindo e reforçando, com palavras mal disfarçadas, as mesmas tarefas domésticas

opressoras da condição feminina na sociedade capitalista. Como entender a exclusividade

típica da tarefa da “grande educadora do gênero humano”, de “moralizadora” e domadora

dos “instintos” do gênero masculino senão a partir de suas obrigações tradicionais com

crianças e maridos? Ao essencializar na mulher características que lhes são históricas,

essencializa-se também diferenças de gênero que servem mais para a afirmação da

impossibilidade de mudanças na relação entre os sexos do que para qualquer propósito

164

progressista, por imediato que seja. Tal postura por parte de Sorel deixa a nu os reais efeitos

políticos advindos do romantismo proudhoniano, do qual o autor se coloca como legatário.

Segundo o autor, a importância dos sentimentos que ele descreve teria sido

subestimada, concedendo-se aos trabalhadores apenas satisfações honoríficas e melhorias

de ordem material. Para que o socialismo resista à oposição dos patrões, seria necessário

que o proletariado adquira uma ideia clara de sua missão histórica. Seus teóricos não teriam

escrito o suficiente sobre esse assunto, apesar de que o povo se aperceberia, quase sempre,

do papel histórico que lhe caberia, no que seria de aporte central a teoria marxista (Idem,

p.131). As indicações de Marx, segundo Sorel, permitiriam expor o desenvolvimento do

que seria essa missão histórica do proletariado, que o autor apresenta, sobretudo, como uma

missão ética.

No primeiro momento, as classes trabalhadoras dos países mais avançados

industrialmente seriam os “campeões” de todo o proletariado. Não apenas teriam passado

por todas as experiências mais dolorosas, mas também suas vitórias repercutiriam nos

países vizinhos. A legislação inglesa teria servido de modelo e os trabalhadores de todo o

continente conseguido reformas que por suas próprias forças apenas não conseguiriam.

Seria por isso que a Internacional diria que o concurso teórico e prático das regiões mais

industrializadas seria necessário para a emancipação do trabalho, e o internacionalismo dos

trabalhadores se formaria no momento em que tal necessidade fosse compreendida (Idem,

p.132).

No segundo momento, o proletariado daria seu apoio à fração da burguesia que

defende as instituições democráticas. A luta tomaria aqui um caráter paradoxal e pareceria

contrária ao princípio mesmo da luta de classes. Nesse caso, teóricos socialistas diriam que

seria um engano apoiar os exploradores do povo. E os conservadores aproveitariam a

aproximação dos liberais com a classe trabalhadora para combatê-los. De toda forma o

povo, “tocado pelo espírito socialista”, não hesitaria. Não escutaria os teóricos e marcharia

ao lado da burguesia, sem, no entanto, empreender negociações com ela. Apareceria aqui o

“caráter desinteressado da luta” (Idem).

Finalmente, no momento em que os esforços do proletariado se apresentassem vãos,

quando as forças governamentais fossem fortes o suficiente para impedir o combate a seus

165

desígnios “criminosos”, então a Internacional recomendaria o protesto e a reivindicação dos

direitos da justiça e da moral (Idem). Para o autor, clamar nesse momento à ideologia e à

utopia estaria conforme as recomendações do próprio Marx. Nesta etapa, o espírito se

mostraria completamente despojado de preocupações próprias à vida de classe. Já se teriam

esvaecido aqui os interesses, os sistemas jurídicos capazes de proteger os trabalhadores, as

reformas políticas destinadas a aumentar sua influência no futuro. Estar-se-ia então em

presença de puros sentimentos de revolta, provocados pela violação das regras normais de

conduta. O espírito se tornaria completamente alforriado. O termo extremo da ética seria

atingido (Idem).

Pela presença de “puros sentimentos de revolta” é que Sorel caracteriza o termo

extremo da ética. Na descrição acima das três etapas, ou três momentos, da missão histórica

do proletariado, poderíamos nos perguntar se não haveria uma inversão cronológica na

apresentação. Afinal, do ponto de vista mesmo reformista do movimento dos trabalhadores,

partiríamos dos “puros sentimentos de revolta” e chegaríamos às leis e conquistas de

reformas por parte dos trabalhadores, passando pela união tática com setores avançados da

burguesia, etc. Mas o que o autor faz aqui é optar não pelo modelo diacrônico de exposição

da luta dos trabalhadores, mas por um método que evidencie uma ordem ética

hierarquicamente crescente. Daí que as conquistas materiais institucionais se encontrariam

num momento ético já erodido, onde aqueles “puros sentimentos de revolta” cederam lugar

a negociações e concessões a representações políticas socialistas, à política parlamentar

legisladora. Embora essa seja a demonstração cabal do caráter jurídico da luta de classes,

segundo o próprio autor, os “puros sentimentos de revolta” seriam a mais alta fonte ética de

todo o movimento de reforma. Sorel manterá em alta conta esses sentimentos espontâneos

de revolta como inovadores morais dos trabalhadores. Chegará mesmo a preconizar o

cultivo desses sentimentos como única saída para o movimento sindical revolucionário, o

qual poderia assim evitar, segundo ele, as manipulações de parlamentares e intelectuais

socialistas, destinados que estariam a sempre se arrogar o comando das classes

trabalhadoras. O cultivo, a gênese e manutenção daqueles sentimentos ficariam a cargo da

disseminação de objetivos míticos no seio do sindicalismo, na imaginação dos

166

trabalhadores. Surge daí a elaboração soreliana do conceito de “mito”, que aparecerá

sistematizada alguns anos mais tarde, em suas Reflexões sobre a violência.56

O autor sustenta que o objetivo da ética seria de fixar as regras para a conduta

moral. Assim assevera, por exemplo, que os tratados éticos de Aristóteles seriam estudos

sobre a conduta que deveria ter um ateniense respeitável. A moral assim entendida estaria

em relação bem próxima com as instituições do país e não seria sem razão que os antigos

teriam considerado a moral como uma parte da política. Porém, tal maneira de considerar as

coisas seria insuficiente, porque a cidade dos tempos contemporâneos não seria considerada

como uma unidade, ao contrário, seria sempre vista em sua divisão de classes (Idem, p.

133). O princípio da conduta, por sua vez, não seria deduzido de teorias filosóficas. Deveria

ser procurado na prática, no comportamento concreto dos homens. Seria ainda fácil,

segundo Sorel, observar que a conduta receberia julgamento, sobretudo, segundo a relação

que haveria entre ela e certas instituições consideradas essenciais para uma classe. Ou seja,

poder-se-ia dizer que nos países onde o socialismo tenha atingido certa maturidade a

conduta socialista normal seria aquela adequada e favorável ao progresso das instituições

socialistas (Idem).

Em todo caso, não se deveria crer que o progresso das instituições consistisse em

toda vantagem material alcançada em proveito de alguma organização dos trabalhadores,

até porque tal vantagem poderia ser produto, em certos casos, de uma mentira ou engodo, o

que seria, na verdade, um revés na instituição (Idem). Ao falar de instituições, o autor

chama a atenção para o fato de estar se referindo a “organizações penetradas pelo espírito

do socialismo”, e sugere que não se deveria, nesse caso, “separar a alma do corpo” (Idem).

Afirma que durante muito tempo os teóricos do socialismo teriam sido pouco favoráveis às

instituições. Sustentariam, especificamente, que as cooperativas não seriam verdadeiros

organismos socialistas. Esta maneira de ver as coisas encontrar-se-ia quase abandonada,

observa Sorel. De todo modo, não se deveria limitar às formas exteriores das coisas, pois

nesse quesito instituições muito parecidas poderiam ter funcionamento completamente

diferente. Aqui, o autor dá como exemplo sociedades belgas católicas e socialistas, que

teriam funções análogas, de satisfazer necessidades materiais quase idênticas, mas cujos

56

Debruçamo-nos parcialmente sobre as repercussões teóricas do conceito de mito em outro momento deste trabalho.

167

resultados se apresentariam bem diferentes. Apesar de não abordar os detalhes dessa

diferença, afirma Sorel que as instituições deveriam ser comparadas segundo seu “conteúdo

psicológico”, ou seja, segundo os sentimentos que elas desenvolveriam em seus integrantes

(Idem). De todo modo, não haveria instituições simples. Imperfeições e contradições

estariam sempre presentes, porque o direito e a moral devem conviver em seu interior e,

consequentemente, manifestar suas contrariedades (Idem, p. 134).

As instituições exerceriam uma potente ação educativa sobre os trabalhadores

(Idem). Serviriam, por exemplo, para aumentar a herança de ideias morais recebidas das

gerações precedentes. Quando se estuda uma cooperativa, seria bem menos importante

saber quais as deduções feitas dos associados que conhecer o que porventura eles tenham

ganhado em moralidade. Dever-se-ia pesquisar se teriam se tornado mais capazes de

compreender seus próprios interesses, de defendê-los por si mesmos, de avaliar justamente

o quê de solidariedade proletária tenha sido eventualmente criado (Idem). Sorel, portanto,

refere-se claramente às cooperativas e sindicatos ao falar de “instituições”. Refere-se, na

verdade, a instituições de organização da classe trabalhadora. Insinua já aqui a importância

conferida aos sindicatos em suas posteriores Reflexões sobre a Violência. É de se lembrar

que, lá, são os sindicatos que detêm o papel de manutenção do “mito” da greve geral para a

coesão permanente do proletariado, o papel de agitação e educação das massas

trabalhadoras na defesa autônoma (para Sorel isso significa sem intelectuais e sem partidos)

de seus interesses.

Nos momentos históricos em que as instituições estariam ainda pouco

desenvolvidas, os socialistas ter-se-iam ocupado com descrições das sociedades do futuro.

Porém, a esperança da vida perfeita se dissiparia à medida em que as instituições fossem

ocupando mais o espírito dos homens. Teria sido assim, por exemplo, no caso da

organização da instituição da Igreja, fato que teria deslocado as profecias milenares a uma

posição de pouco interesse para os fiéis (Idem). Para o autor, o mesmo fenômeno se

professaria em meio aos socialistas contemporâneos, o que deveria ser estudado de perto.

Sorel chama “passagem da utopia à ciência” o processo que baliza a passagem da

esperança em uma vida perfeita à prática de uma vida tolerável e animada por um novo

espírito. Ciência que não se proporia senão fins acessíveis para as forças disponíveis,

168

problemas para cuja solução dispusesse-se de elementos, dispondo claramente aqui de sua

leitura do “Prefácio de 1859”. À época em que escreve, o autor considera que o

proletariado estaria por toda parte preocupado com a vida prática e pouco se interessaria

por dogmatismos. Esforçar-se-ia em aproveitar todos os elementos que encontra na

sociedade capitalista para criar instituições que lhe sejam próprias, para obter melhores

condições de vida, para mudar a legislação. Faria verdadeiramente, assim, obra científica. É

o que o autor classifica como movimento (Idem).

As velhas esperanças não deveriam desaparecer à medida que o movimento

socialista dos trabalhadores crescesse em importância (Idem, p. 135). Aponta o autor que

alguns teóricos, aludindo e criticando a formulação de Bernstein, segundo a qual “o

movimento é tudo, o fim não é nada”, teriam acreditado no contrário. A fórmula teria

provocado escândalo na Alemanha e envolvido os teóricos socialistas numa discussão

confusa. O mérito da questão seria, na verdade, um problema ético “da mais alta

importância”. Ética que, nesse caso, Sorel analisa através da conduta. Esta, então, deveria

ser considerada a partir de dois distintos pontos de vista: dever-se-ia examinar o lado

“exterior”, procurar seus efeitos na sociedade e defini-la pelas suas correlações com as

instituições. Porém, seria necessário também examinar o lado “interior”, tratá-lo como

“conduta de homens livres” e procurar compreender o estado psicológico correspondente

ao que o autor chama de “decisão direita”. Assim, o objetivo da educação seria fixar nos

espíritos uma intenção forte e dominante, que lhes permitisse decidir sem hesitação, ou

seja, alcançar o cumprimento dos deveres como uma coisa própria, internalizada, sem o

concurso da escolha feita pela reflexão. Tal lado interior seria um conjunto de sentimentos,

uma intenção fixa e dominante, que deveria ser examinada pela filosofia ao mesmo tempo

que o lado exterior. Estes dois pontos de vista não poderiam nunca estar separados (Idem).

Numa primeira abordagem, continua o autor, seria impossível definir um estado

psicológico de tal gênero. Quanto mais forte e fixa a “intenção”, mais escaparia ela ao

exame da consciência. A experiência ensinaria, contudo, a definir as causas de uma

intenção de tal natureza em meio aos efeitos que se realizam em casos bem simples, em que

tais causas tenham atingido sua “plena perfeição”. O autor fornece o exemplo da educação

cristã, que teria tomado por base mais as lendas dos hagiógrafos que os textos de

historiadores críticos. Tais lendas ilustrariam as virtudes cristãs levadas até um estado

169

heróico. Assim, os hábitos que se quisessem desenvolver seriam apresentados de forma

clara a nossa consciência sob a forma de exemplos onde a “intenção direita” teria produzido

seus efeitos mais característicos (Idem).

Tais seriam os efeitos ou consequências lógicas do que o autor chama de “ideia ética

do socialismo” (Idem, p.136). Assevera Sorel que seria possível julgar as “intenções

socialistas” vislumbrando um regime em que não mais existiriam as tradições burguesas ou

a hierarquia, e onde a propriedade privada houvesse desaparecido. Classifica tal regime de

“estado final”. Seria suficiente, nesse caso, apenas a representação do comportamento geral

para que se pudesse apreciar a identidade dos “estados psicológicos” correspondentes a tal

regime em comparação com os estados psicológicos contemporâneos (Idem).

Não seria necessário, para o autor, estabelecer comparações formais entre o presente

e tal fim “imaginado”, ou procurar em que medida uma instituição trabalhadora

apresentaria semelhanças ou diferiria do “verdadeiro socialismo”. A incompreensão sobre

as diferenças nos pontos de vista “interior” e “exterior” teria já, segundo ele, conduzido a

vários equívocos nesse sentido. O autor aqui se refere à necessidade de se distinguir os

sentimentos socialistas, a ética socialista, o “ponto de vista interior”, de qualquer

elucubração sobre o que viriam a ser, objetivamente, as instituições socialistas numa

eventual nova sociedade (Idem).

Ter-se-ia discutido, “inutilmente”, sobre a questão de saber se os socialistas, ao

conseguir realizar certas reformas, teriam ou não abandonado seus ideais (Idem). Afirma

Sorel que as questões de quantidade seriam, no entanto, ociosas. A intenção não seria

mensurável, conservaria sua qualidade, por mínimos que fossem seus efeitos. Seria este um

princípio que a própria educação cristã já teria popularizado desde há muito tempo. Nesse

sentido, reafirma o autor que a “intenção socialista” poderia se manifestar perfeitamente na

criação, por exemplo, de uma pequena sociedade de trabalhadores. De modo que não se

trataria de um engodo recomendar aos homens que engajem suas vidas em prol de uma rede

de instituições socialistas e que confiram um significado socialista às suas ações. Pouco

importaria então que o comunismo viesse cedo ou tarde, que tivesse que ser precedido de

etapas mais ou menos numerosas. O essencial seria tomar consciência do fato de que se

estaria agindo por uma “conduta socialista”, uma “ética socialista”. O horizonte de uma

170

sociedade socialista, ou o que o autor chama de “objetivo final” ou “estado final”, existiria

apenas para nossa “vida interior”. Aconteceria já no presente, não estaria fora das

consciências. Estaria no “interior do coração” dos trabalhadores. Assim, o socialismo se

realizaria todos os dias, sob nossos olhos, à medida que se alcance a concepção do que seja

uma conduta socialista, na medida em que assim se saiba dirigir as instituições e na medida

em que, consequentemente, a ética socialista se forme na consciência e na vida dos

trabalhadores. Ao passo que tais princípios sejam bem compreendidos, cessa-se a “ilusão”

de uma catástrofe que se distanciaria sempre e de um comunismo que pareceria se

distanciar indefinidamente. A partir daí se poderia transformar as doutrinas sociológicas em

doutrinas éticas (Idem).

Pode-se notar aqui, embora de forma sutil, mais uma vez a presença, em claro

desenvolvimento, do conceito soreliano de “mito”, embora o autor não utilize ainda tal

termo. A “intenção direita” parece ser a intenção eticamente motivada por uma causa

“perfeita”, nutrida nas esperanças daquele que age. Poder-se-ia, portanto, identificar a

“causa perfeita” por meio da observação de seus efeitos mais característicos. Donde

concluímos que a “causa perfeita” não pode ser senão o “mito” que Sorel trará em idéia já

desenvolvida em suas Reflexões sobre a violência, anos mais tarde. O mito, como imagem

perfeita do resultado pretendido, forneceria assim a motivação para a ação, ou para a

“intenção direita”. Por antecipação, o conceito de “mito” parece ser o ponto de chegada da

abordagem soreliana da luta de classes como uma luta jurídica, e o deságue de seu

revisionismo no sindicalismo revolucionário.

Já pudemos concluir anteriormente que a violência de que tratará Sorel em suas

Reflexões não é, a rigor, a violência imediata que o autor condena, por exemplo, nos

eventos da Comuna de Paris. Não se trata de violência “jacobina” de um processo

revolucionário de tomada de poder. É a própria violência como mito, cuja função é, na

medida em que mantém acesa na mente dos trabalhadores a chama da imaginação

revolucionária, promover-lhes uma reforma de caráter e de visão de mundo, conduzindo as

organizações dos trabalhadores a reivindicações jurídicas de tipo socialista. De todo modo,

é isso que constitui o perfil elitista das formulações políticas de Sorel. Na verdade, estamos

aqui em presença de um elitismo sui generis, já que o autor condena qualquer tipo de

liderança que se arrogue o comando da classe trabalhadora fora do âmbito das próprias

171

organizações da classe. Intelectuais e políticos profissionais permaneceriam

irrevogavelmente excluídos da possibilidade de integrar de forma legítima a luta dos

trabalhadores. Esta seria função do sindicato, da mesma forma que o “cultivo” das ideias de

“cisão” permanente de classe e do horizonte “mítico” da violência proletária e da greve

geral.

Mas voltemos à questão do elitismo soreliano. Dada a sua oposição à liderança da

classe trabalhadora por quem quer que seja que se encontre fora dos condicionantes

materiais dessa classe, o que caracterizaria o elitismo de Sorel? E a resposta é: a

necessidade do mito. A necessidade de fazer com que os trabalhadores acreditem em algo a

rigor impossível sob o pretexto de lhes motivar a ação. Donde teríamos que o proletariado

não pode concluir que o mito é mito, sob pena de arrefecer-lhes os ânimos. E ao sindicato,

ou às suas lideranças, caberia o papel de acreditar em seu próprio mito e instigar

constantemente entre os trabalhadores a esperança de alcançar o horizonte mítico. Ou seja,

o autor acredita na necessidade de se criar uma esperança quase religiosa nas massas

trabalhadoras para insuflar-lhes à resistência contra os patrões. Embora esta idéia se

apresente, em princípio, como um elitismo sem sujeito, difícil escaparmos à conclusão de

que, para Sorel, o proletariado só age, ou age melhor, se estiver iludido, ou apaixonado.

Ilusão/paixão que, justamente por isso, deve ser mantida, cultivada, nutrida.

2.5.4.2 Devir histórico: reforma moral, determinismo e dialética

Para Sorel, o problema do devir moderno, considerado do ponto de vista do

materialismo, repousaria sobre as questões de se o proletariado possuiria uma consciência

clara de sua existência como classe indivisível; se ele teria força o suficiente para entrar em

luta com outras classes; se ele estaria apto a revolucionar, junto com o sistema capitalista,

toda a ideologia tradicional (SOREL, 1897, p.3).

Nada disso estaria, entretanto, condicionado por nenhuma espécie de fatalismo

histórico. Para ele, determinismo suporia que as mudanças estariam ligadas entre si de

maneira automática, que fenômenos simultâneos formariam um bloco de estrutura

obrigatória, que haveria leis inelutáveis assegurando a todas as coisas uma ordem

necessária (Idem, p.6). Nada parecido seria encontrado na obra de Marx. Os eventos

172

históricos seriam considerados a partir de um ponto de vista empírico. Seria a partir de sua

“mistura” que resultaria a “lei histórica” que definiria seu modo temporário de acontecer.

Marx teria enfatizado de maneira suficiente a multiplicidade das causas que teriam

produzido o capitalismo moderno. Nada nele sugeriria que essas causas devessem aparecer

juntas em um momento determinado. Sua coexistência fortuita teria engendrado a

transformação da indústria e modificado todas as relações sociais (Idem, p.6). O

determinismo econômico atribuído a Marx não poderia ser verificado em sua obra:

Insiste-se em dizer que, segundo Marx, todos os fenômenos políticos, morais, estéticos, seriam determinados (no sentido preciso do termo) pelos fenômenos econômicos. Que poderia significar tal fórmula? Dizer que uma coisa é determinada por outra sem dar, ao mesmo tempo, uma ideia precisa do modo de junção, é dizer uma dessas bobagens que tornaram tão ridículos os vulgarizadores do materialismo vulgar. Marx não é responsável por essa caricatura de seu materialismo histórico (SOREL, 1897, p. 7).

Sorel se pergunta, por outro lado, qual seria a base metafísica do materialismo

histórico, ou qual seria o impulso essencial a determinar a continuação das pesquisas em

seu campo de domínio. Aqui o filósofo francês apresenta as pistas que levarão seu

raciocínio a concluir pela necessidade de complementar o marxismo com a base moral que

Marx teria deixado sem desenvolvimento, mas que estaria subjacente a toda a sua obra.

Para Sorel, vários erros teriam sido cometidos a partir de uma aplicação precipitada do

materialismo histórico (Idem, p.13). Esses erros teriam provindo do agnosticismo que seus

autores teriam professado e que esconderia teorias explicativas mal elaboradas. Por outro

lado, examinando as aplicações feitas por Marx, seria possível perceber que ele teria levado

em conta uma grande quantidade de princípios psicológicos, cujo enunciado não teria sido

fornecido, ordinariamente, sob uma forma científica (Idem). À medida que pudéssemos

avançar na obra de Marx, reconheceríamos a necessidade de superar este estado provisório

e de dispor de uma base sólida para apoiar as relações históricas. Assim, os seguidores de

Marx deveriam se esforçar por completar sua obra. Para Sorel, não teria havido nada que

Marx tivesse temido mais que legar um sistema filosófico rígido e fechado. Ele teria

compreendido que a condição de toda metafísica científica seria de deixar a porta

completamente aberta a desenvolvimentos posteriores (Idem, p.14).

Segundo Sorel, este desenvolvimento posterior seria encontrado conferindo ao

materialismo histórico uma base metafísica e uma “psicologia definida” (Idem, p.15). Tal

173

base metafísica seria apresentada sob a forma da moral. Poder-se-ia reconhecer o valor

histórico e social do ensinamento moral sem ter a pretensão de impô-lo através de regras,

leis, postulados obtidos pelo trabalho da imaginação. “Fazer descer a moral sobre a terra”,

livrá-la de toda fantasia não significaria negá-la. Seria, ao contrário, “tratá-la com o respeito

devido às obras da razão”. De resto, de acordo com o autor, as apreciações morais seriam

abundantes n’O Capital (Idem, p.16).

Em julho 1898, auge de sua fase de revisão não materialista do marxismo, Sorel

escreve um prefácio ao livro de Saverio Merlino, Formas e essências do socialismo, que

marcará a ruptura definitiva com Labriola. Ali postula que os socialistas teriam errado em

tentar constituir um partido científico, e que seria amplamente reconhecida a necessidade

de se proceder a uma “revisão rigorosa” da doutrina de Marx e Engels, separar com cuidado

o que seria essencial e científico daquilo que diria respeito apenas às tradições

revolucionárias e às preocupações políticas (SOREL, 1909, p.6). Sorel chama a atenção

para os textos de Bernstein publicados na Alemanha, segundo os quais já não se poderia

permanecer fiel ao ensino da “escola”, que seria preciso apreciar novos fatos, que se

deveriam abandonar as teorias catastróficas tornadas clássicas na socialdemocracia (Idem,

p.7). Tal como Merlino, afirma Sorel, Bernstein também não esperaria uma próxima

perturbação que poria fim ao processo fatal da concentração capitalista. Como socialistas,

considerariam agora todas as reformas que tendessem a melhorar a sorte do povo e a

sistematizar as relações sociais de modo a torná-las mais equitativas (Idem).

Sorel enfatiza a necessidade do desenvolvimento dos sentimentos morais de justiça

no seio do proletariado. Para ele, a experiência ensinaria que uma cultura nova não poderia

se tornar eficaz senão com o auxílio de uma longa preparação. Mas Sorel, e este é o nó da

problemática revisionista, preconiza que tal preparação dever-se-ia dar ainda no capitalismo

em vigor: “é então na sociedade capitalista que devem preparar-se os meios de realizar esta

nova constituição jurídica” (Idem, p.14). Para o filósofo francês, então, os sentimentos de

justiça deveriam ser cultivados e exercidos sempre que houvesse oportunidade, e essa

oportunidade se faria presente sempre que tais sentimentos estivessem em contradição com

a “divisão de classes existente” (Idem). Este é o viés da revisão não materialista que Sorel

pretenderia exercer no âmbito do marxismo. Segundo sustenta, pretender limitar o

proletariado à defesa exclusiva de seus interesses materiais seria condená-lo a permanecer,

174

eternamente, no estado de classe submetida. As preocupações exclusivamente materiais

teriam entregado as classes pobres da antiguidade aos demagogos, sempre dispostos a

organizar um exército de partidários enganados pelas ideias de vantagens imediatas. O

caminho para livrar-se da demagogia, segundo Sorel, seria cultivar o “sentimento de

justiça” nas massas operárias E isto só poderia ser feito por um partido para o qual “a

justiça e a verdade são princípios invioláveis” (Idem).

Segundo Sorel, o marxismo não colocaria em evidência de maneira suficiente a

necessária preparação jurídica para a realização do regime socialista. Já a socialdemocracia

fundaria toda a sua política no desenvolvimento das ideias jurídicas. Nesse caso, o

equívoco do marxismo seria postular que toda a sociedade, com exceção de uma minoria

cada vez menor de capitalistas, unificar-se-ia economicamente no proletariado, enquanto

que, para a socialdemocracia, haveria unificação moral da sociedade, sob a direção do

proletariado tornado capaz: “Diremos, pois, com Merlino, que a questão social, tal como

ela pode ser definida segundo a prática socialdemocrata, é uma questão jurídica” (SOREL,

1909, p.16). Na época em que Sorel escrevia o prefácio a Merlino, Bernstein analisava, em

alguns de seus artigos, as dificuldades e vantagens das cooperativas de trabalhadores sob a

égide da socialdemocracia, sobretudo cooperativas de consumo. Suas análises não

escapavam a Sorel. Segundo este, ante a discussão se as cooperativas seriam verdadeiras

instituições socialistas ou se apenas iludiriam os trabalhadores com relação ao fim a atingir,

a principal questão a se saber seria sobre os efeitos das cooperativas sobre o sentimento das

classes operárias. Ou seja, saber se as noções jurídicas que as cooperativas bem dirigidas

desenvolveriam teriam uma relação íntima com as noções jurídicas que teriam que formar a

existência da sociedade futura (Idem, p.20).

Segundo Sorel, seria necessário atentar para o fato de que a “fórmula de Marx” seria

uma fórmula jurídica e que, por isso, não exigiria uma uniformidade absoluta na estrutura

econômica. Enveredando por uma interpretação contraditória do pensamento de Marx,

Sorel sustenta ainda que este interpretaria “perfeitamente” a ideia criadora do direito

quando “definia o regime futuro por meio de elementos tirados do sistema econômico da

grande indústria” (Idem, 27). Porém, o comunismo de Marx não deveria ser interpretado

num sentido puramente econômico. Possuiria, antes de tudo, um sentido jurídico: “É até o

pensamento principal do livro de Merlino: a questão social é uma questão jurídica” (Idem).

175

Sorel pretendia que, dessa maneira, se estivesse empreendendo uma volta a Marx. Fora esta

pretensão de “voltar a Marx” por meio de uma interpretação idealista que exasperara

Labriola até às raias do rompimento com Sorel. A esse respeito, o filósofo francês se

expressava da seguinte maneira: “Eu creio que Merlino fez mais que indicar aos socialistas

a necessidade de melhorar as doutrinas marxistas. Mostrou-lhes ainda que era preciso

abandonar a letra pelo espírito. Voltar a Marx parece-me ser, neste momento, a palavra de

ordem” (Idem, p.29).

O socialismo seria uma questão moral, no sentido de conduzir o mundo a uma nova

maneira de apreciar todos os atos e valores humanos (Idem, p.31). O fato de que a “noção

de propriedade” se desvaneceria no operário produziria já uma transformação drástica nas

maneiras de pensar e distinguiria as aspirações socialistas das que tiveram os

revolucionários burgueses de outras épocas. Em sua luta constante contra o capitalismo, o

proletariado teria adquirido “noções catastróficas” sobre a propriedade, ou seja, sobre a

base do direito burguês. Assim, estaria apto a cumprir sua missão história, que seria a

imposição incessante à sociedade de um sistema jurídico novo, incompatível com a

tradição, mas ao mesmo tempo capaz de trazer alguma melhoria ao próprio sistema

capitalista (Idem, p.32). De acordo com Sorel, o proletariado encontraria, nas suas

condições de vida, a fonte para seus sentimentos de solidariedade e revolta. Estando em

guerra cotidiana com a hierarquia e com a propriedade, poderia conceber valores morais

opostos aos consagrados pela tradição. Seria nessa nova avaliação de todos os valores pelo

proletariado militante que consistiria a originalidade do novo socialismo (Idem, p.33).

Sorel apostaria, portanto, na edificação de novos valores morais no seio do

proletariado, por conta da luta de classes. Aqui se encontrariam já, é possível, traços da

noção de “cisão de classes”, que o autor desenvolverá anos depois, em suas Reflexões sobre

a violência. É possível notar também a familiaridade com a ideia de reforma moral do

proletariado. O problema aqui ainda são as limitações implícitas do caráter da luta admitida

por Sorel.

Aquela edificação de novos valores morais teria por função criar no proletariado,

além de um sentimento material de apartação de classe, também a noção e a valorização de

sua própria capacidade de intervenção na história. Esta capacidade de intervenção é

176

interpretada por Sorel até o limite de desautorizar qualquer leitura que conferisse à história

alguma lei “prévia”, ou “autônoma”, de seu próprio movimento. Era assim que Sorel

considerava, por exemplo, a dialética. Para ele, a dialética seria elemento de uma leitura

dinâmica da história que dissimularia aos atores sociais o momento em que a subversão

poderia ser introduzida conscientemente por eles mesmos (SOREL, 2007, p.261). Para ele,

“em Marx e Engels as ilusões revolucionárias foram favorecidas pelo abuso das negações

dialéticas” (Idem, p.237). Segundo Sorel, a dialética apresentaria um vício fundamental, a

saber: a introdução na história de uma descontinuidade paradoxal, que impediria a

apreensão do real mecanismo evolutivo. Ela consideraria apenas “etapas perfeitas” mais ou

menos como um “fisiologista que passaria do ovo ao ser adulto sem seguir passo a passo

seu desenvolvimento” (Idem, p.238). Sob a influência de preocupações dialéticas, o estudo

das relações reais e das soluções práticas acabaria por ser deixado de lado. Dessa forma, o

maior erro cometido pela análise dialética seria o de localizar a transformação numa região

misteriosa e de resultar, em seguida, numa crença mágica na faculdade criadora da força

(Idem). Por esse motivo, aponta Sorel, Marx e Engels teriam sido, durante boa parte de suas

vidas, “verdadeiros blanquistas”. Seria a confiança no valor da “aproximação e oposição de

abstrações” que manteria a ilusão revolucionária e blanquista, da qual seria necessário

livrar-se definitivamente (Idem).

Para Sorel, tudo o que Marx e Engels teriam escrito sobre a revolução, que eles

acreditariam iminente, não teria um grande valor e seria devido às “contingências” que

teriam confundido a visão dos dois revolucionários. De todo modo, sugere Sorel que tais

contingências não seriam negligenciáveis, pois teriam tido uma influência considerável na

exposição da doutrina. “A forma, e não a substância de um ensinamento, que determina a

direção seguida por uma escola” (SOREL, 2007, p.78). Daí a importância dos mitos como

motivadores da ação: “Se o marxismo teve uma tão grande influência sobre as massas

populares, ele a deve antes de tudo à atratividade de seus mitos” (SOREL, 2007, p.40).

Sorel intenta, sobretudo, desautorizar o que de científico o marxismo reivindicaria

para si. A revisão soreliana do marxismo, que vai da análise da luta de classes como uma

questão moral e jurídica, na segunda metade da década de 1890, até a tentativa de

aproveitar o que o marxismo possuiria de “útil” para a indução de uma prática sindicalista

com vistas à greve geral, nos primeiros anos do século XX, mantém o eixo condutor de

177

procurar desautorizar qualquer pretensão científica por parte do marxismo. Se antes o

marxismo não era científico porque seu objeto de análise referir-se-ia a questões que

pertenceriam exclusivamente à esfera moral, num segundo momento não seria científico

devido à imprevisibilidade dos fenômenos históricos e a ilusão, conferida pelo método

dialético, de se encontrar regularidades observáveis no movimento histórico. Por exemplo,

sobre o “Prefácio de 1859” à Contribuição à crítica da economia política, comentando a

passagem que se refere ao momento da contradição máxima entre o desenvolvimento das

forças produtivas e as relações de produção existentes, momento que propiciaria o

desencadeamento de um processo revolucionário, argumenta Sorel: “Não se trata de uma

lei científica, já que não se poderia chegar a definir exatamente os termos. Como saber que

as medidas já estão completas? Como medir a amplitude do espaço aberto ao

desenvolvimento das forças produtivas?” (SOREL, 2007, p.79).

Porém, não seria Marx que estaria fornecendo uma leitura determinista da história,

mas sim seus intérpretes posteriores. Para Sorel, a intenção de Marx ali não seria formular

uma lei no sentido estrito do termo, mas apenas aconselhar os revolucionários contra os

perigos da revolução “concebida à maneira antiga” 57. Marx estaria dando um conselho

prático aos revolucionários, encorajando-os a evitar o engajamento em iniciativas perigosas

e indicando-lhes quais seriam as condições favoráveis para recorrer à ação popular. Estaria

então anunciando o princípio da necessidade de uma preparação econômica e ensinando

que a emancipação do proletariado dependeria também de circunstâncias que

permaneceriam estranhas à sua vontade, condições que resultariam do desenvolvimento

industrial (Idem).

Ser contrário a leis de desenvolvimento da história, para Sorel, também é ser

contrário à dialética, que no final das contas seria apenas mais uma faceta do determinismo

histórico. Ele expressaria seu incômodo de forma mais clara numa carta a Croce de 27 de

dezembro de 1897:

57 Parece-nos claro que “a revolução concebida à maneira antiga” não pode ser outra que não a revolução nos moldes “blanquistas”. Como Marx poderia ter sido “blanquista durante boa parte da vida”, conforme as próprias considerações de Sorel que apresentamos mais acima, e ao mesmo tempo procurar alertar contra tais “perigos”? Responder-nos-ia Sorel que “o próprio Marx se deixaria levar mais de uma vez por esperanças quiméricas; a linguagem vaga e contestável, que não deveria convir para enunciar uma lei específica, convinha, por outro lado, perfeitamente a um conselho” (SOREL, 2007, p.79).

178

As fórmulas pelas quais Marx marcou sua posição são muito obscuras. Mas o que me parece mais obscuro é o método dialético. Fala-se disso como de uma coisa muito fácil de compreender e, quanto mais eu o vejo, menos compreendo (...). Não seria conveniente suprimir esta expressão, “dialética”, e tudo que se relacionasse à “negação da negação”? Isso seria um grande progresso porque, para nossos contemporâneos, todo esse aparelho hegeliano não oferece nenhum sentido (SOREL, 1927, p.52).

Sobre aquela “expressão”, observaria ainda Sorel que a consideraria particularmente

infeliz, já que ela induziria à crença segundo a qual os eventos particulares seriam o lado

arbitrário da história, enquanto o “quadro geral” no qual seu conjunto se resumiria

representaria as leis gerais ou, “como diria Proudhon, o pensamento eterno invariável”

(SOREL, 2007, p.81). Dessa forma, argumenta Sorel, tornaríamos ao conceito de uma

ordem necessária, senão entre as coisas, pelo menos no que elas teriam de “essencial em si

mesmas” (Idem). Segundo o filósofo francês, por meio da dialética o raciocínio encontraria

uma base e o futuro poderia ser deduzido do passado. Os marxistas teriam, assim, sido

vítimas da dialética e raciocinado como idealistas, sem o saber (Idem). A “ilusão dialética”

consistiria a desejar ver em quadros históricos mais do que resumos de uma exatidão

relativa, e a imaginar que eles exprimiriam a ação de uma lei desconhecida que governaria

a marcha da história. Assim se chegaria naturalmente ao “determinismo absoluto” (Idem,

p.84). Não haveria nenhuma regra definida que permitiria a passagem de um suposto

elemento determinante a um elemento determinado (Idem):

Eu acredito que se deveria assumir como princípio empírico que a história não é suscetível de nenhuma previsão, porque os fatos não acontecem para tornar racionais as relações que parecem contraditórias aos contemporâneos. Essa ausência de qualquer previsão me parece essencial para o materialismo histórico, enquanto seria um escândalo para os idealistas (SOREL, 1927, p.170).

A dialética seria, para Sorel, o principal elemento a revisar. Ele reclamaria a Croce:

A propósito da interdependência entre os modos de produção e os modos de distribuição, você observou que Engels diz que em nosso tempo eles estão em desacordo e que a revolução social teria por objetivo coloca-los de acordo? Marx diz às vezes que as relações sociais dependem das forças produtivas, às vezes que umas e outras não podem existir harmonicamente (Idem).

Para Sorel se faria difícil entender que a mudança constante, tomada pela dialética

como um dado básico, poderia conduzir às vezes a um equilíbrio e às vezes a uma

contraposição entre as forças produtivas e as relações de produção e de troca e que, assim,

179

poderia ocorrer uma harmonia temporal ou uma falta temporal de harmonia entre essas

duas partes da estrutura econômica (GUSTAFSSON, 1975, p.323). Sorel tomava a dialética

por uma tentativa de conferir regularidade à história. Tal regularidade, para ele, seria

puramente imaginária. Como o devir histórico não estaria ligado e não mostraria nenhuma

regularidade, também não estaria vinculado a leis de desenvolvimento histórico. Mas,

segundo Gustafsson, a argumentação de Sorel se faria muito vaga. Ele se contentaria em

estabelecer que o desenvolvimento do capitalismo estaria determinado não apenas pelo

desenvolvimento da produção capitalista, mas também pelas tradições históricas e pelas

concepções jurídicas herdadas, “o que, na verdade, Marx não negava” (Idem, p.326).

2.5.4.3 Antideterminismo em Sorel.

Sorel consideraria que progresso e determinismo seriam noções estranhas a Marx,

mas que suas explicações relativas às transformações históricas poderiam dar lugar, às

vezes, a interpretações erradas (SAND, 1985, p.79). A passagem abaixo forneceria a noção

mais próxima do que Sorel pensaria a respeito: “No sentido exato do termo, é necessário

entender desenvolvimento como sinônimo de formação epigenética; coisas novas juntam-se

às antigas, surgem delas, e às vezes lhes reabsorvem em seguida” (SOREL, 1896b, p.194).

O desenvolvimento industrial ou, mais exatamente, o desenvolvimento tecnológico

ilustraria mais completamente esse processo. As mutações dos instrumentos tecnológicos

não se revestiriam de aspectos deterministas, a fase anterior não determinando as fases

seguintes. As formas do desenvolvimento técnico dependeriam, ao contrário, de uma série

de fatores que nasceriam tanto no domínio da produção quanto fora dela, ou seja, no quadro

das relações sociais no seio das quais se efetuaria a produção. Assim, de acordo com Sorel,

Marx mostraria que, para se compreender uma sociedade, seria necessário estudar

prioritariamente a natureza de seus instrumentos de trabalho e não as matérias primas ou os

produtos finais dessa sociedade. Os meios de produção deveriam constituir o objeto central

da pesquisa histórica (SAND, 1985, p.79).

De acordo com Sand, Sorel se esforçaria para mostrar que seria impossível

determinar em Marx uma direção única ao desenvolvimento. A recusa de reconhecer o

materialismo histórico como uma nova filosofia da história não seria exclusiva de Sorel.

180

Labriola e Croce expressariam, em alguns de seus artigos, a mesma tendência a opiniões

semelhantes. Os três recusariam a visão teórica que enquadraria a história num esquema de

desenvolvimento único, e cada um apresentaria, a sua maneira, argumentos destinados a

mostrar que o determinismo linear seria estranho à obra de Marx (SAND, 1985, p.80). A

observação atenta das diversas legislações e costumes, das formas de organização dos

movimentos operários dos diferentes países, tal como suas ideologias, revelariam a

impossibilidade de considerar todas essas diferenças como o simples reflexo de certo modo

de produção. Sorel formularia nesse momento uma série de considerações, sendo a primeira

que “a situação atual é condicionada não somente pelo capitalismo, mas também pelas

tradições históricas e sobrevivências jurídicas” (SOREL apud SAND, 1985, p.79).58 A

constante penetração do passado no presente orientaria o processo que não poderia ser

resumido em uma só fórmula. Mas o mais importante a notar contra o determinismo seria

que toda explicação da história em função de um princípio orgânico único se privaria da

possibilidade de compreender as maneiras como se efetuariam as mudanças históricas,

porque elas, na verdade, se efetuariam pelo viés da consciência coletiva de uma sociedade

dada (SAND, 1985, p.82).

Sorel se recusaria a admitir qualquer filosofia da história, quer fosse ela linear ou

cíclica. Insistiria ele sobre o caráter unívoco e a especificidade de cada processo histórico, e

enfatizaria que a aceitação das teorias outras, mesmo que não lineares, implicaria a

renúncia a toda transformação socialista e o engessamento da história em outra forma de

determinismo. Assim, a consciência de classe, a moral, as concepções jurídicas, a cultura

não poderiam ser limitadas mecanicamente a uma reprodução do modo de trabalho. O

complexo histórico se edificaria sobre um complexo de camadas cuja mudança se mostraria

muito mais delicada do que à primeira vista apareceria aos historiadores, e a pesquisa das

relações entre o desenvolvimento tecnológico e as estruturas institucionais e ideológicas de

casa época estariam ainda tateando (Idem, p.92). No último de seus artigos publicados em

Le Devenir Social , em outubro de 1897, Sorel já apresentaria uma posição claramente

definida sobre a dialética em Marx. A partir de então, ele não admitiria mais o recurso à

chamada “negação da negação” para explicar o processo histórico que conduziria de forma

inelutável à realização do socialismo. Sorel apresentaria a suposição de que a descrição

58 Cf. também Sorel, 1896, p.930.

181

contida no penúltimo capítulo d’O Capital (A assim chamada acumulação primitiva) seria

revestida de um aspecto simbólico. Os elementos que ele consideraria deterministas nesta

passagem não representariam o pensamento profundo de Marx e, além disso, a carta de

Marx sobre a evolução da Rússia provaria que a fórmula hegeliana não deveria ser tomada

como uma definição geral da lei da história (Idem, p.96).59

59 Façamos aqui uma breve digressão para ilustrar a questão à qual Sorel se refere. Apresentaremos os trechos dos referidos textos de Marx, para concluirmos em seguida com algumas observações sobre sua influência no socialismo revisionista de Sorel e Bernstein. A passagem sobre a acumulação primitiva que, não apenas para Sorel, mas também para Bernstein, constituiria a base da “teoria do catastrofismo”, seria representada mais precisamente pelos três últimos parágrafos do texto: “ Com a diminuição constante do número dos magnatas do capital, os quais usurpam e monopolizam todas as vantagens desse processo de transformação, aumenta a extensão da miséria, da opressão, da servidão, da exploração, mas também a revolta da classe trabalhadora, sempre numerosa, educada, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista. O monopólio do capital torna-se um entrave para o modo de produção que floresceu com ele e sob ele. A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho atingem um ponto em que se tornam incompatíveis com seu invólucro capitalista. Ele é arrebentado. Soa a hora final da propriedade capitalista. Os expropriadores são expropriados. O sistema de produção capitalista surgido do modo de produção capitalista, ou seja, a propriedade privada capitalista, é a primeira negação da propriedade privada individual, baseada no trabalho próprio. Mas a produção capitalista produz, com a inexorabilidade de um processo natural, sua própria negação. É a negação da negação. Esta não restabelece a propriedade privada, mas a propriedade individual sobre o fundamento do conquistado na era capitalista: a cooperação e a propriedade comum da terra e dos meios de produção produzidos pelo próprio trabalho. A transformação da propriedade privada parcelada, baseada no trabalho próprio dos indivíduos, em propriedade capitalista é, naturalmente, um processo incomparavelmente mais longo, duro e difícil do que a transformação da propriedade capitalista, realmente já fundada numa organização social da produção, em propriedade social. Lá, tratou-se da expropriação da massa do povo por poucos usurpadores, aqui trata-se da expropriação de poucos usurpadores pela massa do povo” (MARX, 1988a, p.283-284, grifo nosso). Levando às últimas consequências o exemplo de um raciocínio dialético materialista, Marx faria aqui o que tanto Bernstein quanto Sorel classificariam de “previsão catastrofista” da derrocada do sistema capitalista de produção, ou seja, Marx avançaria da análise concreta da concentração primordial do capital para a conclusão da chegada da “hora final” da propriedade privada capitalista, invocando o princípio dialético da “negação da negação”. Para o revisionismo, tratar-se-ia de um exercício de futurologia que procuraria sua legitimação justamente no método dialético. É assim que, por exemplo, tanto para Bernstein quanto para Sorel, a dialética não seria diferente das outras filosofias da história que confeririam a esta um sentido metafísico. Bernstein se dá por satisfeito com essa conclusão, enquanto Sorel, por seu lado, procurará “salvar o núcleo são” do marxismo, sustentando que a passagem acima não representaria o verdadeiro espírito de Marx. Para prová-lo, Sorel evoca a carta de Marx em polêmica com o líder populista russo Mikhailovsky, na qual Marx se defende das acusações de determinismo histórico e reconhece que a Rússia seria exemplo de desenvolvimento de uma formação social que poderia saltar a etapa das “impiedosas leis do capitalismo”. A carta fora publicada em francês na revista Le Mouvement Socialiste, n. 93, 24 maio de 1902, p. 968-972, fonte acessada por nós para este trabalho. Sorel, que escreve a este respeito em 1897, já havia tomado conhecimento do texto, como nos informa Sand (1985, p.247), por meio de um artigo publicado na revista Temps nouveaux de 13 de agosto de 1897, assinado por Tcherkesoff. Reproduzimos a seguir trechos significativos da “defesa de Marx”: “ (...) Enfim, como não gosto de deixar coisas por adivinhar, falarei sem circunlóquios. Para poder tratar com conhecimento de causa o desenvolvimento econômico da Rússia contemporânea, aprendi russo, e depois estudei, durante longos anos, as publicações oficiais e outras relacionadas a esse assunto. O resultado a que cheguei foi o seguinte: se a Rússia continuar a marchar no sentido que o tem feito até 1861, ela perderá a mais bela oportunidade que a história já ofereceu a um povo para sofrer todas as catástrofes do regime capitalista. / No capítulo sobre a Acumulação primitiva, pretendo apenas traçar a via pela qual, na Europa ocidental, a ordem econômica capitalista surgiu dos entraves da ordem econômica feudal. Ela seguiu então o movimento que a fez separar os

182

Em seu período de colaboração com Le Devenir Social, seria interessante notar a

dependência teórica que se teria estabelecido entre Sorel e Labriola (SAND, 1985, p.134).

Labriola conheceria Marx bem melhor e seus vínculos com o marxismo seriam mais

antigos. Sorel, por sua vez, encontraria em Labriola o antideterminismo que procurava, já

que Labriola teria rejeitado as concepções evolucionistas e positivistas. Preparando o

prefácio da tradução francesa dos Saggi de Labriola, Sorel teria confessado a Croce a

dificuldade em esclarecer algumas objeções feitas por Labriola às interpretações

deterministas do marxismo (SOREL, 1927, p. 170). O problema de fundo, na verdade, se

referiria à utilização da dialética na história. A crise em seu relacionamento com Labriola

toma contornos definitivos, depois da ruptura com Le Devenir Social, imediatamente após a

publicação de um artigo de Sorel chamado “A crise do socialismo científico” na revista

italiana Critica Sociale, em 1898. Labriola recusaria o termo “crise do marxismo”. Para ele,

tratar-se-ia, ao contrário, de uma crise pela qual estariam passando certos marxistas, e não a

própria teoria (SAND, 1985, p.134).

Se durante o período de Le Devenir Labriola teria fornecido um suporte filosófico

importante para Sorel, Croce não chegaria a substituí-lo imediatamente. Em termos

intelectuais, observa Sand, seria difícil estabelecer as bases dessa amizade que, no entanto,

duraria 32 anos, até a morte de Sorel em 1922. Muita coisa separaria, no plano pessoal, o

jovem filósofo napolitano do engenheiro francês aposentado. Seriam diferentes em suas

culturas, concepções epistemológicas e atitudes em relação ao socialismo. Teria havido um

produtor de seus meios de produção, transformado o primeiro em assalariado (proletário, no senso moderno da palavra), e os últimos em capital. (...) No final do capítulo, trato da tendência histórica da acumulação, e afirmo que sua última palavra e a transformação da propriedade capitalista em propriedade social. Não forneço nenhuma prova neste sentido pela única razão de que tal afirmação é, em si mesma, apenas o resumo, o sumário de longos desenvolvimentos anteriormente efetuados nos capítulos sobre a produção capitalista. Agora, que aplicação ao caso russo meu crítico poderia tirar de meu esboço histórico? Somente esta: se a Rússia tentar tornar-se uma nação capitalista, à moda das nações da Europa ocidental, e nos últimos anos ela tem encontrado bastante dificuldade deste sentido, ela não o conseguirá sem antes transformar uma boa parte de seus camponeses em proletários; e depois disso, uma vez elevada ao degrau do regime capitalista, sofrerá suas leis impiedosas, como as outras nações. Eis tudo. Mas é demais para meu crítico. Ele deve absolutamente metamorfosear meu esboço da gênese do capitalismo na Europa ocidental em uma teoria histórico-filosófica da marcha geral, fatalmente imposta a todos os povos, quaisquer que sejam as circunstâncias históricas onde se encontrem, para chegar àquela formação econômica que assegura, com a maior capacidade do poder produtivo do trabalho social o desenvolvimento mais integral do homem. (...) Estudando cada uma dessas evoluções à parte, e comparando-as em seguida, encontraremos facilmente a chave desses fenômenos, mas não o faremos jamais com um modelo de uma teoria histórico-filosófica cuja virtude suprema consistiria em ser supra-histórica” (MARX, 1902, p.968-972). A carta teria sido escrita aparentemente em 1877. Cf. Einde O’Callaghan, in http://www.marxists.org/history/etol/newspape/ni/vol01/no04/marx.htm.

183

interesse comum em relação ao marxismo em meados da década de 1890. Sua amizade se

reforçaria com o desenvolvimento da discussão no interior do campo marxista. Croce se

desinteressará aos poucos pelo marxismo, até que este se torne para ele apenas um método

de interpretação da história entre tantos outros, permitindo esclarecer, de forma útil, alguns

fenômenos históricos na dimensão econômica. Sorel não pensaria da mesma forma, e

continuaria tentando extrair das obras de Marx lições que dissessem respeito, sobretudo, à

emancipação do proletariado (Idem, p. 136).

No fim de sua colaboração com Le Devenir Social, Sorel se aproximará

teoricamente de Saverio Merlino, cujo livro Pro e contro il socialismo será tema de seu

último artigo para a revista, em fins de 1897. Em 1910, escrevera Sorel em seu texto Mes

raison du syndicalisme:

No fim de 1897 havia me colocado a estudar o livro que Saverio Merlino acabara de publicar sob o título Pro e contro il socialismo. O autor italiano esforçava-se por demonstrar que se teria tornado necessário revisar as bases das teorias socialistas para torná-las de acordo com o movimento social do qual faziam parte as organizações socialistas. Percebi então claramente que eu devia trabalhar por fora de toda combinação que possuísse ligações com a ortodoxia marxista (SOREL, 1981, p.252).

Merlino não possuiria a envergadura teórica de outras personalidades com quem

Sorel mantinha relações sobre a questão do marxismo. Sorel rejeitaria, por exemplo, sua

filosofia evolucionista. Merlino analisaria, entretanto, a ligação entre a teoria e a prática do

socialismo, entre a organização e a classe, entre os fins e os meios. À época, para Sorel,

Merlino e Bernstein teriam sido aqueles com as melhores contribuições à renovação do

pensamento socialista (SAND, 1985, p.137). Bernstein seria uma das personalidades mais

importantes entre as relações intelectuais de Georges Sorel. Se em seu último artigo para Le

Devenir Social Sorel rejeitaria o “ecletismo” de Bernstein, a partir de 1898 ele começaria a

elogiá-lo regularmente por meio de seus numerosos artigos.60 Para Sorel, Bernstein seria

um autêntico marxista que, por oposição aos ortodoxos, teria aberto o pensamento marxista

à renovação no seio da socialdemocracia alemã (Idem, p.145). Em sua crítica sistemática do

60 Comentando a suposta imprecisão de Bernstein sobre como o Estado socialista poderia gerir a produção social, se tomando posse dos meios de produção social ou apenas fiscalizando-os, e a defesa de Bernstein sobre a viabilidade de um coletivismo parcial, Sorel escreve: “Apesar da autoridade incontestável de um homem como Bernstein, creio que dessa forma nos distanciamos singularmente do espírito marxista e que, se há correções a fazer ao pensamento do mestre, não é no sentido de um ecletismo desse gênero” (SOREL, 1897a, p.885).

184

marxismo oficial, Sorel procuraria estreitar o contato com o teórico alemão que,

contrariamente a Merlino ou Croce, era uma figura central do movimento operário.

Bernstein residiria então em Londres e Sorel decidira lhe enviar seu texto L’Avenir

socialiste des syndicats. Embora a obra não seja favorável à via parlamentar ao socialismo,

já que defenderia o desenvolvimento autônomo dos sindicatos, Sorel não consideraria suas

posições como contraditórias às teses que Bernstein desenvolveria. Bernstein responderia a

Sorel em 14 de junho de 1898, sendo, de sua parte, a primeira carta de uma

correspondência que se seguiria até meados de 1907 (Idem, p.146).

Segundo Prat (1983, p.126), Sorel haveria interpretado as posições de Bernstein

como legitimação de suas próprias críticas. Em carta a Croce de 9 de maio de 1898,

escreveria o filósofo francês que “é necessário que o socialismo assuma a via reconhecida

como adequada por Bernstein, ou que se torne uma simples escolástica” (SOREL, 1927,

p.170). O tom da resposta de Bernstein teria sido prudente. Bernstein se contentaria, no

essencial, em resumir em grandes linhas suas análises. Se por um lado reconheceria uma

convergência de “estado de espírito” na abordagem crítica dos problemas teóricos do

marxismo, por outro tomaria o cuidado de não aceitar as fórmulas de Sorel sobre a “crise

do socialismo científico” e sobre o “retorno a Marx”. Mas Bernstein tomaria certa distância

das concepções resolutamente antipolíticas do movimento sindicalista desenvolvido por

Sorel:

Concedo que a luta política tenha a tendência de resultar em radicalismo mais que em socialismo, e mais em corrupção das massas que a sua educação moral. Mas isso não impede que ela seja ao mesmo tempo um potente meio de educação intelectual e um formador da consciência pública. Considero meu dever o ataque não da coisa em si, mas do valor exagerado que se lhe possa atribuir (BERNSTEIN apud PRAT, 1983, p.127).

Bernstein exprimiria tais reservas de maneira mais clara em uma resenha de

L’Avenir para a Neue Zeit (PRAT, 1983, p.127). Neste texto escrito para o público alemão,

Bernstein teria apresentado o texto de Sorel como um documento significativo sobre a

reação que poderia produzir a degenerescência da democracia política levada à simples

concorrência de partidos para a conquista do poder político, com todas as manifestações de

corrupção que ela poderia acarretar. Sem negar a realidade dessas tendências do regime

parlamentar da França, que ele atribuiria à persistência de certo jacobinismo, Bernstein se

185

recusaria, no entanto, a considerar os fenômenos de corrupção como consequências

necessárias do progresso das instituições democráticas (Idem, p.128).

Os contatos entre Bernstein e Sorel teriam contribuído para a elaboração do

reformismo pragmático de Sorel. Mas o tema sobre o qual Bernstein seguiria mantendo

reservas – a concepção dos sindicatos como organismos embrionários da sociedade futura –

seguiria progressivamente aumentando a distância entre os dois intelectuais (SAND, 1985,

p.146). O papel dos sindicatos na progressão gradual da classe operária seria central a

Bernstein. Tal questão permaneceria marginal durante o grande debate no interior da

socialdemocracia, mas a leitura do livro de Bernstein demonstraria que sua concepção

diferiria fundamentalmente daquela de Sorel. De toda forma, Sorel teria sempre

considerado Bernstein como homem íntegro e sincero. Da mesma maneira que com Saverio

Merlino, as divergências filosóficas não seriam um obstáculo ao relacionamento dos dois.

No entanto, o kantismo de Bernstein e sua concepção evolucionista da história

permaneceriam distantes das concepções de mundo de Sorel (Idem, p.147).

De acordo com Prat, em fins de 1899 Sorel teria confiado a Croce que a

correspondência mantida com Bernstein lhe teria permitido “aprender muita coisa sobre a

socialdemocracia alemã” (SOREL apud PRAT, 1983, p.130)61. Em 1906, Bernstein atacaria

vigorosamente, em uma publicação alemã, as Reflexões sobre a violência, sem nada

escrever, entretanto, a Sorel, o que marcaria o rompimento entre eles (PRAT, 1983, p.130).

De todo modo, entre essas duas datas, Sorel já estaria à procura de outra “revisão” do

marxismo e já divergiria amplamente da via “reconhecida como adequada por Bernstein”,

engajando-se no sindicalismo enquanto saída alternativa para a crise do marxismo (Idem).

2.5.4.4 Finalmente, o sindicalismo revolucionário.

A virada do século XX marcaria em nosso autor a consolidação de sua nova fase

teórica, aquela cuja ênfase estaria calcada nos pressupostos do sindicalismo revolucionário.

A relação com o marxismo continuaria ambígua, sendo caracterizada, ao mesmo tempo,

61 A passagem a que Michel Prat se refere é a seguinte: “Tive uma correspondência com Bernstein que me ensinou muita coisa sobre a socialdemocracia alemã: é a infância de um movimento operário. Há muitas coisas boas em seu livro, mas percebe-se que, sobre vários pontos, ele não é respaldado por uma cultura filosófica geral” (SOREL, 1927, p.312).

186

pela continuidade nas tentativas de “revisão” e pelo rompimento com vistas à elaboração de

uma nova teoria do proletariado. Sorel tem consciência desta “imprecisão”, mas em sua

própria defesa argumenta:

Não nos encontramos em presença de fenômenos pertencentes a gêneros clássicos, que todo trabalhador sério possa se gabar de poder observar corretamente, definir com exatidão, explicar de uma maneira satisfatória, utilizando princípios aceitos pela ciência. Os princípios faltam-nos aqui de maneira completa. Por conseguinte, é impossível chegar a uma descrição precisa e clara. Às vezes é mesmo necessário evitar conferir um grande rigor à linguagem, porque isso estaria em contradição com o caráter fluido da realidade e a linguagem, assim, incorreria em equívocos. Deve-se proceder por tateio, testar hipóteses verossímeis e parciais, contentar-se com aproximações provisórias, de maneira a deixar sempre a porta aberta a correções progressivas. Esta impotência relativa deve parecer bem desprezível aos grandes senhores da sociologia, que fabricam, sem cansaço, vastos sistemas abrangendo uma pseudo-história do passado e um futuro quimérico. Mas o socialismo é mais modesto que a sociologia (SOREL, 1981, p.58).

Esta passagem foi escrita em 1905, como prefácio para uma nova edição de

L’Avenir socialiste des syndicats, publicado pela primeira vez sete anos antes na revista

L’Humanité Social, e em livro pela primeira vez em 1900. L’Avenir marca o início da

inflexão de Sorel do revisionismo de reivindicações éticas em direção às posições do

sindicalismo revolucionário, pelas quais ele se tornará mais conhecido no movimento

operário, sobretudo na Itália. É nessa obra que se consolidam as ideias de Sorel sobre a

necessidade e os caminhos para a construção da greve geral proletária, momento maior na

luta pelo socialismo e que marcaria o início da transição rumo à nova sociedade.

Para Sorel, estaria próximo o momento em que não mais se poderia definir o

socialismo senão pela greve geral, o que demonstraria a necessidade de que todo estudo

sobre o socialismo apontasse para as direções e qualidades do movimento sindical

(SOREL, 1981, p.59). A greve geral exprimiria, de maneira clara, que o tempo das

revoluções dos políticos estaria terminado e que o proletariado recusaria se deixar constituir

por novas hierarquias. A fórmula da greve geral ignoraria qualquer expressão dos direitos

do homem, da justiça absoluta, das constituições políticas e dos parlamentos. Negaria não

somente o governo da burguesia capitalista, mas também toda hierarquia mais ou menos

análoga à hierarquia burguesa. Sucedendo à greve geral, não seria possível outra sociedade

que aquela baseada no próprio plano da produção, ou seja, a verdadeira sociedade socialista

(Idem).

187

A greve geral, segundo o autor, não teria nascido de reflexões sobre filosofia da

história. Ela surgiria da prática. As greves seriam apenas incidentes econômicos sem

nenhum alcance social importante se os revolucionários não interviessem para transformá-

la em episódios da luta social. Assim, cada greve, por local que seja, seria uma escaramuça

na grande batalha que seria a greve geral (Idem, p.61). A articulação de tais ideias seria tão

simples que bastaria indica-las aos operários para fazer deles socialistas. Segundo Sorel, a

experiência provaria de maneira abundante que a revolução não possui o segredo do futuro,

mas simplesmente agiria como o capitalismo, avançando sobre todas as brechas que lhe

fossem oferecidas (Idem, p.64).

Para Sorel, as grandes mudanças sociais ocorreriam nos momentos em que a alma

popular voltasse aos estados primitivos, “onde tudo é instintivo, criador e poético na

sociedade” (Idem, p.66). Sugere que Vico teria encontrado em seus estudos sobre a Alta

Idade Média a ilustração desta teoria: o início do cristianismo seria incompreensível

(segundo Sorel deduz de seu próprio estudo sobre Vico)62, se não supuséssemos nos

discípulos mais entusiastas um estado de espírito completamente análogo àquele das

civilizações arcaicas. Desta forma, o socialismo só poderia pretender renovar o mundo se se

formasse e agisse da mesma maneira (Idem).

O sindicalismo revolucionário seria o que haveria de “verdadeiramente verdadeiro”

no marxismo, de poderosamente original, de superior a todas as concepções de socialismo.

O elemento que conferiria tal força a concepção da luta de classes como “o alfa e o ômega”

do socialismo, que não seria um conceito sociológico para utilização dos intelectuais, mas o

aspecto ideológico de uma guerra social conduzida pelo proletariado contra o conjunto dos

“chefes de indústria”, e o sindicato seria o instrumento dessa guerra (Idem, p.67). Uma

guerra de classes; a guerra de classes. Haveria uma grande diferença entre a guerra entre

Estados e a guerra de classes. Nenhuma potência estatal pretenderia, por exemplo, estender

seu regime político universalmente. Várias dessas potências fundariam sua política

internacional sobre um ideal de equilíbrio. Seus conflitos se tornariam assim limitados, e a

paz poderia resultar de concessões recíprocas. O proletariado, ao contrário, almejaria à

ruína completa de seus adversários. A propaganda socialista destruiria toda a falsa noção de

62 Cf. também Sorel, 1896a.

188

equilíbrio, e as greves não poderiam assim resultar numa verdadeira paz social (Idem,

p.68).

Segundo Sorel, da mesma maneira que, entre Estados, guerras de tarifas podem

resultar em tratados comerciais, assim também os acordos entre grandes federações

patronais e operárias poderiam pôr fim a conflitos que renasceriam constantemente. Tais

acordos, tais como os tratados de comércio, tenderiam à prosperidade comum dos dois

grupos, sacrificando alguns interesses locais. Ao mesmo tempo em que se tornariam hábeis

e prudentes, as grandes federações operárias começariam a considerar as vantagens que

lhes poderiam advir da prosperidade dos patrões e a considerar interesses nacionalistas. O

proletariado acabaria por se encontrar assim numa esfera que lhe seria estranha: tornar-se-ia

colaborador do capitalismo e da paz social (Idem, p.69). O sindicalismo revolucionário

procuraria evitar essa situação, rechaçando a centralização das grandes federações operárias

e agindo de maneira difusa, mantendo assim a agitação grevista por todos os lugares. As

longas guerras entre Estados teriam engendrado ou desenvolvido a ideia de pátria. A greve

local e frequente não cessaria de rejuvenescer junto ao proletariado a ideia do socialismo,

de reforçar os sentimentos de heroísmo, de sacrifício e de união, de manter sempre viva a

esperança da revolução (Idem).

Postula Sorel que as antigas revoluções não teriam sido apenas guerras, mas teriam

preparado a elaboração de novos sistemas jurídicos. Tal seria a missão do “neomarxismo”.

O socialismo herdaria as ferramentas que tivessem sido criadas pelo capitalismo e a ciência

resultante do desenvolvimento técnico, e desenvolveria, por sua vez, procedimentos de

cooperação que seriam constituídos no longo prazo nas fábricas, para aproveitar da melhor

maneira possível o tempo, as forças e a destreza dos homens (Idem, p.70). Todos os

costumes que se formassem no conjunto dos trabalhadores deveria se constituir em, e

passar a ser chamado de direito operário. Aperfeiçoado, poderia se tornar o direito futuro e,

de forma provisória, poderia paulatinamente adquirir prestígio suficiente para influenciar a

jurisprudência nos tribunais (Idem, p.73).

Para Sorel, uma tarefa essencial do sindicalismo revolucionário seria a oposição

sistemática e permanente aos apelos de paz social e reforço da democracia, feitos pela

burguesia. O desenvolvimento da ideia de “paz social” poderia levar o socialismo ao

189

desaparecimento. À medida que a democracia burguesa avançasse na ideia de paz, o

sindicalismo revolucionário deveria elevar o tom da luta, para que o instinto de guerra do

proletariado fosse reforçado na mesma proporção (Idem, p.74). Nesse sentido, parece a

Sorel que a Itália seria o país de maior desenvolvimento do sindicalismo revolucionário.

Para ele, o “instinto de revolução total” seria antigo na Itália e teria assumido lá

características diversas. A península seria, naquele momento, o país onde a ideia de greve

geral teria conseguido mais popularidade do que em qualquer outro. Enfim, haveria ali

velhas tradições que concorreriam para tornar popular a existência de sindicatos

constituídos para suprimir os organismos oficiais. A guerra de classes poderia, na Itália,

assumir suas formas mais avançadas, apesar de toda a repressão. O progresso do

sindicalismo revolucionário italiano deveria, segundo o filósofo francês, ser acompanhado

com atenção por todos os socialistas (Idem, p.75).

Para Sorel, as coisas já estariam, no momento em que escreve, avançadas o

suficiente para que fosse possível perceber com clareza o papel que os sindicatos deveriam

assumir. O proletariado não poderia se emancipar de toda a exploração constituindo-se sob

o modelo das antigas classes sociais, adaptando suas necessidades novas a velhas fórmulas

políticas, conquistando os poderes públicos para aproveitar seus benefícios, como teria feito

a burguesia em todos os países (Idem, p.131). Segundo o filósofo francês, a diferença entre

governantes e governados não desapareceria se não existissem na sociedade as forças

amplamente desenvolvidas para evitar o retorno do passado. Em relação ao Estado, a ação

do proletariado seria dupla. Lutar no interior das atuais relações de organização política

para conseguir uma legislação social favorável ao seu próprio desenvolvimento, e usar a

influência que conseguisse obter, seja na opinião pública, seja nos poderes públicos, para

destruir aquelas relações de organização política, arrancar ao Estado e à Comuna, uma a

uma, todas as suas atribuições, para enriquecer os organismos proletários em vias de

formação, sobretudo seus sindicatos (Idem, p.131).

O proletariado deveria trabalhar para se emancipar de toda direção que não fosse

interna. Seria por seu movimento e sua ação que ele deveria desenvolver suas capacidades

jurídicas e políticas. A primeira regra de conduta deveria ser “permanecer exclusivamente

operário”, ou seja, excluir os intelectuais, cuja direção resultaria na restauração das

hierarquias e na divisão do próprio conjunto dos trabalhadores. Para Sorel, o papel dos

190

intelectuais seria de auxílio, podendo servir como empregados dos sindicatos. Isso porque

os intelectuais não possuiriam nenhuma qualidade para dirigir, sobretudo em um momento

em que o proletariado teria começado a tomar consciência de sua realidade e a constituir

sua própria organização (Idem, p.133). O desenvolvimento do proletariado comportaria

uma forte disciplina moral exercida sobre seus membros, a cargo de seus sindicatos, que

estariam encarregados de fazer desaparecer os costumes e posturas legados pela burguesia.

Concluindo seu raciocínio, Sorel postula que “todo o futuro do socialismo reside no

desenvolvimento autônomo dos sindicatos operários” (SOREL, 1981, p.133).

Existem dois momentos revisionistas na obra de Georges Sorel. O primeiro, que

data de seu período de colaboração com a revista Le Devenir Social (1895-1897) e que

seria marcado, sobretudo, por certa convergência com o revisionismo levado adiante por

Bernstein, cuja ênfase recairia na procura de bases morais, metafísicas para

“complementar” o marxismo, no caráter exclusivamente jurídico da luta de classes e a

aproximação com o socialismo pequeno burguês de Proudhon; e o segundo momento,

caracterizado pelo rompimento com as teses da socialdemocracia alemã, o aprofundamento

da tese do mito histórico-político, da defesa intransigente da greve geral, do sindicato como

principal órgão de luta e de formação da nova moral proletária, com base no sentimento da

“cisão de classes”. Para o Sorel de Mes raisons du syndicalisme (escrito originalmente em

1910), muitos esforços teriam sido feitos, até então e sem sucesso, para revisar os

ensinamentos da “ortodoxia marxista”(SOREL, 1981, p.285). Lembra o filósofo francês

que Bernstein, por exemplo, se teria proposto a adaptar a teoria à prática dos partidos

socialistas. Os defensores das antigas posições, porém, o teriam reprovado por demolir a

obra fundamental dos fundadores para não colocar nada de consistente no lugar. Dessa

forma, muitos marxistas teriam percebido que a fraqueza das correções propostas provaria a

solidez do corpo principal da doutrina. Teria sido necessário, então, perguntar-se se não

conviria abordar a revisão do marxismo segundo um método diferente daquele de Bernstein

(Idem).

Sustenta Sorel que, assim que as técnicas de ação direta tivessem dado prova de sua

eficácia, os operários socialistas teriam começado a esboçar uma doutrina do movimento

operário que conviesse exatamente àquela forma de luta operária. Teriam então observado

que haveria ligações estreitas entre a ideologia sindicalista e o que existiria de mais original

191

na obra de Marx. Para Sorel, encontrava-se enfim realizada “a verdadeira revisão do

marxismo” (SOREL, 1981, p.286).

Segundo Gustafsson (1975, p.304), o motivo imediato que teria induzido Sorel a

interessar-se pelo marxismo fora o rápido avanço do movimento operário socialista.

Avanço que se mostraria particularmente sólido nas eleições de 1893, nas quais os

candidatos socialistas obtiveram mais de meio milhão de votos, o que significava quatro

vezes mais que os votos obtidos nas eleições anteriores, em 1889. Trinta e sete socialistas

ocuparam suas cadeiras na Câmara dos Deputados. Não havia, entretanto, nenhuma

homogeneidade entre eles. Dividiam-se entre socialistas independentes, guesdistas (Jules

Guesde), blanquistas e possibilistas. Possibilistas caracterizavam-se pela linha reformista,

ou pelas mudanças graduais e paulatinas no sistema capitalista. Guesdistas e blanquistas

reivindicavam-se revolucionários, mas apenas os guesdistas consideravam-se marxistas

(Idem). Assim, o que caracterizaria o socialismo francês seria uma forte dispersão e o fato

de que os marxistas representassem uma minoria. Desde o começo dos anos 1890 até 1905,

em que se fundara o Partido Socialista Unificado (Partido Socialista, seção francesa da

Internacional Operária) podem-se distinguir seis partidos socialistas: Partido Operário

(guesdistas), Partido Blanquista (Comitê Revolucionário Central), Partido Operário

Socialista Revolucionário (possibilistas), Aliança Comunista Revolucionária (dissidência à

esquerda dos possibilistas), Federação dos Trabalhadores Socialistas (dissidência à direita

dos possibilistas), e os Independentes (Idem).

Tal fracionamento, que tanto se diferenciava da situação do país vizinho, Alemanha,

seria resultado de muitos fatores: as peculiares tradições revolucionárias do movimento

operário francês, as insuficiências do partido marxista francês e do domínio prolongado da

pequena propriedade na economia. Houve vários fracionamentos ao longo dos anos, mas o

único partido que preservara sua unidade fora o partido operário marxista francês (Partido

Operário Francês: POF). Era o partido guesdista, que permaneceu intacto desde seu

congresso de fundação em St. Etienne, em 1882, até a formação do partido socialista

unificado, em 1905 (Idem). Neste período, o partido teria passado por duas fases em sua

evolução. Durante a primeira fase, sua atividade teria sido fundamentalmente

propagandística, difundindo o conhecimento de princípios básicos do marxismo. Sua

influência prática, porém, seria bastante insignificante. Ainda em 1889 o partido possuía

192

apenas 2.000 militantes e não obtivera mais que 25 mil votos nas eleições gerais (Idem,

p.305). Seria mais forte nas regiões industriais do que na capital, onde os trabalhadores

depositariam sua confiança mais nos burgueses radicais do que nos socialistas. Isso se

explicaria, segundo Gustafsson (Idem), em parte porque os guesdistas não se ocupariam, até

certo ponto, das reivindicações diárias dos trabalhadores, isolando-se, deste modo, daqueles

a quem aspirariam dirigir.

Com todas suas insuficiências, no entanto, afirma Gustafsson que o POF seria a

única força que difundiria consequentemente as ideias de Marx entre a classe operária

francesa. Assim, o marxismo francês passaria a ser julgado a partir do guesdismo. Porém, o

marxismo dos guesdistas se caracterizaria por uma “ultrassimplificação”, uma insuficiência

e inclusive por distorções que teriam preparado o caminho para o revisionismo francês em

geral e o revisionismo de Georges Sorel, em particular (Idem). Os guesdistas não se

esforçariam muito para traduzir em francês os escritos de Marx e Engels. Com exceção do

primeiro livro d’O Capital e Do socialismo utópico ao socialismo científico, não haveria na

França antes dos anos 1890 nenhum trabalho de Marx e Engels em forma de livro ou

folheto. A situação teria mudado a partir da década de 1890 e, mesmo assim, mais para o

final do século. Apenas em 1895, por exemplo, teria sido publicado, na forma de panfleto, o

Manifesto Comunista (Idem). Observa Gustafsson que, tomando em conta todas essas

peculiaridades históricas, poder-se-ia perguntar se o revisionismo francês, que fora se

fortalecendo ao longo da década de 1890, “teria realmente tanto o que revisar” (Idem).

Nestas condições não seria difícil compreender que Georges Sorel pudesse aparecer,

em meados dos anos 1890 – e também entre marxistas como Labriola, por exemplo – como

um dos mais destacados representantes do marxismo na França. Le Devenir Social, revista

fundada por Paul Lafargue, entre outros, se converteria na principal tribuna de Sorel por

dois anos e meio (GUSTAFSSON, 1975, p.319). O principal objetivo de Sorel ao publicar

seus artigos em Le Devenir seria “completar e melhorar o marxismo de acordo com os

princípios de Marx, seguindo mais ao método que à letra”, segundo aponta Gustafsson a

partir de uma carta de Sorel a Croce (Idem).63 Ainda nesta carta de Sorel, como em outros

63 Cf. Sorel, 1927, p.107. Gustafsson se refere várias vezes à correspondência de Sorel à Croce, que foi publicada, como se sabe, entre 1927 e 1930 na revista italiana La Critica, dirigida por Croce.

193

vários momentos de sua correspondência com Croce, estão registrados alguns elementos

chaves em sua linha revisionista. Argumenta Sorel que as questões sobre a moral e a

religião não poderiam mais ser tratadas com o “desdém dos antigos marxistas”. Segundo o

filósofo francês, a ausência de direções em questões como a moral e a religião seria uma

das fraquezas do “socialismo moderno”. Tal ausência se traduziria pelo retorno contínuo

das utopias idealistas, que tomariam o lugar daquelas questões, deixado vazio pelo

marxismo. Acredita Sorel que Marx e Engels teriam propositadamente ignorado tais

questões, que não possuiriam valor para eles, senão com relação ao mundo antigo.

(SOREL, 1927, p.107).

Ainda em junho de 1897 Sorel defendia o que classificava de “volta a Marx”.

Culpava os discípulos de Marx pela decadência da doutrina na França. Esta “volta a Marx”,

por sua vez, deveria seguir a linha traçada por Saverio Merlino em seu Formas e essências

do socialismo. Sorel se mostraria satisfeito com a aprovação de Croce à resenha escrita pelo

filósofo francês sobre o livro de Merlino, cujas ideias comporiam mais tarde o prefácio à

tradução francesa do mesmo livro. Mas Sorel temia, ao mesmo tempo, que suas opiniões

tivessem uma influência “herética” sobre o socialismo francês (GUSTAFSSON, 1975,

p.320)64. De todo modo, sustenta Gustafsson que ao longo de 1898 se faria patente o

afastamento progressivo de Sorel do marxismo, até a ruptura completa (Idem, p.323). Suas

avaliações sobre o marxismo se fariam cada vez mais negativas. Em 19 de outubro de 1898,

escreveria Sorel a Croce:

Não creio que o pensamento de Marx possa ser de grande utilidade hoje. As leis fornecidas n’O Capital não esclarecem nenhum dos problemas atuais, que são todos fundados sobre diferenças de produtividade, sobre as rápidas mudanças na indústria, sobre fenômenos variáveis. Não conheço uma questão sequer sobre a qual os marxistas tenham fornecido alguma luz. O que Marx diz sobre as crises é muito superficial e carente de originalidade. Ele esclareceu as noções de trabalho, força de trabalho, modos de produção, ou seja, tudo o que poderia ser esclarecido pela metafísica. Hoje é necessário proceder a outras questões (SOREL, 1927, p.174).

Acompanharemos a argumentação de Gustafsson a partir da consulta direta às cartas publicadas em La Critica. 64 Escreve Sorel em carta a Croce: “Fico muito feliz em saber que você aprovou as ideias que expus em meu artigo sobre Merlino. Receio que ele possa parecer herético na França, e Lafargue já havia me considerado herético por conta de meu artigo no Journal des Économistes”. Sorel, 1927, p.48. Sobre o citado artigo a respeito do livro de Saverio Merlino, cf. Sorel, 1897a, p. 854-888.

194

Em momentos anteriores, em que ainda reivindicava o marxismo de maneira menos

hesitante, Sorel já não encontraria em Marx leis e teorias científicas, mas somente um

método analítico que poderia ser utilizado de maneira útil para determinados períodos

históricos. Não se trataria de um método que se pudesse empregar de maneira geral para a

época moderna. Consequentemente, Sorel rechaçaria a ideia de que o marxismo fosse um

socialismo científico por oposição ao socialismo utópico (Idem):

Não acho que seja possível descobrir, em tudo isso [o marxismo], uma teoria geral do desenvolvimento segundo um plano. Marx emprega expressões da linguagem cotidiana, num sentido fácil de compreender, mas ele não faz teoria científica (SOREL, 1896b, p.200).

Sorel não veria na história nem estágios e nem progresso. Para ele, os

acontecimentos históricos não responderiam a nenhuma coerência interna necessária

(SOREL, 1896, p. 765). Teriam apenas um laço de união cronológico, sucedendo-se uns

aos outros ao longo de um eixo temporal comum. Segundo o filósofo francês, a história não

possuiria formações econômicas homogêneas, mas, antes, diferentes sistemas econômicos

existindo ao mesmo tempo (GUSTAFSSON, 1975, p.327). Na verdade, esta última

consideração é diferente de assumir, como faz o marxismo, a existência simultânea de

resquícios de vários modos de produção com um modo de produção dominante que

conformaria uma determinada formação social e econômica. Isso porque, como lembra

Gustafsson, Sorel consideraria o capitalismo e o socialismo não como estágios sociais

contrapostos, mas como dois princípios jurídicos diferentes que deveriam existir

simultaneamente “para garantir a verdadeira justiça social” (Idem).

Como o devir histórico não estaria causalmente determinado, nem se encontraria

submetido a leis e nem, finalmente, desenvolver-se-ia por meio de sucessivos estágios,

tampouco poderiam ser feitas previsões acerca dele (Idem). Tal ideia seria uma constante na

concepção soreliana. Sorel estaria disposto a sustentar a existência de um elo entre o

presente e o passado, mas o mesmo seria impossível entre o presente e o futuro. A história

se encontraria completamente no passado e tudo o que pudéssemos dizer sobre o futuro

seriam hipóteses, embora hipóteses necessárias para fornecer uma base a nossa própria ação

(Idem). As hipóteses acerca dos acontecimentos do futuro não teriam assim, em Sorel, um

caráter empiricamente fundamentado, mais ou menos provável. Tratar-se-ia, sobretudo, de

195

uma projeção de base completamente subjetiva e emocional. Como atentamente observa

Gustafsson, seria o que mais tarde o próprio Sorel chamaria de “mito” (Idem).

Para Gustafsson, o correlato político desse modo de ver as coisas seria considerar

absurda toda ideia que defendesse o surgimento de uma nova etapa do desenvolvimento

social, o socialismo, a partir do capitalismo (Idem, p.328). Seria evidente que, assim, ao

considerar completamente hipotético o desenvolvimento do futuro, o presente se

convertesse na única realidade. Não haveria nenhum objetivo final para o desenvolvimento:

o movimento seria tudo. Sorel também teria chegado a essa conclusão. Seguindo a Merlino

e a Bernstein, Sorel afirmaria então que o tipo de sociedade a que aspirariam os socialistas

não se encontraria no futuro, mas na realidade do presente (Idem). A formulação de

Bernstein, segundo a qual o movimento é tudo, a meta é nada, teria encontrado completa

concordância em Sorel. Da mesma maneira que Bernstein, Sorel buscaria ao mesmo tempo

uma interpretação empírica, qual seja a de que o capitalismo viveria ainda muito tempo e

seria inútil, portanto, refletir sobre como seria concretamente a futura sociedade socialista.

De toda forma, enfatiza Gustafsson, a formulação de Bernstein se encontraria já presente na

filosofia da história soreliana (GUSTAFSSON, 1975, p.328).

Ao passo que Sorel negava por princípio o papel de qualquer forma de causalidade,

determinismo e legalidade na história, pensaria poder não apenas rechaçar a concepção

materialista da história, mas também substituí-la por uma concepção de história nova e

diferente, na qual o direito e a moral fossem as forças históricas mais significativas (Idem,

p.329). Sob a influência de Saverio Merlino, Sorel enfatizaria que o socialismo seria uma

questão moral. O socialismo implicaria uma transmutação de todos os valores. Ele não

saberia dizer quando poderia se realizar ou mesmo se poderia se realizar um dia, mas ainda

assim não deixaria de enfrentar o mundo burguês como inimigo irreconciliável,

ameaçando-o com uma catástrofe de alcance não apenas material, mas também moral

(Idem).

No entanto, aponta Gustafsson, tudo isso não significaria que a concepção soreliana

de história estivesse absolutamente privada de qualquer ligação com a de Marx. Em um

ponto, ao menos, essa relação seria muito clara, qual seja a questão do papel da luta de

classes na história. Consideraria Sorel que a luta de classes permitiria seguir o processo

196

histórico real, e por meio dela os socialistas fixariam seus objetivos não de acordo com

entes imaginários, mas em relação aos homens reais que atuariam como grupos em

sociedade (Idem, p.330). Mas à medida que o idealismo ocuparia cada vez mais espaço na

teoria soreliana de sociedade, Sorel reinterpretaria a teoria da luta de classes também em

um sentido idealista. As bases da diferenciação em classes e da luta de classes já não

seriam, como em Marx, a posição de cada uma das classes com relação aos meios de

produção, mas as disposições subjetivas das classes. O objetivo da luta da classe operária

também já não seria o poder político, mas a conquista do direito. Dever-se-ia agora

diferenciar aquelas lutas de classes que tiveram como objetivo a conquista dos meios para a

exploração dos que trabalham daquelas que tivessem como objetivo a conquista dos

direitos. Para Sorel, apenas essas últimas seriam lutas de classe no sentido marxiano (Idem).

De toda forma, Sorel não teria resolvido a questão de como uma classe poderia conquistar o

poder sem ter encontrado certa aceitação para sua concepção de direito ou como, ao

contrário, poderia impor sua concepção de direito sem a ajuda de meios concretos de poder

(Idem, p.331).

Assim mesmo, como se sabe, as ideias do sindicalismo revolucionário, inspirado em

grande medida por Sorel, tiveram boa recepção no movimento operário da virada dos

séculos XIX e XX, sobretudo na Itália. Segundo Santarelli (1977, p.80), a ideologia

soreliana, se por alguns aspectos se insere a partir de fora no movimento operário ativo,

como ocorreria primeiro na França e depois na Itália, seria também expressão imediata de

certo tipo de organização operária e de certo estágio de desenvolvimento do movimento

sindical. O modelo soreliano existiria já na realidade sindicalista e operária francesa, antes

ainda que Sorel começasse a se ocupar da crítica marxista e do sindicalismo (Idem, p.81). O

próprio Sorel, em vários momentos, reivindicaria este fato decisivo que, ignorado, faria

qualquer análise sobre o lugar e o papel do “sorelismo” no movimento sindicalista e na

crise da Europa de seu tempo fornecer resultados parciais e distorcidos. Segundo Santarelli,

o “mito” de Sorel, no limite, não significaria apenas uma transposição irracional e,

portanto, niilista projetada no futuro, mas refletiria também o estado de consciência

daqueles grupos que haviam contribuído para a primitiva elaboração da ideia de

sindicalismo e da greve geral (Idem).

197

A raiz do pensamento soreliano remontaria então, antes de tudo, às complexas

tradições da sociedade francesa e europeia, que veria precipitar-se, apesar das aparências, a

crise da democracia burguesa (Idem). O movimento sindicalista revolucionário que se

exprimiria em Sorel demonstraria exatamente que a ideologia soreliana seria representativa

de uma situação real e extremamente concreta, mesmo se revestida por contradições

(SANTARELLI, 1977, p.81). Para Santarelli, sem Sorel e o “sorelismo”, e também sem um

impulso sindical autônomo, não seria possível explicar, na Itália da era giolittiana, o

surgimento de organizações dos trabalhadores que teriam confluído para a União Sindical

Italiana em 1912. A gestação desta organização teria ocorrido ao longo de muitos anos e

numerosos congressos dos próprios sindicalistas revolucionários, e cujos componentes

fundamentais – sindicalistas, republicanos e anarquistas – representariam, no terreno

político e dos interesses corporativos uma contraposição e uma oposição potencial de

grupos e camadas determinadas de trabalhadores e camponeses em relação ao Partido

Socialista (Idem). Assim, os planos de hegemonia sobre todo o movimento operário ter-se-

iam dissolvido rapidamente e a própria União Sindical Italiana dividira-se diante da entrada

da Itália na guerra (Idem).

Esta experiência ligada à heresia revisionista de Sorel e seus seguidores

representaria, na Itália, o advento, na cena sindical, contra o regime giolittiano, de novos

estratos de trabalhadores, frequentemente sem qualquer experiência anterior de confrontos

por uma associação autônoma (Idem, p.82). E, naquele momento, significaria também a

crise, a ruptura do esquema unitário de sindicato socialista o dirigido pelo Partido. Por

outro lado, o sindicalismo revolucionário na França, na Itália e mesmo onde não se referiria

direta ou indiretamente à Sorel, teria constituído, à parte e em oposição à socialdemocracia,

uma das modalidades clássicas do movimento operário entre 1900 e 1914. Neste

movimento se encaixariam, em posições diversas, a parte da intelectualidade pequeno

burguesa e operária que, religando-se a Proudhon, desenvolveria tendências

revolucionárias, criticaria as teses e as posições reformistas da socialdemocracia e tentaria o

caminho de um desenvolvimento novo, original do movimento operário. Este novo

caminho se apresentaria também como um “retorno” ao autêntico espírito do marxismo,

mas passaria dos limites na negação do método e da concepção marxista (Idem).

198

2.5.4.5 Sorel e o “neomarxismo”

Com a publicação de L’Avenir Socialiste des Syndicats, na revista francesa

Humanité nouvelle, em março e abril de 1898, surgiria teoricamente o “sindicalismo

revolucionário”. Antes disso, Sorel já tinha colaborado nas revistas Ère nouvelle e depois

em Le Devenir Social, havendo tido já oportunidade não apenas de aprofundar a temática

socialista, mas de adentrar os caminhos que o haveriam conduzido ao revisionismo (Idem).

A publicação de L’Avenir é também o momento que marca o encerramento da colaboração

de Sorel em Le Devenir (Idem, p.83).

A problemática principal de L’Avenir giraria em torno de alguns temas

fundamentais, como o acesso da classe operária ao poder, o futuro do Estado (que Sorel

chamaria de “problema político”), a preparação revolucionária do proletariado, a ditadura

revolucionária. Aqui Santarelli chama a atenção para um trecho no início do texto de Sorel

que demonstraria a maneira já bastante “peculiar” em que Sorel se apropriaria de Marx:

Parece que, muito frequentemente, o pensamento de Marx não é aprofundado de maneira suficiente: todos os seus discípulos sustentam que a revolução não pode ser obra senão do proletariado e que o proletariado é o produto da grande indústria; mas eles não observam de maneira suficiente que Marx pretendia também que a classe operária conquistasse a capacidade jurídica e política antes de poder triunfar (SOREL, 1981, p.80-81).

Para Santarelli, Sorel, mais do que interpretar e elucidar o pensamento de Marx,

sobre o que, de resto, não se deteria muito, estaria substituindo Proudhon por um Marx que

ele já estaria revendo e redimensionando (SANTARELLI, 1977, p.83). Revendo e

redimensionando à esquerda da socialdemocracia alemã. As condições do socialismo

francês, dividido entre várias escolas, nas quais se entrelaçavam e se combatiam marxistas

e não marxistas, obreiristas e socialistas parlamentares, explicariam em parte as posições de

Sorel e as origens de seu pensamento. A forte aversão às posições da socialdemocracia

alemã explicaria, por outro lado, as relações frequentes que Sorel procuraria manter com o

movimento socialista italiano (Idem, p.85). A leitura de Saverio Merlino teria também

direcionado Sorel às suas tendências, de toda forma já afloradas, em rever as posições

teóricas do marxismo. Merlino, com seu “socialismo anárquico” seria, provavelmente,

aprazível a alguns traços da personalidade de Sorel.

199

Depois de uma primeira experiência, no curso da qual Sorel teria aceitado,

substancialmente, a hegemonia idealista de Bernstein, e de quem teria sofrido influência, o

filósofo francês encontraria sua “própria estrada” (Idem, p.86). Tratar-se-ia, nesta nova

fase, de superar os “falsos superadores” do marxismo, de avançar para além de Bernstein.

Para Santarelli, as Reflexões sobre a Violência estabeleceriam uma nova relação entre a

experiência sindicalista e o marxismo (Idem). Sorel cunharia a partir daí então a expressão

“neomarxismo”. Apresentava-se como revisor-restaurador do que considerava ser o núcleo

mais original da obra marxista. Tal seria a gênese daquele “revisionismo de esquerda” do

qual teria falado Lênin, que se desenvolveria nos países latinos como “sindicalismo

revolucionário”. Sorel teria paulatinamente mudado de rumos, subtraindo-se em geral do

reformismo bernsteiniano e construindo pouco a pouco uma concepção diferente de

sindicato, agora como força de ruptura revolucionária e não somente como força de

transformação gradual da sociedade capitalista. Reivindicaria assim o sindicalismo

revolucionário como tarefa exclusiva de um retorno autêntico ao “espírito de Marx”. Pouco

a pouco este “retorno” a Marx, que já se desenvolvia sob a pena de Sorel em 1898, acabaria

por constituir a matriz ideológica da complexa, contraditória e efêmera corrente do

“sindicalismo revolucionário” (Idem, p.87).

Como já observado em outros momentos deste trabalho, Sorel mantinha constante

diálogo com os representantes “latinos” das correntes revisionistas, ou consideradas como

tal. Escrevera prefácios para livros de Merlino e Labriola. Benedetto Croce, Antonio

Labriola e Saverio Merlino correspondiam-se com ele e influenciariam seu pensamento. A

ideia do marxismo considerado como um método, a intensa reação contra a interpretação

mecanicista do materialismo histórico e a visão do socialismo como questão jurídica e

moral, eis as influências diretas e evidentes (e, de resto, declaradas) respectivamente de

Croce Labriola e Merlino na formação da ideologia política soreliana (Idem, p.88). De toda

forma, Sorel, que teria sido sempre avesso a qualquer espírito de sistema, seria também

contrário a qualquer ideia de organizar os resultados de sua crítica em posições políticas

novas e bem construídas. Se houvesse utopismo em Sorel, não consistiria, portanto, tanto

nas formas de uma subentendida e implícita “reconstrução” ideal de um novo sistema

social, mas sim nas formas da “destruição”, na prevalência do momento da análise sobre

aquele da “síntese”. Esta contradição encontrará sua sistematização nas Reflexões sobre a

200

Violência e permanecerá também no fundo de toda ideologia sindicalista revolucionária,

que se desagregaria tão rapidamente quanto se teria formado (Idem, p.89).

Gramsci, já então um apreciador crítico da obra de Sorel, notaria a convergência das

opiniões de Sorel com aquelas de Lênin sobre os conselhos de fábrica. Escreveria Gramci

que “Sorel permaneceu na mesma posição que havia reivindicado também Proudhon, ou

seja, um amigo desinteressado do proletariado. Por isso suas palavras não podem ser

indiferentes para os operários turineses” (GRAMSCI, 1967, p.245). A partir deste juízo

sobre Sorel, Gramsci avaliaria sua posição e de seu grupo nos confrontos do sorelismo e do

sindicalismo teórico italiano. A militância comunista de Gramsci ter-se-ia desenvolvido nos

anos em que ocorriam, ao mesmo tempo, a influência e a decadência do sindicalismo

revolucionário. Ele desconfiaria da teoria sindicalista revolucionária da forma como seria

apresentada pelos seguidores de Sorel, mas leria o próprio Sorel com atenção

(SANTARELLI, 1977, p.92). Aponta Santarelli que Gramsci concordaria com Sorel nos

momentos em que este se revelasse original no campo da pesquisa histórica, ou seja,

Gramsci chamaria a atenção para o lado historiador de Sorel. Em corroboração, Santarelli

evoca passagens das edições de 4 de setembro e 9 de outubro de 1920 de L’Ordine Nuovo,

também registradas em uma coletânea de escritos políticos de Gramsci organizada por

Paolo Spriano:

A intuição histórica soreliana pode gerar, sozinha, uma série de pesquisas históricas sobre os “germes” de uma civilização proletária que deve existir, se é verdade (como é verdade para Sorel) que a revolução proletária é imanente no seio da sociedade industrial moderna, e se é verdade que dessa resultará uma norma de vida original e um sistema de relações absolutamente novas características da classe revolucionária (GRAMSCI, 1967, p.361).

Este seria um elemento não secundário do pensamento de Sorel, que então

apareceria como mediador do retorno a Marx – um Marx revolucionário inédito – dos

grupos e das personalidades mais destacadas do movimento socialista italiano

(SANTARELLI, 1977, p.92).

Segundo Santarelli (1977, p.108), haveria dois momentos na vida de Sorel que

estariam intimamente relacionados e ofereceriam a chave para explicar as reais dificuldades

que as contradições do pensamento soreliano apresentariam. Tais ocasiões seriam o

momento de seu encontro “crítico e original” com o marxismo, por volta de 1898, e com

201

Lênin e a revolução soviética. No período entre 1917-1919 Sorel se declararia pelo

bolchevismo porque a revolução russa guiada por Lênin representaria a seus olhos a

represália contra as forças conservadoras formadas em agosto de 1914 para a guerra, e

também porque nos soviets, como nos conselhos de fábrica italianos, e na ditadura do

proletariado dos bolcheviques, Sorel veria, finalmente, uma revolução digna de tal nome, a

revolução proletária dos tempos modernos, a vitória de suas ideias e, antes de tudo, de suas

Reflexões sobre a violência (Idem, p.109).

Sorel estaria então esposando a ideia e a causa de Lênin, o que não ocorreria,

contudo, sem traços de equívocos grosseiros, devidos às condições de informação de Sorel

e de seu próprio entusiasmo. Um desses equívocos consistiria numa avaliação superficial da

Revolução de Outubro, e na colocação e explicação sobre Lênin e o bolchevismo em uma

linha de continuidade na história russa, tomada que seria no tradicional sentido não-

ocidental. Na realidade, ao “Ocidente” escapariam as características e os precedentes da

ruptura revolucionária que teria fraturado a sociedade russa (Idem,p.111). Outro equívoco

cometido por Sorel seria o de “emprestar” a Lênin as suas ideias, às vezes suas intenções e

até mesmo suas próprias palavras. De toda forma, esta seria precisamente a maneira pela

qual Sorel se aproximaria sempre mais das ideias e da causa do líder bolchevique.

Segundo Santarelli, permaneceria o fato de que a história do pensamento soreliano

teria representado e também expresso o desempenho e a crise do movimento operário

francês e italiano e da socialdemocracia europeia. A homenagem tributada a Lênin e a

interpretação da Revolução de Outubro como um retorno a um Marx “revolucionário”,

contra as interpretações socialdemocratas, da parte de um velho revisionista de esquerda

como seria, no fundo, Sorel, teria em si seu significado histórico. Quanto ao sindicalismo

revolucionário, contra o qual Lênin teria exercido uma crítica que permaneceria

desconhecida a Sorel, teria demonstrado toda sua fragilidade durante a grande crise da

sociedade europeia. Na verdade, sustenta Santarelli, ao iniciar-se o período do pós-guerra o

sindicalismo revolucionário já teria deixado de existir há muitos anos (Idem, p.114). A

guerra, a revolução russa e o fascismo teriam dispersado o que poderia ter restado daquele

movimento nascido no clima da revisão bernsteiniana.

202

Em seu conjunto, economia clássica e marxismo, jacobinismo e irracionalismo

teriam sido demasiadamente associados e misturados, entrelaçados no ânimo e na formação

dos sorelianos e sindicalistas italianos para que a “escola”de Sorel pudesse ter tido alguma

eficácia durante certo tempo. Tiveram a função histórica, reconhecida pelo próprio

Gramsci, de terem sido os primeiros a combater, no interior do movimento operário e

socialista, os desvios e a mostrar as carências históricas da orientação reformista (Idem,

p.115). O sindicalismo revolucionário, como crítica da socialdemocracia, teria

testemunhado também a presença de fermentos e estímulos democráticos, socialistas, cujo

alcance transcenderia os limites de qualquer escola política e social, e teria tido a função de

reavivar o debate no movimento operário e de buscar a energia revolucionária daquelas

vanguardas jovens, que teriam permanecido fiéis à causa do proletariado e ao socialismo

marxista (Idem, p.116).

2.5.4.6 O marxismo como mito

Quando do rompimento com o grupo de Le Devenir, em 1897, Sorel teria chegado à

conclusão de que o marxismo oficial, com sua visão catastrofista da derrocada do

capitalismo e do desaparecimento das classes médias, revelaria uma aproximação

equivocada da realidade histórica, na qual a análise científica cederia lugar a desejos

ilusórios. As classes médias, longe de desaparecer, teriam continuado a se desenvolver

enquanto as crises cíclicas do capitalismo engendrariam sempre longos períodos de

depressão, que não resultavam em um colapso total do sistema (SAND, 1985, p.212). A

classe operária poderia progredir em direção ao socialismo colaborando com as classes

médias e impondo suas próprias marcas nas disputas políticas da sociedade existente.

Ao longo desse período (que vai do rompimento com Le Devenir até as primeiras

elaborações da teoria sindicalista revolucionária, nos primeiros anos do século XX) Sorel,

invocando o “espírito de Marx”, não cessará de insistir sobre a necessidade de evitar

confundir todas as camadas não proletárias em uma única massa reacionária (Idem,p.212).

Tais camadas não constituiriam uma classe independente, mas tenderiam a se aliar às

classes hegemônicas, fossem a burguesia ou o proletariado. A classe operária deveria, por

sua vez, elaborar uma consciência uniforme, uma moral e uma cultura novas e concepções

203

jurídicas distintas com respeito às relações sociais. Tudo isso num quadro de elaboração de

novas instituições proletárias às quais deveria estar submetido o campo político. Lembra

Sand (Idem, p.212) que, desde 1898, em seu prefácio ao livro Formes et essences du

socialisme de Merlino, Sorel teria já traçado os contornos de um bloco ideológico e político

sob a hegemonia proletária. Eis a passagem a que Sand se refere:

Para que o movimento se produza no sentido que os socialistas desejam é preciso que as classes médias recebam o impulso de uma classe que nada pede às classes burguesas, que manifesta sua força independente por instituições novas, que se constitui em Estado suprimindo o Estado tradicional; é preciso que essas instituições sejam bastante fortes para inspirar o respeito, porque as classes intermediárias dirigem-se mais depressa para o lado em que a força se manifesta estrondosamente, habituadas como estão a receber de fora o movimento (SOREL, 1909, p.33).

No entanto, as consequências políticas do caso Dreyfus, a escalada do radicalismo

que se lhe seguira, agora que o movimento político operário conhecera novas cisões, a

insignificância das reformas sociais obtidas, fariam nascer em Sorel a ideia de que a aliança

política do proletariado com as forças da democracia não teria, no final das contas, sido de

utilidade senão para essas últimas, tendo o proletariado mesmo abdicado de uma parte de

sua autonomia. A partir de então, Sorel consideraria o conceito de democracia como

sinônimo de poder político da pequena burguesia, apoiado pelo poder econômico da

burguesia e apresentando-se como porta-voz do interesse geral (SAND, 1985, p.213). Os

partidos da Segunda Internacional constituiriam, aos olhos de Sorel, uma das expressões

mais tangíveis da dominação cultural da pequena burguesia e um dos instrumentos

particularmente eficazes da integração da classe operária a esses mesmos valores. O

aparelho político dos partidos socialistas, calcado sobre o aparelho do Estado moderno,

repousaria sobre os estratos saídos da pequena burguesia, estranhos ao mundo da produção.

Após haver apoiado a tática reformista aproximadamente entre 1898 e 1902, Sorel passaria

a considerá-la como uma via que levasse inevitavelmente ao aburguesamento da luta

proletária (Idem, p.214). Concluiria então pela necessidade de ruptura total entre as

organizações proletárias e o socialismo político. Toda a associação entre esses dois

elementos tornaria inevitável, para Sorel, a subordinação das primeiras ao segundo,

processo que se concluiria pelo reforço do poder do Estado (Idem).65

65 Sobre o desenvolvimento dessas opiniões de Sorel, cf. Sorel, 1905, p.290-299.

204

Desconfiando da análise, que se pretendesse científica, da luta política e mesmo da

luta de classes, e recorrendo à filosofia de Bergson, sobretudo à noção de “princípio

vital” 66, Sorel chegará à ideia de que uma identidade própria à classe operária se formaria e

preservaria a partir do imaginário do confronto permanente, pela memória coletiva da

tradição revolucionária e por um heroísmo moral tingido de pessimismo. O combate

classista deveria assumir a partir de então o aspecto de uma luta a contracorrente. A

alienação engendrada pelo modo de trabalho secretaria de forma constante a revolta a qual

o proletariado deveria recorrer a todo o momento a fim de preservar sua identidade (Idem,

p.216). Sorel teria originariamente optado pelo marxismo em função do caráter científico

que ele revelaria. Em seguida, teria se afastado por conta da fraseologia mítica que o

cercaria. No final das contas, Sorel identificaria o sindicalismo revolucionário como

herdeiro do marxismo autêntico. Seria neste ponto que se inseriria a teoria soreliana dos

mitos (Idem).

A ideia de mito teria surgido na obra de Sorel em ligação com a problemática

teórica com a qual ele se encontraria confrontado durante os anos 1899-1902, enquanto que

seu conteúdo, desenvolvido à época das Reflexões sobre a Violência, traria a marca das

lutas sociais dos anos 1904-1907. Sorel teria permanecido longo tempo questionando-se

sobre as razões que teriam conduzido Marx a inserir n’O Capital o que Sorel consideraria

ser a evocação imagética da dialética histórica como negação da negação, expropriação dos

expropriadores e inevitabilidade da revolução. Ele se recusaria a considerar científica o que

chamava de visão apocalíptica, mas ao contrário de Bernstein, que teria proposto eliminar

66 Na definição da Stanford Encyclopedia of Philosophy, o princípio vital bergsoniano pode assim ser concebido: “(...) Consideremos o conceito de impulso vital. Em Creative Evolution, Bergson começa por criticar o mecanicismo tal como ele se aplicaria aos conceitos de vida e de evolução. A abordagem mecanicista impediria a possibilidade de qualquer mudança real ou da existência de criatividade, já que cada desenvolvimento estaria potencialmente contido nos desenvolvimentos anteriores. No entanto, continua Bergson, a abordagem teleológica do finalismo tradicional torna a criação do novo impossível da mesma forma, uma vez que implica, da mesma maneira que o mecanicismo, que o "todo está dado". Portanto, nem mecanicismo, nem o finalismo estrito podem dar conta, de forma satisfatória, do fenômeno da mudança que caracteriza a vida. No entanto, Bergson argumenta, há certa forma de finalismo que esclareceria adequadamente a criação de vida, permitindo ao mesmo tempo a diversidade resultante dessa criação. É a ideia de um princípio vital original. Se há um telos na vida, então deve estar situado na origem e não no final (contra o finalismo tradicional) e deve abranger a vida em um todo único e indivisível (contra o mecanicismo)(...)”. Cf. em http://plato.stanford.edu/entries/bergson/#5, acessado em 28/01/11. Representando sua adesão à filosofia de Bergson, Sorel escreveria um longo artigo em Le Mouvement Socialiste sobre o livro L’Evolution Creatrice, daquele filósofo francês. Neste artigo, Sorel declararia que o livro de Bergson teria tanta importância para a história da filosofia quanto A Crítica da Razão Pura, de Kant (SOREL, 1907, p.257).

205

do corpo do marxismo essas noções, ele teria preferido, desde 1899, ver nelas uma imagem

mítica, artística, destinada a fazer assimilar a ideia, contribuindo para formar a consciência

de classe (SAND, 1985, p.216).

A crítica da economia política, para Sorel, não deveria necessariamente engendrar

uma concepção catastrofista da revolução. Deste ponto de vista, não haveria ligação lógica

evidente entre o penúltimo capítulo do primeiro volume d’O Capital (sobre a acumulação

primitiva), e o restante da obra. Segundo Sand (Idem), para Sorel a força de atração

exercida por Marx residiria mais nessas fórmulas do que na parte científica da obra. A

partir de 1901 Sorel passaria a considerar que toda a filosofia social revolucionária

comportaria, em sua formulação teórica, germes míticos que existiriam na sociedade em

questão.

Se a investigação do passado e do presente dependeria da ciência, o mesmo não

seria válido para o futuro, embora os homens agissem no presente portando no espírito uma

visão do futuro. As atividades humanas passadas, presentes e futuras estariam

indissoluvelmente imbricadas. A imagem do futuro seria imanente à atividade do homem,

daí porque se poderia encontrar constantemente em Marx uma dimensão mítica, já que ele

não seria apenas um historiador crítico, mas um homem de ação, um revolucionário (Idem,

p.217). A doutrina de Marx conteria, portanto, elementos simbólicos que seriam ao mesmo

tempo fórmulas míticas destinadas a exprimir um movimento (Idem).

À medida que se enfraqueceria em Sorel a crença na possibilidade de uma conquista

gradual da produção pelos produtores, no quadro de uma política social progressiva, o

filósofo francês procuraria elementos de espontaneidade suscetíveis de preservar a

consciência de classe. O mito da greve geral exprimiria, segundo ele, a consciência

existente, ligada à classe operária, e não um produto resultante da imaginação de teóricos

ou, em suas próprias palavras, “expressão de vontades”. As vontades coletivas não

poderiam se reduzir a construções intelectuais, já que suas origens seriam outras, parecidas

com as das crenças religiosas ou místicas (Idem, p.219). Tais crenças, Sorel as atribuiria a

dimensões subconscientes dos diversos grupos sociais. O subconsciente não possuiria

história, e os mitos, na acepção que lhes conferiria Sorel, longe de serem exclusivos das

sociedades primitivas, também seriam próprios de nossa sociedade. Eles inspirariam

206

atividades espontâneas nos homens, das quais o interesse racional não seria a única causa e

as quais escapariam às relações mediatizadas do mundo da economia (Idem).

A intensidade dos conflitos sociais durante os anos 1904-1908, ao centro dos quais

se encontraria a jovem CGT, teriam convencido Sorel que se estaria então assistindo à

regeneração de um mito proletário. No lugar da catástrofe econômica que teria ocupado a

imaginação (e as discussões) dos marxistas do fim do século XIX, seria agora o mito da

greve geral que mobilizaria e inflamaria os espíritos (Idem, p.220). A greve geral estaria

destinada a contribuir para uma revolução de novo tipo, ainda desconhecido, motivo pelo

qual ela deveria ser entendida como mito, e não como estratégia. O poder central não

poderia se constituir num objetivo de conquista para a ação revolucionária. Os modelos que

mais inspirariam Sorel seriam a emergência do cristianismo ou os momentos iniciais do

protestantismo. Tais exemplos serviriam a Sorel como referência da formação de novas

consciências sociais que, sem estar diretamente orientadas para mudanças políticas

revolucionárias, teriam subvertido a paisagem social e cultural (SAND, 1985, p.221).

É verdade, porém, que para Sorel a formação de uma moral proletária estaria

subordinada ao conflito, à confrontação social. Reconheceria o filósofo francês que tal

moral não seria um derivado direto da pulsão das massas, e essas não seriam naturalmente

revolucionárias. Segundo Sorel, a verdade deste princípio se manifestaria, sobretudo,

quando a noção de luta de classes estivesse ausente da sociedade e a espontaneidade bruta

daquelas massas não estivesse ligada a novas autoridades sociais (Idem, p.223). O

espontaneísmo soreliano conheceria, assim, seus limites e o próprio Sorel não negaria a o

papel de instituições como as federações operárias. Estas, enquanto novas autoridades

sociais, teriam a missão de trabalhar pela cisão da sociedade e não pela sua unidade

nacional, contribuindo para a criação de uma cultura paralela e barrando as vias de

aburguesamento da consciência do proletariado (Idem).67

Sand chama a atenção para o fato de que Sorel permanecerá, apesar de tudo,

constantemente “surdo” à carga emocional dos apelos nacionalistas do pré-guerra. Da

mesma forma, não teria compreendido que a república, a despeito de seu descaso social,

teria preservado certo pluralismo político. Sorel também não pode compreender ou explicar

67

Cf. GALASTRI, 2007, para discussão específica sobre o conceito de “cisão” em Georges Sorel.

207

por que o nacionalismo de 1914 conseguira derrotar o socialismo e por que, a partir de

1900, as tensões sociais foram sem cessar canalizadas muito mais em direção aos

afrontamentos nacionalistas (SAND, 1985, p.225). Para Sand, entretanto, o fracasso de

Sorel enquanto teórico socialista se encontraria ainda em outro domínio. A insuficiência de

sua interpretação das evoluções do moderno processo de trabalho teria conduzido o filósofo

francês a erigir o mito em elemento revolucionário. Sorel, entretanto, não teria visto que,

em uma época de atomização social crescente, os mitos conduziriam a uma manipulação

política sempre maior das massas, que acabaria por reforçar o Estado moderno e não por

enfraquecê-lo. A espontaneidade e o irracionalismo das massas teriam, na maior parte das

vezes, contribuído mais para o surgimento de “césares” modernos do que para a construção

de uma moral operária, de uma consciência jurídica nova e de instituições federalistas de

produtores (SAND, 1985, p.225).

208

209

CAPÍTULO 3 – O REVISIONISMO “LATINO” E O MARXISMO

ITALIANO: SOREL DIANTE DE LABRIOLA E GRAMSCI

Veremos a partir daqui como o marxismo italiano, nas figuras de Antonio Labriola e

Antonio Gramsci, lida com o movimento revisionista de maneira geral, e com o

revisionismo “latino” em particular. Após a apresentação do combate teórico que Labriola

lavrou contra aquele movimento, nos debruçaremos sobre a continuidade dada por Gramsci

à polêmica, desta vez não apenas em função de refutar a teoria revisionista, mas também de

assimilar criticamente o que poderiam ser seus aspectos mais sofisticados.

3.1 Antonio Labriola

Segundo Dias, o revisionismo não seria somente uma luta de ideias e concepções

ideológicas, mas teria sua existência possibilitada pela expansão imperialista (DIAS, 2000,

p.25). Tal expansão permitiria criar formas mais democráticas no interior dos países

capitalistas avançados, o que propiciaria uma visão mais otimista, que se caracterizaria pela

crença na inevitabilidade do processo de crescimento da democracia e do bem-estar nos

países europeus, crença que tenderia à superação do momento da luta de classes e à

afirmação da política pluriclassista (Idem). Observa Dias que o primeiro a combater o

revisionismo na Itália teria sido Antonio Labriola. Todos os elaboradores do pensamento

revisionista – como Sorel, Croce e Bernstein - teriam mantido, em algum momento,

relações intelectuais com Labriola, tendo sido ele o “vértice de uma articulação de grandes

revisionistas” (Idem).

No momento em que Bernstein apresentava ao debate intelectual europeu suas teses

sobre a revisão do marxismo, já se poderiam encontrar em Labriola indicações de uma

interpretação do materialismo histórico que, superando antecipadamente as próprias teses

revisionistas, apontariam para o caminho de recomposição da ortodoxia marxista que será

posteriormente seguido por Gramsci, cuja característica principal seria de suplantar

assimilações deterministas e economicistas oriundas das diversas leituras, sobretudo, do

prefácio de 1859. Afinal, à época de Labriola, o que haveria de mais substancial na reação

às teses de Bernstein seriam os postulados deterministas de Kautsky. Assim, pode-se

210

considerar que Labriola já apresentava, de maneira incipiente, os primeiros elementos

modernos de interpretação do marxismo após o desaparecimento de Marx e Engels. Isso

significa que ele procurava se utilizar do materialismo histórico segundo o momento

histórico que vivia, impedindo o enrijecimento dogmático da teoria, mas evitando também

o empirismo absoluto que a tudo sacrifica diante das aparências imediatas e da superfície

dos fenômenos, relegando a teoria a um nível secundário e retirando-lhe todo valor

heurístico. Aliás, era exatamente esse o propósito declarado de Labriola.

Gustafsson aponta que, segundo se poderia observar da correspondência de Labriola

com Engels, o revolucionário alemão consideraria o professor italiano um “marxista

estrito” (GUSTAFSSON, 1974, P.254). Quando da publicação do segundo ensaio de

Labriola, Del materialismo storico, Plekhanov teria declarado estar de acordo com o autor

na exposição que fazia dos princípios básicos do marxismo, e Lênin teria considerado a

obra como uma defesa bem sucedida do marxismo (Idem). Trotsky, em sua autobiografia

escrita aproximadamente três décadas depois, informaria também ter lido Labriola com

admiração.68

Em suas posições, Labriola rechaçava a consideração positivista da história que,

como salientaria, limitar-se-ia a esclarecer os fatores que seriam eficazes em um dado

processo histórico, mas que não investigava nem a dependência nem as conexões internas

desses fatores. Além do positivismo, Labriola tomaria posição contrária aos socialistas que

tendiam a ressuscitar o kantismo em suas interpretações do movimento socialista (Idem,

p.255).

Labriola, em princípio, não teria percebido as tendências definitivamente

revisionistas em que incorriam os escritos de Bernstein, e tomava-os por uma autocrítica

saudável do marxismo por parte do social democrata alemão. Em nome de tal autocrítica,

Labriola teria saudado não apenas os escritos de Bernstein, mas também os de Sorel (Idem,

p.256). Porém, quando da edição francesa de seu Discorrendo di socialismo e di filosofia,

68

Assim conta Trotsky, em Minha Vida, a experiência vivida na prisão aos 19 anos de idade: “Li com entusiasmo, na minha célula, dois ensaios conhecidos do velho hegeliano-marxista italiano Antonio Labriola, os quais tinham penetrado na prisão na tradução francesa. Como poucos escritores latinos, Labriola possuía a dialética materialista, senão em política, onde era impotente, pelo menos no domínio da filosofia da história. Sob o diletantismo extravagante de sua exposição havia uma profundidade verdadeira” (TROTSKY, 1969, p.111).

211

em 1899, Labriola acrescentaria ao prefácio uma espécie de retificação de suas opiniões

anteriores sobre o social democrata alemão:

Quando escrevi este texto em 1897, não podia imaginar que este Bernstein, cuja crítica eu apreciava tão somente enquanto crítica, seria divulgado por todo o mundo pelos vendedores da “crise do marxismo” como exemplo máximo de reformista (LABRIOLA apud GUSTAFSSON, 1977, p.257).

Já quanto a Croce, Labriola teria criticado desde o início as tentativas daquele de

substituir a teoria do valor trabalho de Marx pela teoria da utilidade marginal. Quando

Croce publicou em Le Devenir Social sua crítica global ao marxismo, Labriola teria

acentuado sua crítica a ele (Idem, p.257). À época, Sorel propusera a Labriola publicar o

escrito de Croce como introdução à edição francesa de seu Discorrendo, o que Labriola

teria recusado de maneira veemente. Em vez de fazer o que Sorel lhe houvera proposto,

Labriola teria completado a edição francesa com um posfácio dedicado a um ajuste de

contas crítico com Croce69 e com um prólogo em que se distanciava de Sorel, acusando-o

de haver “canonizado” a crise do marxismo em seu prólogo ao livro de Savério Merlino

Formas e essências do socialismo70 (Idem). E em uma carta escrita a Croce em outubro de

1898, Labriola deixa claro o rompimento definitivo com seus outros dois colegas “latinos”:

Meu livro acaba de ser publicado por conselho seu e consiste em cartas a Sorel. Ora, desde o momento em que vocês se puseram a escrever o que escreveram, esta santíssima trindade se desvaneceu como fumaça... O que sei é que a crise de uma doutrina se transforma em ensinamento para aqueles que, após tê-la entendido, dispõem assim de uma nova experiência para ir além. Nem Sorel, nem você – ao menos até o momento – podem ter tal pretensão e vocês tem se expressado a seu modo sobre isso. Além disso – lhe digo francamente – ainda que eu não tenha recebido de nenhum São Pedro a sagrada investidura, sinto-me na obrigação e creio que tenho o direito de defender o socialismo e sua concepção de mundo durante tanto tempo e tão bem quanto eu puder, e este é o ponto capital que você não pode entender porque você, por conta de seu temperamento complacente, da vida que leva, da variedade de seus estudos e do que existe de indeterminadamente literário em suas inclinações, não quer entender que alguém como eu possa sentir-se intelectualmente ofendido por certos raciocínios (LABRIOLA apud GUSTAFSSON, 1975, p.258).71

A parte principal da obra marxista de Antonio Labriola é constituída por três

ensaios: In memoria del Manifesto dei Comunisti (1895), Del materialismo storico.

Dilucidazione preliminare (1896) e Discorrendo di socialismo e di filosofia (1897), todos

69 Cf. Labriola (1969, p.186-199). 70 Idem, p.199-201. 71 A carta foi reproduzida por Croce em seu posfácio para a edição italiana dos Saggi de Labriola, de 1938. Esta é a fonte citada em nota por Gustafsson e à qual tivemos acesso também. Cf. Croce ( 1938, p.303).

212

reunidos no volume Saggi intorno alla concezione materialistica dela storia, cuja primeira

edição data de 1897. As principais contribuições legadas por Labriola através desses

escritos e posteriormente assimiladas pelo marxista italiano que o sucederia, Antonio

Gramsci, foram a veemente defesa da autonomia, da independência e autossuficiência do

materialismo histórico enquanto filosofia e concepção de mundo, a ideia da permanência do

princípio da luta de classes e das teorias do valor-trabalho e da mais-valia como pilares da

explicação materialista da formação social capitalista e a indissociabilidade orgânica entre

prática e teoria na ciência e na política, consolidando assim a categoria de filosofia da

práxis. Como se percebe, nada de fortemente original se comparado a pensadores maiores

da época, como Lênin ou Rosa Luxemburgo, mas de grande importância para seu tempo e

lugar. Um tempo em que a socialdemocracia alemã iniciava um giro conservador que

culminaria anos depois no apoio à Grande Guerra e na malsucedida república de Weimar, e

um lugar (a Itália) em que outro influente pensador e antigo amigo aparecia com o mesmo

propósito de se ocupar da teoria marxista, mas para liquidá-la: Benedetto Croce. Ocupemo-

nos, aqui, da obra de Labriola.

Em seu trabalho En mémoire du Manifeste du Parti Communiste, Labriola se refere

ao comunismo do Manifesto como “comunismo crítico” (LABRIOLA, 1895, p.227).72 É a

própria expressão que, de certa forma, aparece já no texto de Marx e Engels, no terceiro

item do capítulo III, “Literatura Socialista e Comunista”. Mas ali a aparição literal é

“socialismo e comunismo crítico-utópicos”. Na peleja dos dois fundadores da filosofia da

práxis pela superação do socialismo utópico e pela construção de uma teoria socialista

científica, ficaria salientado e reforçado o termo “crítico” da expressão acima (GALASTRI,

2007, p.238). Eis o provável nascedouro da expressão de Labriola.

De toda forma, é necessário considerar também que Labriola enfrentava-se com as

tendências positivistas de interpretação do marxismo, que o transformariam numa teoria

fatalista e evolutiva da revolução. É provável que enxergasse na expressão “socialismo

científico” um subsídio a tais interpretações que julgava equivocadas. Labriola assumiria

72 A versão que utilizaremos aqui é a original, publicada na revista Le Devenir Social: Cf. Antonio Labriola. En mémoire du Manifeste du Parti Communiste (I). Le Devenir Social, 1re anné, n.1er , avril 1895, p. 225-252 ; Antonio Labriola. En mémoire du Manifeste du Parti Communiste (II). Le Devenir Social, 1re anné, n.4 , juillet 1895, p. 321-344.

213

ser científico sem, no entanto, “ser positivista” (LABRIOLA, 1895, p.230). Seria a dialética

o complemento anti-positivista do Manifesto. Assim, o materialismo, que já teria sido

renovado por Feuerbach, combinando-se com a dialética, seria a obra do Manifesto, o que

teria permitido a interpretação das causas inexploradas do movimento da história (Idem,

p.232). Observa Labriola que o texto de Marx e Engels seria o primeiro index do socialismo

moderno, apesar de não fornecer senão “os traços mais gerais e mais facilmente acessíveis

da doutrina” (Idem, p.235). Antecipando-se às reflexões de Lênin, Labriola sustenta que o

texto já traria os elementos que indicariam os “terrenos teóricos” sobre o quais teria

nascido, que seriam os da França, da Inglaterra e da Alemanha (Idem).

Tentando defender o Manifesto de eventuais interpretações deterministas, afirma

Labriola que a previsão revolucionária contida no texto não seria cronológica, menos ainda

uma profecia ou uma promessa, mas sim uma “previsão morfológica” (Idem, p.247). Ou

seja, Marx e Engels teriam escrito sobre a sociedade do futuro não no aspecto intuitivo de

como ela se apresentaria para quem a visse, mas “no aspecto do princípio diretivo da forma,

ou seja, da estrutura econômica, e particularmente em antítese com a sociedade atual”

(LABRIOLA, 1969, p.185). Algo, portanto, muito diferente de uma previsão cronológica

específica para os eventos revolucionários. Sustenta Labriola que, desde os cinquenta anos

anteriores, a “previsão” de uma era histórica nova ter-se-ia tornado uma “arte delicada”

para se compreender, em cada caso, o que seria oportuno fazer, porque tal nova era estaria

já em formação contínua (LABRIOLA, 1895, p.248). O comunismo ter-se-ia tornado uma

arte, porque os proletários ter-se-iam tornado, ou estariam ao ponto de tornar-se, um partido

político, em cuja organização o espírito revolucionário estaria encarnando; a “desejada”

conjunção entre comunistas e proletários estaria a partir de então consumada (Idem).

Para Labriola, o nascimento da disciplina de economia, a partir da ascensão da

sociedade burguesa, fora uma espécie de “luz consciente” que tal sociedade teria jogado

sobre si mesma (LABRIOLA, 1895, p.336). O direito natural, para ele, seria o

complemento ideológico. Aponta Labriola que a economia burguesa partiria de duas

hipóteses que não se daria o trabalho de justificar, tão evidentes lhe pareceriam: que a

ordem social que ela ilustrava era a ordem natural, e que a propriedade privada dos meios

de produção, junto com a liberdade humana, eram um conjunto único. Tais suposições por

parte da economia burguesa tornariam o sistema de salários e a inferioridade dos

214

assalariados condições necessárias à sociedade. Em outros termos, a economia burguesa, ou

até então apenas “economia”, não reconheceria o caráter histórico das formas que ela

estudava (Idem).

Os “partidários do comunismo crítico” teriam sido, para Labriola, os sucessores e

continuadores da economia clássica, motivo pelo qual certos críticos burgueses proporiam

abandonar a teoria do valor de Ricardo, já que ela acabaria por conduzir ao socialismo

(Idem, p.339). O comunismo crítico teria descoberto a relatividade das leis econômicas,

embora ao mesmo tempo em que demonstraria sua necessidade relativa (Idem). Para

Labriola, seria o caso de se assumir a “concepção orgânica da história”, que se constituiria

na totalidade da vida social diante do “espírito humano”. Seria a estrutura econômica que se

resolveria no curso de um processo, para aparecer em outros estados morfológicos em cada

qual ela serviria de alicerce a todo o resto (Idem, p.341). O autor afirma, como corolário de

seu raciocínio, que “O Capital não é o primeiro livro do comunismo crítico, mas o último

grande livro de economia burguesa” (Idem).

O segundo ensaio de Labriola, Del materialismo storico. Dilucidazione preliminare,

escrito em 1896, é uma demonstração de interpretação da história na perspectiva do

materialismo histórico. Nele o autor preconiza a utilização do marxismo, ao qual se refere

várias vezes como “nossa doutrina”, para empreender toda uma nova interpretação dos

fatos históricos, agora em nova base, despojada do que ele considera os “reflexos ingênuos

do mito e os reflexos mais artificiosos da religião e da metafísica” (LABRIOLA, 1977,

p.81). Para o autor, seria indispensável despojar os fatos históricos desses véus ideológicos

de que os próprios fatos se revestiriam em seu desenvolvimento narrativo. Isso

corresponderia a fazer uma nova crítica das fontes, “no sentido realista da palavra, e não no

sentido formal do documento” (Idem). Faríamos, assim, reagir sobre o conhecimento das

condições passadas nossa própria consciência da capacidade que teríamos para reconstruí-

las (Idem, p.82).

Procurando encontrar a medida exata para expor sua concepção de materialismo

histórico, ou seja, equilibrando-se para não cair nem em determinismo econômico, nem em

idealismo a-histórico, Labriola condena aqueles que interpretam o marxismo como uma

doutrina que colocaria em evidência apenas o “momento econômico” e em seguida

215

desprezaria todas as mediações e superestruturas da história (Idem, p.83). Sugere que as

mediações entre as causas e os efeitos, entre “as condições e as coisas condicionadas”, as

determinações e os elementos determinados não seriam nunca evidentes à primeira vista. E

assim também as causas profundas das ações históricas humanas. Na análise destas,

começar-se-ia pelos “motivos religiosos, políticos, estéticos, passionais, etc.”, mas seria

necessário buscar as causas dessas causas aparentes nas condições materiais de fato

subjacentes a todas elas (Idem, p.84). O estudo de tais condições conduziria, da mesma

forma, às mediações pelas quais aquelas ações históricas humanas tomariam as formas que

velariam seu sentido profundo à consciência social (Idem). Todo esse processo leva

Labriola a concluir em clara passagem:

E daí decorre com evidência esta segunda consequência que, em nossa doutrina, não se trata de retraduzir em categorias econômicas todas as manifestações complexas da história, mas que se trata somente de explicar em última instância (Engels) todos os fatos históricos por meio da estrutura econômica subjacente (Marx): o que necessita análise e redução, e depois meditação e composição (LABRIOLA, 1977, p.84).

Da mesma maneira, Labriola considera o que chama de “psicologia social”, ou seja,

a “consciência especificada dos homens em dadas condições sociais” (Idem, p.85). Tal

consciência seria o fruto, a derivação, o efeito de condições sociais determinadas: uma

determinada classe social, com uma função social específica, dominante, ou conservada sob

domínio. Todas essas determinações prévias suporiam diversas formas de produção e

distribuição dos meios imediatos de vida, ou seja, uma estrutura econômica determinada

(Idem). Em conclusão, aquela psicologia social, devido à sua natureza sempre

circunstancial, não seria a expressão de algum processo abstrato e genérico do presumido

espírito humano, mas seria sempre uma “formação especificada de condições especiais”

(Idem).

Não haveria para Labriola, enfim, fato histórico que não se relacionasse com as

condições da estrutura econômica subjacente, em sua origem. Porém não haveria, da

mesma forma, fato histórico que não seja precedido, acompanhado ou seguido por formas

determinadas de consciência, ou seja, determinados meios de mediação formadores de uma

psicologia social (Idem). Essas últimas considerações seriam, para o autor, o caminho para

216

se escapar ao determinismo econômico no emprego do materialismo histórico como

método de análise e concepção de história.

Assim, seria nos processos elementares da produção dos meios imediatos da vida

que se encontraria a coordenação das “causas e motores dos quereres e das ações” na não

menos importante superfície das relações sociais. Tal pressuposição, porém, quando

interpretada mal ou precipitadamente, poderia conduzir a uma aproximação com outra

explicação materialista da história, mas desta vez da história natural. Segundo Labriola,

“uma ordem de problemas ficou confundida com outra”, ou seja, estendeu-se “à história as

leis e os modos de pensar já aparecidos e próprios para o estudo e explicação do mundo

natural em geral e do mundo animal em particular” (LABRIOLA, 1977, p.86). Para o

filósofo italiano, isso teria acontecido em virtude de o darwinismo ter conseguido

estabelecer o princípio da transformação das espécies, o que teria definitivamente

derrubado a metafísica do fixismo das espécies e provido a natureza de uma história

própria. Ou seja, tomara-se emprestado os princípios da luta pela vida na natureza para que

fossem aplicados para explicar a história humana e seu movimento (Idem). Assim, o

“darwinismo social” ter-se-ia impregnado nos espíritos materialistas da época (Idem).

Para Labriola, tal expediente analítico, ou seja, o emprego de categorias darwinianas

para a explicação da luta pela vida em sociedade seria ilegítimo, já que segundo ele, certa

vida social com costumes e instituições seria característica mesmo das formas mais

elementares de vida humana em grupo (Idem, p.87). A existência de toda a complexa trama

de mediações superestruturais atuando entre as ações humanas e o seu condicionamento

material distanciaria muito as sociedades humanas da vida animal, o que tornaria inválidas

as tentativas de identificar as leis atuantes numa e noutra. Finalmente, a luta pela existência

nos reinos animais desenvolver-se-ia em “meios topográficos não modificados pela ação do

trabalho” (Idem, p.86).

Enfim, as obras dos homens, enquanto seres sociais, reagiriam sobre os próprios

homens. Tais criações criariam modos de viver não-naturais e produziriam não somente

hábitos e costumes, mas também relações e laços de existência conjunta, tudo isso sempre

condicionado ao modo de produção e reprodução dos meios da vida imediata (Idem,p.88).

Dessa forma, a ciência histórica teria como principal objetivo o estudo daquele terreno

217

“artificial”, ou seja, “sua origem, sua composição e suas transformações” (Idem). Para

Labriola, seria no mínimo “muito abstrato e muito genérico”, sem nenhum significado,

considerar-se a história humana como uma parte da história da natureza (Idem).

Uma vez combatidos os determinismos econômico e cientificista, Labriola

reposiciona a carga contra os modos de pensar metafísicos, fossem teológicos ou

racionalistas, que definiriam os resultados do movimento histórico como desígnios pré-

concebidos por Deus ou pela razão humana, neste caso por meio de leis e do direito ou por

meio da consciente vontade política direcionada a um fim. Segundo ele, o materialismo

histórico estipularia, “revolucionando em seus fundamentos as hipóteses dos teólogos, dos

juristas e dos políticos”, que os resultados das atividades humanas nem sempre, ou quase

nunca, ao longo da história, coincidiriam com a vontade que age segundo planos pré-

concebidos e com a livre escolha dos meios (Idem, p.90). Afirma Labriola que tudo o que

acontecera na história fora obra humana, mas não teria sido, senão raramente, o “resultado

de uma escolha crítica e de uma vontade raciocinante” (Idem). Pelo contrário, haveria sido

por necessidades e premências, cujas origens e soluções estariam condicionadas por

circunstâncias materiais externas, que as atividades humanas teriam engendrado o

desenvolvimento da cultura e da própria razão humanas (Idem, p.91). Para o autor, o

materialismo histórico seria a superação definitiva de toda “ideologia”, já que seria também

a negação explícita de toda forma de racionalismo, ou seja, de que a história corresponderia

em seu desenvolvimento a uma norma, a um ideal ou fim (Idem). Ele conclui o raciocínio

apresentando uma interessante definição de “progresso”, habilmente isentando o termo de

todo o peso determinista, sem, no entanto, dele se desfazer:

O progresso não implica senão a noção de coisa empírica e circunstanciada, que se precisa atualmente em nosso espírito porque, graças ao desenvolvimento realizado até aqui, estamos em condições de avaliar o passado e de prever, ou entrever, em certo sentido e em certa medida, o futuro (LABRIOLA, 1977, p.91).

Assim, Labriola lograria haver superado, de um lado, as concepções deterministas

da história e, de outro, as concepções derivadas de um “voluntarismo” racionalista. O autor

aceita inclusive o que chama de “concepção rigorosa de determinismo”, que define como

um determinismo “derivado, complexo e reflexo”, que não é senão sua própria ideia

relativa aos condicionamentos materiais das ações humanas, conforme às formas de

218

produção e reprodução dos meios da vida imediata (Idem, p.92). Para Labriola não haveria

também nenhum fundamento para uma suposta negação completa de toda a vontade, por

conta de alguma perspectiva teórica que quisesse substituir aquele voluntarismo pelo

“automatismo” determinista (Idem). O materialismo histórico haveria superado os limites

“ideológicos” de uma e outra concepção da história. Agora os projetos premeditados, os

desígnios políticos, a ciência, o direito, a teologia passariam, segundo ele, de instrumentos

para a explicação da história a fenômenos a serem eles próprios explicados, já que

derivariam de condições e situações determinadas (Idem, p.92). No entanto, adverte o

filósofo italiano, sua qualidade de fenômenos “ideológicos” não implicaria que não fossem

coisas reais e com reais consequências sobre todas as dimensões sociais as quais se

reportariam (Idem).

Labriola demonstra preocupação com a possibilidade de o materialismo histórico ser

apropriado por pensadores que dele fariam uma nova filosofia finalista da história, ou,

segundo suas palavras, “uma nova ideologia” (Idem, p.93). Para se contrapor também a

essa possibilidade, ele precisa algumas observações sobre a ideia de progresso que, de

resto, estaria na base das concepções finalistas de história. Afirma que todas as condições

históricas de que se teria conhecimento seriam “circunstanciadas”, ou seja, condicionadas

pelas limitações materiais e produtivas de cada época (Idem); sustenta também que, por ter

sido sempre circunscrito por impedimentos múltiplos, o que se chamaria de progresso teria

sido sempre um movimento parcial e limitado das condições humanas (Idem, p.94).

Labriola estende sua reflexão sobre a noção de progresso e desenvolve uma definição

relativa de tempo histórico.73

Para Labriola, o tempo histórico não possuiria um curso uniforme para todos os

homens (Idem, p.94). A simples sucessão das gerações nunca teria sido a medida da

constância e intensidade do processo. O tempo, como medida cronológica abstrata, e as

gerações que se sucedem em termos aproximativos de anos não forneceriam critérios ou

indicações de lei ou processo específico (Idem). Em suma, os desenvolvimentos teriam

sido, até o presente momento histórico, variados, exatamente porque variadas teriam sido as

73 A noção de tempo histórico desenvolvida por Labriola nessas passagens de seu Del materialismo storico lembra em alguns aspectos o conceito de “contratempo” elaborado pelo filósofo francês Daniel Bensaïd, já abordado neste trabalho. Bensaïd faleceu em janeiro de 2010.

219

obras humanas em uma mesma unidade de tempo. E entre as formas várias de

desenvolvimento haveria por vezes similitude ou afinidade, tanto que uma determinada

forma avançada poderia, por simples contato ou pela violência, acelerar o desenvolvimento

de outra forma mais atrasada (Idem). Todavia, para o filósofo italiano, o mais importante

seria apreender o fato de que o “progresso” seria uma noção não só empírica, mas

circunstanciada, e não pairaria sobre o curso das coisas humanas como um destino ou um

fato, nem como um imperativo (Idem). Por tudo isso, o materialismo histórico não poderia

representar toda a história do gênero humano em uma perspectiva unitária, como um

desenvolvimento temporalmente uniforme (Idem).

Assim, segundo Labriola, os considerados “obstáculos” à uniformidade do

progresso deveriam ser procurados nas condições próprias e intrínsecas da estrutura social

mesma, já que o movimento histórico nasceria exatamente onde os impedimentos naturais

já teriam sido superados em boa parte, ou em sua maior parte circunscritos por meio da

criação de um terreno humano artificial, ou seja, não mais originalmente natural (Idem,

p.99). Para o filósofo italiano, a desigualdade dos tempos históricos geraria uma

desigualdade econômica ou, em suas palavras, “uma hierarquia econômica” (Idem). A esta

hierarquia econômica corresponderia uma hierarquia cultural. Justamente a cultura,

segundo Labriola considerada pelos idealistas o índice do progresso humano, seria

desigualmente distribuída por uma imposição material daquela mesma história humana:

Os progressos da técnica, que enriquecem de comodidades a cidade, tornam mais mísera e abjeta a condição de vida dos camponeses, e na própria cidade mais miserável as condições dos miseráveis. Todos os progressos do saber serviram até agora para diferenciar a casta dos sábios, e a tornar sempre maior a distância das massas em relação à cultura. E essa massa, oprimida pelo incessante trabalho diário, permanecem assim alimentando a sociedade inteira (LABRIOLA, 1977, p.100).

O progresso teria sido assim, até os tempos atuais, sempre parcial e unilateral. A isto

chamaria de “progresso humano” a minoria que dele participa, e os evolucionistas

chamariam de desenvolvimento da natureza humana (Idem). Conclui Labriola que o

progresso tal como se nos aparecera até hoje seria claramente o “compêndio moral e

intelectual de toda a miséria humana”, bem como de toda a desigualdade material (Idem).

O autor procura levar às últimas consequências a materialidade da análise marxista

fundindo-a à própria sociedade, historicizando-a, condicionando-a a situações materiais

220

determinadas. Assim, o materialismo histórico não seria mais, como os outros sistemas

filosóficos, uma crítica subjetiva aplicada às coisas, mas sim o encontro da autocrítica que

estaria nas próprias coisas (Idem, p.118). A verdadeira crítica da sociedade seria a própria

sociedade, que pelas condições antitéticas de contrastes sobre os quais repousaria geraria

por si e em si mesma a contradição, que se resolveria em seguida no surgimento de novas

formas sociais (Idem). Quer o saiba ou não, seria o próprio proletariado a resolução

daquelas antíteses. Como a miséria do proletariado ter-se-ia tornado a condição evidente da

atual sociedade, assim no proletariado e em sua miséria encontrar-se-ia a razão de ser de

uma nova revolução social (Idem). É nisso que consistiria, segundo o autor, a dialética da

história, que Marx e Engels, enquanto materialistas, teriam trazido do idealismo de Hegel.

Ou seja, na superação da crítica do pensamento subjetivo, que examinaria as coisas de fora

e imaginaria poder corrigi-las por conta própria, pela inteligência da autocrítica que a

sociedade exerceria sobre si mesma na imanência de seu próprio processo (Idem). Sua

autocrítica teria dado lugar para o surgimento do “comunismo crítico” (Idem, p.150).

Labriola procura também, baseando-se em todas as suas considerações sobre a

natureza do método e das concepções do materialismo histórico, abordar a questão da

política e do direito no que aparecem como forma ideológica cristalizada, ou seja, o Estado.

Sustenta então, por notório que seja, que o Estado nasceria, cresceria, diminuiria e se

alteraria conforme variações das condições sociais (LABRIOLA, 1977, p.126). O Estado

existiria e estaria orientado e organizado para a defesa de determinados interesses de uma

parte da sociedade contra todo o resto da própria sociedade. Em seguida Labriola aponta

elementos, recursos de tal dominação que poderiam receber ricos desenvolvimentos

teóricos, mas aos quais o autor alude aqui de passagem. Afirma então que aquela defesa de

interesses específicos deveria ser feita de tal modo que a resistência dos submetidos e

explorados fosse dispersa por meio de múltiplos atritos ou fosse mitigada por meio de

compensações parciais, embora ainda miseráveis, aos próprios oprimidos (Idem). Segundo

o filósofo italiano, dessa forma a política poderia receber a seguinte definição: “aplicação

de uma força, ou de um sistema de forças, a um conjunto de resistências” (Idem).

Afirma o autor que a história do direito até então teria sido a história das mudanças

nas formas de servidão. A história consistiria, em sua integralidade, nas lutas de interesses,

e o direito não seria senão a expressão autoritária daqueles que teriam triunfado ao longo

221

dos tempos (Idem, p.136). Dadas as condições de desenvolvimento do trabalho e dos

instrumentos que lhe seriam próprios, a estrutura econômica da sociedade, ou seja, a forma

de produção dos meios imediatos da vida, determinaria em um ambiente artificial, “em

primeiro lugar e diretamente”, toda a atividade prática das pessoas em sociedade e a

variação dessa atividade no que se chamaria de história: a formação, os atritos, as lutas e a

destruição de classes; o correspondente desenvolvimento das relações reguladoras, como o

direito e a moral; as razões e modos de subordinação e sujeição, dos homens sobre os

próprios homens, com o respectivo exercício do domínio e da autoridade, de que se

originaria finalmente o Estado (Idem, p.137). “Em segundo lugar e, em boa parte, de forma

indireta”, os objetos da fantasia e do pensamento, da produção artística, religiosa e

científica (Idem).

Os resultados e as determinações diretas e indiretas, segundo Labriola, tenderiam a

se estabelecer como elementos independentes e autônomos, de acordo com os interesses

aos quais dariam origem, os hábitos que criariam, as pessoas que os coordenariam (Idem).

Daí nasceria, de acordo com o autor, a visão empiricista segundo a qual diversos fatores

independentes, com eficácia e ritmo de movimento próprios concorreriam na formação do

processo histórico, resultando nas sucessivas configurações sociais (Idem). Mas tais fatores,

reafirma Labriola, seriam na verdade as classes sociais, enquanto formadas por

diferenciação de interesses materiais, que se apresentariam em determinados modos e

formas de oposição e antagonismo (de onde seriam gerados, na história, o atrito, o

movimento, os processos e o progresso) (Idem).

Assim, as variações da estrutura econômica subjacente à sociedade, à primeira vista,

se manifestariam intuitivamente na agitação das paixões, se desenvolveriam

conscientemente nas lutas contra um direito determinado ou por um direito determinado, e

se reconheceriam no abalo e na ruína de um determinado ordenamento político. Na

realidade, porém, tais variações possuiriam a sua mais adequada expressão na mudança das

relações existentes entre as diversas classes sociais. E estas relações se modificariam ao

mudarem as relações precedentes entre a força de trabalho e as condições jurídico-políticas

de coordenação entre os produtores (LABRIOLA, 1977, 137). Dessa forma, de acordo com

o autor, seria possível sustentar que, no sentido mais abrangente do termo e naquele

específico da ruína de um determinado ordenamento político, as revoluções marcariam as

222

verdadeiras datas das épocas históricas (Idem, p.138). Observadas de longe, em seus

elementos, preparação e efeitos em longo prazo, poderiam aparecer como etapas de uma

constante evolução, com variações mínimas. Porém, consideradas em si mesmas, seriam

precisas e definidas catástrofes, e somente como catástrofes possuiriam caráter de

acontecimento histórico (Idem).

Dentre os elementos superestruturais que Labriola submete a uma análise mais

detida, a moral e a ética inspirariam provavelmente um interesse específico, dado serem as

dimensões mais mobilizadas à época, e continuariam sendo posteriormente, para embasar

interpretações revisionistas e liquidacionistas em relação ao materialismo histórico. Para

Labriola, a moral não se apresentaria nem geraria a si mesma. Não existiria esse “ente

espiritual”, chamado de “consciência moral”, única para todos os homens, como

fundamento universal das variadas e variáveis relações éticas (Idem, p.140). Tal entidade

abstrata teria sido eliminada pela crítica, como todas as outras entidades parecidas, ou seja,

como todas as chamadas faculdades da alma (Idem). As explicações antigas desses

elementos teriam suposto até então, como explicação única, sua própria generalização. Para

o autor, a consciência moral que realmente existiria seria um fato empírico, um índice ou

resumo da formação ética relativa de cada indivíduo. Existindo ciência aqui, esta não

poderia explicar as relações éticas por meio da consciência, mas, ao contrário, deveria

exatamente compreender como tal consciência teria chegado a formar-se (Idem). A

consciência moral efetiva, real, seria sempre condicionada e limitada, que a fantasia

ideológica teria procurado superar criando utopias, explicações sobrenaturais ou redenções

miraculosas (Idem, p.141).

Entretanto, como parte da crítica da moral enquanto dimensão superestrutural do

capitalismo, pergunta-se Labriola sobre os limites de sua eficácia frente à implacabilidade

material da exploração da força de trabalho, ou seja, até onde poderia a persuasão da moral

pacifista cristã “arrancar da alma dos proletários modernos as razões naturais do ódio

contra seus opressores determinados ou determinados” (Idem). Isso porque, para haver

justiça em tal sociedade seria necessário aos proletários apelarem à violência, já que o

“amor ao próximo” somente poderia lhes parecer plausível numa sociedade muito diferente

da formação social capitalista (Idem). De tudo isso se poderia deduzir então que a ética se

esclareceria a partir do estudo histórico das condições subjetivas e objetivas de como a

223

moral se desenvolva, ou encontre obstáculos ao seu desenvolvimento. Nesses termos

apenas é que se poderia encontrar validade no enunciado segundo o qual a moral

corresponderia às situações sociais, ou seja, em “última análise”, às condições econômicas

(Idem).

Recomendar aos homens a moral, supondo ou ignorando suas condições, teria sido

até então o objetivo e o gênero de argumentação de “todos os catequistas” (Idem, p.142).

Reconhecer que aquelas condições são circunstanciadas pelo ambiente social, eis o que os

comunistas contraporiam à utopia e à hipocrisia dos pregadores da moral (Idem). E os

comunistas reconheceriam a perfectibilidade humana por razões e argumentos que seriam

mais morais e ideais do que aqueles que foram com frequência e indiferença encampados

pelos ideólogos, porque eles, comunistas, veriam na moral não um privilégio de

predestinados ou um dom da natureza, mas o resultado da experiência e da educação

(Idem). Observa ainda Labriola, em outras palavras, que o homem desenvolveria e

produziria a si mesmo, não como um ser genericamente dotado de certos atributos que se

repetiriam ou se desenvolveriam seguindo um ritmo racional, mas produziria e

desenvolveria a si mesmo como causa e efeito, como autor e consequência, ao mesmo

tempo, de determinadas condições nas quais se gerariam também determinadas correntes de

ideias, de opiniões, de crenças, de fantasias, de expectativas, de máximas de vida (Idem).

Deste movimento histórico nasceria a ideologia de várias maneiras, como também as

generalizações da moral em catecismos, cânones e sistemas (Idem).

Tais ideologias, uma vez surgidas, segundo Labriola, se autonomizariam e

passariam a ser cultivadas por força de abstrações. Por fim, apareceriam como que

destacadas do terreno da vida de onde teriam provindo para permanecer pairando sobre os

homens como imperativos de ação ou modelos. Padres e doutrinadores de toda sorte ter-se-

iam dedicado durante séculos a esse trabalho de abstração e a manter as ilusões que dele

teriam resultado. Agora que seriam conhecidas as fontes positivas de todas as ideologias no

mecanismo próprio da vida, tratar-se-ia de explicar de maneira realista todo o seu processo

de origem (Idem).

Ainda caberia a pergunta: e quanto àquelas crenças e valores não explicados por

uma dissecação científica e materialista da história, eventuais fenômenos ideológicos nos

224

quais não se pode encontrar o elo entre a forma ética idealizada e determinadas condições

práticas materiais? Num período em que, por meio de Labriola e alguns poucos, o

marxismo se encontrava frente ao desafio de apresentar soluções convincentes para provar

sua viabilidade enquanto ciência, Labriola forneceria uma resposta corajosa:

A psicologia social concreta de tempos passados nos chega frequentemente de maneira impenetrável (...). Um proceder cuidadoso nos leva a concluir que os motivos de muitos fenômenos particulares ficarão indefinidamente ocultos. Ignorância, superstição, ilusões, simbolismo, esses são, como tantas outras, as causas desse inconsciente que se encontra frequentemente nos costumes, que para nós constitui o desconhecido e o incognoscível (LABRIOLA, 1977, p.143).

Em seu Del materialismo storico, Labriola ocupou-se também da ciência enquanto

objeto da análise marxista. Neste caso, tratar-se-ia, segundo o autor, de descobrir por que

existe uma história efetiva da ciência, a origem da necessidade científica, o que ligaria essa

necessidade científica de uma maneira “genética” às outras necessidades na continuidade

do processo social (Idem). A ciência, uma vez iniciada e amadurecida como já seria o caso

no período helênico, daria continuidade, por meio do trabalho dos próprios cientistas

naturalmente, aos processos de abstração, dedução e combinação de uma maneira que

aparentemente obscureceria a consciência das causas sociais da origem da própria ciência

(Idem, p.144). Porém, se observássemos a traços amplos as épocas de desenvolvimento da

ciência, e comparássemos com os períodos que os ideólogos chamariam de progresso e de

regresso da inteligência, nos apareceriam claramente as razões sociais dos impulsos, ora

crescentes, ora decrescentes, da atividade científica (Idem). Por exemplo, lembra Labriola,

as sociedades feudais do ocidente europeu não teriam necessidade das ciências antigas,

enquanto os árabes em seus vários domínios, ou os agricultores livres, ou artificiosos

artesãos, ou ainda hábeis comerciantes, eram levados mesmo a incrementá-las um pouco

(Idem).

Afirma o autor que esta ciência, a ciência da livre pesquisa que teria sido

introduzida na universidade pela Revolução Francesa, que a época burguesa teria

fomentado e feito crescer enormemente por seus próprios meios, seria a única herança dos

séculos passados que o comunismo aceitaria e adotaria sem reservas (LABRIOLA, 1977,

p.145). Embora imbuído de convicções científicas que rejeitariam elucubrações

“ideológicas”, sustenta Labriola que não seria o caso de se colocar em discussão alguma

225

eventual e suposta contradição entre ciência e filosofia (Idem). Fazendo exceção aos modos

de filosofar que se confundiriam com a mística e a teologia, “filosofia” não significaria

nunca, segundo o italiano, uma ciência ou doutrina que estivesse afastada das coisas

próprias e particulares da realidade, mas representaria um determinado grau, uma forma,

um estágio do pensamento com relação àquelas próprias coisas na medida em que

entrassem no campo da experiência (Idem). A filosofia seria, por isso, ou antecipação

genérica de problemas que a ciência ainda deverá elaborar especificamente, ou um sumário

e elaboração conceitual dos resultados que a ciência teria já atingido (Idem).

Labriola pretenderia, assim, consolidar sua proposição materialista de que, mais

uma vez, a estrutura econômica determinaria, secundariamente, a direção e, em boa medida

e indiretamente, os objetos da fantasia e do pensamento nas produções artísticas, religiosas

ou científicas (Idem). Com tal proposição o autor combateria a tese idealista segundo a qual

arte, religião e ciência representariam, respectivamente, o desenvolvimento subjetivo e

histórico de um suposto espírito artístico, religioso ou científico, os quais se manifestariam

segundo um ritmo próprio de evolução (Idem). Diferentemente, Labriola pretende sustentar

a necessária conexão pela qual cada fato artístico ou religioso seria o expoente sentimental,

fantástico, ou seja, derivado de determinadas condições sociais (Idem). A restrição

“secundariamente” serviria, de acordo com o autor, para distinguir aqueles fenômenos dos

fatos relativos ao ordenamento jurídico-político da sociedade, que seriam verdadeira e

diretamente objetivações das relações econômicas (Idem). Além disso, afirma Labriola,

seria necessário indicar que na produção artística e religiosa a mediação das condições

sociais aos “produtos finais” daquelas áreas seria muito complicada. Restaria ainda a

constatação de que os homens, embora vivendo em sociedade, não deixam por isso de viver

também na natureza, podendo também dela receber inspiração e matéria para sua

curiosidade e fantasia (Idem, p.146).

Labriola faz ainda observações que deixam claro como, também para ele, as

ideologias adquirem a validade e o papel de forças materiais reais na sociedade. Sustenta

que em qualquer tentativa de “redução” dos “produtos secundários” (como arte e religião)

às condições sociais, nas quais são idealizados, ficaria evidente o fato de que aqueles

“produtos secundários” consolidam-se em profundos hábitos em torno à psicologia social

específica, na qual sua transformação e a idealização ocorreriam (Idem). Nisso consistiria a

226

razão de ser daquele conjunto de relações sociais que, expressos de outra maneira, seriam

designados como “mundo egípcio”, “consciência grega”, “espírito do Renascimento”,

“ideias dominantes”, “psicologia popular”, etc. (Idem). De acordo com o autor, quando tais

relações se constituem, e os homens são acostumados a certas ideações e a certos modos de

crença ou fantasia, as ideologias transmitidas por tradição tenderiam a cristalizar-se, e por

isso apareceriam como uma força resistente ao novo (Idem). Como tal resistência se

manifestaria na palavra, na escrita, na intolerância, na polêmica, na perseguição, assim a

luta entre as novas e velhas condições sociais assumiria a forma de um conflito de ideias.

Na forma de luta de ideias, sugere o autor que o materialismo histórico dever-se-ia

impor como uma nova concepção do mundo, “penetrando as mentes como uma conquista

definitiva do pensamento” (Idem, p.150). E para o cientista social que, de maneira crítica,

se dispusesse a analisar a sociedade com as ferramentas do materialismo histórico, eis como

Labriola resume sua empreitada:

Compreender os entrelaçamentos e o complexo social em suas íntimas conexões e em suas manifestações exteriores; descer da superfície ao fundo, e refazer a superfície a partir do fundo; desvendar as paixões e as intenções em suas próprias motivações, das mais próximas às mais remotas, e depois reconduzir os dados das paixões, das intenções e de suas motivações aos mais remotos elementos de uma determinada situação econômica: eis a difícil arte que deve ilustrar a concepção materialista (LABRIOLA, 1977, p.153).

De certo ponto de vista, talvez se possa afirmar que este Del materialismo storico de

Labriola seja um providencial desdobramento didático do prefácio de 1859 à Contribuição

à crítica da economia política. As interpretações do materialismo histórico que o filósofo

italiano procura desautorizar portariam uma semelhança tácita com os mal entendidos

deterministas que girariam em torno da relação estrutura econômica / superestrutura

ideológica estipulada no Prefácio de 1859. As reflexões de Labriola ainda guardam,

certamente, distância razoável da inovadora interpretação que Gramsci faria do mesmo

texto. Nelas, porém, é possível encontrar sugestões originais que bem poderiam merecer

desenvolvimento posterior. Uma delas é a ideia das diferentes temporalidades de

desenvolvimento e/ou retrocesso de formações sociais e condições políticas

cronologicamente contemporâneas; outra seria a noção incipiente de uma ciência política

marxista por meio da interpretação do Estado como um conjunto de relações de forças

diretamente conectadas à base social; ainda uma terceira sugestão, que mais parece um

227

embrião da teoria gramsciana da revolução passiva, é a hipótese da manutenção do poder

do Estado via concessões parciais e limitadas às classes dominadas.

Para Croce (1938, p.278) este segundo ensaio de Labriola teria fundado de fato a

autoridade do professor de Roma como sistematizador filosófico do materialismo histórico.

Tal ensaio tivera divulgação internacional a partir da tradução francesa de 1899, prefaciada

por Georges Sorel (Idem). Segundo Croce, porém, para Labriola a teoria marxista da mais-

valia e o materialismo histórico importariam, sobretudo, aos fins práticos do socialismo,

enquanto que para ele, Croce, importariam mais na medida em que pudessem ajudar a

“conceber de maneira mais viva e plena a filosofia e entender melhor a história” (Idem,

p.291). Croce reconhece que Labriola teria se iludido por algum tempo ao ver nele um

sucessor na defesa de uma suposta genuína tradição marxista, que seria enfim a força do

socialismo. Mas ele mesmo não se teria construído nenhuma ilusão nesse sentido, conforme

atesta, e considera que, a despeito das reprovações que Labriola lhe dirigiria

posteriormente, estaria também, a seu modo, realizando um trabalho de pensador, e um

trabalho político (Idem). Croce afirma que teria fornecido uma resposta à pergunta sobre

que auxílios o materialismo histórico poderia ter aportado à filosofia e à história. E sua

resposta era que o materialismo histórico, no final das contas, se havia mostrado a ele como

duplamente falacioso, tanto como “materialismo” quanto concepção do curso histórico

segundo desígnios pré-determinados, à moda da filosofia hegeliana da história (Idem). É

necessário atentar que aqui se trata do discurso de um Croce já no final da década de trinta,

em tardia polêmica com Labriola e que estaria, já de há muito, empenhado na liquidação do

marxismo.

Mas, afirma Croce, o elemento interessante à época, no materialismo histórico, seria

a situação efervescente que o teria feito surgir, bem como a visão penetrante com a qual se

atribuía uma grande importância à economia em relação à vida humana. Assim, para Croce,

esses seriam os aspectos úteis a receber atenção nessa nova doutrina (Idem). Eis o que,

segundo ele mesmo escreve mais de trinta anos depois, teria concluído à época: que o

materialismo histórico seria de grande benefício quando fosse apreendido não mais como

uma filosofia da história ou filosofia simplesmente, mas como um “cânone empírico de

interpretação”, uma recomendação aos historiadores para darem atenção, o que até aquele

228

momento não teria sido feito, à atividade econômica na vida dos povos e à imaginação,

ingênua ou artificiosa, que dela se originaria (CROCE, 1938, p.292).

Diferentemente do que à época chegou a pensar Croce, Labriola não partilhava sua

opinião de que o materialismo histórico fosse apenas mais um cânone de interpretação dos

fatos históricos.74 Como já apontado mais acima, Labriola postulava a necessidade e a

probabilidade de que o materialismo histórico penetrasse “as mentes, como uma conquista

definitiva do pensamento”. Além disso, de maneira pioneira, ele já deixaria claro a

novidade e a independência do marxismo como totalidade concreta, o fato de que este

pensamento não pertenceria a “nenhuma especialidade ou a nenhum gênero literário

preexistente” (SACRISTÁN, 1969, p.19). Parece provável, pois, que Labriola considerasse

o materialismo histórico como nova concepção de mundo em sentido integral, não apenas

um “cânone”. É certo que, em determinado momento, afirma Labriola:

Há uma grande distância entre a aceitação de um princípio e sua aplicação completa e detalhada a todo um vasto estado de coisas ou um grande entrelaçamento de fenômenos. Por isso, a aplicação de nossa doutrina deve ater-se, no momento, à exposição e ao estudo de determinadas partes da história (LABRIOLA, 1977, p.151).

Porém, tal passagem apenas reafirma a compreensão de Labriola da necessidade da

luta que precisaria ser travada para que a nova concepção de mundo pudesse “penetrar nas

mentes” de maneira a se consolidar numa etapa histórica sucessiva. Uma luta cujos

resultados seriam incertos e em que não haveria garantias de vitória automática.

O terceiro texto que compõe os Saggi de Labriola é, na verdade, formado pelo

conjunto das cartas enviadas por Labriola a Georges Sorel no período entre abril e setembro

de 1897, que teriam funcionado como respostas ao prefácio redigido por Sorel à edição

74 Gustafsson discordaria dessa nossa afirmação. Segundo ele, “Labriola mostrava, da mesma forma que Engels, certa inclinação a apresentar a concepção materialista da história exclusivamente como método, ou seja, a lhe dar um caráter meramente instrumental. Em sua exposição, aquela se convertia simplesmente em um ponto de partida de investigações históricas, ou mesmo em somente um ponto de vista. Contradizia, dessa forma, a quem quisesse utilizar o materialismo histórico para formar uma nova ideologia e para criar, a partir dela, uma nova filosofia da história” (GUSTAFSSON, 1975, p.260).

229

francesa de 1897 dos dois primeiros Saggi. Houve também respostas de Sorel por meio de

cartas a Labriola, as quais se teriam perdido posteriormente.75

Ao longo do texto, Labriola demonstra dominar o conteúdo da obra de economia

política de Marx, fazendo em vários momentos uma exposição sucinta, porém objetiva, dos

temas de estudo d’O Capital, discorrendo, por exemplo, sobre a produção, circulação,

mais-valia e a teoria do valor como pressuposto geral. Em algumas passagens, lamenta a

ausência de um conhecimento acurado desses conteúdos tanto pelos críticos “latinos”

quanto pelos que, dentre esses, se pretenderiam adeptos do marxismo. Tudo isso nos faz

parecer provável, inclusive, que Sorel tenha aproveitado as “lições” de seu então amigo

Labriola para as próprias críticas posteriores que faria ao materialismo histórico, dado ser

notório, de resto por declarações do próprio Sorel, que suas habilidades na língua alemã

seriam precárias.

Observa Labriola que, até o momento em que escreve, o círculo de leitura e debates

das obras de Marx e Engels seria ainda restrito à socialdemocracia alemã, e ainda assim de

maneira “bastante parcial” (LABRIOLA, 1969, p.41).76 Para ele, seria, até então, um

“privilégio de iniciados” ler todos os escritos dos fundadores do socialismo científico

(Idem). Segundo o filósofo italiano, o materialismo histórico teria passado nos países

latinos por uma grande quantidade de equívocos, más interpretações, alterações grosseiras e

“invenções gratuitas” (Idem, p.42), antes de chegar, nesses mesmos países, ao ambiente

crítico literário das pessoas capazes de desenvolvê-lo. Labriola aponta então a necessidade

de, por meio de traduções competentes, colocar ao alcance dos leitores toda a produção

literária de Marx e Engels (Idem, p.46).

A questão leva o autor, neste Discorrendo, a fazer interessantes observações

concernentes a temas como “tradução”, “método” e “pedagogia social”, que convergirão

todos na questão mais ampla da difusão do materialismo histórico como crítica da

concepção de mundo burguesa. Sustenta Labriola que os idiomas seriam muito mais do que

simples meios extrínsecos de comunicação e significação do pensamento e da alma (Idem,

75 Segundo me informou pessoalmente em maio de 2009 o senhor Michel Prat, bibliotecário do Instituto de Estudos Sorelianos de Paris, estudioso da obra de Sorel e colaborador da revista Mil neuf cent, da mesma instituição. 76 Usaremos aqui a edição em língua espanhola de 1969, pela Alianza Editorial, de Madrid. Cf. Antonio Labriola. Socialismo y filosofia. Madrid: Alianza Editorial, 1969.

230

p.71). Seriam condições e limites de nossa atividade interior, os quais por isso, e por várias

outras razões, possuiriam formas nacionais que não seriam mero acidente (Idem). Dessa

forma, a assimilação de ideias, pensamentos, tendências e propósitos cuja expressão

literária amadurecera em línguas estrangeiras apresentariam um difícil problema de

“pedagogia social” (Idem). Pedagogia social essa cujo exemplo de sucesso Labriola

considera a expansão da socialdemocracia alemã, observando o que em sua opinião seria

uma nova consciência que se teria desenvolvido numa tão grande quantidade de operários e

pequenos burgueses. Para essa nova consciência teriam concorrido, na mesma medida,

tanto o sentimento direto da situação econômica que induziria à luta quanto a propaganda

do socialismo entendido como meta ou ponto de chegada (Idem, p.72). O autor se preocupa

assim com a questão de como reproduzir tal pedagogia social com ideias que ainda

precisariam ser traduzidas para outras condições específicas nacionais:

Pensar é produzir. Aprender é produzir reproduzindo. Não sabemos bem e realmente mais do que nós mesmos somos capazes de produzir, pensando, trabalhando, provando e novamente colocando à prova; e sempre em virtude de forças que nos são próprias, no campo social em que nos encontramos e do ponto de vista de nossa situação (LABRIOLA, 1969, p.73).

É assim que, dirigindo-se, como se sabe, a Sorel e tomando como exemplo a França,

sustenta Labriola que o materialismo histórico não teria condições de desenvolver-se

naquele país enquanto permanecesse simplesmente como “elaboração mental dos dois

alemães de grande gênio” (Idem, p.74). Afinal, o materialismo histórico não seria

patrimônio de uma nação somente. Já em suas origens objetivas, lembra Labriola que o

materialismo histórico pertenceria em igual medida também a Inglaterra e França (Idem,

p.77). Estaria presente em sua formação a grande indústria inglesa, com todas as misérias

que a acompanhavam, com a reação ideológica de Owen e a reação prática da agitação

cartista (Idem). Além disso, naquelas mesmas origens haveria também as escolas do

socialismo francês e a tradição revolucionária do ocidente, presentes já em forma do que

seria um comunismo de índole proletária moderna (Idem). Sustenta o autor que O Capital

seria a crítica daquela economia que, como revolução prática e como representação teórica

dessa própria revolução, havia amadurecido apenas na Inglaterra. Da mesma forma, o

Manifesto Comunista seria o resumo conclusivo e a explicação do socialismo latente ou

manifesto nos movimentos operários de França e Inglaterra (Idem,p.78). Em conclusão,

231

afirma Labriola que França e Inglaterra poderiam recuperar sua parte na elaboração do

materialismo histórico sem necessidade de apresentar-se como meros imitadores (Idem).

Labriola retoma então, especificamente, a questão da tradução para defender a ideia

de que o Antidühring, de Engels, seria uma obra providencial e deveria estar entre as

primeiras a circular pelos países da Europa (Idem, p.79). Para Labriola, o verdadeiro efeito

deste livro entre socialistas de outros países e outras línguas deveria consistir na

capacitação para que se dotassem das atitudes críticas adequadas com vistas a escrever

todos os demais “anti-X” que se fizessem necessários para combater qualquer outra coisa

que obstaculizasse ou contaminasse o materialismo histórico em nome de tantas sociologias

existentes (Idem,p.80). Para o professor de Roma, as armas da crítica do materialismo

histórico deveriam variar e se adaptar segundo o país, já que “tratar o doente, e não a

doença, nisso consiste a medicina moderna” (Idem). Segundo o autor, o questionamento a

se fazer seria como evitar escrever e/ou dizer coisas que os leitores nacionais não sintam

como indiferentes, estrangeiras ou estranhas (Idem, p.82).

Eis um dos trabalhos prementes ao qual se deveria propor o materialismo histórico.

Um esforço concreto de aplicar os pressupostos materialistas a casos específicos, a

sociedades determinadas, como um trabalho de autocrítica em prol de sua expansão.

Labriola conclama assim à aplicação ao estudo dos meios da convivência social que seriam,

por um lado, as condições materiais e os instrumentos e, por outro, os produtos da

colaboração de vários tipos, que constituiriam, além do que nos ofereceria a natureza

propriamente dita, a matéria e os incentivos de nossa formação interior (Idem, p.85). Deles

nasceriam os hábitos culturais, derivados e complexos, através dos quais, além dos limites

de nossa configuração corpórea, perceberíamos nosso próprio eu como parte de um

conjunto, o que concretamente significaria como parte de um modo de vida, de

determinados costumes, instituições, Estado, religião, tradição histórica, pátria, etc. (Idem).

Seria assim, segundo o autor, que nos voltaríamos para a “filosofia da práxis, que é a

medula do materialismo histórico” (Idem, p.86), ou a “filosofia imanente das coisas sobre

as quais filosofa” (Idem). Desta forma, o processo realista do conhecimento iria da vida ao

pensamento e não do pensamento à vida. Do trabalho, que seria um “conhecer fazendo”, ao

conhecer como teoria abstrata, e não desta para aquele (Idem).

232

De acordo com Labriola, todos os escritos de Marx e Engels se desenrolariam diante

de um fundo comum, que seria o materialismo histórico compreendido em seu tríplice

aspecto de tendência filosófica, enquanto visão geral da vida e do mundo, crítica da

economia, que teria modos de procedimento apenas porque representaria uma determinada

fase histórica e, finalmente, interpretação da política, sobretudo daquela necessária e

adequada para dirigir o movimento operário em direção ao socialismo (Idem, p.47). Esses

três aspectos seriam “uma única e mesma coisa na mente dos fundadores” (Idem).

O marxismo, já como um pensamento que se poderia adotar como símbolo e

conjunto de uma orientação múltipla e uma doutrina complexa, não estaria nem

permaneceria contido apenas nos escritos de Marx e Engels (Idem, p.53). Porém, considera

Labriola, faltaria ainda muito tempo e muito esforço para que se pudesse converter em uma

doutrina plena e completa de todas as fases históricas já reduzidas à suas respectivas formas

de produção econômica, bem como, ao mesmo tempo, de política (Idem). Para que tal

empresa pudesse ser possível, faria falta um novo estudo cuidadoso de outras fontes, para

quem quisesse estudar o passado desde essa nova visão histórico-genética, bem como

atitudes especiais de orientação política para quem quisesse atuar praticamente (Idem).

Labriola reforça a tese defendida no ensaio anterior de que o materialismo histórico seria,

em si mesmo, “a crítica”, e como tal não poderia seguir adiante de outra forma que não

criticamente (Idem, p.54).

A seguir, o autor se volta contra as interpretações revisionistas que insistem em

tornar a exploração na sociedade capitalista uma questão moral, enxergando a necessária

luta política como um problema jurídico. Tais leituras seriam consequência de

interpretações simplistas das teorias do valor e da mais-valia. Assim, como sustenta

Labriola, o problema consistiria em que, a partir de ilações fáceis e de ideias simplificadas

sobre as teorias do valor e da mais-valia, chegar-se-ia ao fato de que tais teorias seriam

convertidas apenas em cânones práticos, em força impulsiva e de legitimação moral e

jurídica de todas as reivindicações proletárias (LABRIOLA, 1969, p.62). Além disso,

colocar-se no caminho que reduz toda a profissão de fé socialista à simplicíssima inferência

que iria do reconhecimento da exploração à reivindicação dos explorados, justificada

apenas pelo fato de ser legítima, significaria mover-se a passos largos em direção à estreita

lógica que reduziria toda a história do gênero humano a “um caso de consciência” (Idem,

233

p.63). Somente na experiência do exercício prático da cotidiana luta de classes, e no estudo

científico dessa luta, ou seja, somente no exame e confirmação das forças proletárias já

reunidas e concentradas como num feixe, seria possível verificar as chances do socialismo.

Do contrário, seguir-se-ia na utopia, inclusive numa “utopia em nome de Marx” (Idem).

Pode-se concluir aqui que tal seria a tarefa do comunismo crítico também enquanto

filosofia, ou concepção de mundo. Torna-se assim permanentemente necessário fixar-se no

caráter profundamente material e contraditório das relações sociais para escapar às ilações

metafísicas de justiça e ética colocadas em primeiro plano, que são, de resto, abundantes no

ambiente das lutas sociais contemporâneas. Lembra Labriola que a natureza, a evolução

histórica do homem, se encontraria no processo da práxis, entendendo-se práxis do ponto

de vista da totalidade e eliminando o que seria a oposição vulgar entre prática e teoria

(Idem, p.68). A história seria a história do trabalho, e tal como no trabalho integralmente

entendido estaria implícito o desenvolvimento respectivamente proporcionado e

proporcional das aptidões mentais e operativas, assim também no conceito de história do

trabalho estaria implícita a forma sempre social do próprio trabalho e as variações dessa

forma. O homem histórico teria sido sempre o homem social, e os supostos “homem pré-

social” ou “supra-social” seriam um resultado da fantasia (Idem, p.69).

Enquanto cerne metodológico do materialismo histórico, Labriola se refere de

maneira bastante peculiar à dialética. Classifica-a como um ritmo de pensamento que

reproduziria o movimento mais geral da realidade em transformação (Idem,p.173). Labriola

procura aqui formular a dialética em termos de “concepção”, ação do pensamento de pensar

a realidade a partir dela mesma. Poderíamos considerar, portanto, que em Labriola nos

depararíamos com a seguinte distinção: o método é dialético, e não a realidade em si. O

método dialético se constrói, o ritmo de pensamento se impõe a partir das contradições e

contratempos da realidade.

Para Labriola, não poderíamos nos dar conta do que seja o pensamento, de maneira

adequada, senão pensando “em ato” (Idem). Seria necessário habituar-se, por meio de

sucessivos esforços, aos procedimentos do pensamento (Idem). O autor remete ao capítulo

“Negação da negação” do Antidühring, de Engels, e sugere como Engels não apenas se

preocuparia ali em explicar o que estava expondo, mas também a maneira de uso dos

234

procedimentos mentais na explicação de determinados aspectos da realidade. Em suma,

Labriola pretende advertir como a utilização formal de um método de pensar pode

transformar-se em esquematismos a priori caso não seja aplicado a coisas concretas onde

“o próprio pensamento se manifeste vivo” (Idem). E arremata: “É possível fazer

escolasticismo de qualquer doutrina” (LABRIOLA, 1969, p.174). Labriola faz, a seguir,

uma advertência inusitada sobre as dificuldades de expansão do materialismo histórico.

Afirma que a maior dificuldade que a compreensão e a continuação do materialismo

histórico apresentariam não seria a intelecção dos aspectos formais do marxismo, mas a

apreensão das coisas que seriam imanentes àquelas formas, as coisas que Marx soube e

elaborou por sua conta e as outras muitas que teriam que conceber e elaborar os seus

continuadores (Idem). Em suma, dificuldade de se pensar no ritmo dialético.

Até aqui se estendeu nosso esforço de apresentar uma visão, ao mesmo tempo geral

e sucinta, dos principais traços do pensamento de Antonio Labriola contidos em seus três

principais ensaios. Como sugere Sacristán, Labriola não teria produzido uma obra de

profunda inovação na interpretação da história e da vida social, tampouco em relação à

construção de uma política comunista, tarefas que acabariam ficando a cargo de Gramsci

em sua obra carcerária (SACRISTÁN, 1969, p.26). Porém, suas formulações, que teriam

permanecido como um programa teórico, seriam sensíveis, agudas e suficientemente exatas

a ponto de Gramsci ter podido recolhê-las para desenvolvimento de seu próprio trabalho.

Este fato localizaria Labriola nas origens de uma importante corrente do marxismo (Idem).

Labriola se inscreveria num quadro histórico de reação ao revisionismo, como atesta

Santarelli (1977, p.54). A revisão do marxismo teria fornecido a matéria para um fenômeno

de cristalização do próprio marxismo. Na realidade, uma nova situação se apresentava, que

impunha a procura de uma nova tática, de novas vias e novas justificações teóricas (Idem).

Assim, poder-se-ia reconhecer aos revisionistas o mérito de terem indiretamente e

inconscientemente estimulado, pelo debate por eles levantado, novos estudos,

aprofundamentos e desenvolvimentos da teoria marxista como teoria revolucionária (Idem,

p.55).

Seria provavelmente por conta do estado de confusão e incerteza ideológica em que

se encontraria o socialismo italiano no início da década de 1890 que Labriola teve que

235

começar praticamente “do começo”, pelo esclarecimento dos fundamentos teóricos do

materialismo histórico sobre o qual tanto equívoco já existiria na Itália. Pelo mesmo

motivo, Labriola, embora às vezes admirado, teria sido sobretudo incompreendido, e por

isso ficado largo tempo sem que alguém continuasse seu trabalho na península. De todo

modo, a eficácia de sua obra se encontraria exatamente na batalha sustentada contra as

tentativas de revisão daquele marxismo que na Itália encontrava-se ainda tão mal conhecido

em seus textos fundamentais e tão pobre de experiências práticas e de debate político, dado

o singular atraso, na Itália, no surgimento de um partido que o reivindicasse

(SANTARELLI, 1977, p.56).

O próprio Labriola, na verdade, negaria que houvesse na Itália uma verdadeira e

própria crise do marxismo, pelo simples motivo de que na península os “revisores” de Marx

não teriam chegado sequer a aderir ao marxismo e, portanto, não poderiam tê-lo “superado”

(Idem, p.57). Como lembra Santarelli (1977, p.57), Labriola, em carta a Lagardelle escrita

em abril de 1899, afirma:

O que se tem chamado pomposamente de “crise do marxismo” não tem importância alguma, em minha opinião, senão para a Alemanha, porque apenas na Alemanha houve interação entre o movimento operário socialista e o marxismo, quase uma fusão perfeita. E é por isso que a discussão do livro de Bernstein diz respeito quase exclusivamente aos alemães (LABRIOLA, 1977, p.295).

Labriola, como profundo conhecedor da vida cultural italiana, acertaria ao atribuir à

inexperiência e ignorância com relação ao marxismo as origens culturais de uma revisão

que se apresentaria carente de suficientes elementos de autonomia e originalidade. Em todo

caso, sustenta Santarelli que a Itália possuiria, por sua vez, condições históricas e

circunstâncias econômicas e sociais que determinariam concretamente, na península, o

movimento revisionista. Daí a surpresa de Labriola diante da tomada de posição de Croce

ao alinhar-se com os revisionistas, daí também suas débeis posições com relação à questão

colonial (SANTARELLI, 1977, p.57).

A polêmica antirrevisionista de Labriola seria bastante direta e muito válida na

reivindicação anti-escolástica da obra de Marx e Engels, mas gravitaria precisamente em

torno ao pensamento dos dois fundadores, e poucas seriam as referências ao preciso

significado de classe do movimento revisionista em seu conjunto, o qual se tornaria mais

236

claro tempos depois. Labriola ter-se-ia dedicado então (de resto, de maneira eficaz), ao

combate contra Loria e os lorianistas, os “confusionistas” do partido socialista recém-

fundado e os neorrevisionistas como Croce, Merlino e Sorel. Labriola teria pretendido

assim escrever uma espécie de Anti-Dühring italiano, do qual ele esperaria que

participassem também, tempos antes, Croce e Sorel. Mas tal obra teve que realizá-la por si

mesmo, desde o primeiro dos Saggi até as polêmicas de final de século com Croce, Sorel e

Merlino sobre o revisionismo bernsteiniano (Idem).

Kant na filosofia, parlamentarismo na prática política, tais seriam os cavalos de

batalha revisionistas, claramente divisados por Labriola. Ele tentaria, de maneira a buscar

equilíbrio, distinguir o desenvolvimento crítico do marxismo das posições que sustentariam

uma sua suposta “crise” por parte do revisionismo simplificador do pensamento de Marx

(Idem, p.59). Labriola aperceber-se-ia bem do nexo de reciprocidade entre a teoria

revisionista e a prática reformista a qual, se seria ainda experimentada na Itália, já haveria

tido lugar, em larga escala, na Inglaterra e na própria Alemanha (Idem, p.60). No empenho

de seu trabalho crítico antirrevisionista, ele manteria constantemente a atenção sobre a

questão da luta de classes. Apoiar-se-ia na autonomia científica da concepção marxista

como expressão do movimento operário, daí que não atribuísse à teoria de Bernstein um

sintoma histórico de uma suposta crise do marxismo. Na Itália, combateria praticamente

sozinho, propondo-se a não ceder à onda revisionista e sustentar, a partir de um plano

superior, a autonomia do marxismo na tentativa de fundar uma tradição marxista na

península. Este teria sido, a todo tempo, o principal objetivo do filósofo italiano. Embora

sem condições momentâneas de convencer os “dissidentes”, Labriola teria tentado plantar

alguma semente “num solo onde não haveria escolhas ou qualquer traço de uma posição

socialista suficientemente original” (Idem, p.61). Daí a escolha do método adotado em seus

Saggi, ou seja, a tentativa de explicação detalhada do materialismo histórico.

Assim, sem responder à completa obra erigida pelos revisionistas em seu conjunto,

sem ater-se a polêmicas específicas, Labriola teria procurado fornecer, sobretudo, suas

interpretações da história da Itália, de seu capitalismo e do movimento operário. Justamente

por ter conseguido evitar, como autêntico pensador marxista, o duplo perigo do empirismo

e do dogmatismo, suas posições teriam prevalecido sobre as de tantos outros baseados no

princípio da “evolução” e consequente revisão do marxismo. Labriola teria evitado, assim,

237

a absorção do marxismo nos quadros da democracia burguesa, em tempos de

parlamentarismo e de sufrágio universal (SANTARELLI, 1977, p.61).

3.2 O diálogo entre Sorel e Labriola

Labriola ter-se-ia tornado marxista bem antes que Sorel, teria mantido

correspondência com Engels e criado com o movimento socialista ligações bem mais

estreitas que o francês. Quanto a Croce, que não seria ainda conhecido à época (meados da

década de 1890), seria uma espécie de companheiro dos marxistas italianos. Tal como

Labriola, porém, e ao contrário de Sorel, possuiria uma longa formação filosófica e bom

conhecimento da língua alemã. Segundo Sand, as cartas de Sorel a Croce demonstrariam,

da mesma forma que algumas alusões em seus artigos, que naquele momento Labriola se

constituiria na liderança do “trio latino” (SAND, 1985, p.75)77. Seu maior conhecimento

dos escritos de Marx o faria reconhecido pelos outros dois como o intérprete mais

autorizado do revolucionário alemão.

Como já se viu anteriormente neste trabalho, além da França, a Itália fora o outro

centro importante de desenvolvimento do sindicalismo revolucionário

(WALDENBERG,1982,p.248). Sorel possuía importante penetração naquele país e

acompanhava sua produção intelectual marxista. Era leitor de Labriola e acompanhava as

preocupações deste com o fenômeno do determinismo na esfera do pensamento marxista

(BADALONI, 1975, p. 46). Labriola insistiria em que o “sociologismo” deveria ser

evitado, ou seja, a exposição da história baseada exclusivamente em “formas” (formas

históricas determinadas, as “datas sociológicas”). Defenderia, assim, uma postura que

limitasse o campo do previsível, que interferisse na história com uma “avaliação”, mas não

com uma profecia, com uma mensagem ou anúncio utópico de um novo século. Entre a

previsão morfológica que distinguiria a data sociológica do século XIX e a reconstrução da

história real, encontrar-se-ia um vazio imprevisível, que exigiria a verificação dos fatos e a

intervenção ativa neles (Idem).

77 Entre 1927 e 1930 Croce faria publicar, em La Critica, revista da qual era diretor, todas as cartas a ele enviadas por Sorel, num total de 343 correspondências escritas entre dezembro de 1895 e agosto de 1921.

238

Antonio Labriola fora o único entre os marxistas italianos, até a Guerra Mundial, a

participar do debate marxista internacional, vindo a se tornar, num espaço de poucos anos e

até sua morte, um interlocutor de grande importância entre os dirigentes social-democratas

alemães, inclusive Engels (BRAVO, 2005, p. 38). Após a morte de Engels e da publicação

dos livros de Labriola Discorrendo di socialismo e filosofia e Saggi sul materialismo

storico, o pensador italiano toma parte na discussão sobre a crise do marxismo,

polemizando, como vimos, com seus antigos amigos Croce e Sorel – este, seu editor na

França (Idem, p. 44). Contra a revisão do marxismo empreendida pelos últimos, Labriola

manteria posição como “ortodoxo”, procurando afastar-se das concepções que “reduzem o

materialismo histórico à ilustração econômica da história” (Idem).

Sobre o modo de conceber a filosofia da práxis Labriola apresentaria uma visão da

história que será plenamente assumida e desenvolvida por Gramsci. Segundo Labriola:

A natureza, ou seja, a evolução histórica do homem, se encontra no processo da práxis, e ao dizer “práxis”, do ponto de vista da totalidade, se pretende eliminar a oposição vulgar entre prática e teoria; porque, dito de outro modo, a história é a história do trabalho, e assim como, por uma parte, no trabalho integralmente entendido desse modo vai implícito o desenvolvimento respectivamente proporcionado e proporcional das atitudes mentais e das atitudes operativas, assim também, por outra parte, no conceito de história do trabalho vai implícita a forma sempre social do trabalho mesmo e do variar dessa forma; o homem histórico é sempre o homem social (LABRIOLA, 1969: 68-69).

Nesta concepção de Labriola estaria evidente a noção de filosofia da práxis como

filosofia da história autossuficiente, a qual deveria enxergar-se como um momento

filosófico também sujeito à superação pelo devir histórico. De acordo com Gramsci:

A filosofia da práxis é o historicismo absoluto, a mundanização e terrenalidade absoluta do pensamento, um humanismo absoluto da história. Nesta linha é que deve ser buscado o filão da nova concepção do mundo. [...] Labriola, na realidade, ao afirmar que a filosofia da práxis é independente de qualquer outra corrente filosófica, é autossuficiente, foi o único a procurar construir cientificamente a filosofia da práxis (Q11,§27,p.1437,C; Q4, §14,p.435,A; [...] Q11, §70,p.1507,C; Q3, §31,p.309,A).

Labriola fora um importante colaborador da revista francesa Le Devenir Social.78 O

rompimento entre Labriola e Sorel e a extinção da revista foram a culminação de um

processo empreendido por Sorel de afastamento do marxismo e, inspirado por Croce, seu 78 Além de Labriola, foram publicados na revista francesa textos de Engels, Kautsky e Croce, entre outros (CAVALLARI, 1994, p. 93).

239

amigo por mais de vinte anos, aproximação com as concepções revisionistas (FURIOZZI,

1975, p. 19-21). De acordo com o pensador francês, Le Devenir teria cessado de contribuir

com a renovação do socialismo (JENNINGS, 1985,p. 62). A partir de então, Sorel dedica-

se a desenvolver de forma independente suas concepções que culminariam numa transição

entre o revisionismo e o sindicalismo revolucionário. A conduzir o rompimento entre Sorel

e Labriola impõe-se a refutação, por parte do francês, do historicismo como metodologia.

Ambos concordavam, em oposição ao positivismo, que a atividade de previsão demandaria

uma intervenção ativa do homem nas várias esferas sociais. Mas Sorel considera que

haveria uma separação entre ciência e história, sendo a primeira incapaz de uma abordagem

totalizante da segunda, e desenvolveria posteriormente o conceito de “mito” como ação

política que foge ao escopo das explicações científicas (CAVALLARI, 1994, p. 95).

Ainda de acordo com o pensador francês, seria necessário abandonar as tentativas

de se transformar o socialismo em ciência e assumir uma concepção de socialismo como

uma das possíveis filosofias de elucidação das questões históricas, as quais não

pertenceriam à esfera da ciência, mas serviriam para inspirar a ação incessante e variada

correspondente às necessidades da vida social (SUSCA, 2000,p. 66). Labriola, ao contrário,

veria sentido e significado no decurso dos acontecimentos históricos, e reconduziria as

ciências sociais à historiografia, sob os auspícios do materialismo histórico (CAVALLARI,

1994, p.96-97). Sorel, de resto, assumiria completamente a noção crociana do marxismo

como “cânone de interpretação histórica” (CROCE, 1948, p. 88), o que equivalia a retirar

da filosofia da práxis o sentido de historicismo absoluto que Gramsci lhe atribuirá

posteriormente e que Labriola já sugeria. De todo modo, embora Sorel não considerasse a

história como apreensível por métodos científicos, para ele, num futuro próximo, o

sindicalismo revolucionário não deixaria de ser em si um fenômeno histórico, que teria

como grande contribuição ao socialismo a sua insistência em que deveria ser estudado à luz

da experiência histórica, como um produto de forças sociais antes que como uma teoria

intelectual abstrata (HUMPHREY, 1978, p.165)79.

79Lembremo-nos que Gramsci oferece uma solução interessante a respeito do problema da previsibilidade em história. De acordo com ele, não se poderia prever cientificamente o futuro da sociedade, dada a dependência que tal futuro se encontra das dinâmicas relações de forças sociais, das novas configurações sociais que se formam a cada momento específico daquela relação de forças. Mas seria possível, sim, a previsão da própria luta, dado que ela dependeria da intervenção consciente dos homens e, nesse sentido, seria uma ação que

240

Labriola jamais deixaria de adotar método dialético-materialista em suas análises,

ou seja, entre outras considerações, para ele a intervenção na história deveria vir

acompanhada de uma avaliação precisa das condições objetivas em que se daria a ação.

Embora negasse o nexo dialético entre necessidade e liberdade, Sorel apreciaria a filosofia

da ação em Labriola, entendendo por tais termos o esforço de iluminar teoricamente o

proletariado sobre qual via seguir. Era sobre a dialética dos processos objetivos que Sorel

discordaria, afinal, de Labriola (BADALONI, 1975, p.52). De que maneira o pensador

francês questionaria o método dialético? Segundo Badaloni, para Sorel “a lógica da

história, antes que no devir dialético, se concretiza na coexistência de formas superiores e

inferiores de produção, ou seja, em uma combinação na qual o princípio da simultaneidade

substitui aquele da sucessão e do salto de qualidade” (Idem). Na medida em que negava o

caráter absoluto da filosofia da práxis (embora, de acordo com Gramsci, “historicamente”

absoluto) e o método dialético materialista de investigação histórica, Sorel se fixava em não

muito mais que na crença no voluntarismo proletário como a grande força propulsora da

revolução, o que terminava por aproximá-lo, depois de uma volta em sentido oposto, às

concepções econômico-mecanicistas da social-democracia alemã.

3.3 Um Gramsci soreliano?

Antes de nos referirmos mais detidamente às análises e referências a Sorel nos

Cadernos, recordemos que o jovem Gramsci fora bastante influenciado pelo pensador

francês, assim como outros importantes intelectuais marxistas europeus na década de vinte,

como Lukács, Benjamin, Korsch e também na América Latina, como José Carlos

Mariátegui (LÖWY, 1997, p.113). Gramsci, no caso, teria sido seduzido, sobretudo, pelo

espontaneísmo das teorias de Sorel (PORTELLI, 1974, p. 32). La rivoluzione contro il

prevê a si mesma. Nas palavras de Gramsci: “Já que ‘parece’, por uma estranha inversão de perspectivas, que as ciências naturais fornecem a capacidade de prever a evolução dos processos naturais, a metodologia histórica foi concebida como sendo ‘científica’ apenas se, e na medida em que, habilita abstratamente a ‘prever’ o futuro da sociedade [...]. Na realidade, é possível prever ‘cientificamente’ apenas a luta, mas não os momentos concretos dela, que não podem deixar de ser resultados de forças contrastantes em contínuo movimento, sempre irredutíveis a quantidades fixas, já que nelas a quantidade transforma-se continuamente em qualidade. Na realidade pode-se ‘prever’ na medida em que se atua, em que se aplica um esforço voluntário e, desta forma, contribui-se concretamente para criar o resultado ‘previsto’. A previsão revela-se, portanto, não como um ato científico de conhecimento, mas como a expressão abstrata do esforço que se faz, o modo prático de criar uma vontade coletiva” (Q11, §15, p.1403, C; Q8, §197, p.1059, A).

241

Capitale, por exemplo, é um escrito político pré-carcerário cujas asserções voluntaristas

guardam uma orientação muito próxima àquelas do pensador francês. Nota-se nele também

a aura croceana ao correr da pena de Gramsci. A linguagem utilizada para se referir ao

marxismo – “canones do materialismo histórico” (GRAMSCI, 1982, p. 513) – não esconde

a influência direta da interpretação croceana dessa teoria como um “cânone de interpretação

histórica” (CROCE, 1948, p.88), embora os sentidos das duas expressões não possam ser

tomados imediatamente como idênticos.

Escrito em dezembro 1917 como editorial do número 356 do Avanti! - publicação

dos socialistas italianos - e no calor da hora da Revolução Russa, neste artigo Gramsci é

incisivo ao considerar a revolução bolchevique como “a revolução contra O Capital de Karl

Marx” (GRAMSCI, 1982, p.513). Segundo ele, na Rússia O Capital seria, sobretudo, o

livro da burguesia, e não do proletariado, já que estaria estipulada naquela obra a

necessidade de que houvesse, no país, a formação de uma classe burguesa e que se iniciasse

uma era capitalista, uma civilização de tipo ocidental, antes que o proletariado pudesse ao

menos pensar em sua vitória, em suas reivindicações de classe ou em sua própria revolução.

(Idem). Com o advento da revolução, os fatos teriam “superado as ideologias”. “A

ideologia” é como Gramsci se refere aos “cânones” presentes n' O Capital.

Numa afirmação que seria chocante para quem conhecesse apenas o Gramsci dos

Cadernos, ele afirma neste texto: “Os bolcheviques renegam Karl Marx, afirmam, com o

testemunho da ação explícita, das conquistas realizadas, que os cânones do materialismo

histórico não são tão férreos como se poderia pensar e se pensou” (Idem). A seguir,

Gramsci observa que se os bolcheviques renegam algumas das afirmações do Capital, não o

renegariam por completo, mas viveriam seu “pensamento imanente” (Idem). Sugere que os

bolcheviques não teriam edificado sobre a obra de Marx uma doutrina exterior, de

“afirmações dogmáticas e indiscutíveis”. Os bolcheviques, para Gramsci, “viveriam” o

pensamento marxista, “aquele que não morre nunca, que é a continuação do pensamento

idealista italiano e alemão, e que em Marx se havia contaminado de incrustações

positivistas e naturalistas” (Idem, p.514).

Percebe-se assim que Gramsci, ao menos em linhas gerais, concordava com as

críticas que apontavam na época elementos deterministas n' O Capital, exatamente como

242

afirmavam Croce e Sorel, e sugere a “separação” dos elementos válidos da obra, nas

palavras de Gramsci aqueles que “não morrem nunca”, das “incrustações” positivistas que

teriam “contaminado” O Capital. É interessante aqui observar o paralelo possível com as

críticas sorelianas que indicavam a necessidade de uma decomposição do marxismo em

função de depurá-lo de seus elementos deterministas e manter o que seriam suas

características válidas, suas "teses fundamentais" (SOREL, 1982, p.79).

Em Socialismo e cooperazione (GRAMSCI, 1980, p.600), artigo de 1916, Gramsci

já mencionava Sorel ao refletir sobre as virtudes potencialmente revolucionárias das

cooperativas de trabalhadores (Idem, p.601), observando a organização bem sucedida de

cooperativas operárias de consumo em Turim, reunidas sob a denominação de L'Alleanza

Torinese. Embora essas não fossem “socialistas em sua essência”, demonstrariam um

caráter potencialmente subversivo contra a ordem burguesa se multiplicadas pela iniciativa

dos trabalhadores e sob seu comando (Idem). Ao discorrer sobre o tema naquele momento,

Gramsci demonstrava conhecimento e proximidade com as teses sorelianas sobre a

organização espontânea dos trabalhadores em associações produtivas, que de resto é a

significação que Sorel confere ao termo “sindicato”. São ideias, então, presentes de maneira

sistematizada em pelo menos duas obras de Sorel já publicadas em francês à época,

Reflexões sobre a violência (1907) e Materiais de uma teoria do proletariado (1914).

Em outubro de 1919, quando Gramsci publica no L'Ordine Nuovo , na forma do

curto artigo de praxe, um conjunto de suas impressões sobre Georges Sorel e o sindicalismo

revolucionário (GRAMSCI, 1967, p.244-254), a Itália estava sacudida por ocupações de

terra ao sul e agitação operária no norte industrializado. É um momento de aguda crise

econômica desencadeada pelo imediato pós-guerra, com grande endividamento do Estado e

elevação abrupta das taxas de desemprego e da carestia. Camponeses e operários

ameaçavam o status quo burguês e o poder estatal. Inspirados na então recente experiência

bolchevique, os trabalhadores industriais criavam os conselhos de fábrica, órgãos de

representação eleitos pelos trabalhadores, que almejavam não apenas melhorias salariais e

nas condições de trabalho, mas partilhar o direito de tomada de decisões e mesmo a

propriedade das indústrias. As organizações patronais recusavam-se a reconhecer os

conselhos de fábrica como organismos legítimos de representação operária para

243

interlocução, limitando-se a negociar com as federações sindicais tradicionais, que

mantinham as reivindicações no plano das melhorias econômicas. A experiência dos

conselhos desaguaria, um ano depois, num abrangente movimento de ocupações de fábricas

que viria a coroar os momentos finais daquele que ficou conhecido na literatura da história

italiana como o Biennio Rosso (COLARIZI, 2007, p. 107-116).

Gramsci começa o artigo referindo-se ao tom elogioso com que Sorel havia escrito

sobre os conselhos de fábrica instituídos na Rússia bolchevique, concluindo pela simpatia

do pensador francês aos eventos que então agitavam o operariado italiano. Embora Gramsci

vá modificando sua opinião sobre Sorel no decorrer dos anos, conforme discutiremos mais

adiante quando tratarmos da questão do jacobinismo, ele já demonstrava no escrito em

questão os cuidados e a mesma consideração respeitosa que demonstrará mais tarde nos

Cadernos, respeito relativo a uma intuição permanente de que haveria, em Sorel,

elaborações muito importantes a serem levadas em conta pela prática e teoria marxistas.

Reconhece em Sorel, de fato, um “servidor desinteressado do proletariado” - como o

próprio se havia reivindicado na página de dedicatória de Materiais de uma teoria do

proletariado - que haveria condensado em si “um pouco da virtude de seus dois mestres: a

áspera lógica de Marx e a comovente e plebeia eloquência de Proudhon” (GRAMSCI,

1967, p. 245). E, após haver advertido estar bem distante de concordar na integralidade com

as ideias de Sorel, afirma Gramsci que

Ele não se fechou em nenhuma fórmula e, hoje, conservando o quanto havia de vital e novo na sua doutrina, ou seja, a afirmada exigência de que o movimento proletário se exprima em formas próprias, dê vida a instituições próprias, hoje ele pode seguir não apenas com os olhos plenos de inteligência, mas com o ânimo pleno de compreensão, o movimento realizador iniciado pelos operários e camponeses russos, e pode chamar ainda de "companheiros" os socialistas da Itália que querem seguir aquele exemplo (Idem).

Afirmações semelhantes sobre Sorel se repetirão nos Cadernos, como a que segue

abaixo, embora num tom menos cuidadoso:

O ensaio publicado pela Nuova Antologia resume todos os méritos e todas as fraquezas de Sorel: é tortuoso, convulsivo, incoerente, superficial, sibilino, etc; mas fornece ou sugere pontos de vista originais, descobre nexos impensados mas verdadeiros, obriga a pensar e aprofundar (Q11, §66, p.1494, C; Q4, §31, p.447, A. Grifo nosso).

244

Toda a interlocução de Gramsci, seja em seus escritos políticos pré-carcerários, seja

nos Cadernos, guarda sempre nexos com a análise da realidade concreta, com a observação

atenta da conjuntura em que ele se localiza e os potenciais desenvolvimentos teóricos

advindos daquela análise. Desse modo, as referências a Sorel estão intimamente motivadas

pela influência desse pensador francês nos meios sindicais italianos, influência que se fazia

mais evidente num momento de forte agitação operária na Itália. Em um artigo preparatório

para o XVII congresso do PSI80, escrito no auge do movimento de ocupações de fábricas

em setembro-outubro de 1920, Gramsci alude de passagem ao que aparentemente

considerava serem algumas distorções das ideias sorelianas, que estariam sendo assimiladas

de modo enviesado por parte dos sindicalistas italianos. “É preciso dizer desde já que Sorel

não é de modo algum responsável pela pobreza e rudeza espiritual dos seus admiradores

italianos, como Karl Marx não é responsável pelas absurdas reivindicações ideológicas dos

'marxistas'” escreveria Gramsci (1967, p.361). Para Gramsci, Sorel seria um “inventor” no

campo da pesquisa histórica, que não colocaria à disposição de seus discípulos métodos

automáticos que pudessem ser aplicados sempre e por qualquer pessoa (Idem). Para

demonstrar a afinidade do pensamento de Sorel com o marxismo, Gramsci, neste mesmo

artigo, utiliza como exemplo a ascensão histórica do cristianismo. Segundo argumenta

Gramsci, para Sorel, tanto quanto para o marxismo, o cristianismo representaria uma

revolução na plenitude de seu desenvolvimento, uma revolução que teria atingido suas

consequências mais extremas, até a criação de um novo e original sistema de relações

morais, jurídicas, filosóficas, artísticas (Idem). No entanto, assevera Gramsci, considerar

estes resultados como o esquema ideológico de toda revolução seria trair de maneira

grosseira e pouco inteligente a intuição histórica soreliana, que somente poderia originar

pesquisas históricas sobre “germes” de uma civilização proletária que deverá existir, na

condição (que seria assumida tanto pelo marxismo quanto por Sorel) que a revolução

proletária seja imanente à sociedade industrial moderna e que dela surjam novas regras de

vida originais e um sistema de relações absolutamente novas, características da classe

revolucionária (Idem).

80 Congresso ocorrido em Livorno que culminará na formação do Partido Comunista Italiano em janeiro de 1921.

245

3.4 Sorel nos Quaderni

Gramsci refere-se diretamente a Sorel em 19 dos 29 cadernos que compõem a

edição crítica de Valentino Gerratana, em dezenas de parágrafos (ou notas carcerárias).

Seguindo a ordem de edição de Gerratana, a primeira referência aparece já na página 25,

Caderno 1. Gramsci faz alusão aí a uma carta de Sorel a Croce, na qual o pensador francês

critica a tese de doutorado de Arturo Labriola em que este, segundo Sorel, transportaria

automaticamente para a França as análises feitas por Marx, n'O Capital, para o caso inglês

(Q1, §31, p.25, A; Q28, §5, p.2327, C).81 É a primeira de algumas vezes nos Cadernos em

que Gramsci se reportará à correspondência entre Georges Sorel e Benedetto Croce.

Remissões posteriores serão encontradas em outras passagens, como Q1,§93,p.92,A;

Q23,§19,p.2208,C / Q2,§74,p.229,B / Q4,§1,p.419,A; Q16,§2,p.1840,C / Q4,§63,p.508,A;

Q11,§66,p.1499,C. Trata-se na verdade de cartas enviadas por Sorel a Croce na década

anterior, cujo conjunto este último publicaria no final dos anos 1920, após a morte de Sorel

(1922), na revista La Critica, por cuja edição era responsável. As cartas são publicadas

entre 1927 e 1930 na revista italiana. Formam uma indispensável fonte de

acompanhamento da evolução do pensamento de Sorel, que tinha no diálogo com seu

amigo importante elemento de inspiração intelectual.

Gramsci discorre brevemente também sobre a correspondência de Sorel com o

pensador alemão então radicado na Itália Robert Michels (1876-1936). Esta

correspondência aparece citada por Gramsci em três notas de redação única (Q2,§45,p.199 /

Q2,§75,p.230 / Q3,§59,p.338). A segunda dessas notas é a mais importante sobre Michels

nos Cadernos. Nela, Gramsci desenvolve longa critica a concepção de partido desse autor.

Quanto à correspondência deste com Sorel, a parte tornada pública da qual trata Gramsci

seria formada por cinco cartas enviadas por Sorel a Michels (as duas primeiras em 1905 e

1912, e as restantes em 1917) e publicadas por Michels no número de setembro-outubro de

1929 da revista Nuovi studi di Diritto, Economia e Politica (Q2,§75,p.237-239, B).

Gramsci reprova em Michels o que considera ser o oportunismo da publicação tardia

(também anos após a morte do francês), na qual, em uma nota, Michels deixaria clara sua

antipatia pessoal por Sorel (Idem).

81 Arturo Labriola (1873-1959), militante do sindicalismo revolucionário italiano entre 1900 e 1913.

246

Referências de Gramsci a Sorel a partir de sua correspondência servem como

indicador e amostra do grau de inserção do pensador francês no debate intelectual de sua

época. Sorel possui ainda, por exemplo, importante diálogo epistolar com Antonio

Labriola82, diálogo ao qual, todavia, não se refere Gramsci, além de algum contato por

cartas também com a socialdemocracia alemã, sobretudo Bernstein83, para ficarmos nos

personagens mais importantes. Contudo, além das referências à correspondência de Sorel

com os autores acima, tem-se nos Cadernos importantes momentos de “debate” teórico

direto com o pensador francês, em que são discutidos, criticados, assimilados ou refutados

elementos basilares do pensamento soreliano.

3.4.1 O Mito

Com a ajuda da elaboração soreliana do “bloco de imagens históricas” e do mito,

passando pela problematização do antijacobinismo militante do pensador francês, Gramsci

lograria traduzir a obra deste “revisionista sui generis” 84 nos termos críticos da filosofia da

práxis, como parte de seu imenso trabalho de “recomposição do marxismo” num momento

histórico de pujante revisionismo teórico, como já aludido anteriormente. Primeiro,

vejamos como Gramsci empreende a crítica do mito soreliano e como essa critica se

articula com a elaboracão de seu próprio conceito de bloco histórico.

Gramsci considera O Príncipe de Maquiavel como “uma exemplificação histórica

do ‘mito’ soreliano”, no sentido de um objetivo motivador e mobilizador da ação histórica

dos homens (Q13,§1,p.1555,C; Q8,§21,p.951,A). Ou seja, o projeto da construção do

“moderno príncipe”, na forma do partido político, assumiria conteúdo mítico para Gramsci,

82 Cf., p. ex., Socialismo y filosofia, conjunto de textos de Labriola que corresponderiam à "sua parte" na correspondência com Sorel (LABRIOLA, 1969). Michael Prat, arquivista do Instituto de Estudos Sorelianos de Paris e pesquisador da obra de Sorel, disse-me, em conversa no próprio instituto em abril de 2009, que a parte da correspondência de autoria de Sorel se perdeu. 83 Como registra Gramsci na seguinte passagem: "Na carta de Georges Sorel a Croce de 9 de setembro de 1899 está escrito: 'Bernstein acaba de me escrever que ele indicou na Neue Zeit n.46 haver se inspirado, em certa medida, pelos seus trabalhos. Isso é interessante, porque os alemães não costumam indicar fontes estrangeiras de suas idéias" (Q10, §2, p.1213, C; Q8, §225, p.1082, A). Cf. nota 2. 84 Assim considera Filippini, e completa sua caracterização sobre o pensador francês como "essa estranha figura de sociólogo marxista-revisionista que é Sorel antes da virada do século: atento ao desenvolvimento do marxismo europeu, antidogmático, estudioso e admirador da sociologia, com predileção pelo estudo do social mais que do político" (2008, p. 82).

247

“não como fria utopia nem raciocínio doutrinário, mas como uma criação da fantasia

concreta que opera sobre um povo disperso e pulverizado para lhe suscitar e organizar a

vontade coletiva”. Mas até certo limite. Sua própria condição de partido político já indicaria

a superação do horizonte sindical corporativo no qual o situaria Sorel (Idem). Além disso, o

caráter necessariamente passional do mito em Sorel o predisporia à fragilidade, uma vez

que a eficácia da ação revolucionária residiria em impulsos irracionais mais ou menos

voláteis. Assim que resultasse vitorioso, o movimento proletário poderia se encontrar sem

alternativas programáticas, ou planos previamente esboçados para a consolidação de seu

próprio poder.

Na opinião de Gramsci, a ação espontânea defendida pelo sindicato revolucionário,

baseada no mito da greve geral, não seria capaz de sustentar a vontade coletiva necessária à

mudança estrutural. Não seria capaz disso “um instrumento que deixa a vontade coletiva na

fase primitiva e elementar de sua mera formação” (Q13,§1,p.1557,C; Q8,§21,p.951,A). Ou

seja, sem uma ação planificada e uma direção definida, o espontaneísmo das massas

extinguir-se-ia no momento seguinte ao de seu auge. Para que isso fosse evitado haveria a

necessidade de incutir naquelas massas o desenvolvimento consistente de uma vontade

coletiva, o que não estaria à altura do sindicato. Sorel, neste caso, dá por encerrada a teoria

no ponto que para Gramsci seria apenas o começo de um processo revolucionário que

exigiria disciplina e combatividade permanentes. Apenas a ação espontânea (que, em

última análise, é uma não-ação, a greve) movida pela crença no mito da greve geral, não

resultaria na formação de uma vontade coletiva permanente, e sobre isso Gramsci conclui

com as palavras seguintes:

Mas pode um mito ser ‘não construtivo’, pode-se imaginar [...] que seja produtor de realidades um instrumento que deixa a vontade coletiva na fase primitiva e elementar de sua mera formação, por distinção (por ‘cisão’), ainda que com violência [...]? Mas esta vontade coletiva, assim formada de modo elementar, não deixará imediatamente de existir, pulverizando-se numa infinidade de vontades singulares, que na fase positiva seguem direções diversas e contrastantes? E isso para não falar que não pode existir destruição, negação, sem uma implícita construção, afirmação, e não em sentido ‘metafísico’, mas praticamente, isto é, politicamente, como programa de partido. Neste caso, pode-se ver que se supõe por trás da espontaneidade um puro mecanicismo, por trás da liberdade (arbítrio-impulso vital) um máximo de determinismo, por trás do idealismo um materialismo absoluto (Idem).

248

Gramsci apontaria a necessidade de traduzir o mito soreliano em termos político-

partidários, para além do âmbito do sindicalismo revolucionário em que Sorel o

desenvolve. Este, limitado pela recusa antijacobina de centralizar as ações de luta numa

organização partidária que represente de maneira abrangente os novos interesses do

proletariado e das classes aliadas e pelo curto alcance das táticas espontaneístas, não

lograria uma organização permanente de classe, a agregação das classes subalternas

necessária para o desenvolvimento de um projeto político revolucionário e preparado para

lutas de longa duração. Segundo Badaloni,

A diferença entre Sorel e Gramsci está então essencialmente no fato de que este observou corretamente os riscos ligados ao caráter espontâneo do mito, contrapondo-lhe a construção de uma vontade coletiva em condições de responder, em todo o arco da frente de luta, ao perigo da desagregação. À pergunta já apresentada por nós se "seja efetivamente produtivo um instrumento que deixa a vontade coletiva na sua fase primitiva e elementar de seu mero formar-se por distinção (por "cisão")", Gramsci responde que para vencer a batalha não basta o momento da destruição e da cisão mas, a partir da separação, deve-se criar a nova força unificadora (BADALONI, 1975, p. 169).

O mito, no sentido de bloco de imagens históricas a serem buscadas pela revolução

proletária difere-se, no autor francês, dos fatos realmente consumados pelas massas,

embora essas devam agir impulsionadas por esse bloco de imagens. Para Sorel, como

vimos,

Os homens que participam dos grandes movimentos sociais representam sua ação imediata sob a forma de imagens de batalhas que asseguram o triunfo de sua causa. Propus chamar de mitos essas construções (...): a greve geral dos sindicalistas e a revolução catastrófica de Marx são mitos. (...) É preciso tomá-los em bloco como forças históricas e, sobretudo, não comparar os fatos consumados com as representações aceitas antes da ação (SOREL, 1992, p. 41).

Os mitos não seriam, assim, descrições de coisas, mas expressões de vontade. Em

Gramsci, porém, não se verificaria tal separação. O bloco histórico, como expressão da

vontade coletiva por meio do partido jacobino, é também "descrição" das ações de tradução

daquela vontade em política por esse partido, ou é o conjunto das próprias ações dessa

tradução. O mito se torna, assim, expressão de um bloco ideológico composto pelas

vontades políticas das massas, a tradução política da vontade coletiva na forma do partido.

Gramsci, apontando tal limitação na concepção soreliana, afirma:

249

Pode-se estudar como Sorel, a partir da concepção de ideologia-mito, não tenha alcançado a compreensão do partido político, e se tenha detido na concepção do sindicato profissional. É verdade que para Sorel o mito não encontrava sua expressão maior no sindicato, como organização de uma vontade coletiva, mas na ação prática do sindicato e de uma vontade coletiva já operante, cuja realização máxima deveria ser a greve geral (...). Em Sorel, então, chocam-se duas necessidades: a do mito e a da crítica do mito, já que 'cada plano preestabelecido é utópico e reacionário'. A solução era abandonada ao impulso do irracional, do arbitrário (Q13, §1, p.1556-7, C; Q8, §21, p.951, A).

Uma das novidades políticas de Sorel estaria em propor, mesmo que de forma

incipiente, a abordagem das motivações não racionais da ação revolucionária. Ele

considera, explicitamente, a existência de elementos inconscientes a sustentar imagens

míticas. As ações “espontâneas” ou “intuitivas” seriam noções que caracterizariam, na obra

soreliana, a importância conferida a elementos não conscientes presentes na combatividade

do proletariado. Gramsci, segundo Bodei, parece ter percebido as consequências políticas

do elemento psíquico das massas, consequências em parte potencializadas pelo advento do

taylorismo:

A compressão mecânica dos instintos e a racionalização crescente provocam desequilíbrio, inquietação, desejos de fuga num mítico passado idílico. A psicanálise é, para Gramsci, o sinal de alarme desta situação. [...] A psicanálise percebe os conflitos históricos, a disjunção existente entre vontade e instintos, e sente a necessidade de achar um novo “equilíbrio entre os impulsos de vontade e as metas a serem alcançadas” (BODEI, 1978, p. 112).

Embora introduzindo o tema das motivações não racionais da violência

revolucionária, Sorel não foi além de sua crença no mito como construção final daquelas

motivações e força condutora da história, inclusive da transição socialista, o que, de acordo

com Bodei, acabou por não distanciá-lo das concepções deterministas que tanto criticava.

Discorrendo sobre o tema da “vontade” em Gramsci, Bodei dialoga com e critica as

concepções fatalista e soreliana do processo revolucionário, ou processo de transição ao

socialismo. O autor italiano considera ambas as correntes ligadas pelo elemento

determinista, a despeito das intenções de Sorel de se colocar no campo oposto ao fatalismo.

Bodei adota os pressupostos gramscianos para a crítica das duas correntes assinaladas. O

ponto de vista fatalista (alusão principalmente à socialdemocracia alemã, Kautsky em

particular) seria mecanicista por aguardar a revolução como um resultado inexorável do

devir histórico. Porém, o autor aponta na espontaneidade teorizada por Sorel as mesmas

características de um raciocínio determinista:

250

No fatalismo, é obviamente a necessidade mecânica que preside o processo de transição ao socialismo; em Sorel é a liberdade enquanto impulso vital, evolução criadora, violência emancipadora. Mas cada uma delas tem necessidade, por trás do pano, da colaboração da outra ou pelo menos tolera sua presença a seu lado. Assim, em Sorel a garantia de que a vontade coletiva evocada pela ‘máquina’ do mito não se apague logo como um fogo de palha é dada unicamente pelo imaginar a necessidade como vis a tergo da espontaneidade [...]” (BODEI, 1978, p. 74).

Ao não se colocarem o problema do poder, ou seja, não se interessarem pela luta

política direta, ambas as concepções teriam, por exemplo, facilitado o surgimento do

fascismo, segundo Bodei. O fatalismo, ao aguardar que o poder “caísse do céu”, deslocaria

a atenção das massas para exigências mínimas; já o espontaneísmo assustaria as camadas

médias ao incitar uma violência que não poderia (nem quereria) controlar. Considera Bodei

(1978, p. 75) que tanto o fatalismo quanto o sorelianismo teriam agido negativamente sobre

a formação de uma “vontade” coletiva.

Em ambas as concepções apenas o “movimento” possuiria sentido, e o fim perderia

seu valor. No determinismo fatalista o objetivo final a ser alcançado se afastava num

distante, mas certo, porvir mecânico; no sorelianismo, o concreto divisar do objetivo final

sequer ocorria, dando-se por suficiente o atuar das massas impulsionadas pelo mito comum

à consciência coletiva. Considera ainda Bodei que, em ambos os casos, diferentes formas

de passividade, disfarçadas de ativismo, operariam na substituição da previsão marxista.

Em Sorel especificamente a ação se degradaria numa espécie de “impulso do irracional”, no

uso de um instrumento que seria por excelência uma “atividade passiva”, ou seja, a greve

geral (Idem, p. 77).

Assim, o despertar da vontade do proletariado não ocorreria conforme os

pressupostos reformistas, nem de acordo com os de Sorel. Tal despertar seria fruto de uma

“mudança de papel” do proletariado, seu “assumir de uma hegemonia” (Idem, p. 78). Tal

mudança de papel dever-se-ia a circunstâncias materiais de modificação de qualidade nas

relações de força que tomariam curso em meio à complexificação da sociedade civil nas

sociedades capitalistas ocidentais, em alusão à notória passagem de Gramsci em que este

analisa o fato como a constituição de “trincheiras” políticas da hegemonia burguesa e a

imposição, por parte desta, de uma “guerra de posição” entre as classes antagônicas. A

concentração da vontade coletiva, porém, também seria uma consequência daquela

imposição advinda da reorganização do Estado burguês. De qualquer forma, a guerra de

251

movimento não seria mais adequada, nem a luta no terreno exclusivo da economia (Idem, p.

89).

Sem compreender a complexidade do “espaço histórico” trazida por essas

transformações, tanto o fatalismo reformista quanto o sorelianismo seriam respostas

inadequadas a essa nova iniciativa da burguesia. O primeiro, como já se disse, por aguardar

o advento do socialismo por meio do progresso mecânico da história, sem se dar conta das

enormes contratendências que se produziam; o segundo, por subestimar tais dificuldades e

procurar enfrentá-las tendo a crença mítica na greve geral como estratégia de luta, ou o

“impulso vital da imaginação política” (Idem, p.91).

Mas a noção soreliana do mito nos impele ainda a mais uma consideração relativa à

transição socialista. A ausência de um plano de ação mínimo para o período posterior à

conquista do poder faz crer que, em Sorel, a alimentação das esperanças míticas não se

esgotaria com a revolução socialista. Estendendo a análise do mito a suas últimas

consequências, ele acaba não por atender a condições historicamente dadas, mas seria

mesmo um elemento imanente ao devir da história. Na mesma matriz analítica de Sorel,

poder-se-iam considerar como “mito” os valores burgueses de “liberdade, igualdade e

fraternidade” veiculados a partir da Revolução Francesa, tanto quanto a noção de

“democracia política”, considerada como a quintessência da legitimidade das sociedades

capitalistas ocidentais contemporâneas. As supostas igualdade jurídica e liberdade

individual bem como a realização de sufrágios periódicos tidos como a prática da

democracia em sua plenitude são mitos burgueses que representam importante papel na

defesa da barbárie capitalista. Sorel não reflete sobre a necessidade de roçar esse “ervaçal

ideológico”, mas responde com o mito inverso: a greve geral como instrumento de

revolução e elevação moral do proletariado, rumo a uma sociedade de produtores. Se na

sociedade burguesa a base do consenso é, em parte, mítica, tal o será, para Sorel, no modo

de produção “superior”.

3.4.2 O bloco histórico

A construção de um novo bloco histórico, como visto há pouco, é o projeto que

deve resistir no horizonte político das classes subalternas como um "mito-perspectiva"

252

(BADALONI, 1975, p. 58), ou seja, o mito soreliano com as mesmas funções de criar a

imagem do possível para as classes trabalhadoras, mas ao mesmo tempo retraduzido nos

termos gramscianos da direção política das forças produtivas, da união consciente,

executada pelo partido como concretização da vontade coletiva, entre estrutura e

superestrutura, economia e política, história e filosofia.

Por horizonte mítico ou "perspectiva-histórica" podemos entender a direção

histórico-política conferida pelas novas classes fundamentais ao esforço de construção de

um novo bloco histórico. Instrumento importante desse esforço por parte das classes

produtoras seria o que Sorel classifica como "espírito de cisão". No sentido de cultivá-lo, o

pensador francês concebia a violência, assumida como pré-disposição constante à greve

geral, como maneira de manter viva a separação ideológica entre as classes, bem como

meio de empreender constantemente a reforma moral do proletariado. Nesse sentido é que

aparece em Sorel a ideia de um estado permanente de guerra contra as classes burguesas

(SOREL, 1972, p.232). Já para Gramsci, o “espírito de cisão” cumpriria o papel de

elemento que se poderia contrapor, a partir do proletariado, “a este complexo formidável de

trincheiras e fortificações da classe dominante” (Q3, §49, p.333, B). Através dele, as novas

classes fundamentais construiriam a consciência de sua condição material de classe

revolucionária cuja tarefa histórica seria a disputa pela hegemonia contra as antigas classes

dominantes. Gramsci reconheceria, desse modo, a viabilidade de uma situação de “cisão”,

mas não acredita, em todo caso, que ela se sustente por meio do “espontaneísmo” soreliano.

A cisão, ou espírito de cisão, seria designada como o reconhecimento, por parte da nova

classe fundamental, de sua separação e se configuraria, por exemplo, como o oposto do

recurso da revolução passiva caracterizado como transformismo, ou assimilação dos

elementos daquela mesma classe.

Gramsci se serviria, portanto, das formulações originais de mito e bloco de imagens

históricas de Sorel para enfatizar a organicidade interdependente entre estrutura e

superestrutura. Seria a própria filosofia da práxis que teria seu valor concreto aprofundado a

partir do desenvolvimento, por Gramsci, da formulação soreliana de bloco de imagens

históricas (KANOUSSI, 2000, p. 66). Uma importante observação de Gramsci a respeito da

253

inspiração que Sorel lhe conferiria para a construção do conceito de bloco histórico se

encontra na passagem seguinte:

A afirmação das Teses sobre Feuerbach, de que o ‘educador deve ser educado’, não coloca uma relação necessária de reação ativa do homem sobre a estrutura, afirmando a unidade do processo do real? O conceito de ‘bloco histórico’, construído por Sorel, apreende plenamente esta unidade defendida pela filosofia da práxis (Q10, §41/I, p.1300, C; Q7, §1, p.854, A).

É importante lembrar que a expressão “bloco histórico” não aparece nos escritos de

Sorel como tal, mas é de fato a formulação final gramsciana. Em Sorel, a construção mais

próxima a isso seria mesmo a expressão “bloco de imagens históricas”, como já

mencionado anteriormente. E o mito, ou mais exatamente o objeto do mito, seria

equivalente àquele conjunto de imagens históricas. Seria a ação revolucionária movida na

fé entusiasmada em torno da ordem vindoura, sempre disposta teleologicamente no

horizonte. Em Gramsci, o “bloco histórico”, ou mais exatamente, a possibilidade de sua

construção, adquire imediata relação dialético-material com a realidade que se analisa no

presente. Seria a unidade dialética entre forças produtivas, relações sociais de produção e a

superestrutura jurídico-política num dado momento histórico: “Conceito de 'bloco

histórico', isto é, unidade entre a natureza e o espírito (estrutura e superestrutura), unidade

dos contrários e dos distintos” (Q13,§10, p.1569, C; Q8, §61, p.977, A). A força do

conceito de “mito”, para Sorel, encontra-se em sua integridade imagética enquanto projeção

da sublevação vindoura. Em Gramsci, está na unidade material contraditória de um período

histórico específico, traduzido enquanto bloco histórico possível.

O nexo real, indissolúvel, entre estrutura e superestrutura é o bloco histórico

entendido por Gramsci no sentido soreliano.85 Seria a interpretação feita por Gramsci da

afirmação de Marx no “Prefácio de 1859”, segundo a qual os homens tomariam consciência

de suas tarefas ou conflitos das estruturas no terreno das ideologias (KANOUSSI, 2000, p.

47). Para Gramsci,

O conceito do valor concreto (histórico) das superestruturas na filosofia da práxis deve ser aprofundado aproximando-o do soreliano conceito de 'bloco histórico'. Se os homens tomam consciência de sua posição social e de suas tarefas no terreno das superestruturas, isso significa que

85 Um dos escritos pioneiros sobre a questão específica do bloco histórico é o livro de Portelli (1972). Nele, porém, Sorel é citado apenas numa rápida passagem que alude ao fato de Gramsci ter-lhe "tomado emprestado" o conceito de cisão (PORTELLI, 1972, p.142).

254

entre estrutura e superestrutura existe um nexo necessário e vital (Q10/II, §41/XII, p. 1321, C; Q4, §15, p.437, A).

Gramsci se serviria, portanto, da formulação original de Sorel para enfatizar a

conexão entre estrutura e superestrutura. O bloco histórico "soreliano" seria a resposta de

Gramsci à suposição de Croce de separação estanque, no marxismo, entre estrutura e

superestrutura (KANOUSSI, 2000, p. 63). Gramsci empreenderia a tradução do

revisionismo soreliano no sentido de assimilar à filosofia da práxis os conceitos e autores

com os quais o marxista italiano torna o diálogo possível, por serem os representantes mais

avançados da crítica ao marxismo da época. A própria filosofia da práxis, como

superestrutura, deveria assim ter seu valor concreto "aprofundado com o conceito de bloco

de Sorel, bloco entendido como nexo entre estrutura e superestrutura que (...) é indissolúvel

para Gramsci" (Idem, p. 66). Da mesma forma, Gramsci procederia à tradução "interna" dos

conceitos desenvolvidos por ele no âmbito da filosofia da praxis.86 Em todas essas

traduções, a estrutura e a superestrutura encontrar-se-iam articuladas como os dois níveis

imprescindíveis do real, que se conformariam na unidade dialética do bloco histórico

(Idem,p. 74).

A própria revolução passiva se apresentaria em Gramsci como relação entre

estrutura e superestrutura, como conceito filosófico, político e histórico que constituiria o

cerne do marxismo gramsciano e cuja discussão Gramsci colocaria no centro dos cadernos

especiais principais, empreendendo a tradução das linguagens filosóficas e científicas

(Idem, p.80). Poder-se-ia afirmar, assim, que o princípio da tradutibilidade das linguagens

opera no interior da revolução passiva, na medida em que os intelectuais procuram traduzir

em filosofia as práticas das classes que representam. Daí a importância da questão da

unidade entre intelectuais e massas, no sentido da construção de bloco intelectual e moral

que traga progresso intelectual para aquelas. Em outras palavras, seria a concretização da

unidade entre teoria e prática (Idem, p. 91).

86 Assim que teríamos, por exemplo, o Quaderno 10 como a tradução em linguagem filosófica do conceito de revolução passiva, o Quaderno 19 como sua tradução no âmbito da história, bem como os Quaderni 13 e 15 como sua tradução no nível do político (KANOUSSI, 2000, p. 74).

255

Para Kanoussi, os três "cânones" do prefácio de 1859 87 formariam, por meio da

análise de Gramsci, um "bloco de inspiração soreliana", que denotaria a tradução entre os

momentos histórico e político/filosófico (Idem, p. 117). Tradução que ficaria por conta de

Gramsci, já que o próprio Sorel não executaria tal passagem teórica do momento

econômico-corporativo para o plano político. O mito, no sentido de bloco de imagens

históricas a serem buscadas pela revolução proletária difere-se, no autor francês, dos fatos

realmente consumados pelas massas, embora essas devam agir impulsionadas por esse

bloco de imagens.

Aqui poderíamos nos referir, por exemplo, à dicotomia “ordem lógica” x “ordem

histórica” que, segundo Badaloni, Sorel divisaria na obra de Marx (BADALONI, 1975, p.

56)88. A ordem histórica incluiria, por exemplo, a integração ao modelo lógico da

“psicologia da classe operária”. A ordem lógica dada por Marx a seu modelo levaria ao

engano com relação aos modos históricos de transição. Só a moral do produtor e o mito da

greve poderiam orientar na direção do modelo lógico de Marx aquela ordem histórica que

tomaria na realidade um aspecto fortemente disforme. Seria, nesse caso, a precedência da

ordem histórica sobre a ordem lógica que orientaria a não acreditar no movimento

automático rumo ao socialismo. Ainda segundo a leitura que faz Badaloni do conceito

87 Citando mais uma vez em Marx: "Há a revolução material das condições de produção econômicas. (...) Mas há também as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas, filosóficas, em suma, as formas ideológicas nas quais os homens tomam consciência desse conflito e o levam até o fim. (...) Uma sociedade não desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; relações superiores de produção não se apresentam antes que as condições materiais de sua existência não se tenham desenvolvido no seio mesmo da velha sociedade. É por isso que a humanidade só se propõe tarefas que pode resolver; melhor consideradas as coisas, observaremos sempre que a tarefa só surge onde as condições materiais de sua realização estão já formadas, ou em vias de se formar" (MARX, 1965, p. 273). 88 Daniel Bensaïd faz um interessante debate sobre a dicotomia entre “ordem lógica” e “ordem histórica” que pode ajudar aqui a compreender a discussão feita por Badaloni. Para Bensaïd, “a distinção entre objeto devindo e história do objeto remete à distinção entre lógica e história. (...) Marx dedicou-se inicialmente a revelar as estruturas reais invisíveis. Sua teoria da estrutura fornece-lhe a chave da gênese e da evolução. A forma desenvolvida (a anatomia do homem) desvela o segredo das forma menos desenvolvidas (a anatomia do macaco). Mas a gênese ideal assim reconstituída é tão distinta da história real quanto uma formação social concreta o é do modo de produção” (BENSAÏD, 1999, p.356). Assim, a ordem lógica corresponderia à inteligibilidade de um processo, enquanto que a ordem história equivaleria a seu devir real. Continua Bensaïd, exemplificando com o método adotado pelo próprio Marx: “Historicamente, o capital comercial determina o preço das mercadorias, e a taxa geral de lucro constitui-se na esfera da circulação. Mas, no modo de produção capitalista desenvolvido, a ‘transformação da mais-valia em lucro, do lucro em lucro médio’, procede logicamente da estrutura da mercadoria, da produção à reprodução global, passando pelo processo de circulação. (...) Antes de chegar, de acordo com a ordem lógico-estrutural, a ‘dominar seus extremos’, as diferentes esferas de produção que a circulação religa entre elas, o capital emergiu primeiro do processo de circulação de acordo com a ordem cronológico-histórica” (Idem, p.358-359).

256

soreliano de mito, este se faria necessário para a unificação da ordem histórica com a ordem

lógica dos acontecimentos. Seria nesse momento que assumiria significado o problema

soreliano do "bloco". Em Sorel, a ordem lógica do desaparecimento do capitalismo

assumiria a forma do "mito-perspectiva" (Idem, p. 58), sob o impulso do elemento

voluntário.

Podemos assim, apoiados em Badaloni, avançar algumas considerações. Em Sorel, o

"bloco" se constitui como a unidade entre "ordem lógica" e "ordem histórica", ou mais

estritamente entre teoria e prática. Em tal bloco, a práxis sustentada pelo "mito-perspectiva"

agiria sobre a mudança histórica no sentido de conferir-lhe a direção aproximada do que se

encontraria constituído na teoria como ordem lógica da transição. O bloco gramsciano seria

a elaboração de uma vontade coletiva a partir do interior de determinadas relações de

produção, seria nova "formação histórica" com possibilidade de estabelecer, em época de

transição, uma direção determinada ao "aparelho produtivo" (Idem, p.93).

A unidade entre prática e teoria, entre "natureza e espírito" ou "estrutura e

superestrutura", consubstanciando o bloco histórico segundo Gramsci,89 adquire aqui

concretude no que se refere, por exemplo, à questão da transição, ou sociedade de transição.

Gramsci classificaria tal bloco como "histórico" porque seria aberto à perspectiva histórica,

não porque designaria um momento histórico específico. Ou seja, como faz Badaloni

abordando o mito soreliano, sobretudo, como uma perspectiva histórica. Enfim, o bloco

histórico encontrar-se-ia relacionado à conformidade possível entre ação histórica e modelo

lógico, à objetivação da fusão entre teoria e prática, entre uma determinada concepção de

mundo e uma ação política coletiva em conformidade com tal concepção. Pode-se

perguntar sobre a possibilidade de tal conformidade, na hipótese máxima de um movimento

apenas tendencial. É justamente nesse caso que se consolidaria a validade teórica do mito

soreliano no âmbito da filosofia da práxis, tomado mais exatamente, numa nova tradução,

como "perspectiva histórica", tal como o faz Badaloni. Daí também ser possível inferir a

função educadora da ação política baseada numa determinada "perspectiva histórica". Seria

desta maneira que a consequência prevista pelo modelo lógico de Marx (a passagem a outra

89 Em Gramsci: "Conceito de bloco histórico, isto é, união entre a natureza e o espírito (estrutura e superestrutura) unidade dos contrários e dos distintos" (Q13, §10, p.1569, C; Q8, §61, p.977, A).

257

formação social) poderia se "autonomizar" de seu conteúdo de necessidade, de

inexorabilidade e servir de instrumento de luta e engajamento da classe trabalhadora, ou

seja, sendo tomada como referência futura, ou horizonte mítico.

Como já definido anteriormente, horizonte mítico ou "perspectiva-histórica" devem

ser apreendidos como a direção histórico-política conferida pelas novas classes

fundamentais ao esforço de construção de um novo bloco histórico por meio, inicialmente,

do “espírito de cisão”. A conjunção entre o impulso espontâneo das forças produtivas e a

energia reformadora da vanguarda do proletariado produziria o espírito de cisão, e este se

apresentaria como condição preliminar para a luta contra as instituições jurídicas da velha

sociedade (Idem, p. 124-126).

Necessário observar que no desenvolvimento das novas forças produtivas está

incluído o desenvolvimento subjetivo de novos trabalhadores. O desenvolvimento do

espírito de cisão nesses trabalhadores faz parte de um quadro geral de incompatibilidade

com as velhas organizações e relações de produção. O projeto de Gramsci, nesse caso,

segundo Badaloni, incluiria fazer “do lado subjetivo das forças produtivas um elemento do

campo objetivo” (BADALONI, 1975, p. 130). Qual pode ser a diferença em apresentar as

coisas desse modo, em comparação com o “Prefácio de 1859”? Talvez a novidade esteja

em apresentar como programa político o que Marx apresenta como filosofia da história, ou

seja, transformar o elemento subjetivo das forças produtivas (o próprio produtor) em

elemento objetivo da mudança. Essa proposta política admite o pressuposto de que a força

“separada” (scissa) da nova classe fundamental assuma a consciência de sua capacidade de

dirigir politicamente a produção material da sociedade. A unidade entre história e filosofia

ocorreria no momento em que a classe “separada”, produto da cisão, se mune de

instrumentos intelectuais e teóricos para expandir a própria cisão na condição de se

constituir como hegemônica empreendendo, desse modo, a construção do “novo bloco

histórico” (Idem, p. 140). A cisão se constituiria assim, finalmente, com o rompimento da

nova classe fundamental com o objeto reificado, ou o mercado.

A construção de uma nova moral do proletariado tem como pressuposto seminal o

fenômeno da cisão. A apreensão, por parte de Gramsci, de tal conceito soreliano e seu

desenvolvimento com vistas à elaboração das bases de uma nova moral o ajudaria a

258

pavimentar as vias teóricas da reforma intelectual e moral.90 É assim que o conceito

soreliano de "bloco", utilizado por Gramsci, tentaria estabelecer uma relação entre vontade

humana (superestrutura) e a estrutura econômica, de modo que se trataria de uma relação

consciente, de controle da produção pela classe fundamental constituída a partir da cisão

(Idem, p. 143). Esse controle da produção ou, em outras palavras, direção política do

econômico, deve ser empreendido pelo proletariado na fase de luta pela hegemonia, por

meio da socialização da ciência da política. Gramsci, assim, restabeleceria o "primado das

forças produtivas" em termos lógicos ao se apropriar do tema da cisão, criticando a

predominância, em Sorel, das “relações jurídicas”. Mas o marxista italiano não deixaria tal

“primado lógico” funcionar em seu “automatismo”, ao contrário, “pressupõe a necessidade

que sejam [as forças produtivas] personificadas por novos portadores” (Idem, p. 148).

Entendemos que tal primado das forças produtivas, segundo Badaloni

“restabelecido” por Gramsci, deve ser compreendido em seu sentido amplo, dialético. Esse

sentido é o que coloca as forças produtivas em precedência na ordem lógica, ou seja,

filosófica, teórica. Ao ser transportada para a ordem histórica, para o terreno das relações

de força entre as classes fundamentais, tal primado converte-se, na verdade, em processo

histórico constituído por e constituidor do nível superestrutural das relações de produção.

Nesse percurso histórico, o ser humano é elemento subjetivo das forças produtivas, ou o

lado subjetivo da objetividade das forças produtivas. Mais exatamente, o homem, ou

produtor, é força produtiva consciente de si, que intervém na história. Desse modo,

constituidor de novas relações de produção. É a intervenção consciente no processo de

forjar novas relações de produção que dá ao produtor autônomo a precedência lógica, ou

filosófica, na construção do novo bloco histórico. Tal intervenção consciente só pode ser

levada a efeito por meio da apropriação e socialização da ciência do político.

Nesse momento da discussão dos caminhos para a edificação de um novo bloco

histórico volta à cena o conceito soreliano de mito, mas retraduzido por Gramsci, como

90 Não poderíamos afirmar que a reforma intelectual e moral seja ao mesmo tempo espírito de cisão, mas são dois processos conectados, num movimento que deve culminar na superação de um determinado conjunto de relações de produção. De todo modo, Gramsci modifica o conceito soreliano de cisão, estendendo sua aplicação às potenciais classes aliadas ao proletariado. Esse é o sentido do exercício da hegemonia sobre as classes aliadas.

259

observa Badaloni. Encontramo-nos agora na notória crítica de Gramsci, já aludida acima, à

insuficiência política do mito tal como formulado por Sorel. Para Badaloni, faltaria em

Sorel a exemplificação de uma vontade coletiva em sentido moderno, relacionada ao

problema das relações entre estrutura e superestrutura, ou a demonstração de como a ordem

histórica poderia efetivamente construir um estado de coisas que correspondesse à

"transição morfológica prevista na ordem lógica" (Idem, p. 150). Sugere ainda Badaloni

que, de todo modo, o mito seria o "restabelecimento da integralidade das previsões lógicas

de Marx, projetada no futuro" (Idem).

3.4.3 A revolução passiva

A categoria de revolução passiva, em princípio um paradoxo em termos, é

desenvolvida por Gramsci a partir da apropriação livre que faz do conceito original e

homônimo do historiador napolitano do século XIX, Vicenzo Cuoco. Kanoussi e Mena

(1985, p. 125) conceituam a revolução passiva de maneira geral como a “formação,

consolidação e defesa do bloco histórico da sociedade capitalista”. Seria por este conceito

que Gramsci estudaria o surgimento do “movimento histórico, dada uma estrutura

determinada" (Idem), ou seja, a dialética como "unidade tendencial” que se estabeleceria

entre “filosofia e história, ou filosofia e política (estrutura e superestrutura, ou necessidade

e liberdade) de um particular grupo social (classe), que é portador de uma função produtiva

de caráter orgânico” (Idem). Pode-se aqui, por exemplo, estabelecer o contraste entre o

funcionamento histórico da dialética no âmbito da filosofia da práxis e a chamada “dialética

dos distintos”, elaborada originalmente por Benedetto Croce em seu empreendimento de

revisão do marxismo no final do século XIX (Idem, p. 74). O conceito gramsciano de

revolução passiva seria uma resposta à filosofia da história de Croce, à sua “dialética dos

distintos” (idem).91 O que para Croce seria manifestação de seu modelo dialético da

convivência dos distintos, Gramsci traduziria no âmbito da filosofia da práxis como

91 Em Gramsci: "O ponto da filosofia croceana sobre o qual se deva insistir parece ser exatamente aquele da 'dialética dos distintos'. Há uma exigência real em distinguir os opostos dos distintos, mas há também uma contradição em termos, porque dialética só há entre opostos (...). Verificar se o movimento de Hegel a Croce-Gentile não tenha sido um passo atrás, uma reforma 'reacionária'". (Q10/II, §41/X, p. 1316-17, C; Q4, §56, p.503-4, A).

260

revolução passiva. A burguesia se apresentaria, assim, como nova antítese histórica diante

da velha aristocracia feudal, mas já como antiga tese dominante diante da nova antítese dela

própria, o proletariado.

Para Gramsci,

Pode-se aplicar ao conceito de revolução passiva (e pode-se documentar no Risorgimento italiano) o critério interpretativo das modificações moleculares que em realidade modificam progressivamente a composição precedente das forças, tornando-se então matrizes de novas modificações (Q15, §11, p. 1767, B).

Não há revolução jacobina movida pelo antagonismo de camadas sociais opostas em

interesses materiais, mas absorção de parte dessas camadas sociais e suas reivindicações

sob a hegemonia de uma nova classe dominante, a burguesia, que procede à construção de

seu bloco histórico evitando o modelo jacobino, que seria de inclusão das massas à

edificação de um novo tipo de Estado. A exclusão passiva das massas da vida política se

daria pela absorção, ou antes, desagregação de seu movimento político, econômico e

filosófico pela via do transformismo, difundindo entre elas sua (da burguesia) hegemonia

política. A dialética dos distintos croceana esvaziaria o movimento potencialmente

revolucionário presente na própria dialética dos opostos de Hegel. No modelo histórico do

processo de revolução passiva analisado por Gramsci, o Risorgimento, a nova classe

dominante, no âmbito das relações de forças sociais num momento histórico de transição de

um modelo agrário-feudal para o modelo urbano burguês, não teria forças ou resolução

política suficientes para superar as instituições aristocráticas enquanto antítese que seria

delas; porém, assim procedendo, impede, evita sua própria superação enquanto tese perante

a antítese formada pelo conjunto massas/proletariado. Não aniquilando por inteiro a

estrutura de produção anterior à sua própria, a estrutura burguesa preserva-se de seu próprio

aniquilamento, evitando o choque direto com o que seria sua antítese. Surgiria assim um

movimento conservador condescendente com reformas que visariam à fundação do Estado

nacional com exclusão da participação das massas, que seria ao mesmo tempo um

movimento “molecular” (transformismo) voltado para a conservação dos interesses das

velhas classes (KANOUSSI E MENA, 1985, p. 129).

A “dialética dos distintos”, enquanto filosofia que traduz o fenômeno político que

move o transformismo corrente entre as superestruturas feudal, burguesa e proletária num

261

mesmo momento histórico (transformismo hegemonizado ao “centro” pelas superestruturas

burguesas) funcionaria, enquanto teoria, como “amortecedor” da contradição principal do

devir histórico, ou seja, o movimento dialético não de “distinção”, mas de oposição entre os

dois processos antagônicos de construção de blocos históricos: a revolução passiva e o

jacobinismo. Tem-se, assim, o modelo político do jacobinismo como cabível oposto

antagônico do processo conservador da revolução passiva. Em momentos e espaços

históricos distintos, ambos são, entretanto, processos formadores de Estados nacionais,

tanto quanto formação, consolidação, e defesa do bloco histórico burguês. No entanto, o

jacobinismo continuaria a servir como antítese, como modelo político das novas classes

fundamentais devido à potência que confere à organização das massas, o que será visto

mais adiante.

Kanoussi e Mena (1985, p. 131) apontam o fascismo na Itália e Alemanha e o

americanismo nos Estados Unidos como fenômenos modernos de revolução passiva,

"reação e resposta" ao surgimento do Estado soviético, a partir da revolução bolchevique de

1917. Seriam efeito do temor suscitado nas classes dominantes a irrupção, mais uma vez na

história, das massas organizadas politicamente. Como novos modelos de revolução passiva,

exercem sua função de conservar os interesses das velhas classes dominantes, agora

burguesas, e excluir as massas da vida política e da "experiência estatal" (Idem, p. 132). Em

outras palavras, "formação, consolidação e defesa do bloco histórico burguês" significariam

concretamente a formação de Estados nacionais, bem como a intervenção do Estado na

absorção da crise do capital e regulação da função produtiva, ou seja,

a revolução passiva do capital como reação à Revolução de Outubro e à crise do Estado liberal (fundação de partidos comunistas, I.C., sindicatos, etc.), é agora um fenômeno universal que a filosofia da práxis de Gramsci converte em categoria historicamente determinada, ou seja, em abstração-instrumento de conhecimento da realidade a subverter. Daí extrairá Gramsci sua nova teoria da hegemonia (KANOUSSI E MENA, 1985, p. 134).

O desenvolvimento do “Estado ampliado”, ou da fórmula “Estado = sociedade

política + sociedade civil” surgiria também em consequência das necessidades de uma nova

forma de Estado para fazer frente à crise orgânica do capital (Idem, p. 137), Estado

capitalista cuja caracterização é estabelecida pelos autores como “a racionalidade de uma

atividade ou função produtiva da classe que organiza o processo da reprodução social em

262

seu conjunto” (Idem, p. 148).92 Com relação à característica estrutural daquela crise

orgânica, ou à queda tendencial da taxa de lucros, esta precisaria ser permanentemente

contra-arrestada, combatida pelas classes e frações de classes dominantes por meio de

novas adaptações na produção social e nas relações de produção, adaptações das quais se

encarrega o Estado capitalista como concretização que é das práticas das classes

hegemônicas.

A revolução passiva seria principalmente, em sua profundidade material, um

mecanismo de reação das classes dominantes à contradição permanente da relação entre o

desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção que as encerram numa

dada formação social capitalista. Esta contradição se manifestaria em sua forma mais

concreta na produção crescente face ao consumo permanentemente restringido.

Incontornável se faria, assim, a presença do Estado num processo de mediação que

necessita conferir às massas trabalhadoras, ou pelo menos a uma sua parcela, um poder de

compra que sustente a produção capitalista, mas que ao mesmo tempo crie práticas de

consumo e vida que se mantenham no horizonte da concepção de mundo burguesa. Tal

contradição não pode ser administrada senão pela presença constante e alargada do Estado,

por sua intervenção no sentido de aplacar os choques entre as classes fundamentais, daí a

necessidade do Estado integral como "hegemonia difundida entre as massas" (Idem, p.

155). Ou, ainda, tratar-se-ia de "reação com restaurações que recolhessem parte das

exigências dos debaixo, portanto 'restaurações progressistas' ou 'revoluções-restaurações' ou

também 'revoluções passivas'" (KANOUSSI, 2000, p. 66-67). O novo grupo econômico

portador das funções de produção traduz sua condição material hegemônica em política, em

novo Estado, com novas estruturas institucionais e formação de um novo tipo de sociedade

civil, processo que se refere em síntese à "formação, consolidação e defesa do bloco

histórico burguês" (Idem, p.81).

Decompondo em seus níveis temporais a descrição acima, tem-se que notadamente

o último, ou a "defesa do bloco histórico burguês", se realiza numa situação de relativo

92 Comentando o conceito de Estado do livro de Daniel Halévy, Decadenza della libertà, do qual Gramsci afirma ter lido uma resenha, o marxista prisioneiro afirma: "Mas o que significa isso senão que por 'Estado' deve-se entender, além do aparelho governamental, também o aparelho 'privado' de hegemonia ou sociedade civil" (Q6, §137, p. 801, B).

263

equilíbrio de forças. Mais exatamente, a "defesa do bloco histórico burguês", nesse caso,

ocorre via uma relação de forças que se desloca lentamente a favor das antigas classes

dominantes, em detrimento das novas classes fundamentais. A revolução passiva, assim,

teria uma de suas características na ausência, no seio do proletariado, do elemento

unificador da economia com a política, ou seja, na ausência da tradução política das novas

contradições entre as antigas relações de produção e os novos desenvolvimentos das forças

produtivas.

Alcançamos aqui, mais uma vez, a intervenção de Sorel. Para a construção daquele

elemento unificador ausente, adquire importância o conceito soreliano de cisão. Este, como

já sabemos, se refere a um movimento de separação da nova classe fundamental, de seu

distanciamento em relação à concepção de mundo das classes dominantes e de sua

“agregação” em torno de novos valores e de uma sua nova concepção de vida (SOREL,

1972, p.232). A luta de classes, empreendida quando necessário pela violência, possuiria o

papel de educador moral do proletariado (POLIN, 1972, p. XIX). O fenômeno da cisão

permitiria a uma classe ou classes alcançar um momento politicamente mais avançado na

relação de forças, discernindo seus interesses como nova classe fundamental e opondo-os à

velha dominação (SOREL, 1992, p. 110).

A formação política e agregação da nova classe ou classes “separadas” (scisse)

(BADALONI, 1975), a construção material de seus novos valores e sua força de oposição

aos antigos estão permanentemente submetidos a uma dura relação de forças com as classes

dominantes, no interior do antigo bloco histórico. A revolução passiva entra em cena

quando esta relação de forças aproxima-se do equilíbrio, mas permanece deslocada a favor

das classes dominantes por meio da dificuldade que essas conseguem impor às novas

classes fundamentais para a tradução política do embate econômico. Nesse momento, "as

relações dominantes não são ultrapassadas pelo desenvolvimento das forças produtivas

mas, por assim dizer, passam por modificações e mesmo recuos das próprias formas de

domínio" (Idem, p. 152).

O processo de agregação da nova classe fundamental pelo desenvolvimento da cisão

soreliana sofre, no âmbito da luta de classes, o contrapeso da reação das classes dominantes

que lhe tentam impor a desagregação. É a revolução passiva em curso, que desloca pouco a

264

pouco o equilíbrio de forças a favor da antiga dominação pelo "processo lento de erosão da

parte da nova classe fundamental" (Idem, p. 154). A resposta de Gramsci a essa situação,

segundo Badaloni, seria a proposta da criação de um partido de massa que lute

organizadamente contra tal desagregação (Idem, p. 154). Mas como se manifestaria, numa

situação historicamente concreta, a possibilidade de inversão de forças numa situação de

revolução passiva? Gramsci sugere brevemente a coexistência entre essas conjunturas

históricas na seguinte passagem:

Existe uma identidade absoluta entre "guerra de posição" e "revolução passiva"? Ou ao menos existe ou pode se conceber todo um período histórico no qual os dois conceitos devam identificar-se, até ao ponto em que guerra de posição se torna guerra manobrada? (Q15, §11, p.1766, B).

Para o que nos interessa aqui, é importante destacar a centralidade do conceito

soreliano de cisão para a compreensão mais adequada, mesmo mais abrangente, da

categoria de guerra de posição. Numa situação de persistência do equilíbrio entre as classes

em disputa pela hegemonia, num momento em que tanto tese quanto antítese têm condições

de desenvolver-se plenamente, gerar-se-ia, segundo Badaloni, uma “situação de guerra de

posição” (BADALONI, 1975, p. 155). O autor localiza o processo de cisão como “ponto de

partida” da guerra de posição, ou seja, da formação da unidade entre a classe ou classes

subalternas fundamentais com outros grupos sociais que lhes dão seu apoio ativa ou

passivamente (Idem, p.155-156). Ao desenvolver esse conceito, portanto, Gramsci pode ser

entendido, sobretudo, como pensador da sociedade de transição, justamente o espaço/tempo

em que seria predominante a guerra de posição:

Gramsci não pressupõe a decadência definitiva do adversário, muito menos da sua capacidade de regenerar-se. Vê na guerra de posição o delinear-se de um choque de longa duração, que exige o exame analítico de todos os movimentos do adversário e as iniciativas correspondentes para responder-lhe (BADALONI, 1975, p. 169).

Depreende-se daí que a guerra de posição não seria uma tática livremente escolhida

pelas classes subalternas, mas surgiria numa situação de equilíbrio de forças que aquelas

classes não poderiam evitar. Este equilíbrio, por sua vez, também não seria desejado pelas

classes dominantes, mas imposto a elas pelo desenvolvimento da cisão das classes

subalternas em relação à concepção de mundo dominante. A cisão se estabelece e se

265

desenvolve quando a nova classe fundamental organiza-se conscientemente, dirigindo

outras classes aliadas no sentido de assumir o controle político das forças produtivas e a

elaboração de nova concepção de sociedade. O desenvolvimento de uma situação de

equilíbrio de forças em tal momento histórico é uma possibilidade concreta, onde as velhas

classes dominantes lançam mão do processo de revolução passiva para impor ou tentar

levar a desagregação ao seio do conjunto das classes subalternas, para forçá-las ao recuo

político e à fragmentação de sua unidade estratégica. Essa é uma ameaça dinâmica e

permanente que, quando bem sucedida faz com que as posições alcançadas e duramente

mantidas pelo bloco das classes subalternas sejam progressivamente perdidas e sua coesão

desmantelada mediante o deslocamento do equilíbrio a favor das velhas classes dominantes

levado a efeito pela tática da revolução passiva.

Tem-se assim que a revolução passiva seria ensaiada pelas classes dominantes

quando da ameaça do estabelecimento de um equilíbrio na relação de forças políticas, no

âmbito abrangente da luta de classes. Na ausência de tal ameaça, o que se verifica

tendencialmente é um duro ataque "de movimento" por parte das velhas classes

dominantes, materializado na adoção sucessiva de contrarreformas sociais. A guerra de

posição, por outro lado, seria uma situação geral de beligerância construída em parte pela

resistência ativa do bloco das classes subalternas organizadas por meio da cisão, em parte

pela incapacidade das velhas classes dominantes de liquidar ou desorganizar esse bloco.

Porém, uma vez alcançada essa liquidação ou desorganização pelo recurso histórico da

revolução passiva, o que se apresentaria é uma nova ofensiva de "movimento" daquelas

classes dominantes no sentido de restabelecer e reproduzir em escalas cada vez maiores

seus privilégios econômicos, ou em outras palavras, as taxas gerais de lucro. A partir de tal

derrota política, restaria às classes subalternas resistir de forma esparsa e fragmentada. Mas

a essa resistência não poderíamos chamar "guerra de posição", já que esse conceito

designaria, para Badaloni, uma condição geral de beligerância onde existe equilíbrio de

forças entre os dois campos principais organizados, e não uma tática unilateral que possa

ser arbitrariamente assumida por uma das partes em combate.93

93 A metáfora militar da "guerra de posição" é tomada por Gramsci a partir do fenômeno da guerra de trincheiras que prevaleceu na Primeira Guerra Mundial, tendo como marco inicial o fim da batalhe do Marne em setembro de 1914, quando nem as tropas franco-britânicas nem as alemãs haviam logrado impor-se

266

3.4.4 Jacobinismo (e antijacobinismo)

Como já observamos acima, Gramsci é bastante influenciado pelo pensamento

soreliano em sua fase pré-carcerária. O “jovem” Gramsci seria, assim, avesso ao

jacobinismo, no sentido de condená-lo como prática que implicaria a “separação entre

dirigentes e dirigidos” (DEL ROIO, 2005, p. 38). O seu contrário seria a ênfase na

autoeducação dos trabalhadores e em sua auto-organização, bem como a crítica ao

predomínio dos intelectuais, agindo-se assim no intuito de preservar o “espírito de cisão”

no proletariado. Em todo caso, o “jovem” Gramsci já reconheceria a importância da política

e de sua inserção no âmbito produtivo para a organização dos trabalhadores. Tal seria já

uma importante diferença na ciência política de Gramsci com relação ao pensamento

soreliano. A concepção da política segundo a qual esta se introjetaria no processo produtivo

respectivamente recuos importantes, enterrando-se, cada um dos lados, em trincheiras que se estenderiam ao longo de todo o front e determinariam a imobilidade das posições, num equilíbrio de forças que também se instalaria no front leste (Rússia) um pouco mais tarde e perduraria durante a maior parte da guerra (KRUMEICH et AUDOIN-ROUZEAU, 2004, p.301-303). Ora, a metáfora criada por Gramsci a partir da análise da tática russa na Primeira Guerra não é gratuita, e precisa ser considerada em toda sua precisão (Q13, §24, p.1614, C; Q7, §10, p.859, A). Segundo Bianchi (2008, p.199), "a analogia entre luta política e estratégia militar começou a ser desenvolvida já no Primo Quaderno, como parte de uma discussão sobre a direção política e militar no Risorgimento italiano. (...) Fica claro que já neste primeiro momento, Gramsci concebia de modo unitário as funções técnico-militares e políticas, o que era fundamental para sua elaboração a respeito das relações de forças político-militares". Trata-se de observar que Gramsci se refere a uma situação de equilíbrio de forças político-militares. A guerra de posição estabelece-se de maneira preponderante em situações históricas muito específicas e fora do controle e da vontade das partes em luta, é o resultado histórico a que se pode chegar por meio da luta política das classes subalternas com vistas a promover a cisão de classes e a construção de um bloco social de classes subalternas hegemonizado por uma nova classe fundamental. Não é possível escolher a tática da guerra de posição; os partidos, sindicatos, movimentos sociais e outras formas de expressão política das classes subalternas não podem optar por ela. A guerra de posição se estabelece como resultado das circunstâncias apresentadas acima. Fora delas, o que existe é o desequilíbrio de forças a favor de uma das partes, e a outra não faz senão "sofrer" uma preponderante "guerra de movimento" conduzida pela parte mais forte, contra a qual se tenta constantemente organizar a resistência, ou seja, contra iniciativas, contragolpes, que não se fazem pela manutenção de "posições", mas pela tentativa permanente de concentrar forças e empreender investidas precisas contra aspectos específicos da dominação. A situação em que se torna preponderante a guerra de posição pode ou não ser atingida, mas, se o for, será como resultado de recuos históricos impostos às classes dominantes, forçando-as a uma situação de equilíbrio. Em princípio, não há graves consequências práticas em chamar "guerra de posição" às investidas das classes subalternas contra as classes dominantes em uma situação de desequilíbrio favorável às últimas. O problema ocorre quando esse tipo de assimilação do conceito de Gramsci o transforma numa estratégia de resistência institucional, ou seja, a guerra de posição interpretada como uma proposta de resistir à dominação e à exploração capitalistas por meio de suas próprias instituições civis e estatais, ou por seu próprio complexo de "trincheiras e fortificações" (Q3, §49, p.333, B), como se as "trincheiras" do proletariado pudessem ser as mesmas que as da burguesia. Assim interpretado, o conceito de "guerra de posição" transforma movimentos táticos conjunturais em estratégia geral para a luta de classes, propiciando, no melhor dos casos, a consolidação da tática inimiga da revolução passiva, oferecendo em sacrifício as classes subalternas ao transformismo puro e simples. Em outras palavras, a classe "separada" ("scissa") não pode se utilizar dos meios institucionais da velha sociedade, sob pena de empreender sua própria desagregação como classe "separada".

267

de âmbito fabril representaria elemento crucial na disputa pelo poder político e social, ou

seja, pela hegemonia, identificando desde logo economia e política (Idem).

A partir de 1921 a questão do jacobinismo começaria a aparecer em sentido positivo

para Gramsci, com o marxista italiano reconhecendo o caráter jacobino da política de

aliança com o campesinato e afirmando pela primeira vez a filiação histórica entre

jacobinos e bolcheviques (PORTELLI, 1974, p.33). Gramsci reconheceria ainda nesse

momento a necessidade de uma direção centralizada e de um partido disciplinado que se

apresentasse para exercer a ditadura de classe. Na verdade, Gramsci começaria aí a matizar

suas críticas ao jacobinismo, procurando fazer uma distinção entre o que seria o

jacobinismo da Revolução Russa e aquele historicamente original da Revolução Francesa

(SANGUINETI, 1982, p.24). O reconhecimento, ainda que tácito, do jacobinismo

bolchevique, somado à identificação do que Gramsci consideraria ser o caráter jacobino de

seu programa agrário, anunciaria a direção do desenvolvimento desse tema nos Cadernos.

(PORTELLI, 1974, p. 34). Nesse caso, a questão de elaborar um jacobinismo “proletário”

seria a mesma do desenvolvimento de uma vontade nacional-popular a partir da união do

proletariado urbano com o campesinato, formando um bloco social sob hegemonia do

primeiro (Idem, p. 38).

No sentido da edificação de uma nova concepção de vida, os jacobinos franceses

teriam unido os interesses das massas urbanas e rurais e criado uma verdadeira “vontade

nacional-popular”. Em Gramsci, “de movimento burguês sectário, o jacobinismo torna-se

um partido revolucionário que cria a nação” (Idem, p. 34). Os jacobinos teriam sido ainda

herdeiros de uma revolução cultural elaborada pelos enciclopedistas ou, nos termos dos

Cadernos, de uma reforma intelectual e moral. Os Cadernos marcariam uma “reavaliação

positiva de todos os aspectos do jacobinismo de 1793. Mas, sobretudo, como nos escritos

de juventude, Gramsci coloca o problema da posteridade do jacobinismo” (Idem, p.35). O

percurso de Gramsci do antijacobinismo espontaneísta de cunho soreliano ao “jacobinismo

absoluto (político ideológico)” resultaria finalmente na elaboração da possibilidade do

partido comunista como moderno príncipe, ou seu papel na difusão de uma reforma

intelectual e moral (Idem, p. 41).

268

Para Medici (2000, p. 151), o “jovem” Gramsci teria sido um crítico severo do

jacobinismo, identificando-o a uma maneira burguesa de fazer política. Nesse caso, ficaria

evidente a proximidade com o ponto de vista soreliano. Existiria no Gramsci dos Cadernos,

entretanto, um “neojacobinismo”, cuja gênese mereceria ser aprofundada. Já na fase inicial

de confecção dos Cadernos, o jacobinismo se apresentaria como um exemplo completo da

capacidade de desenvolvimento de uma vontade coletiva como vontade política unitária,

tendo sido capaz de promover a ligação cidade-campo, a aliança operários-camponeses

(Idem, p.155). O jacobinismo de Gramsci seria mesmo uma das formas de seu leninismo,

assumindo uma de suas manifestações no método geral escolhido para a criação e

desenvolvimento da vontade coletiva, no sentido de se construir uma nova ordem moral e

jurídica. A ideia de socialismo que Gramsci teria assimilado de Sorel estaria diretamente

ligada a tal ordem de novo tipo, no sentido moral e jurídico, mas que seria, sobretudo, uma

nova organização econômico-produtiva (Idem, p. 132).

A assimilação do pensamento de Sorel nos Cadernos passaria pela severa crítica ao

que, no final das contas, seria o esteio do antijacobinismo soreliano, ou seja, o

espontaneísmo da ação sindical preconizado pelo sindicalismo revolucionário.

Antideterminismo e antijacobinismo seriam os dois pilares do pensamento soreliano com os

quais Gramsci lidaria, desenvolvendo, no âmbito da filosofia da práxis, todas as

conseqüências positivas do primeiro, mas rejeitando duramente as críticas representadas

pelo segundo para o intuito da construção de um novo bloco histórico por parte da nova

classe fundamental. Teorizado na forma do espontaneísmo, o sindicalismo não seria senão

uma variante do economicismo, já que transformaria a distinção entre "sociedade política" e

"sociedade civil" em uma distinção orgânica e não metodológica, exatamente nos moldes

de uma concepção liberal (Idem, p.136).

Sobre o papel do jacobinismo na edificação do bloco histórico burguês, sustenta

Gramsci que

Se é verdade que os jacobinos "forçaram" a mão, é também verdade que isso aconteceu sempre no sentido do desenvolvimento histórico real, porque não apenas organizaram um governo burguês, ou seja, fizeram da burguesia a classe dominante, mas fizeram mais, criaram o Estado burguês, fizeram da burguesia a classe nacional dirigente, hegemônica, ou seja, deram ao novo Estado uma base permanente, criaram a compacta nação moderna francesa (Q19, §24, p.2029, C; Q1, §44, p. 51, A).

269

O jacobinismo seria, portanto, a assimilação das massas à vida estatal, por meio do

partido revolucionário que conduziria e lideraria, concentrando em si a vontade coletiva, a

fundação de um Estado de novo tipo e lançaria as bases para a edificação de um novo bloco

histórico. Apesar de fornecer a Gramsci os alicerces para a concepção do conceito de bloco

histórico, o pensamento de Georges Sorel é fortemente marcado pelo antijacobinismo, que

se caracterizaria pela recusa da ação política protagonizada e centralizada em um partido

revolucionário, da presença de intelectuais em posições de vanguarda e da unificação da

luta em torno do programa político de uma classe hegemônica. A recusa da violência, no

caso do antijacobinismo soreliano, não é recusa tout court, mas recusa da violência

revolucionária que se torna Estado, ou seja, a violência do partido que toma o poder. As

características definidoras da atuação política jacobina de “conteúdo”, como diria Gramsci,

(Q13, §37, p.1636, C; Q1, §48, p.58, A) são justamente as que suscitam no pensador

francês a convicta resistência, e mesmo o incentivam a duros ataques, a essa forma de ação

revolucionária.

Ao afirmar que o espontaneísmo soreliano deixaria a vontade coletiva “abandonada

em sua fase primitiva e elementar”, Gramsci estaria apontando um paradoxo criado pelo

pensador francês no interior de sua própria teoria por conta de seu antijacobinismo. Para

Gramsci, ao contrário do que pensa Sorel, seriam justamente as características de um

movimento jacobino que impediriam as massas de se abandonar à fase primitiva de sua

vontade coletiva. Uma daquelas características seria a construção de um partido

revolucionário que encarnasse a vontade nacional coletiva como sua vanguarda e a

utilização da violência contra as classes adversárias. Mais do que a violência, seria a

formação do partido jacobino construído em função de conferir direção política ao levante

das massas que não apraz Sorel. É sua recusa a reconhecer legitimidade a qualquer tipo de

liderança política ou intelectual das massas que suscita a observação de Gramsci de que, em

Sorel, a vontade coletiva seria abandonada à sorte vulnerável e dispersante do

espontaneísmo absoluto. A limitação de Sorel, nesse sentido, pode ser observada na

ausência da tradução do momento econômico corporativo da luta do proletariado (ou, mais

exatamente, a prática sindicalista) para uma linguagem política, para um nível

superestrutural mais avançado, em termos históricos, da relação de forças entre as classes

270

fundamentais, o que seria feito por Gramsci em sua análise do jacobinismo. Segundo

Kanoussi,

Inspirado em Lênin, que por sua vez citava Marx, Gramsci pensa no jacobinismo em dois sentidos: um como o método revolucionário por excelência, quer dizer a decisão, a energia, o forçar a situação arrastando a burguesia, "empurrando-a para diante com chutes no traseiro"; o outro sentido, (...) é o da hegemonia propriamente dita, exercida exemplarmente pelos jacobinos como a unidade entre cidade e campo, assim como unidade entre força e consenso; (...) Em Gramsci tal unidade tem significado saliente, posto que é sua metáfora para falar aos herdeiros de Lênin da importância da NEP e do erro histórico de sua abolição (KANOUSSI, 2000, p.119).

É a unidade hegemônica de que fala Kanoussi que restaria impossibilitada diante da

alternativa teórica do antijacobinismo soreliano. O jacobinismo, para Sorel, torna-se

condenável tanto em sua forma histórica, como um modo de ação concebido pela

vanguarda de uma revolução burguesa, logo essencialmente ligado a interesses burgueses,

quanto em seu conteúdo enquanto método de ação, qual seja a apologia da ditadura de uma

vanguarda partidária em nome de um suposto interesse geral concretamente inapreensível.

Sorel opõe assim a violência jacobina, que se torna aqui identificada à força estatal, à

violência exercida pelo proletariado revolucionário. O antijacobinismo de Sorel decorreria

de sua conclusão de que todo jacobinismo torna-se, de fato, violência como força estatal. O

pensador francês afirma no prefácio às suas Reflexões sobre a Violência:

Durante o Terror, os homens que mais derramaram sangue foram precisamente aqueles que tinham o mais forte desejo de permitir que seus pares gozassem a época dourada com a qual sonharam e os que tinham a maior simpatia pela miséria humana: otimistas, idealistas e sensíveis, mostraram-se ser tanto mais inflexíveis quanto maior era seu desejo de felicidade universal (SOREL, 1999, p. 10).

Ao se referir ao terror empreendido pelos homens que conformavam o Estado

revolucionário francês, Sorel sugere que tal seria também o destino do partido erigido em

vanguarda do proletariado, considerando a centralização partidária presente na prática

jacobina uma espécie de autoritarismo de mérito exercido por intelectuais. Em outra

passagem, sustenta que

Os socialistas que insistem em haver estudado, creem geralmente que os sindicatos deveriam se colocar sob a direção do partido que representa a inteligência do movimento, que têm condições de utilizar sabiamente correntes espontâneas de opiniões e que poderiam ensinar aos proletários a distinguir o possível do quimérico.(...) Não cheguei ao sindicalismo por vias jacobinas; não me lembro de ter tido alguma vez uma grande veneração pelos homens da revolução francesa. Todos os

271

homens da minha idade tinham ficado bastante impressionados pelas desventuras engendradas em 1871 pela imprudência dos revolucionários, tomando o governo de Paris, abandonado por Thiers; e no entanto os chefes da Comuna foram geralmente bem superiores aos terroristas de 1793 (SOREL, 1981, p. 248-249).

No prefácio que escreve para a primeira edição em francês do livro de Antonio

Labriola, Conception Matérialiste de l'Histoire, em dezembro de 1896, Sorel tece as

mesmas criticas aos que chama ironicamente de hommes de génie, atacando seu

distanciamento com relação ao proletariado e sua suposta arrogância intelectual, que se

consideraria capaz de fornecer, a partir de fora, respostas para os problemas dos

trabalhadores. Sorel os acusa de desejar dirigir, ao contrário de tornar-se apenas

colaboradores de uma “obra proletária”. Nesse texto, Sorel alude ao espírito antijacobino do

qual, segundo ele, estaria imbuído o proletariado (SOREL, 1897, p.4).

Um dos últimos textos de Sorel, publicado originalmente na revista italiana Nuova

Antologia em 1928 com o título Ultime Meditazioni, concentra de forma clara as posições

antijacobinas de seu autor. Segundo Innes (1962, p. 84), Sorel se questionaria ali se uma

classe, na condição de simples categoria sociológica, sem estrutura jurídica e, no entanto,

susceptível de ser comandada por um estado-maior jacobino, poderia ser o agente de uma

verdadeira revolução. Para o revolucionário francês, a revolução seria obra de um

movimento de homens livres, grupos que rejeitariam toda a hierarquia fixa, mas que

praticariam uma disciplina clara, expressa numa doutrina jurídica que projetasse já a

maneira de viver da nova sociedade (INNES, 1962, p. 84). Seria porque “acreditava ver nos

sovietes nascentes um movimento de luta desse tipo que Sorel reencontra em 1919-1920

sua fé no socialismo, do qual ele havia se separado às vésperas da guerra” (INNES, 1962, p.

84). A hipótese de Sorel que sustentaria a proximidade dos conselhos de operários na Itália

ao bolchevismo, embora a partir de uma equivocada leitura antijacobina, viria

expressamente registrada ao final de suas Ultime Meditazioni, mas não na versão italiana, a

qual Gramsci teria tido acesso (Q11, §66, p.1494, C; Q4, §31, p.447, A). Tal versão viera à

luz com uma sensível alteração feita pelos editores, corretamente pressentida por Gramsci

quando lera o artigo:

Neste ponto, fica-se com a impressão que o ensaio de Sorel tenha sido mutilado e que falte precisamente uma parte, com relação ao movimento italiano das fábricas.(...) O ensaio, como foi

272

publicado, é incoerente e incompleto. A sua conclusão, com relação à Italia (...) não possui nenhuma demonstração, sequer por reduções e acenos, à moda de Sorel (Q11, §66, p.1497-98, C; Q4, §31, p.449-50, A).

A conclusão à qual se refere Gramsci é o período do último parágrafo da versão

italiana: “Molte ragioni mi avevano condotto, da gran tempo, a suporree che quello che un

hegeliano chiamerebbe il Weltgeist, spetta oggi all'Italia” (“Muitas razões me conduziram,

há muito tempo, a supor que aquilo que um hegeliano chamaria de weltgeist pertence hoje à

Itália”) (SOREL, 1928, p. 307). Em 1962, a livraria parisiense “M. Rivière” permitiu a

publicação do manuscrito original em francês que estava em sua posse. Descobriu-se então

que a passagem original, escrita por Sorel em janeiro de 1920, trazia o seguinte conteúdo:

“Bien des raisons m'ont amené à supposer, depuis longtemps, que ce qu'un hégélien

nommait le Weltgeist prolétarien appartient maintenant à l'Italie; la rapidité avec laquelle

nos voisins se sont ralliés à Lénine a transformé mon ancienne hypothèse en certitude”

(SOREL, 1962, p.112) (continuando a partir da palavra alemã weltgeist: “proletário

pertence agora à Itália; a rapidez com a qual nossos vizinhos juntaram-se a Lênin

transformou minha antiga hipótese em certeza”). Como se observa, a intuição de Gramsci

fora certeira. A parte em itálico, na qual Sorel refere-se evidentemente ao Biennio Rosso

italiano, fora suprimida pelos editores de Nuova Antologia sob o regime de Mussolini em

1928, conferindo um sentido praticamente oposto ao do texto original, dando a impressão

que Sorel estivesse se referindo à ascensão do fascismo. Esse teria sido um dos recursos

utilizados para aproximar Sorel do regime totalitário italiano. (INNES, 1962, p.83).

Em suas Ultime Meditazioni 94, Sorel se ocupa em condenar o jacobinismo em

oposição ao que classifica como "socialismo revolucionário". Elogia de forma

entusiasmada o que considera serem as conquistas da revolução russa em termos do poder

do proletariado que teria sido criado a partir dos sovietes:

O socialismo escapou do desastre que o ameaçava porque no final de 1917 produziram-se eventos extraordinários na Rússia; pode-se dizer que os primeiros clarões da nova luz começaram a ser vistos na Europa desde que os soviets começaram a funcionar. (...) Em definitivo, não creio que seja necessário desesperar do direito e da liberdade desde que a revolução russa fez surgir instituições que se ligam mais a Proudhon que às escolas que têm tão mal explorado a herança de Marx (SOREL, 1962, p. 91, 111).

94 Título dado pelos editores italianos em 1928, já que o texto original em francês não possui título (SOREL, 1962, p. 88).

273

O revolucionário francês demonstra preocupação constante com a criação de um

"direito proletário" que opõe ao jacobinismo. Este se configuraria como a ditadura de uma

minoria que se arrogaria a liderança dos trabalhadores e cuja desconsideração à criação de

nova condição jurídica conduziria aos excessos de terror e ao autoritarismo. Como se pode

ler acima, Sorel considera, numa interpretação flagrantemente equivocada que ignoraria o

próprio jacobinismo do partido bolchevique, que os soviets se inspirariam mais na obra de

Proudhon que em alguma escola socialista marxista.

Sobre a suposta aproximação de Sorel com o fascismo, ou deste com a teoria

soreliana, nos caberia aqui algumas observações. Gramsci é de opinião de que tal

interpretação de Sorel só se faria possível mediante a "distorção" de seu pensamento.95

Charzat (1983) desenvolve argumentação convincente demonstrando a impossibilidade

teórica de se buscar em Sorel fundamentos do fascismo. Para Sand (1985, p.15), seria fácil

demonstrar, na obra de Sorel, os elementos que, se não no conteúdo, pelo menos em sua

forma de exposição, suscitariam às vezes reminiscências com a terminologia fascista

ulterior: o desprezo com relação ao socialismo parlamentar e os partidos que o encarnariam,

o desgosto pela democracia parlamentar moderna, a crítica do intelectualismo e do

racionalismo, a exaltação do ativismo heroico, etc. Todavia, transformar Sorel em fascista

seria chocar-se, segundo Sand, com dificuldades incontornáveis. Sorel, na condição de

pensador antitotalitário e antifascista teria sempre desprezado os socialistas revolucionários

que teriam como seu único horizonte a conquista do poder do Estado. Sorel não sentiria

admiração pelo sistema parlamentar, mas, em face da agonia deste regime já vazio de

substância, a solução por ele preconizada consistiria numa estrutura política descentralizada

onde seria exercida a hegemonia da classe operária autônoma ou, em sua ausência, um

sistema fortemente marcado por um federalismo que permitisse a organização futura do

regime desejado. Nada seria mais repugnante para Sorel do que um movimento político

revolucionário sob a hegemonia da “pequena burguesia”, como para ele teriam sido o

bonapartismo e os movimentos dos dreyfusards e antidreyfusards (Idem, p.20-21).

95

Trata-se da seguinte passagem: "É de se notar que, embora Sorel possa ser empregado para justificar as mais disparatadas posições práticas devido à variedade e incoerência de seus pontos de vista, é inegável nele um ponto fundamental e constante, o seu radical 'liberalismo' (ou teoria da espontaneidade), que impede qualquer consequência conservadora de suas opiniões. (...) O ponto obscuro de Sorel é seu antijacobinismo e seu economicismo puro, e esse (...) é o único elemento de sua doutrina que pode ser distorcido para dar lugar a interpretações conservadoras" (Q17, §20, p.1923, B).

274

275

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, procuramos demonstrar a constituição de um revisionismo “latino”

paralelo à experiência da socialdemocracia alemã, bem como a maneira como Antonio

Gramsci reage a ele, empreendendo a tarefa de se confrontar com este movimento teórico

para superar a chamada “crise” que esse movimento pretendera atribuir ao marxismo.

Movido pela análise concreta de seu tempo e seu espaço italiano, Gramsci assumiu tal

debate, sobretudo, com os representantes italianos e franceses do revisionismo. Por isso nos

preocupamos, aqui, em mapear o desenvolvimento histórico e teórico da versão que se dera

à margem da socialdemocracia alemã e do protagonismo de Eduard Bernstein, embora

tivéssemos considerado mostrar sumariamente os elementos básicos do epicentro

germânico do movimento e o diálogo que com ele mantiveram os representantes latinos.

O movimento teórico revisionista, como é notório e como se pôde sumariamente

constatar em alguns momentos deste trabalho, redundou em práticas políticas reformistas

por onde se desenvolveu. Para o proletariado, as reformas foram, são e serão sempre bem-

vindas no âmbito da luta de classes. Os pressupostos daquele movimento continuam, aliás,

a inspirar as práticas da esquerda socialista ainda hoje. Propostas de formação de grandes

blocos sociais anticapitalistas sob a égide de partidos descentralizados e teorias sobre a não

necessidade do poder político para mudanças no padrão capitalista das relações de

produção são alguns exemplos.

A nosso ver, deve-se, no entanto, fazer uma diferenciação analítica entre o

“reformismo” e a “conquista de reformas” ou a “reivindicação por reformas”. Estas fazem

parte do programa mínimo de quase todo partido revolucionário. Sua diferença em relação

aos partidos reformistas reside em que estes consideram as reformas como elemento de sua

estratégia, ou seja, de seu programa máximo, colocando assim a conquista de reformas

como limite de seu programa político. Para os partidos revolucionários, a conquista de

reformas é tática, não estratégica. Sua estratégia, seu programa máximo, é a revolução

socialista. De tudo isso resulta que, na prática, os partidos que mantém a conquista de

reformas como seu objetivo final, como seu programa máximo, como sua estratégia,

acabam por minimizar a importância da independência das classes trabalhadoras, de que, no

processo de conquista de reformas, aquela independência seja mantida. Isso ocorre porque,

276

sendo o reformismo seu programa estratégico, queda sem sentido a perspectiva da luta de

classes. Pela natureza limitada e, em última instância, conservadora de seus objetivos com

relação às transformações sociais, o reformismo conduz, assim, as classes trabalhadoras a

uma política de conciliação com as classes burguesas e pequeno-burguesas, o que no longo

prazo (ou nem tão longo assim) acaba por minar sua própria capacidade autônoma de

reivindicação e organização. Esses são os motivos principais pelos quais, na análise das

relações de força, deve-se distinguir com precisão a importância da reivindicação por

reformas do movimento reformista em si. Mas essas são inferências secundárias com

relação ao escopo de nosso trabalho.

Voltando a nossos personagens, gostaríamos de reiterar que a opção por focalizar o

debate de Gramsci com Sorel se justifica se lembrarmo-nos de que alguns conceitos axiais

para a edificação da filosofia da práxis gramsciana são fundados, originalmente, na

terminologia do revisionismo condensado em Georges Sorel, como bloco histórico, , cisão

de classes e mito. Neste trabalho, os resultados de nosso método de pesquisa nos sugerem

que Sorel fora uma espécie de epicentro do revisionismo marginal, produzindo e

reproduzindo copiosamente as ideias do movimento em questão, por meio de seu intenso

debate teórico e epistolar com homens como Benedetto Croce e o próprio Labriola, além do

contato com líderes e teóricos do sindicalismo francês e italiano, sua incansável produção

de artigos de análise de teoria e conjuntura para revistas socialistas como Le Devenir Social

(revista da qual também foi editor, junto a Paul Lafargue, entre 1895 e 1897) e Le

Mouvement Socialiste, entre várias outras publicações.

Entendemos ainda que não se trata de mera utilização de termos parecidos, como

num processo de inspiração, para se refletir sobre coisas que seriam fundamentalmente

diferentes. As noções sobre a possibilidade da “tradução / tradutibilidade” entre as

diferentes linguagens científicas, apresentadas no segundo capítulo, nos servem bem para

refutar uma eventual objeção nesse sentido. A apropriação / negação de alguns conceitos

de base revisionista tinha por objetivo fazer deles uma tradução informada pela filosofia da

práxis. Tratava-se de mostrar até onde chegava a força efetiva de determinado constructo

conceitual e, em seguida, escancarar suas limitações e ultrapassá-las onde o conceito estava

estagnado em sua relação com a realidade efetiva. Por isso não poderia ser uma mera

277

atribuição de diferentes significados para as mesmas expressões. Sim, havia lógica na ideia

de bloco histórico, mas este não era apenas um conjunto de imagens míticas, mas sim a

expressão da possibilidade real de uma nova época histórica baseada na unificação entre

filosofia e política, teoria e prática, pensamento e ação. Sim, existia a possibilidade da cisão

de classes, mas não como resistência subjetiva aos valores burgueses, ou não apenas isso,

mas como construção objetiva de novas instituições não burguesas.

Realizado tal procedimento de tradução chega-se, por exemplo, à questão do bloco

histórico. Tal questão, bem como a problemática do jacobinismo, por exemplo, aparecem

como duas categorias que se entrelaçam na medida em que para a luta em direção a

construção de um novo bloco histórico se faz necessária uma vontade política nacional

popular cuja força deverá ser concentrada no moderno príncipe, o partido, que colocará em

prática, assim, o que Gramsci denominara de "jacobinismo de conteúdo". O paradoxo

profundo do posicionamento político-teórico de Sorel encontrar-se-ia na criação do

conceito de bloco de imagens históricas como perspectiva de luta política negando, ao

mesmo tempo, a organização de uma vontade coletiva que agregasse forças, de forma

perene, para aquela luta política. Daí que seus objetivos não podem aparecer de outra forma

que não seja mítica. Mais concretamente, Sorel não lidaria com o problema da transição

jurídico-material entre uma e outra formação social ou, antes, como proceder à revolução,

ou mesmo à prática do "socialismo revolucionário", sem a incisiva violência de método

jacobino contra as classes dominantes. Sustenta o pensador francês que "apenas o

socialismo revolucionário é o único apto a produzir o desenvolvimento do direito

proletário" (SOREL, 1962, p. 110). Aqui se pode voltar à crítica que Gramsci faz a esse

pressuposto. À moda de Gramsci, podemos nos perguntar que espécies de instituições

jurídicas permanentes, de novo tipo, podem ser criadas por um movimento espontâneo de

sublevação do proletariado que, justamente por se negar uma organização permanente, está

fadado a se esvaecer no momento mesmo de sua formação. Em outras palavras, Sorel

preconizaria a "violência proletária" espontânea, que dispensaria o encadeamento de

intervenções políticas a partir do programa de um partido revolucionário que dirigisse a

278

vontade coletiva em direção às fundações de um novo bloco histórico, em suma, sem

jacobinismo. Segundo Gramsci, tal seria seu "ponto obscuro"96 .

Como vimos, ainda antes de Gramsci, o marxismo teórico italiano já havia recebido

importante influência de Sorel por meio de seu diálogo epistolar com Antonio Labriola.97 A

"ponte" entre a crítica labriolana e gramsciana do positivismo teria sido lançada pelo

pensamento soreliano e, em Gramsci, manifestar-se-ia como "a última e fecunda

ressurgência de uma referência soreliana no movimento das idéias da Itália contemporânea"

(CHARZAT, 1986, p. 214). A abordagem do pensamento de Sorel nos Cadernos do

Cárcere por meio do debate teórico que o avalia na medida em que participa da

determinação dos fundamentos dos conceitos gramscianos de revolução passiva,

jacobinismo e bloco histórico, ligados entre si de forma a estruturar um conjunto teórico

interdependente, possui a qualidade de registrar, ainda que parcialmente, essa

"recomposição do marxismo" que Gramsci pretendeu realizar a partir do debate rigoroso,

dentre outros, também com Georges Sorel.

Aquele paradoxo profundo de Sorel, aludido ainda acima, torna-se evidente se

tomarmos o pensamento do filósofo francês em sua "integralidade", buscando identificar o

que seria um "sistema soreliano". Não foi esse o objetivo de Gramsci. Para Gramsci,

tratava-se de identificar nos escritos sorelianos aqueles "nexos impensados" que, vindos do

interior de um pensamento que se pretendia revisionista, pudessem ser utilizados e

desenvolvidos contra aquelas próprias pretensões de revisão. Ou seja, era o caso de

submeter a obra de Sorel àquela mesma "decomposição" que o próprio pensador francês

propusera para a obra de Marx, separando-lhe os conteúdos "aproveitáveis". O pensamento

soreliano ainda sofreria uma indevida aproximação com as teses fascistas antes de sair de

moda no debate intelectual. Atualmente, o sindicalismo revolucionário ainda sobrevive em

pequenas expressões do movimento trabalhista francês.98 Quanto aos escritos de Sorel e

sobre sua obra, encontram-se hoje, na maior parte, aos cuidados do Instituto de Estudos

Sorelianos de Paris.

96 Cf. nota 95. 97 Conferir Socialismo y filosofia, conjunto de textos de Labriola que corresponderiam à "sua parte" na correspondência com Sorel (Labriola, 1969). 98 Veja-se o jornal "Combate Sindicalista" (disponível em formato pdf), da Confederação Nacional do Trabalho, organização sindical francesa: http://www.cnt-f.org/

279

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