Lectio divina pag - Editora Ave-Maria -  · Um modo seguro de aprofundar-se na Palavra de Deus e de...

70

Transcript of Lectio divina pag - Editora Ave-Maria -  · Um modo seguro de aprofundar-se na Palavra de Deus e de...

5

PREFÁCIO

O amor de Dom João Evangelista Martins Terra pela Sagrada Escritura coincide com a graça da voca-ção sacerdotal que ungiu toda sua vida. Desde os 11 anos, ao iniciar seus estudos secundários, se apaixo-nou pelo latim e pelo grego bíblico, pois já pensava em ser sacerdote especializado em Sagrada Escritura. Seu entusiasmo pelos livros remonta a esses primeiros anos de sua adolescência.

Ao terminar seu noviciado jesuíta, teve dois anos de estudos humanísticos com duas aulas diárias de latim e grego. Depois do curso de Filosofia, iniciou seu magisté-rio de letras clássicas. Há 52 anos ensina latim, grego, he-braico e Sagrada Escritura em Roma e no Brasil. Em 1974 publicou sua grande obra: A oração no Antigo Testamento. Foi o início da publicação de mais de 200 livros relaciona-dos com a Sagrada Escritura.

Em 1988, ao ser eleito bispo, publicou Releitura ju-daica e cristã da Bíblia. Foi o começo de uma série de monografias sobre a Lectio Divina. Em 1984 foi nomeado pelo papa João Paulo II membro do Pontifício Instituto Bíblico. Durante dez anos pôde conviver, em Roma, com

6

os maiores exegetas católicos do mundo e com o Cardeal Ratzinger, Prefeito da Pontifícia Comissão Bíblica.

Entre suas publicações, trinta tratam de Lectio Di-vina. Quero recordar algumas delas: 1995, Leitura da Bí-blia no Espírito; 1997, Lucas, Evangelho do Espírito; 2000, Evangelho de João: Uma leitura espiritual; 2001, Uma Lec-tio Divina dos Atos dos Apóstolos.

Além de outros livros relacionados com a Lectio Di-vina, escreveu 29 artigos tratando do tema, dos quais al-guns foram publicados na Revista de Cultura Bíblica, diri-gida por ele há cinquenta anos. Entre eles: 1987, A leitura da Bíblia no Brasil e Releitura judaica e cristã da Bíblia; 1988, Como ler a Bíblia; 1989, Leitura cristã da Bíblia; 1988, A Celebração da Palavra na Celebração Eucarística e Leitura cristã dos Salmos; 1990, Lectio Divina; 1992, A Celebração da Palavra; 1993, A interpretação autêntica da Sagrada Escritura; 1993, A interpretação da Bíblia na Igre-ja de hoje; 1994, Leitura comunitária da Bíblia; 1994, Lei-tura da Bíblia e catequese; 1994, Exegese católica da Bíblia; 1994, A Celebração da Palavra; 1994, Lectio Divina; 1994, Leitura da Bíblia no Espírito. Na revista Atualização: 1982, A leitura da Bíblia ontem e hoje; 1993, Lectio Divina; 1993, Página bíblica: leitura comunitária da Bíblia. Na revista Communio: 1988, Ruptura entre a Igreja e a exegese; 1988, Exegese científica e interpretação espiritual da Bíblia. No jornal A Mensagem Católica, do Recife: 1992, A Celebração da Palavra; 1993, Lectio Divina; 1993, Leitura comunitária da Bíblia; 1993, Leitura da Bíblia e catequese; 1993, Exege-se científica; 1994, A leitura da Bíblia no Espírito.

O livro Lectio Divina, de Dom Terra, incorpora mui-tos desses temas, tendo ele lido e assimilado quase todos os numerosos estudos especializados publicados nas últi-mas décadas. O leitor perceberá a extraordinária erudição

Lectio Divina

7

que está na retaguarda deste livro. Algumas vezes Dom Terra transcreveu quase que literalmente suas fontes, mas geralmente elas aparecem assimiladas e acomodadas dentro de um novo contexto. No fim do livro são citadas, na bibliografia, as fontes consultadas e utilizadas.

Alguns capítulos de índole mais didática deixam per-ceber seu Sitz im Leben. Assim, por exemplo, o capítulo sobre a Lectio Divina no judaísmo se origina de um se-minário dado no Pontifício Instituto Bíblico, durante a década de 1970, e publicado no livro Releitura judaica e cristã da Bíblia em 1988. Certamente esses capítulos inte-ressarão bastante aos teólogos e estudiosos. O leitor mais apressado poderá saltá-los. Contudo, acredito serem de grande valia para quem deseja se aprofundar em seus co-nhecimentos da Sagrada Escritura.

Recomendo com verdadeiro prazer este livro, que vem bem a propósito no momento em que a Igreja é aler-tada pelo Sínodo dos Bispos a meditar sobre “a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja”.

Pe. Brás Ivan Costa Santos

Prefácio

9

PEQUENO COMENTÁRIO INTRODUTÓRIO

O célebre professor e escritor Dom Martins Terra não carece de apresentação. Prefiro tecer apenas um simples comentário inicial à meritória obra Lectio Divina.

É com alegria que dou início, prezados leitores, à mi-nha modesta apreciação da obra de Dom João Evangelista Martins Terra, SJ, no intento de despertá-los, ainda mais, para o sentido transcendente da experiência do encontro pessoal com Deus e do enriquecimento da mais aprofun-dada espiritualidade da vida que nos foge a cada dia.

Ao longo dos milênios o homem se pergunta sobre sua origem e seu destino. Nessa busca vai encontrar, na Bíblia, os primórdios de sua história.

A rigor não sabemos mais meditar, refletir, ruminar, volver o olhar sobre nossa história; fazemos simplesmen-te uma leitura cursiva, superficial, sem que se lhe atinja o segredo, em busca de uma resposta apenas literal.

Nesta obra de Dom Terra, Lectio Divina, leitura oran-te da Bíblia, o leitor vai encontrar um autor revigorado pelo tema da XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, A Palavra de Deus na vida e na missão da

10

Igreja, realizada entre 5 e 26 de outubro de 2008. Ao reto-mar as palavras do papa Bento XVI, “ao encontrar a Pa-lavra Divina o coração arde porque é Ele quem a explica e proclama”, registradas no Documento da V Conferência Episcopal Latino-Americana e Caribenha, em Aparecida (247-249), o leitor pode perguntar: o que é leitura orante?

Leitura orante acontece quando, ao ler, a mente con-sidera atentamente as palavras do texto, enquanto a ima-ginação e os afetos tomam consciência do que Deus nos diz, concretamente, aqui e agora, promovendo um coló-quio que responde ao que Deus nos diz, exorta, promete ou adverte, no momento em que, interpelados pela Pala-vra, nos convertemos à vontade divina.

Esta obra Lectio Divina, de Dom João Evangelista Martins Terra, SJ, dividida em 16 capítulos, possibilitará ao leitor aprofundar-se no grande acervo de produções do autor acerca da Lectio Divina, “permeando e alimen-tando um amor efetivo e constante à Sagrada Escritura”.

A finalidade é levar a pessoa a amadurecer para uma leitura da Palavra, tornando-a capaz do discernimento sapiencial da realidade.

O autor propõe com erudição e simplicidade um en-sinamento claramente ordenado dos métodos da Lectio Divina, e se destina às pessoas que desejam adquirir co-nhecimento mais aprofundado da palavra divina.

Como percorrer esse itinerário?

O papa Bento XVI aponta:

Um modo seguro de aprofundar-se na Palavra de Deus e de saboreá-la é a Lectio Divina, que constitui um verdadeiro itinerário espiritual por etapas. A Lec-tio consiste em ler e reler uma passagem das Sagradas Escrituras, recolhendo dela os principais elementos e

Lectio Divina

11

passando à Meditatio, que é como um tempo de para-da interior durante o qual a alma se volta para Deus, procurando compreender o que sua Palavra nos diz, hoje, para a vida concreta. Vem, em seguida, a Oratio, que nos permite entreter-nos, com Deus, em um diá-logo direto, e que nos conduz, enfim, à Contemplatio; esta nos ajuda a manter nosso coração atento à pre-sença do Cristo, cuja palavra é uma “lâmpada que bri-lha na escuridão, até que apareça o dia e que a estrela da manhã se erga em nossos corações” (2Pd 1,19).

A leitura, o estudo e a meditação da Palavra devem, em seguida, conduzir-nos a aderir a um modo de vida conforme o de Cristo e de seus ensinamentos. (Práxis da caridade).

Origem da Lectio Divina

Esteve sempre presente na Patrística, desde Santo An-tão até Isidoro de Sevilha, e prosperou com os padres inacia-nos, beneditinos, agostinianos, cistercienses e franciscanos.

Ressalta o autor que São Cipriano, Bispo de Cartago, é o maior teólogo da Igreja Ocidental até Santo Agostinho e São Gregório Magno. É dele o Decreto De Ecclesiae Uni-tate, em que registra a máxima: “Quem não está com seu bispo também não está com a Igreja” (Ep 43,5).

Trata dos quatro sentidos da Escritura segundo a exege-se da Patrística: o literal (a letra nos ensina o que aconteceu); o alegórico (o que devemos crer); o moral (o que devemos fazer) e o anagógico (para onde devemos caminhar).

No capítulo História da Antiga Aliança é destacada a Lectio Divina na releitura judaica da Sagrada Escri-tura, chamada midrash, que cita o Targum, paráfrase aramaica que significa tradução aramaica da Bíblia he-

Pequeno comentário introdutório

12

braica. Ratifica a afirmação judaica de que “quem tra-duz um versículo na sua forma literal é um falsificador e quem faz qualquer acréscimo é um blasfemo” (Qid-dershire, 49 a).

Já na Nova Aliança, os evangelistas substituíram a Torah por Jesus. Assim, encontramos em Lucas que a Tra-dição se apoia em lembranças históricas precisas e fide-dignas.

A Escritura é a pedagogia para se chegar a Jesus.

Quanto à metodologia da Lectio Divina, apresentada no capítulo sobre os Atos dos Apóstolos, é bastante apro-priado refleti-la a propósito do Ano Paulino. O Mestre dos Gentios não é para nós uma figura do passado, que recor-damos com veneração. É também o “nosso” mestre, após-tolo e propagador de Jesus Cristo.

O Ano Paulino, iniciado em 29 de junho de 2008, se estendeu até 29 de junho de 2009. O Papa Bento XVI rece-beu todas as Igrejas que têm vínculos particulares com o apóstolo Paulo – Jerusalém, Antioquia, Chipre, Grécia – e que formam o ambiente geográfico da vida do Apóstolo antes de sua chegada a Roma. Saudou também os irmãos das diversas Igrejas e Comunidades Eclesiais do Oriente e do Ocidente, no Ano especialmente dedicado ao Apóstolo das Nações, o que assumiu particular caráter ecumênico e inter-religioso.

Em nossos dias, o sopro do Espírito Santo desceu sob a forma de novos movimentos eclesiais de leigos – Toca de Assis, Neocatecumenato, Obra de Maria, Canção Nova, Legionários, onde a Lectio Divina, Palavra escutada, leva à prática da caridade, e constitui fonte inspiradora de itine-rários tais como exercícios espirituais, retiros, devoções e experiências religiosas.

Lectio Divina

13

Na atualidade, há uma busca de valores, quer sejam culturais, literários, éticos ou morais, no desejo de encon-trar um horizonte em que se possa vislumbrar a ecologia, o respeito, os princípios mais próximos, para se chegar aos valores transcendentais.

Com a dessacralização na pós-modernidade, as prá-ticas orientais de interiorização e meditação expressam, no hinduísmo e no zen-budismo, por exemplo, caminhos de procura da Lectio Divina.

O capítulo Meditação Oriental segue o seguinte mé-todo:

1. O vácuo da consciência, ápice da pessoa humana, que é a remoção de todo o conteúdo, de todo objeto particular e finito.

2. O nada, a negação de todos os objetos determinados. Para São João da Cruz é a expressão do Absoluto.

3. O nada e o Absoluto: o nada não é ausência, mas ex-pressão apofática do Absoluto. O Absoluto nunca se mostra como um objeto aos demais objetos.

4. Interpretação monística.

5. O Absoluto pessoal? A expressão bhakti é o amor de Deus na Índia, na interpretação pessoal do Absoluto.

A meditação no Oriente não é sem conteúdo, embora seja sem objeto definido.

Conquanto os livros sacros das religiões orientais do hinduísmo, budismo, bramanismo tragam ensinamentos importantíssimos, na luta contra a dor e na proposta de valores, há erros graves, tais como: a perda da pessoa no Nirvana, o diluir-se na “grande pessoa” ou personalidade holística.

Pequeno comentário introdutório

14

Os ensinamentos dos livros do Eclesiástico e da Sabe-doria são sublimes e se opõem fortemente a tais conceitos.

No Saltério, cada Salmo dos 150 é mais belo do que o outro. São valores e mais valores. São respostas equilibra-das para cada estado de alma. São conversas espirituais em que nada sobrepuja a Sabedoria Divina.

O papa Bento XVI, por ocasião dos 40 anos da Dei Verbum, ressaltou: “Foi mais profundamente reavaliada a importância fundamental da Palavra de Deus” e daí deri-vou “uma renovação da vida da Igreja, sobretudo na pre-gação, na catequese, na teologia, na espiritualidade e no próprio caminho ecumênico” (RL).

O autor da obra, Dom João Evangelista Martins Ter-ra, SJ, estabelece um paralelo entre exegese e teologia que aponta o sentido espiritual da Escritura.

A Dei Verbum (12) determina que “todo exegeta deva ser teólogo, ou seja, estudar a Escritura com o mesmo es-pírito com que ela foi escrita, na investigação do reto sen-tido dos textos sagrados”.

Assim, a exegese não fica só no plano da historicida-de, mas também da teologia (DV), oferecendo duas indi-cações metodológicas para o trabalho exegético: o recur-so ao método histórico-científico e a fé na ação divina, interpretada no mesmo espírito em que foi escrita.

A polêmica entre ciência e fé pode desembocar numa exegese acadêmico-científica em que os elementos teoló-gicos da exegese canônica (da Tradição e da analogia da fé) se encontram ausentes, provocando assim consequências graves, tal como considerar a Bíblia um livro do passado, como historiografia; a hermenêutica, desaparecendo a fé, apresenta-se secularizada, positivista, como se o elemento divino não se tivesse manifestado na História.

Lectio Divina

15

O papa João Paulo II havia pedido a Dom Terra que construísse um Instituto similar ao Instituto Bíblico de Roma, com a finalidade de enfatizar o domínio das lín-guas bíblicas e do latim eclesiástico para os formadores – sacerdotes, religiosos, leigos e leigas e professores de Sa-grada Escritura em toda a América Latina.

E assim Dom Terra, obediente ao Magistério da Igreja, construiu o Instituto Bíblico de Brasília, ao lado da CNBB, cujo eixo principal é o estudo e a interpretação minucio-sa da Bíblia, nas línguas originais: aramaico, hebraico e grego.

Este ano de 2009 foi proclamado, pela CNBB, Ano Catequético Nacional, e a Igreja vive a urgência de ultra-passar os limites da catequese e refletir sobre a formação de forma integral e permanente, envolvendo as pastorais e os movimentos eclesiais de leigos e de leigas.

Pelo Programa Pastoral de Conjunto Diocesano, par-tindo-se de atitudes contemplativas, podemos percorrer o caminho da Lectio Bíblica por meio de escolas da Palavra, da Lectio Divina pelas rádios e “cátedras dos não crentes” etc., tornando a Palavra de Deus acessível a todos.

Nada é mais oportuno que essa obra de Dom Terra para aprofundarmos a formação de todo o discipulado missionário do Brasil na Lectio Divina, à luz do itinerário dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35).

Parabenizo e agradeço ao mestre e grande amigo Dom João Evangelista Martins Terra, SJ, por mais este ser-viço em favor da Igreja.

Cardeal Dom Eusébio Oscar Scheid, SCJArcebispo Emérito da Arquidiocesede São Sebastião do Rio de Janeiro

Pequeno comentário introdutório

17

I

LECTIO DIVINA

Lectio Divina é uma expressão latina que designa uma leitura espiritual da Bíblia. Chama-se lectio porque designa uma leitura, e divina, antes de tudo, por causa de seu objeto, que é a Palavra de Deus, livro sagrado, e tam-bém pelo modo de praticá-la.

Na Lectio Divina não se busca a erudição, nem a exe-gese técnica de caráter crítico-literário, como podem fazê-lo os professores de Sagrada Escritura ou espe-cialistas desta ciência teológica, mas tem uma fina-lidade existencial, vital e espiritual, isto é, pretende alimentar a fé e robustecer a adesão pessoal a Deus. Por isso, a atitude interior de quem se entrega à Lectio Divina não é o interesse científico, nem a curiosida-de ou informação, mas a sede do coração que sente necessidade de abeberar-se na água viva da Palavra para saciar o desejo vital de felicidade e salvação. (M. Ballano)

Vou transcrever aqui uma página do documento da Pontifícia Comissão Bíblica intitulado A Interpretação da Bíblia na Igreja (1993):

18

Lectio Divina

A Lectio Divina

A Lectio Divina é uma leitura, individual ou comu-nitária, de uma passagem mais ou menos longa da Escritura acolhida como Palavra de Deus e que se desenvolve sob a moção do Espírito em meditação, oração e contemplação.

O cuidado de se fazer uma leitura regular, e mesmo cotidiana, da Escritura corresponde a uma prática antiga na Igreja. Como prática coletiva, ela é atestada no século III, na época de Orígenes; este fazia a ho-milia a partir de um texto da Escritura lido continua-damente durante a semana. Havia então assembleias cotidianas consagradas à leitura e à explicação da Es-critura. Esta prática, que foi abandonada posterior-mente, encontrava sempre um grande sucesso junto aos cristãos (Orígenes, Hom. Gen. X,1).

A Lectio Divina como prática, sobretudo, individual é atestada no ambiente monástico em seu auge. No período contemporâneo, uma instrução da Comissão Bíblica aprovada pelo papa Pio XII recomendou-a a todos os clérigos, tanto seculares como regulares (De Scriptura Sacra, 1950; E. B., 592). A insistência sobre a Lectio Divina sob seu duplo aspecto, individual e co-munitário, voltou assim a ser atual. A finalidade que se procura é a de suscitar e de alimentar um amor efetivo e constante à Santa Escritura, fonte de vida interior e de fecundidade apostólica (E. B., 591 e 567), de favorecer também uma melhor inteligência da li-turgia e de assegurar à Bíblia um lugar mais impor-tante nos estudos teológicos e na oração.

A Constituição Conciliar Dei Verbum (no 25) insiste igualmente na leitura assídua das Escrituras para os padres e religiosos. Além disso – e é uma novidade – ela convida também todos os fiéis do Cristo a ad-quirir por uma frequente leitura das Escrituras divi-nas “a eminente ciência de Jesus Cristo” (Fl 3,8). Di-

19

I. Lectio Divina

versos meios são propostos. Ao lado de uma leitura individual, é sugerida uma leitura em grupo. O texto conciliar sublinha que a oração deve acompanhar a leitura da Escritura, pois ela é a resposta à Palavra de Deus encontrada na Escritura sob a inspiração do Es-pírito. Numerosas iniciativas foram tomadas no povo cristão para uma leitura comunitária, e só se pode encorajar esse desejo de um melhor conhecimento de Deus e de seu plano de salvação em Jesus Cristo através das Escrituras.

A expressão latina Lectio Divina remonta aos pri-meiros Santos Padres e monges latinos, mas ela é uma tradução da expressão grega theia anagnósis, cunhada por Orígenes (185-253) numa carta dirigida a Gregório Taumaturgo (+ca 270), aluno de Orígenes, em Cesareia, na Palestina. Nessa carta Orígenes escreve:

Dedica-te à lectio das divinas (theia) Escrituras; apli-ca-te a isso com perseverança (...) Entrega-te à lectio com a intenção de crer e de agradar a Deus. Se du-rante a lectio te encontrares com uma porta fechada, suplica e te abrirá aquele porteiro do qual Jesus falou, ‘A quem chama, o porteiro lhe abre’ (Jo 10,3). Entre-gando-te, assim, à Lectio Divina, busca, com lealdade e inquebrantável confiança em Deus, o sentido das divinas Escrituras oculto à grande maioria. Não te contentes com chamar e buscar, porque é absoluta-mente necessária a oratio (a oração) a fim de com-preender as coisas de Deus. Para exortar-nos a ela, o Salvador não disse unicamente: ‘Pedi e dar-se-vos-á’ e ‘Buscai e achareis’, mas também ‘Pedi e se vos dará’ (Mt 7,7; Lc 11,9) (Lettre d’Origène à Gregoire le Thau-maturge, 4, SCh 148, 192-195).

O texto de Orígenes já apresenta, embrionariamen-te, todas as características essenciais próprias da Lectio

20

Lectio Divina

Divina tal como foi praticada na Igreja primitiva: exame minucioso do texto bíblico (lectio), busca perseverante de seu significado profundo (meditatio), consciência de que a lectio e a meditatio unem seu vértice e seu fruto na ora-tio. Orígenes indica até mesmo as condições prévias para uma Lectio Divina proveitosa: fé e busca de Deus.

A Lectio Divina foi intensamente praticada pela Igre-ja dos Santos Padres e monges, tanto gregos como latinos, até o século XII.

A partir do século XII a expressão Lectio Divina vai desaparecendo e com ela a própria realidade a que se re-fere. Começa a devotio moderna.

Movimento da espiritualidade cristã, a devotio mo-derna surgiu nos meios religiosos da Holanda e da Bélgica, no século XIV, sob o influxo da revivescência das doutri-nas de Santo Agostinho, particularmente entre os cône-gos regulares agostianos. Seu iniciador é Gerardo Groote (1340-1384), discípulo de João Ruysbroeck (m. 1384).

A devotio moderna fomentava e irradiava intensa-mente, nos Institutos religiosos, o exercício das faculda-des afetivas do modo mais puro e mais alto – a caridade. Devia, para esse fim, orientar todo o esforço pessoal da oração, do diálogo com Deus, a um caráter mais contem-plativo e reflexivo que especulativo, o que era mais apto que a simples oração vocal e litúrgica para estimular o fervor prático da vida consagrada à glorificação divina. O ofício coral e as solenidades eucarísticas passaram, as-sim, a ser mais reduzidos e simplificados, sublinhando-se a importância da meditação pessoal, ou exame de cons-ciência, e dos métodos da oração e direção espiritual vol-tados ao plano interior e à reforma de vida ou escolha de um estado de vida.

21

I. Lectio Divina

A devotio moderna dá um grande lugar à meditação e aos exercícios espirituais. Por meio da oração metódica, ela reformou grande número de mosteiros. A oração me-tódica bem praticada eleva a alma ao colóquio amoroso com Deus. Esse movimento irradiou-se por grande parte do mundo ocidental graças, sobretudo, à popularidade al-cançada pelos celebérrimos livros Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis, e Vita Christi, de Ludolfo Cartusiano.

Todas as particularidades da devotio moderna se encontram nos escritos de Tomás de Kempis, o maior escritor dessa escola. Imitação de Cristo é o escrito que melhor reflete a espiritualidade e o gênero literário da devotio moderna.

A prática dos Exercícios Espirituais, segundo o método de Santo Inácio de Loyola, divulgada entre nós em meados do século XVI, com o caráter pessoal que ela imprime à vida ascética, veio engrossar a nova corrente. Escritos contendo apenas pontos de meditação, segundo o método inacia-no, publicados até a primeira metade do século passado, foram inúmeros. O mais famoso desses autores de pontos de meditação é o jesuíta espanhol Luís de la Puente (1554-1624), com seu livro Meditaciones de los mistérios de nues-tra santa fé con la práctica de la oración mental sobre ellos (2 volumes, Valladolid 1605). Esse livro teve várias edições em língua espanhola. Possui também uma edição resumi-da várias vezes reeditada. Foi traduzido em latim, alemão, italiano, polonês, flamengo, português, inglês, tcheco, ára-be, chinês e em outras línguas ainda. Foram feitas várias adaptações em diferentes línguas.

Outra causa da crise da Lectio Divina foi a tradução da Bíblia em línguas modernas. Quando só havia a tradução la-tina, que era a língua utilizada nos mosteiros, lecionários e exemplares da Bíblia, os religiosos e monges podiam fazer

22

Lectio Divina

a Lectio Divina. Com o advento da imprensa (1450) come-çaram a aparecer traduções da Bíblia em várias línguas. No ano 1520 já havia 17 edições da Bíblia em alemão.

Lutero, com sua teologia de sola Scriptura como fon-te da revelação, e a invenção da imprensa, que ensejou a expansão das traduções protestantes da Bíblia, provo-caram a reação do Magistério de proibir a leitura dessas traduções. (Ver as encíclicas de Pio VII, Magno et acerbo; Leão XII, Ubi primum; Gregório XVI, Inter praecipuas ma-chinationes; Pio IX, Qui pluribus etc.). No começo do sé-culo XVIII surgiram – primeiro na Inglaterra, depois em toda a Europa e nos Estados Unidos – as sociedades bí-blicas protestantes, que publicaram a Bíblia em mais de 1250 línguas e dialetos e difundiram mais de 550 milhões de seus exemplares. Mais uma vez os papas tiveram que intervir acusando esse movimento de “difundir entre gen-te culturalmente despreparada a Bíblia em versões ten-denciosas, acompanhadas de comentários que insinu-am erros e são favoráveis à interpretação livre e privada, negadores da tradição e do magistério da Igreja” (Pio IX, Qui pluribus). Além disso, no começo do século XVIII o protestantismo passou pela crise terrível do racionalismo que, a partir do livre exame da Escritura e fundado em sua própria opinião, rechaçava os últimos restos da fé cristã negando totalmente a divina revelação, a inspiração da Sagrada Escritura e a divindade de Cristo.

Decadência da Lectio Divina

Todo movimento desencadeado pela devotio moder-na provocou um desvanecimento progressivo da Lectio Divina, que foi substituída pela leitura espiritual e pela prática de meditação, exercícios espirituais e a leitura das vidas dos santos. Em quase todos os conventos religiosos,

23

I. Lectio Divina

que não tinham ofício coral, os noviciados tinham mais ou menos a mesma estrutura. Não havia exemplares da Bíblia para cada pessoa. A Sagrada Escritura era lida nos primeiros cinco minutos da leitura durante as refeições. Eis a distribuição do horário no meu tempo de noviciado: às 5h30, levantar; às 6 horas, visita ao Santíssimo e ora-ções da manhã (não havia Liturgia das Horas), em segui-da uma hora de meditação; às 7 horas, Missa; às 8 horas, café; às 8h30, ordinário, isto é, leitura do livro Exercícios da perfeição e virtudes cristãs, de Afonso Rodrigues; às 9h30, tempo livre; às 9h45, exortação do Padre Mestre sobre as regras da Companhia de Jesus; às 10h45, trabalhos manu-ais; às 11h15, tempo livre; às 11h45, exame de consciên-cia; ao meio-dia, almoço com leitura da História da Com-panhia de Jesus no Brasil e recreio; às 13h30, descanso; às 14 horas, extraordinário (leitura da vida de um santo); às 15 horas, reza do Rosário; às 15h30, merenda; às 16 horas, esporte; às 17h30, aula de catecismo; às 18h30, ceia; às 19 horas, recreio; às 20 horas, Imitação de Cristo; às 20h15, exame de consciência; às 20h30, pontos de meditação (La Puente) e tempo livre; às 21 horas, dormir.

Não havia tempo determinado para a Lectio Divina (cujo nome era desconhecido), nem para a leitura ou es-tudo da Sagrada Escritura e a oração dos Salmos.

Felizmente havia, na biblioteca do noviciado, uma abundância das vidas de Jesus, quase todas em francês.

Fiz o propósito de, durante o tempo denominado “extraordinário”, só ler as vidas de Jesus. Para aprofundar o conhecimento do francês, decidi não ler nada em portu-guês nem em espanhol. Esse propósito de ler as vidas de Cristo prolongou-se durante o tempo da minha formação jesuítica. Foi uma paixão que perdura até hoje. Em minha biblioteca há mais de mil livros de cristologia.

24

Lectio Divina

Ao lado da Imitação de Cristo, o livro mais lido nos con-ventos e nas casas religiosas nos últimos quatro séculos foi a obra do jesuíta Afonso Rodrigues, L’Ejercicio de perfección y virtudes cristianas, em 3 volumes (Sevilha, 1609), que em quatro anos chegou a ter quatro edições, quase uma a cada ano, e, depois, uma nova edição, chegando a contar mais de 50 até 1900. Foi traduzido em alemão, francês, inglês, italia-no, árabe, anamita, armênio, basco, croata, chinês, polo-nês, flamengo, grego moderno, húngaro, latim, português, russo, tagalo, tâmil, tcheco, japonês. Em algumas línguas chegou a ter várias traduções diferentes. Em francês teve sete traduções e 32 adaptações. Na Itália teve 46 edições e 10 extratos. Ainda em 1924 Pio XI a recomendava como leitura espiritual para a formação dos noviços em todas as congregações religiosas (Carta apostólica Unigenitus Dei Filius, AAS, t. 5, 1924, p. 142).

Rodrigues ainda se inspirava muito nas Sagradas Es-crituras e nos Santos Padres, mas, com o tempo, os livros de leitura espiritual foram se afastando da Bíblia e se nu-trindo com a vida dos santos, com os escritores místicos recentes, com os manuais de vida cristã, com cursos de teologia ascética e mística e obras de meditação.

Depois do Vaticano II, esses escritos praticamente sumiram da biblioteca. Ao mesmo tempo houve uma res-tauração da Lectio Divina.

O Concílio Vaticano II, embora não use a expressão Lectio Divina, “convoca todos os fiéis, principalmente reli-giosos a que, pela frequente leitura das divinas Escrituras, aprendam a imitar a ciência de Jesus Cristo” (Fp 3,8), “visto que ignorar as Escrituras é ignorar Cristo” (S. Jerônimo, PL 24,17). “Acheguem-se, pois, de boa mente, ao próprio texto sagrado, quer pela Sagrada Liturgia, repleta da Palavra de Deus, quer pela piedosa leitura” (piam lectionem) (DV 25).

25

I. Lectio Divina

No Código de Direito Canônico também não ocorre a expressão Lectio Divina, mas o cân. 663,3 prescreve que os religiosos “dediquem-se à leitura da Sagrada Escritura e à oração mental” (Lectioni sacrae Scriptural et orationi mentali vacent) (ver cân. 719. § 1).

O Documento de Aparecida, no seu índice analítico, também não registra a expressão Lectio Divina. É curioso que não registre igualmente as expressões Bíblia, Sagra-da Escritura, oração, meditação, liturgia, espiritualidade, alma, espírito, redenção, redentor, salvador etc. Seria inte-ressante saber o critério usado na elaboração desse elen-co. A expressão Palavra de Deus ocorre 25 vezes, embora no texto ela apareça mais que o dobro, conquanto de um modo confuso. Às vezes parece que se identifica, indevi-damente, Palavra de Deus com Sagrada Escritura, quando, de fato, o sentido da expressão Palavra de Deus seja muito mais amplo. Em primeiro lugar, Palavra de Deus é o Logos, o Verbum revelador, mas também a Palavra revelada, que, além da Escritura, abarca também a Tradição.

Em todo caso, a expressão Lectio Divina ocorre lite-ralmente pelo menos duas vezes – § 249 e 446c –, e de um modo muito feliz, como veremos adiante.

Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja

Felizmente, a XII Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos (de 5 a 26 de outubro de 2008) sobre o tema Pa-lavra de Deus resgatou, definitivamente, a Lectio Divina da Palavra de Deus, que é sopro vital essencial à vida e à missão da Igreja. A Santa Sé preparou um preciosíssimo Instrumentum laboris, que dá as pistas de orientação aos

26

Lectio Divina

bispos sinodais no estudo e aprofundamento de nossa fé católica neste início do terceiro milênio. Certamente esse Sínodo trará elementos essenciais que hão de completar, corrigir e revitalizar o Documento de Aparecida. Tentarei fazer um rápida leitura do Instrumentum laboris publi-cado pelo L’Osservatore Romano. Mas, antes de adentrar na atmosfera luminosa do documento da Santa Sé, vale a pena respirar o ar rarefeito do Documento de Aparecida a respeito da Lectio Divina.

Documento de Aparecida

Infelizmente o Documento de Aparecida não deu a este tema fundamental à evangelização da América Lati-na a atenção e o espaço merecidos. No índice analítico não ocorre a palavra Lectio Divina, nem a palavra Bíblia, nem a expressão Sagrada Escritura.

O que salva o documento é o discurso de Bento XVI, durante a sessão inaugural, no dia 13 de maio de 2007.

Discorrendo sobre o tema da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, Discípulo e missionário, o Papa pergunta:

Como conhecer realmente Cristo para poder segui-lo e viver com ele para encontrar a vida nele? Antes de tudo, Cristo se nos dá em sua pessoa, em sua vida e em sua doutrina por meio da ‘Palavra de Deus’. Ao iniciar a nova etapa que a Igreja missionária da Amé-rica Latina se dispõe a empreender, a partir da V Con-ferência Geral, em Aparecida, é condição indispen-sável o conhecimento da Palavra de Deus. Por isso, é preciso educar o povo na leitura e meditação da Pa-lavra de Deus: que ela se converta em alimento para que, por própria experiência, vejam que as palavras de Jesus são espírito e vida (cf. Jo 6,63). Do contrário,

27

I. Lectio Divina

como vão assumir uma mensagem cujo conteúdo e espírito não conhecem a fundo? Temos de funda-mentar nosso compromisso e toda nossa vida na ro-cha da Palavra de Deus. Para isso, animo os pastores a esforçar-se em dá-la a conhecer.

O discípulo, fundamentado assim na rocha da Pa-lavra de Deus, sente-se impulsionado a levar a Boa-Nova da salvação a seus irmãos (ibidem).

Para formar os discípulos e sustentar o missionário em sua grande tarefa, a Igreja lhes oferece, além do Pão da Palavra, o Pão da Eucaristia. A respeito disso, inspira-nos e ilumina a página do Evangelho sobre os discípulos de Emaús. Quando eles se sentam à mesa e recebem de Jesus Cristo o pão do Ressusci-tado, sentem, em seu coração, que é verdade tudo o que ele disse e fez, e que já começou a redenção do mundo. Cada domingo e cada Eucaristia é um en-contro com Cristo. Ao encontrar a ‘Palavra divina’, o coração arde porque é Ele quem a explica e procla-ma (ibidem).

Embora, no índice analítico, não ocorra o termo Lectio Divina, ele de fato aparece pelo menos duas ve-zes e a expressão “leitura da Sagrada Escritura” também ocorre algumas vezes. As ocorrências principais estão no contexto do tema: Lugares de encontro com Jesus Cristo.

Citando a Dei Verbum, lê-se no § 247: “Encontramos Jesus na Sagrada Escritura lida na Igreja. A Sagrada Escri-tura, Palavra de Deus escrita por inspiração do Espírito Santo, é, com a Tradição, fonte de vida para a Igreja e alma de sua evangelização. Desconhecer a Escritura é desco-nhecer Jesus Cristo e renunciar a anunciá-lo”.

28

Lectio Divina

Daí o convite de Bento XVI:

Ao iniciar a nova etapa que a Igreja missionária da América Latina se dispõe a empreender a partir da V Conferência (...) em Aparecida, é condição indis-pensável o conhecimento profundo e vivencial da Palavra de Deus (...).

Faz-se, pois, necessário propor aos fiéis a Palavra de Deus como dom do Pai para o encontro com Jesus Cristo vivo, caminho da autêntica conversão e de renovada comunhão e solidariedade. Essa propos-ta será medição de encontro com o Senhor se for apresentada a Palavra revelada, contida na Escritura, como fonte de evangelização. Os discípulos de Jesus desejam alimentar-se com o Pão da Palavra (...) Isso exige, da parte dos bispos, presbíteros, diá conos e mi-nistros leigos da Palavra, uma aproximação à Sagrada Escritura que não seja intelectual e instrumental, mas com coração faminto de ouvir a Palavra do Senhor (Am 8,11)” (§ 249). Entre muitas formas de se apro-ximar da “Sagrada Escritura”, existe uma privilegia-da, à qual somos todos convidados – a Lectio Divina, ou exercício de leitura orante da Sagrada Escritura. Essa leitura, bem praticada, conduz ao encontro com Jesus-Mestre, ao conhecimento do mistério de Jesus-Messias, à comunhão com Jesus-Filho de Deus e ao testemunho de Jesus Senhor do universo. Com estes seus quatro momentos (leitura, meditação, oração e contemplação) a leitura orante favorece o encontro pessoal com Jesus Cristo semelhante ao modo de tantos personagens do Evangelho (sic): Nicodemos e sua ânsia de vida eterna (Jo 3,1-21); a samaritana e seu desejo de culto verdadeiro (Jo 4,1-42); o cego de nascença e seu desejo de luz interior (Jo 9); Zaqueu e sua vontade de ser diferente (Lc 19,1-10). Todos eles,

29

I. Lectio Divina

graças a esse encontro, foram iluminados e recriados, porque se abriram à experiência da misericórdia do Pai que se oferece por Palavra de verdade e vida. Não abriram o coração para algo do Messias, mas para o próprio Messias, caminho de crescimento na “matu-ridade conforme a sua plenitude” (Ef 4,13), proces-so de discipulado, de comunhão com os irmãos e de compromisso com a sociedade.

Outro passo onde ocorre a expressão Lectio Divina é no § 446c, no tópico que trata de Os adolescentes e jovens, no capítulo IX sobre Família, pessoas e vida. Neste pará-grafo diz o documento:

Propor aos jovens o encontro com Jesus Cristo vivo, seu representante na Igreja, à luz do Plano de Deus, que lhes garanta a realização plena de sua dignidade de ser humano que os estimula a formar sua persona-lidade e lhes proponha uma opção vocacional especí-fica: o sacerdócio, a vida consagrada ou o matrimônio. Durante o processo de acompanhamento vocacional, irá aos poucos introduzindo gradualmente os jovens na oração pessoal e na Lectio Divina, na frequência aos sacramentos da Eucaristia e da Reconciliação, à direção espiritual e ao apostolado (§ 446 c).

A evocação da Lectio Divina nesse contexto está muito bem colocada. Por isso não se pode compreender porque foi omitida em outros textos onde não poderia faltar, tais como no capítulo V: A vocação dos discípulos missionários à santi-dade, §129; Chamado ao seguimento de Jesus Cristo, § 136; Parecidos com o Mestre. Somente no § 142 há uma breve alu-são: “Inumeráveis cristãos procuram buscar a semelhança do Senhor ao encontrá-lo na escuta da Palavra”. Ainda omitida neste capítulo nos parágrafos 216 e seguintes, que tratam dos consagrados, dos discípulos e dos missionários; nos números 227 e seguintes, que tratam do diálogo ecumênico; no capí-

30

Lectio Divina

tulo VI, que apresenta O caminho de formação dos discípulos missionários, sobretudo nos números 286 e seguintes, sobre a iniciação à vida de Cristo, embora no número 289 se aluda rapidamente a “um processo de iniciação guiado pela Palavra de Deus que conduza a um encontro pessoal cada vez maior com Jesus Cristo”. Nos números 311 e seguintes, que tratam dos novos movimentos eclesiais e novas comunidades, seria a desejar um espaço muito mais amplo, consagrado explicita-mente à Lectio Divina, que é a alma dessas novas comunida-des; No capítulo IX, dedicado à Família, pessoa e vida, há um número (437) no qual se elencam 14 itens integrantes da pas-toral familiar. Ora, nenhuma palavra sobre a “prática da Lectio Divina” na família. Apenas no fim, na letra “n”, quando se fala da atenção que se deve às viúvas, se recorda a recomendação da Palavra de Deus a esse respeito.

Convém assinalar que a expressão Sagrada Escritura ocorre em alguns trechos onde se fala do encontro com Jesus Cristo, assim nos números: 247, 248, 249, 271. No rol do índice analítico consagrado à expressão Palavra de Deus faltam os mais importantes: números 142 (encon-tro com Cristo na “escuta orante” da Palavra), 146, 152, 232, 235, 249, 250, 253, 255, 266, 292, 319 (“É fundamental que, durante os anos de formação, os seminaristas sejam autênticos discípulos, chegando a realizar um verdadeiro encontro com Jesus Cristo na oração com a Palavra”).

Entre os números dedicados à Palavra de Deus, cita-dos no índice geral, quero salientar os que se relacionam com a Lectio Divina sem explicitá-la:

No 191: “Os presbíteros (...) cultivam uma vida espiri-tual(...) centrada na escuta da Palavra de Deus”.

No 192: “Os presbíteros (...) tenham profunda experi-ência de Deus (...), nutram-se da Palavra de Deus, da Eucaristia e da oração”.

31

I. Lectio Divina

No 247: “Encontramos Jesus na Sagrada Escritura lida na Igreja”.

No 248: “Bispos, presbíteros, diáconos e ministros lei-gos (tenham) uma aproximação à Sagrada Escritura que não seja só intelectual, mas com o coração”.

No 289: “A urgência de um processo de iniciação à vida cristã (...) guiado pela Palavra de Deus, que conduz a um encontro pessoal, cada vez maior, com Jesus Cristo”.

No 298: “Para que em verdade o povo conheça Cristo a fundo e o siga fielmente, deve ser conduzido espe-cialmente na leitura e meditação da Palavra de Deus, que é o primeiro fundamento de uma catequese per-manente” (Bento XVI).

No 300: A catequese deve conduzir “à prática da ora-ção familiar, à leitura orante da Palavra de Deus”.

No 308: “As pequenas comunidades eclesiais são um elemento propício para escutar a Palavra de Deus, para viver a fraternidade, para animar na oração”.

No 323: “O estudo da Palavra de Deus, no currículo aca-dêmico, não se reduza somente a noções, mas que seja espírito e vida que ilumina e alimenta toda a existência. Portanto, será necessário contar em cada seminário com número suficiente de professores bem preparados”.

A Lectio Divina no XII Sínodo dos Bispos

A importância da Lectio Divina, na vida e na missão da Igreja, polariza hoje a atenção de todos os católicos in-teressados na vivência de sua fé católica.

O XII Sínodo Romano, intitulado A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja, teve uma acurada preparação, feita pela Santa Sé, que foi publicada pelo L’Osservatore Romano no dia 21 de junho de 2008, em 12 páginas – da

32

Lectio Divina

9 a 21 –, com o título Instrumentum Laboris, a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja, que contém as pis-tas para o estudo da Palavra de Deus na missão da Igreja. Nesse magnífico documento da Santa Sé o tema Lectio Divina ocupa um lugar central, ocorrendo pelo menos 24 vezes, em todos os capítulos.

Como esse instrumento de trabalho oferece a descri-ção mais recente sobre a Lectio Divina, parece interessan-te começar pela visão que ele nos apresenta.

No capítulo V, intitulado “A Palavra de Deus, múlti-plos serviços da Igreja”, encontramos uma definição ex-traída do documento da Pontifícia Comissão Bíblica, de 1993: A Interpretação da Bíblia na Igreja.

A Lectio Divina é uma leitura individual ou comuni-tária de uma passagem mais ou menos longa da Escritu-ra, acolhida como Palavra de Deus e que, sob o estímulo do Espírito, se processa em forma de meditação, oração e contemplação.

Trata-se de uma experiência privilegiada de um en-contro orante com a Palavra de Deus (Instrumentum La-boris, cap. V):

Desde a última metade do século passado, a Palavra de Deus tem merecido atenção especial no magisté-rio dos papas Pio XII, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI (idem, c. I). Todos esses papas insistem na neces-sidade de dar primazia à Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. (ibidem)

Somos convidados a reconhecer que a Palavra de Deus é Jesus Cristo, o que implica que se leia toda a Bíblia à luz de seu mistério, de modo especial na celebração da Eucaristia e na Lectio Divina. (idem, Introdução)

Visto que é o Espírito Santo que leva à compreensão completa da Palavra de Deus, permitindo-nos com-

33

I. Lectio Divina

preendê-la e animando a leitura da Bíblia na Igreja, na sua Tradição viva de anúncio e de caridade, assim a escuta da Palavra de Deus e a Lectio Divina exigem que se pertença à comunidade da Igreja em atitude de comunhão e de serviço. (ibidem)

Sublinhando a unidade entre o pão da Palavra e o pão do Corpo de Cristo, para o pleno conhecimento da vida dos cristãos é necessário recordar também a indispensável circularidade entre a Palavra de Deus e a liturgia, e recomendar em toda parte o exercício da Lectio Divina. (idem, Introdução)

A estrutura do Instrumentum Laboris

A estrutura articula-se em três partes:

Primeira parte: põe em evidência a identidade da Pa-lavra de Deus segundo a fé da Igreja.

Segunda parte: trata da Palavra de Deus na vida da Igreja.

Terceira parte: reflete sobre a Palavra de Deus na mis-são da Igreja.

(id. Premissa)

O mistério de Deus que nos fala

A Palavra de Deus tem como pátria a Trindade – don-de provém –, por quem é sustentada e a quem regressa – testemunho permanente do amor do Pai, da obra de sal-vação do Filho e da ação do Espírito Santo. À luz da Reve-lação, a Palavra é o Verbo eterno de Deus, a segunda pes-soa da Santíssima Trindade, o Filho do Pai, fundamento e comunicação intratrinitária e ad extra (id. cap. 1).

34

Lectio Divina

A Sagrada Escritura, fixando, por divina inspiração, os conteúdos revelados, atesta, de forma autêntica, que é verdadeiramente Palavra de Deus, totalmente orienta-da para Jesus Cristo. Pelo carisma da inspiração, os livros da Sagrada Escritura têm uma força de interpretação di-reta e concreta, que outros textos de intervenções hu-manas não têm. A Palavra de Deus, porém, não se fecha na escrita. Embora a Revelação tenha terminado com a morte do último Apóstolo, a Palavra revelada continua a ser anunciada e ouvida na história da Igreja, que se em-penha em proclamá-la a todo o mundo para responder a sua necessidade de salvação. Assim a Palavra continua seu curso na Lectio Divina, na pregação viva, que abraça as diferentes formas de evangelização, onde sobressaem o anúncio, a catequese, a celebração litúrgica e o serviço, a caridade.

A Lectio Divina e a pregação, sob o poder do Espíri-to Santo, são Palavra de Deus viva, comunicada a pessoas vivas (id. cap. 1).

Na Lectio Divina e no anúncio da fé – a revelação de Deus –, dá-se um acontecimento revelador que se pode chamar verdadeiramente Palavra de Deus na Igreja.

Nesta perspectiva, a religião cristã não se pode defi-nir “religião do Livro” em termos absolutos, uma vez que o Livro inspirado pertence, de forma vital, a todo o corpo da Revelação (Bento XVI, Deus Caritas Est).

No coração da Palavra, o mistério de Cristo e da Igreja (p.2)

Os cristãos, em geral, percebem que a pessoa de Je-sus é o centro da Palavra revelada de Deus, mas, levados

35

I. Lectio Divina

por uma leitura superficial e fragmentária da Escritura, nem sempre sabem compreender em que sentido Jesus é o coração da Palavra, o caminho do Reino de Deus, a ver-dade que leva à vida eterna. Esta relação substancial entre a Palavra de Deus e o mistério de Cristo configura-se, na Revelação, como anúncio e, na história da Igreja, como aprofundamento inesgotável desse mistério.

A unidade da história salutis

A Palavra de Deus não está cristalizada em fórmu-las abstratas estáticas, mas tem uma história dinâmica. A história salutis, concluída na sua fase constitutiva, conti-nua operante agora no tempo da Igreja. A totalidade da Palavra de Deus é assegurada por todos os atos que ex-primem todos os momentos do seu ministério que estão em interação recíproca e harmônica. Entre estes, tem um papel fundamental o anúncio, a Lectio Divina, a liturgia e a catequese.

Sobretudo, a Palavra de Jesus tem de ser compreen-dida como ele mesmo a dizia, “segundo as Escrituras” (cf. Lc 24,44-49), ou seja, na história do povo de Deus do An-tigo Testamento, que O esperou como Messias, e agora na história da comunidade cristã, que O anuncia com a pre-gação, medita nele com a Lectio Divina da Bíblia, e expe-rimenta a sua amizade e guia. São Bernardo afirma que, no plano da Encarnação da Palavra, Cristo é o centro de todas as Escrituras. A Palavra de Deus, que já se fez ouvir na primeira Aliança, tornou-se visível em Cristo (S. Ber-nardo, Super Missus est, Homilia IV, 11; PL 183,86).

“A Palavra de Deus, que no princípio estava com Deus, não é, na sua plenitude, uma multiplicidade de pa-lavras; não são muitas palavras, mas uma só Palavra que

36

Lectio Divina

abarca um grande número de ideias, de que cada um é uma parte da Palavra na sua totalidade. E se Cristo nos remete para as ‘Escrituras’, como sendo as que Lhe dão testemunho, considera os livros da Escritura como um único rótulo, porque tudo o que foi escrito acerca dele está recapitulado num só todo.” (Orígenes, in Johannem, SChr 120, 380-384).

O mistério da Igreja no coração da Palavra de Deus

A Igreja, porque é mistério do Corpo de Jesus, acaba por ter, na Palavra, o anúncio de sua identidade, a gra-ça de sua conversão, o mandato de sua missão, a fonte de sua profecia, a razão de sua esperança. Por isso o encontro contínuo com a Palavra de Deus, na Lectio Divina, é causa de sua renovação e fonte de uma ‘nova primavera espiritual’, como diz Bento XVI. (I.L. no 12)

Por isso, a consciência viva de pertencer à Igreja, Cor-po de Cristo, exige uma articulação coerente das dife-rentes relações com a Palavra de Deus: uma palavra anunciada, uma Palavra meditada e interiorizada na Lectio Divina, Palavra pregada e celebrada, uma Pa-lavra vivida e pregada. É por isso que, na Igreja, a Pa-lavra de Deus não é um depósito inerte, mas torna-se regra suprema da fé e poder de vida, progride com a assistência do Espírito Santo e cresce com a reflexão e o estudo dos crentes, com a Lectio Divina, com a experiência pessoal de vida espiritual e a pregação do Magistério. (I.L. no 12)

É evidente que a primeira missão da Igreja é transmitir a Palavra divina a todos os homens, como diz a Dei Verbum: “uma religiosa escuta da Palavra de Deus, e proclamando-a com firme confiança” (DV 1). Nisso resume a essência da Igreja na sua dupla dimensão da escuta da Palavra na Lectio

37

I. Lectio Divina

Divina e proclamação da Palavra de Deus. Não há dúvida de que o primeiro lugar pertence à Palavra de Deus. Só dela se pode compreender a Igreja. Esta se define como Igreja que escuta. Esta é a função da Lectio Divina. Na medida em que escuta é que também pode ser Igreja que proclama, como diz Bento XVI: “Não é a si que a Igreja vai buscar sua vida, mas ao Evangelho, é pelo Evangelho que ela constan-temente se orienta no seu peregrinar” (Bento XVI, Ad Con-ventum Internationalem, La Sacra Scriptura nella vita della Chiesa, 16/09/2005, AAS, 97 (2005) 956).

“A comunidade cristã sente-se gerada e renovada pela Lectio Divina da Palavra de Deus para descobrir a face de Cristo. A afirmação de São Jerônimo é clara e categórica: ‘Ignoratio Scripturarum, ignoratio Christi est’ [(quem não conhece as Escrituras não conhece Cristo).” (I.L. no 13)].

Graças à realidade de Jesus, Senhor ressuscitado e presente nos sinais sacramentais, a liturgia e a Lectio Di-vina devem ser consideradas lugar primário do encontro com a Palavra de Deus.

Relação entre a Sagrada Escritura e a Palavra de Deus

Deve se reconhecer a relação de distinção e comu-nhão entre a Bíblia e a Palavra de Deus. É a própria Bíblia que afirma a não coincidência material entre a Palavra de Deus e a Escritura. A Palavra de Deus é realidade viva e efi-caz (cf. Hb 4,12-13), eterna, onipotente, criadora e instau-radora de história. Para o Novo Testamento essa Palavra é o próprio Filho de Deus, Verbo feito carne (cf. Jo 1,15). A Escritura, por sua vez, é a afirmação dessa relação entre Deus e o homem, ilumina-a e orienta-a de forma correta. A Palavra de Deus, portanto, não se circunscreve ao Livro; chega ao homem pelo caminho da Igreja, Tradição viva.

38

Lectio Divina

Isso implica a superação de uma interpretação subjetiva e fechada da Escritura, pelo que esta deve ser lida dentro de um processo da Palavra de Deus mais vasta, mesmo ines-gotável, e o fato de a Palavra continuar a alimentar a vida de gerações, em tempos sempre novos e diferentes, atesta essa necessidade. A comunidade cristã torna-se, por con-seguinte, sujeito da transmissão da Palavra de Deus e, ao mesmo tempo, sujeito para captar o sentido profundo da Sagrada Escritura, o progresso da fé e, portanto, a evolu-ção do dogma (I.L. no 15).

Graças ao carisma da inspiração, o Espírito Santo faz dos livros bíblicos Palavra de Deus e confia-os à Igreja para que sejam escutados na obediência da fé.

Tradição, Escritura e Magistério

O Concílio Vaticano II insiste na unidade de origem e em muitas ligações entre Tradição e Escritura. A Palavra de Deus, feita em Cristo Evangelho ou Boa-Nova, entregue à pregação apostólica, continua seu curso, primeiramente, por meio do fluxo da Tradição viva, manifestada em “tudo aquilo que a Igreja é e em tudo quanto acredita” (DV 8), como culto, ensinamento, caridade, santidade, martírio; em seguida, através da Sagrada Escritura que, por inspira-ção do Espírito Santo, conserva, na imutabilidade da Es-critura, os elementos constitutivos e originais da Palavra de Deus (I.L. 16). “Esta Sagrada Tradição e a Escritura Sa-grada de ambos os Testamentos são um espelho no qual a Igreja contempla Deus, de quem tudo recebe, até chegar a vê-lo, face a face, como ele é” (DV 7).

“Por fim, cabe ao Magistério da Igreja, que não é su-perior à Palavra de Deus, o encargo de ‘interpretar au-tenticamente a Palavra de Deus escrita ou transmitida’

39

I. Lectio Divina

enquanto ‘piamente a ouve, religiosamente a guarda e fielmente a expõe’ (DV 1). Em síntese, uma verdadeira Lectio Divina da Escritura como Palavra de Deus não pode ser feita senão in Ecclesia, segundo o seu ensina-mento.” (I.L. no 16).

Unidade do Antigo e do Novo Testamento na economia da salvação

O Antigo Testamento deve ser considerado como parte constitutiva da Revelação e, portanto, da Palavra de Deus. Daí a necessidade urgente de uma formação para a Lectio Divina do Antigo Testamento, reconhecendo a relação que liga os dois Testamentos e os valores perma-nentes do Antigo. Neste ponto, é de ajuda a práxis litúrgi-ca que proclama sempre o texto do Antigo Testamento em sintonia com o Evangelho como elemento essencial para a compreensão plena do Novo Testamento, conforme o ensinamento do próprio Jesus no episódio de Emaús, quando o Mestre, “começando por Moisés, percorrendo todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava dito em todas as Escrituras”, o que Lhe dizia respeito (Lc 24,27). Esta é exatamente a afirmação de Santo Agostinho: Novum in Vetere latet et in Novo Vetus patet (O Novo Testa-mento está escondido no Antigo e o Antigo é desvendado no Novo) (PL 34,623).

São Gregório Magno também diz: “O que o Antigo Testamento prometeu, o Novo Testamento mostrou; o que aquele anuncia de modo oculto, este proclama aber-tamente como presente. Por isso, o Antigo Testamento é profecia do Novo Testamento, e o melhor comentário do Antigo Testamento é o Novo Testamento” (S. Gregório Magno, In Ezechielem, 1,6,15; CCL 142,76).

40

Lectio Divina

As consequências práticas dessa doutrina são nume-rosas e vitais.

Cresce a consciência de que não é suficiente uma leitura superficial da Bíblia, mas se impõe urgentemente uma verdadeira Lectio Divina do Livro Sagrado feita sob a ação do Espírito Santo e segundo a fé da Igreja.

Porque a Escritura está intimamente ligada à Igreja, esta tem um papel essencial no acesso à Palavra na sua genuinidade fontal, tornando-se, assim, critério para a reta compreensão da Tradição, pois a liturgia, como a ca-tequese, se alimenta efetivamente da Bíblia. Com efeito, os livros da Sagrada Escritura têm uma força de apelo di-reto e concreto que outros textos e intervenções eclesiás-ticas não têm (I.L. 18).

Deve-se também ter presente, nos seus efeitos prá-ticos, a distinção entre Tradição apostólica constitutiva e tradições eclesiais. Com efeito, enquanto a primeira pro-vém dos apóstolos e transmite o que estes receberam de Jesus e do próprio Espírito Santo, as tradições eclesiais nasceram, ao longo dos tempos, nas Igrejas locais e são formas de adaptação da “grande Tradição” (cf. Catecismo da Igreja Católica, 83).

No sulco da Tradição viva e, portanto, como serviço genuíno à Palavra de Deus, deve-se também ter presen-te o instrumento do Catecismo, a começar pelo primei-ro Símbolo da fé (credo), que é o núcleo de todo o Cate-cismo, até no mais recente Catecismo da Igreja Católica. Nesse aspecto, aconselho sempre a todo fiel católico ter constantemente na sua cabeceira, junto com a Bíblia, o Catecismo da Igreja Católica. O católico, que não é doutor em teologia, se tiver à mão o catecismo saberá explicar muitos trechos difíceis da Escritura. Por exemplo, ao ler passos que falam dos “irmãos de Jesus”, se consultar o

41

I. Lectio Divina

Catecismo saberá que Maria é sempre virgem (no 496-498). Logo, os “irmãos de Jesus” não podem ser filhos de Maria.

Neste ponto, impõe-se uma distinção fundamental, que terá muitas repercussões na prática pastoral: existe o encontro com a Escritura nas grandes ações da Igreja, como são a liturgia e a catequese, onde a Bíblia se coloca num contexto público ministerial, e existe também o en-contro “imediato”, como são a Lectio Divina, o curso e o grupo bíblicos. Hoje há que promover este caminho por andar o Povo de Deus um tanto afastado do uso direto e pessoal da Escritura (I.L. no 18).

O Antigo Testamento deve ser entendido como uma etapa no crescimento da fé e da compreensão de Deus. O conhecimento e a Lectio Divina dos Evangelhos não ex-cluem o fato de o aprofundamento do Antigo Testamento dar à leitura e inteligência do Novo Testamento uma pro-fundidade cada vez maior.

Lectio Divina segundo a fé da Igreja

A Sagrada Escritura não nos propõe uma informação qualquer, mais ou menos curiosa, nem mesmo de ordem meramente humana ou científica, mas comunica-nos sua Palavra de verdade e de salvação, o que exige de quem es-cuta uma compreensão inteligente, vital, responsável e, portanto, atual. Isso leva ao duplo movimento de reco-nhecer o verdadeiro sentido da Palavra dita ou escrita, tal como o Senhor a comunica por meio dos autores sagra-dos e, ao mesmo tempo, exige que seja também significa-tiva para quem a escuta hoje.

Há muitos cristãos atualmente que, em comunidade ou individualmente, perscrutam a Palavra de Deus, dis-postos a compreender o que Deus diz e a obedecer-Lhe

42

Lectio Divina

prontamente. Pois bem, esta disponibilidade da fé é para a Igreja uma possibilidade preciosa para tornar possível uma correta compreensão e atualização do texto sagrado.

Mas também não faltam riscos de uma interpretação arbitrária e redutora, resultantes, sobretudo, do funda-mentalismo, fazendo que, por um lado, se manifeste o de-sejo de permanecer fiéis ao texto, e, por outro, se ignore a própria natureza dos textos, caindo em erros graves e até gerando conflitos inúteis. Existem também as chamadas leituras ideológicas da Bíblia, fruto de pré-compreensões de ordem política e social ou, simplesmente, humana, a que falta o suporte da fé (I.L. n. 20).

O sentido da Palavra de Deus

A Bíblia, mensagem de Deus na palavra do homem, deve ser lida unificando corretamente o sentido históri-co-literal e o teológico-espiritual. A Pontifícia Comissão Bíblica define o que é “sentido espiritual”: “Como regra geral, podemos definir o sentido espiritual, entendido se-gundo a fé cristã, como o sentido expresso pelos textos bí-blicos quando lidos sob a influência do Espírito Santo, no contexto do mistério pascal de Cristo e da vida nova que dele deriva. Este contexto existe realmente. O Novo Tes-tamento reconhece que nele se cumprem as Escrituras. É normal, portanto, reler as Escrituras à luz deste novo contexto, o da vida no Espírito” (PCB, A interpretação da Bíblia na Igreja; I.L. no 21).

Isso significa que, para uma interpretação correta da Bíblia, é necessário o método histórico-crítico, convenien-temente enriquecido por outras formas de abordagem (ibi-dem), mas, para alcançar o sentido total da Escritura, é ne-cessário servir-se dos critérios teológicos, propostos de novo

43

I. Lectio Divina

pela Dei Verbum: “conteúdo e unidade de toda a Escritura, Tradição viva de toda a Igreja, analogia da fé” (D.V. 12).

O papa Bento XVI afirma:

É meu grande desejo que os teólogos aprendam a ler e a amar a Escritura como, segundo a Dei Verbum, quis o Concílio: que vejam a unidade interior da Es-critura a que a ‘exegese canônica’ hoje muito ajuda, e que depois se faça dela uma ‘leitura espiritual’, que não é uma prática exterior de caráter edificante, mas, antes, um mergulhar interior na presença da Palavra. Considero uma tarefa muito importante fazer algo nesse sentido: contribuir para que, a par com a exe-gese histórico-crítica, se faça verdadeiramente uma ‘introdução viva como Palavra de Deus atual’. (Bento XVI, Discorso ai Vescovi della Svizzera, 7/11/2006)

Convém observar que o sentido espiritual não deve ser confundido com as interpretações subjetivas dita-das pela imaginação ou pela especulação intelectual. Esse provém de três níveis da realidade: o texto bíbli-co (no sentido literal), o mistério pascal e as presentes circunstâncias da vida no Espírito. (PCB, A interpreta-ção da Bíblia na Igreja, 15/04/1993; I.L. no 22)

Nessa perspectiva, tenha-se em conta a extraordinária exegese dos Santos Padres e a grande instituição medieval dos quatro sentidos da Escritura – literal, alegórico, moral e anagógico (cf. CIC 115-119). Não se transcurem as diver-sas ressonâncias e tradições que a Bíblia provoca na vida do Povo de Deus, nas figuras dos Santos, dos mestres espirituais, das testemunhas (I.L. 22). O papa Bento XVI ensina que a Sagrada Escritura deve ser lida em comunhão com a Igreja de todos os lugares e tempos, com os grandes testemunhos da Palavra, desde os primeiros Padres e Santos ao Magistério atual (Bento XVI, Ad sacrorum alumnos Seminarii Romani Maioris, 19.12.2007). Como se diz frequentemente: “Deve-se

44

Lectio Divina

ir da vida ao texto e do texto à vida”, ou então: “Leia a Bíblia com a vida e a vida com a Bíblia”.

Atitude requerida para se fazer a Lectio Divina

É necessário cultivar uma relação orante pessoal e comunitária com a Palavra de Deus que suscita e nutre a resposta da fé.

Por isso, pode-se dizer que a revelação bíblica é o en-contro entre Deus e o povo na experiência da única Palavra, e que ambos fazem a Palavra. A fé opera e a Palavra cria-a.

O texto de Hb 4,12-13, bem como o de Is 55,9-11 e tan-tos outros, afirmam a eficácia infalível da Palavra de Deus.

O crente: aquele que escuta a Palavra de Deus na fé

“A Deus que revela é devida a obediência da fé. A Ele, que falando se dá, o homem ouvindo se entrega (...) total e livremente” (DV 5). O homem, que mesmo em virtude da estrutura íntima da pessoa é ouvinte da Palavra, recebe de Deus a graça de responder na fé. Isso implica, da parte da comunidade e de cada crente, uma atitude de plena adesão a uma proposta de comunhão total com Deus e de entrega a sua vontade (cf. DV 2). Tal atitude de fé comunal deverá manifestar-se em cada encontro com a Palavra de Deus, na pregação viva e na leitura da Bíblia. Não é por acaso que a Dei Verbum aplica ao Livro Sagrado o que globalmente afir-ma da Palavra de Deus: “Deus fala aos homens como amigos para convidá-los e admiti-los à comunhão com Ele” (DV 2). “Nos Livros Sagrados, o Pai que está nos céus vem amorosa-mente ao encontro de seus filhos, a conversar com eles” (DV 21). Revelação é comunhão de amor, que a Escritura muitas

45

I. Lectio Divina

vezes exprime com o termo aliança. Em síntese, trata-se de uma atitude de oração, “diálogo entre Deus e o homem, por-que “a Ele falamos, quando rezamos; a Ele ouvimos, quando lemos os divinos oráculos” (DV 25).

A Palavra de Deus transforma a vida dos que dela se aproximam com fé. A Palavra nunca se esgota; a cada dia é nova. Mas, para que isso aconteça, é necessária uma fé que escuta. A Escritura afirma repetidas vezes que a escuta é que faz de Israel povo de Deus: “Se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis minha propriedade especial entre todos os povos” (Ex 19,5; cf. Jr 11,4). A escuta cria uma pertença, um laço; introduz na aliança. No Novo Testamento, a escuta é dirigida à pessoa de Jesus, o Filho de Deus: “Este é o meu Filho muito amado, no qual pus toda a minha complacência. Escutai-O” (Mt 17,5 e par.).

O crente é alguém que escuta. Quem escuta confes-sa a presença daquele que fala e quer envolver-se nele; quem escuta abre em si um espaço à inabitação do outro; quem escuta dispõe-se com confiança ao outro que fala. Por isso, os Evangelhos pedem discernimento sobre o que se escuta (cf. Mc 4,24) e como se escuta (cf. Lc 8,18): de fato, somos o que escutamos! A figura antropológica que a Bíblia quer construir é, portanto, a de um homem capaz de escutar, habitado por um coração que escuta (cf. 1Rs 3,9). Sendo esta escuta, não uma mera audição de frases bíblicas, mas discernimento pneumático da Palavra de Deus, ela exige a fé e deve fazer-se no Espírito Santo.

Maria, modelo de acolhimento da Palavra para o crente

Na história da salvação sobressaem grandes figuras de ouvintes e evangelizadores da Palavra de Deus: Abraão,

46

Lectio Divina

Moisés, os profetas, os santos Pedro e Paulo, os outros após-tolos, os evangelistas. Escutaram fielmente a Palavra do Se-nhor e, comunicando-a, deram espaço ao Reino de Deus.

Nessa perspectiva, tem um papel central a figura da Virgem Maria, que viveu de forma incomparável o en-contro com a Palavra de Deus, que é o próprio Jesus. Por isso, ela se tornou modelo providencial de toda a escuta e anúncio. Já educada à familiaridade com a Palavra de Deus na experiência intensa das Escrituras do povo a que pertence, Maria de Nazaré, desde o acontecimento da Anunciação à cruz, e mais precisamente até o Pentecos-tes, acolhe na fé, medita, interioriza e vive intensamente a Palavra (cf. Lc 1,38; 2,19.51; At 17,11). Em virtude de seu sim, primeiro e nunca interrompido, à Palavra de Deus, ela sabe olhar a sua volta e vive as urgências do cotidiano, ciente de que o recebido do Filho como dom é um dom para todos: no serviço a Isabel, em Caná e ao pé da cruz (cf. Lc 1,39; Jo 2,1-12; 19,25-27). A ela se adapta, portanto, o que Jesus disse na sua presença: ”Minha mãe e meus ir-mãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 8,21). Estando intimamente penetrada pela Palavra de Deus, Maria pôde tornar-se mãe da Pala-vra encarnada.

Em particular, considere-se a sua maneira de ouvir a Palavra. O texto evangélico “Maria conservava todas estas palavras, meditando-as no seu coração” (Lc 2,19) signifi-ca que ela escutava e conhecia as Escrituras, meditava-as no coração, numa espécie de processo interior de matu-ração, onde a inteligência não está separada do coração. Maria procurava o sentido espiritual da Escritura e o en-contrava, ligando-o (symballousa) às palavras, à vida de Jesus e aos acontecimentos que ia descobrindo em sua história pessoal. Maria é nosso modelo, tanto no acolher

47

I. Lectio Divina

a fé, a Palavra, como no estudá-la. Não lhe basta acolhê-la: medita nela. Não só a possui, mas ao mesmo tempo a valoriza. Dá-lhe sentido e também a desenvolve. Assim, Maria torna-se símbolo para nós, para a fé dos simples e para a dos doutores da Igreja, que procuram, avaliam e definem o modo de professar o Evangelho.

Recebendo a Boa-Nova, Maria revela-se o tipo ideal da obediência da fé; torna-se ícone vivente da Igreja no serviço da Palavra. Diz Isaac d’Étoile: “Nas Escrituras, di-vinamente inspiradas, o que se atribui em geral à virgem e mãe Igreja aplica-se em geral à Virgem e Mãe Maria (...). A herança do Senhor é em termos universais a Igreja, em ter-mos especiais Maria e em termos singulares cada alma fiel. No tabernáculo do ventre de Maria, Cristo habitou durante nove meses; no tabernáculo da fé da Igreja, permanecerá até ao fim do mundo; no conhecimento e amor da alma fiel, habitará pelos séculos dos séculos”. Maria nos ensina a não sermos alheios espectadores de uma Palavra de vida, mas a nos tornarmos participantes, fazendo próprio o “eis-me” dos Profetas (cf. Is 6,8), deixando-nos guiar pelo Espí-rito Santo que habita em nós. Maria “magnifica” o Senhor, descobrindo na sua vida a misericórdia de Deus, que a fez “bem-aventurada”, porque “hão de se cumprir as coisas que da parte do Senhor te foram ditas” (Lc 1,45).

A fé e a Lectio Divina

Diz Santo Ambrósio que cada cristão que crê conce-be e dá à luz o Verbo de Deus. Se existe uma só mãe de Cristo segundo a carne, segundo a fé, Cristo é o fruto de todos.

Pode-se ler a Bíblia sem fé, mas sem esta não se pode escutar a Palavra de Deus. Um grupo bíblico é válido se,

48

Lectio Divina

ao ler a Bíblia, educa-se na fé, conformando a vida cristã com as indicações que a Bíblia oferece e iluminando com a fé os momentos difíceis.

Deve-se falar ao homem de hoje de forma positiva e encorajadora, dando múltiplas sugestões para lidar com: o texto, a leitura espiritual, a Lectio Divina, a oração e a parti-lha da Palavra. Trata-se, antes de mais, de se abeirar da Pa-lavra, não tanto como depósito de referências dogmáticas ou pastorais, mas como fonte de água viva, na alegre sur-presa de ouvir o Senhor no próprio contexto de vida. Trata-se de pôr em ato o círculo hermenêutico completo: “crer para compreender e compreender para crer”; a fé procura a inteligência e a inteligência abre-se à fé. O episódio de Emaús é um modelo exemplar de encontro do crente com a própria Palavra encarnada (cf. Lc 24,13-35).

”Ouve, ó Israel” (Shemá Israel) é o mandamento pri-mário do povo de Deus (Dt 6,4). ”Ouve” é também a pri-meira palavra da Regra de São Bento. Deus convida o fiel a escutar com o ouvido do coração. O coração na Bíblia não é apenas sede dos sentimentos ou da emoção, mas o centro mais profundo da pessoa, onde se tomam as de-cisões. Por isso, é necessário o silêncio, que se prolonga para além das palavras. O Espírito Santo faz entender e compreender a Palavra de Deus, unindo-se silenciosa-mente ao nosso espírito (cf. Rom 8,26-27).

É necessário escutar como e com Maria, mãe e edu-cadora da Palavra de Deus. Existe a forma simples e uni-versal de escuta orante da Palavra, que são os “mistérios do Rosário”. João Paulo II realçou a riqueza bíblica do mes-mo, definindo-o como o “compêndio do Evangelho”, em que a enunciação do mistério “deixa falar Deus”, permite “contemplar Cristo com Maria”. Mais ainda, a exemplo da Virgem Maria, templo do Espírito, numa vida silenciosa,

49

I. Lectio Divina

humilde e escondida, toda a Igreja deve ser educada para dar testemunho desta íntima relação entre Palavra e si-lêncio, Palavra e Espírito de Deus. A escuta da Palavra na fé torna-se, depois, no crente, compreensão, meditação, comunhão, partilha, atuação: veem-se aqui delineados os traços da Lectio Divina, como sendo o caminho privile-giado da aproximação do crente com a Bíblia.

É justo recordar que a atitude de fé diz respeito à Pa-lavra de Deus em todos os seus sinais e linguagens. É uma fé que recebe da Palavra uma comunicação de verdade pela narração ou pela fórmula doutrinal; uma fé que re-conhece a Palavra de Deus como estímulo primário para uma conversão eficaz, como luz para responder a tantas perguntas do crente, como guia para um discernimento sapiencial da realidade, como solicitação para cumprir a Palavra (cf. Lc 8,21) – e não apenas lê-la ou dizê-la – e, por fim, como fonte permanente de consolação e esperança. Daí o dever de reconhecer e assegurar o primado da Pala-vra de Deus na própria vida, como crentes, recebendo-a tal como a Igreja a anuncia, compreende, explica e vive.

A Lectio Divina na vida da Igreja

A Palavra de Deus vivifica a Igreja – “A carta que Deus enviou aos homens”

Quando o Espírito Santo começa a mover a vida do povo, um dos primeiros e mais fortes sinais é o amor pela Palavra de Deus na Escritura e o desejo de conhecê-la me-lhor. Isso se dá porque a Palavra da Escritura é uma Pala-vra que Deus dirige a cada um pessoalmente como uma carta nas circunstâncias concretas da vida. Ela tem uma imediação extraordinária e o poder de penetrar no centro do ser humano.

50

Lectio Divina

A Igreja nasce e vive da Palavra de Deus

Com efeito, se fazem múltiplas experiências da Pala-vra de Deus: na Eucaristia, na Lectio Divina comunitária e pessoal, no dia da Bíblia, nos cursos bíblicos, nos grupos do Evangelho ou de escuta da Palavra de Deus, no cami-nho bíblico diocesano, nos exercícios espirituais, nas pe-regrinações à Terra Santa, nas celebrações da Palavra, nas expressões da música, das artes plásticas, da literatura e do cinema.

Depois do Concílio Vaticano II, lê-se mais a Palavra de Deus, sobretudo, no contexto da liturgia eucarística. Em muitas Igrejas, dá-se um lugar privilegiado à Bíblia, expondo-a de forma visível ao lado do altar ou sobre ele, como acontece nas Igrejas orientais.

“É motivo de alegria ver gente humilde e pobre pegar na Bíblia, podendo dar à sua interpretação e à sua atuali-zação uma luz mais penetrante, do ponto de vista espiri-tual e existencial, que a que vem de uma ciência segura de si.” (PCB, A interpretação da Bíblia na Igreja, 15/4/1993)

Surge um paradoxo: à fome da Palavra de Deus nem sempre corresponde uma pregação adequada por parte dos pastores da Igreja, por deficiências na preparação no tempo de seminário ou na prática pastoral.

A Palavra de Deus sustém a Igreja ao longo de toda sua história

Assim, no tempo dos Padres, a Escritura encontra-se no centro como fonte aonde ir buscar teologia, espirituali-dade e orientação pastoral. Os Padres são os mestres insu-peráveis dessa leitura espiritual da Escritura, que, quando genuína, não é um ignorar a letra ou o correto sentido

51

I. Lectio Divina

histórico, mas capacidade de ler a letra no Espírito. Na Ida-de Média, a Sagrada Página constitui a base da reflexão te-ológica; para encontrá-la bem, elabora-se a doutrina dos quatro sentidos: literal, alegórico, tropológico e anagógico (CIC 115-119). No período antigo, a Palavra de Deus na Lec-tio Divina constitui a forma monástica da oração; serve de fonte à inspiração artística; transmite-se ao povo nas tan-tas formas da pregação e da piedade popular.

Na linha da grande Tradição, cada Igreja particu-lar vai-se desenvolvendo no tempo com modos e carac-terísticas próprias. Sobretudo, como mostra a história, é possível descobrir ligações, influências e contributos recíprocos. Para já, há que assinalar um dúplice dado: por um lado, pode-se constatar que a Palavra de Deus se propaga e evangeliza as diversas Igrejas particulares dos cinco continentes – encarna-se progressivamente nelas, tornando-se alma vivificante da fé de tantos povos, fator fundamental de comunhão, fonte de inspiração e trans-formação das culturas e da sociedade; por outro, parece que a pastoral bíblica sofre por razões históricas ligadas ao momento da evangelização, mas também por proble-mas reais de fé no diferente contexto de vida ou por ca-rências econômicas.

A Palavra de Deus permeia e anima, na força do Espírito Santo, toda a vida da Igreja

Existe uma correlação entre o uso da Bíblia, a con-cepção da Igreja e a prática pastoral. A justa relação dá-se quando o Espírito Santo cria harmonia entre Escritura e comunidade. Daí a importância que se respeite a necessi-dade interior que leva a comunidade ao encontro da Pa-lavra de Deus, mas também que se procure controlar a

52

Lectio Divina

sensibilidade que exalta a espontaneidade, a experiência eminentemente subjetiva e a sede do prodigioso. Do mes-mo modo, há que prestar atenção ao que diz o texto da Escritura, procurando centrar-se nele para colher o senti-do literal, antes de aplicá-lo à vida. Nem sempre é fácil. O fundamentalismo: alerte-se para o risco do fundamenta-lismo, um fenômeno com reflexos antropológicos, socio-lógicos e psicológicos muito difusos, mas que se aplica de modo especial à leitura bíblica e à consequente interpre-tação do mundo. Ao nível da leitura bíblica, o fundamen-talismo refugia-se no literalismo, recusa-se a ter em conta a dimensão histórica da revelação bíblica e não consegue aceitar plenamente a própria Encarnação. “Esse tipo de leitura tem cada vez mais aderentes (...) também entre os católicos (...). O fundamentalismo (...) exige uma adesão firme e segura a atitudes doutrinais rígidas, e impõe como única fonte de ensinamento sobre a vida cristã e a salva-ção uma leitura da Bíblia que recusa todas as formas de atitude ou análise crítica” (PCB, A interpretação da fé na Igreja, 15/4/1993).

A forma extrema desse tipo de tendência é a “seita”. Nes-ta, a Escritura é subtraída à ação dinâmica e vivificante do Espírito, e a comunidade atrofia-se como corpo que deixou de ser vivo, tornando-se um grupo fechado, que não admite diferenças e pluralidade no próprio seio e toma uma atitude agressiva em relação a outros modos de pensar. (João Paulo II, L’Osservatore Romano, 25/4/1993 pp. 8-9).

Ao contrário, urge manter viva na comunidade a do-cilidade ao Espírito Santo, superando o risco de apagar o Espírito com o excesso de ativismo e a exterioridade da vida de fé, evitando o perigo da burocratização da Igreja, da ação pastoral limitada aos seus aspectos institucionais e da redução da leitura bíblica a uma atividade entre outras.

53

I. Lectio Divina

Há que se ter presente que, como afirma Jesus, o Es-pírito guia a Igreja à verdade plena (cf. Jo 16,13), fazendo, portanto, compreender o verdadeiro sentido da Palavra de Deus e levando finalmente ao encontro com o próprio Verbo, o Filho de Deus, Jesus de Nazaré. O Espírito é a alma e o exegeta da Sagrada Escritura. Por isso, a Escritura não só deve ser “lida e interpretada com o mesmo espíri-to com que foi escrita” (DV 12), mas nela a Igreja, guiada pelo Espírito, esforça-se por obter uma inteligência cada vez mais profunda para alimentar seus filhos, servindo-se especialmente do estudo dos Padres do Oriente e do Oci-dente (cf. DV 23), da investigação exegética e teológica, da vida das testemunhas e dos Santos.

A esse respeito, é preciosa a linha traçada nos Praeno-tanda do Lecionário, onde se afirma:

Para que a Palavra de Deus realize de fato nos corações aquilo que ressoa aos ouvidos, requer-se a ação do Es-pírito Santo, por cuja inspiração e auxílio a Palavra de Deus se torna o fundamento da ação litúrgica e a norma e sustento de toda a vida. Por conseguinte, a atuação do Espírito Santo não só precede, acompanha e segue toda a ação litúrgica, mas também sugere ao coração de cada um (cf. Jo 14,15-17.25-26; 15,26-16,15) tudo aquilo que é proferido na proclamação da Palavra de Deus para toda a assembleia dos fiéis; e, consolidando a unidade entre todos, também reanima os diversos carismas e suscita múltiplas atividades. (Missale Romanum, Ordo lectionum Missae (1981) Praenotanda, 9)

A comunidade cristã, portanto, se constrói todos os dias, deixando-se guiar pela Palavra de Deus, sob a ação do Espírito Santo, que dá iluminação, conversão e conso-lação. De fato, “tudo quanto outrora foi escrito, foi escrito para a nossa instrução, a fim de que, pela perseverança e pela consolação que dão as Escrituras, tenhamos espe-

54

Lectio Divina

rança” (Rom 15,4). Torna-se dever primário dos Pastores ajudar os fiéis a compreender o que significa encontrar a Palavra de Deus sob a guia do Espírito e como, em con-creto, isso se dá na Lectio Divina, na leitura espiritual da Bíblia, na atitude da escuta e da oração. A tal propósito, diz Pedro Damasceno: “Quem tem experiência do sentido espiritual das Escrituras sabe que o sentido da mais sim-ples Palavra da Escritura e o da excepcionalmente mais sábia são uma só coisa e têm por finalidade a salvação do homem” (Petrus Damascenus, Líber II, vol. III, 159).

Se a Palavra de Deus é fonte de vida para a Igreja, é es-sencial considerar a Sagrada Escritura como alimento vital.

A Palavra de Deus nos múltiplos serviços da Igreja “O pão da vida, da mesa da Palavra de Deus e da mesa do Corpo de Cristo” (DV 21)

Ministério da Palavra

“É preciso que a pregação eclesiástica, assim como a própria religião cristã, seja alimentada e regida pela Sa-grada Escritura” (DV 21). Com esta afirmação, o Concílio Vaticano II lembra empenhos específicos que pedem in-tervenções concretas.

Adverte-se a necessidade de considerar a leitura orante, na forma da Lectio Divina, em termos comunitá-rio e pessoal, como a meta alta e comum, e a de promo-ver uma catequese que seja iniciação à Sagrada Escritura, vivificando com ela os programas catequéticos e os pró-prios catecismos, a pregação e a piedade popular. Sente-se igualmente a necessidade de estimular o encontro com a Palavra de Deus por meio do apostolado bíblico, fomen-tando a criação de grupos bíblicos e sua orientação, e de

55

I. Lectio Divina

fazer com que a Palavra, pão de vida, se torne também pão material, ou seja, leve a socorrer os pobres e os que sofrem. Sente-se ainda a urgência de valorizar a Palavra também com estudos e encontros que realcem suas rela-ções com a cultura e com o espírito humano.

Nesta perspectiva de unidade e interação, há que re-conhecer e favorecer, plenamente, o dinamismo que leva a Palavra de Deus a encontrar-se com o homem, dinamis-mo este que está na base de toda a ação pastoral da Igreja: a Palavra anunciada e ouvida pede para se tornar Palavra celebrada pela liturgia e pelos sacramentos, para entrar, assim, a motivar uma vida segundo a Palavra, por meio da experiência da comunhão, da caridade e da missão (En-chiridion Vaticanum, Bolonha, 1999, pp. 662-664).

Em todos os níveis da vida eclesial há que amadure-cer a compreensão da “liturgia como lugar privilegiado da Palavra de Deus”, que edifica a Igreja. É importante, por-tanto, fazer algumas afirmações basilares.

“A Bíblia é o Livro de um povo e para um povo”. É uma herança, um testamento confiado a leitores para que atua lizem na sua vida a história de salvação testemunha-da na escrita. Existe, portanto, uma relação de pertença recíproca e vital entre povo e Livro: a Bíblia continua a ser um Livro vivo com o povo que a lê; o povo não subsiste sem o Livro, porque encontra nele sua razão de ser, sua vocação e sua identidade.

Esta mútua pertença entre povo e Sagrada Escritura é celebrada na assembleia litúrgica, que é o lugar em que se realiza a obra de acolhimento da Bíblia. O discurso de Jesus na sinagoga de Nazaré (cf. Lc 4,16-21) é significativo nesse sentido. O que ali aconteceu volta a acontecer to-das as vezes que se faz a proclamação da Palavra de Deus numa liturgia.

56

Lectio Divina

A proclamação da Palavra de Deus contida na Escri-tura é ação do Espírito: como operou para que a Palavra se tornasse Livro, agora na liturgia transforma o Livro em Palavra. Na tradição litúrgica alexandrina existe uma dupla epiclese, ou seja, uma invocação do Espírito antes da proclamação das leituras e outra depois da homilia: é o Espírito que guia o presidente na função profética de compreender, proclamar e explicar de forma adequada a Palavra de Deus à assembleia e, paralelamente, no invo-car um justo e digno acolhimento da Palavra por parte da comunidade reunida.

A “assembleia litúrgica”, graças ao Espírito Santo, escuta Cristo, ”pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura” (SC 7), e acolhe a aliança que Deus re-nova com seu povo. Escritura e liturgia convergem, por-tanto, no único objetivo de levar o povo ao diálogo com o Senhor. A Palavra saída da boca de Deus e testemunhada nas Escrituras volta a Deus em forma de resposta orante do povo (cf. Is 55,10-11), na Lectio Divina.

Na liturgia, sobretudo na assembleia eucarística, “dá-se a proclamação da Escritura em Palavra, caracterizada por um dinamismo dialógico profundo”. Desde o início, na história do povo de Deus, quer no tempo bíblico, quer no pós-bíblico, a Bíblia foi sempre o Livro destinado a reger a relação entre Deus e seu povo; é, por outras palavras, o Li-vro para o culto e para a oração. A Liturgia da Palavra, com efeito, “não é propriamente um momento de meditação e de catequese, mas de diálogo de Deus com seu povo, onde se proclamam as maravilhas da salvação e constantemente se propõem de novo as exigências da aliança”.

A Oração do Ofício Divino é, dentro da relação Pa-lavra-liturgia, de grande importância, de modo especial, para a vida consagrada. A Liturgia das Horas deve ser

57

I. Lectio Divina

assumida como lugar privilegiado de formação para a oração, sobretudo graças aos salmos, onde se manifesta da melhor forma o caráter divino-humano da Escritura. Os Salmos ensinam a rezar levando quem os canta ou re-cita a escutar, interiorizar e interpretar a Palavra de Deus.

Acolher a Palavra de Deus na oração litúrgica, para além da oração pessoal e comunitária, torna-se assim um objetivo irrenunciável para todos os cristãos; daí que se-jam chamados a ter uma nova visão da Sagrada Escritura. Mais que um Livro escrito, esta deve ser vista como uma proclamação e um testemunho do Espírito Santo sobre a pessoa de Cristo, segundo a já citada afirmação conciliar, “Cristo está presente na sua Palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura” (SC 7). Daí deriva a “enorme importância da Sagrada Escritura na celebração da Liturgia” (SC 24).

Palavra de Deus e Eucaristia

Embora na prática a Liturgia da Palavra muitas ve-zes peque por improvisação e, outras vezes, tenha pouca ligação com a Liturgia Eucarística, a unidade intrínseca da Palavra com a Eucaristia está radicada no testemunho escriturístico (cf. Jo 6), é afirmada pelos Padres da Igreja e reafirmada pelo Concílio Vaticano II (cf. SC 48.51.56; DV 21.26; AG 6.15; PO 18; PC 6). Na grande Tradição da Igre-ja encontramos expressões significativas, como “Corpus Christi intelligitur etiam(...) Scriptura Dei” (também a Es-critura de Deus considera-se Corpo de Cristo), “ego Cor-pus Jesu Evangelium puto” (considero o Evangelho Corpo de Jesus) (Orígenes, In: Ps 147, CCL, 78,337).

Uma reflexão específica sobre a relação entre Pala-vra de Deus e Eucaristia. Diz São Jerônimo: ”A carne do

58

Lectio Divina

Senhor, verdadeira comida, e o seu sangue, verdadeira bebida, esse é o verdadeiro bem que nos é reservado na vida presente: alimentar-se com a sua carne e beber o seu sangue, não só na Eucaristia, mas também na leitura da Sagrada Escritura, na Lectio Divina. É, de fato, verdadeira comida e verdadeira bebida a Palavra de Deus que se ob-tém do conhecimento das Escrituras”. (Commentarius in Ecclesiasten, 313: CCL 72,278).

Palavra e economia sacramental

A Palavra tem de ser vivida, na economia sacramen-tal, como acolhimento de força e graça, e não apenas como comunicação de verdade, doutrina e preceito ético. A Palavra provoca um encontro em quem escuta com fé, tornando-se celebração da aliança.

Preste-se a mesma atenção a todas as formas de en-contro com a Palavra na ação litúrgica: nos sacramentos, na celebração do Ano Litúrgico, na Liturgia das Horas, nos sacramentais. Especial atenção deve ser dada à Li-turgia da Palavra na celebração dos três sacramentos da Iniciação cristã: Batismo, Confirmação e Eucaristia. Pe-de-se uma nova consciência sobre o anúncio da Palavra de Deus na celebração, sobretudo individual, do sacra-mento da Penitência. A Palavra de Deus deve também ser valorizada nas variegadas formas da pregação e da piedade popular.

Além disso, ter-se-á o maior cuidado com a Liturgia da Palavra, com a proclamação clara e compreensível dos textos e com a homilia, que se faz ressonância da Palavra. Isso implica a escolha de leitores capazes e preparados. Para o efeito, são necessárias escolas, inclusive diocesa-nas, de formação de leitores. Nesta ótica de melhor com-

59

I. Lectio Divina

preensão da Palavra de Deus na Missa, são úteis as breves monições que dão o sentido das leituras a proclamar.

Sobre a homilia, espera-se um maior empenho de fi-delidade à Palavra bíblica e à condição dos fiéis, ajudan-do-os a interpretar os acontecimentos da vida e da histó-ria à luz da fé.

A Lectio Divina

O encontro orante com a Palavra de Deus tem uma experiência privilegiada, tradicionalmente chamada Lec-tio Divina. “A ‘Lectio Divina’ é uma leitura individual ou comunitária de uma passagem mais ou menos longa da Escritura, acolhida como Palavra de Deus e que, sob o es-tímulo do Espírito, se processa em forma de meditação, oração e contemplação” (PCB, A interpretação da Bíblia na Igreja, 15/4/1993).

Pode-se dizer que, em todas as Igrejas, dá-se uma atenção nova e específica à Lectio Divina. Em algumas partes, é já uma tradição secular. Em certas dioceses, foi-se afirmando progressivamente a partir do Concílio Va-ticano II. Em muitas comunidades está-se a tornar uma nova forma de oração e espiritualidade cristã, com notá-veis vantagens ecumênicas.

Cabe aqui recordar que a Lectio Divina é uma leitura da Bíblia, que vem já das origens cristãs e que acompa-nhou a Igreja ao longo de sua história. Mantém-se viva na experiência monástica, mas hoje o Espírito, através do Magistério, propõe-na como elemento pastoralmente significativo a valorizar a vida da Igreja enquanto tal. Va-loriza a educação e formação espiritual dos presbíteros, a vida cotidiana das pessoas consagradas, das comunidades paroquiais, das famílias, das associações e movimentos e

60

Lectio Divina

dos simples crentes, tanto adultos como jovens, que po-dem encontrar nesta forma de leitura um meio acessível e prático para aceder pessoal e comunitariamente à Palavra de Deus (cf. OT 4) (João Paulo II, Patoris dabo vobis).

Escreve o papa João Paulo II: “É necessário que a escuta da Palavra se torne um encontro vital, na antiga e sempre válida tradição da Lectio Divina, que permite colher no texto bíblico a Palavra viva que interpela, orien-ta e plasma a existência” (João Paulo II, Novo millennio ineunte, 36). O Santo Padre Bento XVI recomenda que se a faça “recorrendo também aos novos métodos, cuida-dosamente ponderados de acordo com os tempos” (La Sacra Scrittura nella vita della Chiesa: AAS, 2005, 937). Em particular, o Santo Padre recorda aos jovens que “é sempre importante ler a Bíblia de forma muito pessoal, num colóquio pessoal com Deus, mas, ao mesmo tempo, é importante lê-la na companhia de pessoas com que se caminha” (Bento XVI, Messaggio per la Giornata Mondia-le della Gioventù, L’Osservatore Romano, 27/2/2006, p. 5). Exorta ainda “a adquirir familiaridade com a Bíblia, a tê-la ao alcance da mão, para que seja como uma bússola que indica a estrada a seguir” (Bento XVI, ibidem). Que a difusão da Lectio Divina esteja no coração de Bento XVI e que ele veja nela um ponto decisivo para a renovação da fé nos nossos dias, resulta da mensagem dirigida a di-versas categorias de pessoas, sobretudo jovens, a quem recomenda:

Gostava, sobretudo, de lembrar e recomendar a an-tiga tradição da Lectio Divina: a leitura assídua das Santas Escrituras, acompanhada da oração, realiza o colóquio íntimo com Deus, que escutamos quando lemos e a quem respondemos na oração com um co-ração aberto e confiante (cf. DV 25). Esta prática, se eficazmente promovida, levará a Igreja – estou con-

61

I. Lectio Divina

vencido disso – a uma nova primavera espiritual. A pastoral bíblica deve, portanto, insistir de modo es-pecial sobre a Lectio Divina e encorajá-la com méto-dos novos, cuidadosamente elaborados e de acordo com nossos tempos. Nunca devemos esquecer que “a tua Palavra é lâmpada para os meus passos e luz para os meus caminhos” (Sal 118,105) (Bento XVI, La Sa-cra Scrittura nella vita della Chiesa, 16/9/2005: AAS, 2005, 957).

A novidade da Lectio Divina no povo de Deus exige uma oportuna pedagogia de iniciação, que leve a com-preender bem do que se trata, e contribua para esclarecer o sentido dos diversos graus e uma sua aplicação tão fiel quanto sabiamente criativa. Existem, de fato, diferentes modalidades de Lectio Divina, como a chamada Sete Pas-sos (Seven Steps), praticada em muitas Igrejas particula-res na África. Chama-se assim, porque o encontro com a Bíblia é como um caminho feito de sete momentos: pre-sença de Deus, leitura, meditação, paragem, comunica-ção, colóquio e oração comum. O próprio nome de Lectio Divina, em certas partes, muda, por exemplo, para Escola da Palavra ou então leitura orante.

Podem constituir objetivos úteis, já praticados, a parti-lha das experiências motivadas pela Palavra escutada (colla-tio) ou as decisões práticas, sobretudo de caridade (actio).

A Lectio Divina deve ser capaz de tornar-se fonte inspiradora das várias práticas da comunidade, como exercícios espirituais, retiros, devoções e experiências re-ligiosas. Um objetivo importante é levar a pessoa a ama-durecer para uma leitura da Palavra, capaz de discerni-mento sapiencial da realidade. A Lectio Divina não é, de modo nenhum, uma prática reservada a alguns fiéis mui-to empenhados ou a um grupo de especialistas da oração.

62

Lectio Divina

É uma realidade sem a qual não seremos cristãos autên-ticos num mundo secularizado. Este mundo quer perso-nalidades contemplativas, atentas, críticas, corajosas. De vez em quando, pede formas novas e inéditas. Pedirá in-tervenções especiais que não provenham do simples ha-bitual nem da opinião comum, mas da escuta da Palavra do Senhor e da percepção misteriosa do Espírito Santo nos corações.

A Palavra de Deus e o serviço da caridade

É necessário que a Palavra de Deus leve ao amor do próximo. Em muitas comunidades procura-se que o en-contro com a Palavra não se feche na escuta e na cele-bração em si mesma, mas se traduza em empenho con-creto, pessoal e comunitário, com o mundo dos pobres, enquanto sinal da presença do Senhor.

Urge realçar esta relação entre Palavra de Deus e ca-ridade, uma vez que a caridade, para crentes e não cren-tes, dá um vigoroso impulso ao encontro com a Palavra de Deus. Essa ligação é afirmada na Encíclica do Santo Padre Bento XVI Deus caritas est, que apresenta de forma unitária os três elementos constitutivos da natureza pro-funda da Igreja: proclamação da Palavra de Deus (keryg-ma-martyria), celebração dos sacramentos (leitourgia) e exercício do ministério da caridade (diakonia). Escreve Sua Santidade: “A Igreja não pode transcurar o serviço da caridade, como não pode transcurar os sacramentos”. A Encíclica Spe salvi afirma que “a mensagem cristã não era (e não é) somente informativa, mas performativa”. Quer dizer que o Evangelho não é apenas uma comunicação de coisas que se podem conhecer, mas é uma comunicação que produz fatos e muda a vida”. Na base dessa relação

63

I. Lectio Divina

entre Palavra e caridade está o claro exemplo da própria Palavra feita carne, Jesus de Nazaré, que “andou fazendo o bem e curando todos os oprimidos pelo demônio, porque Deus estava com Ele” (Atos 10,38).

Recordando as muitas páginas da Sagrada Escritura que não só recomendam, mas mandam praticar a justiça com o próximo (cf. Dt 24,14-15; Am 2,6-7; Jr 22,13; Tg 5,4), só haverá fidelidade à Palavra de Deus, quando a primeira forma de caridade for o respeito dos direitos da pessoa humana e a defesa dos oprimidos e de quantos sofrem. A tal fim, tenha-se presente a importância das comuni-dades de fé, formadas também de pobres, animadas pela leitura da Bíblia. É preciso dar consolação e esperança aos pobres do mundo. O Senhor, que ama a vida, quer com sua Palavra iluminar, guiar e confortar toda a vida dos crentes em qualquer circunstância – no trabalho e na fes-ta, no sofrimento e no tempo livre, nas tarefas familiares e sociais e em cada acontecimento da vida –, de modo que cada um possa discernir todas as coisas e conservar o que é bom (cf. 1Ts 5,21), descobrindo assim a vontade de Deus e a pondo em prática (cf. Mt 7,21).

A exegese da Sagrada Escritura e a teologia

Pede-se para se superar a distância ainda existente entre a pesquisa exegética e a elaboração teológica, em vista de uma mútua colaboração: que o teólogo utilize o dado bíblico sem instrumentalizações, mas também o exegeta não limite sua pesquisa unicamente aos dados literais, mas esforce-se por reconhecer e comunicar os conteúdos teológicos presentes no texto inspirado. Em particular, pede-se ao teólogo que faça uma teologia da Sagrada Escritura, que ajude a compreender e a valorizar

64

Lectio Divina

a verdade da Bíblia na vida de fé e no diálogo com as cultu-ras, refletindo sobre as atuais tendências antropológicas, sobre as instâncias morais, sobre a relação entre razão e fé e sobre o diálogo com as grandes religiões.

A Palavra de Deus na vida do crente

A consciência de que a Palavra de Deus é um dom inestimável levou à responsabilidade do acolhimento da fé. E uma vez que a escuta da Palavra manda – como diz Jesus – cumprir a Palavra (cf. Mt 7,21), a Igreja sempre propôs um consequente comportamento de vida em or-dem à formação de uma espiritualidade bíblica.

O tipo de relação com a Palavra de Deus é claramente determinado por uma visão de fé. Da análise da experiên-cia, nota-se que para alguns a Bíblia corre o risco de ser um simples objeto cultural, sem incidência na vida; para outros, ao contrário, é um Livro que amam, sem se aper-ceberem do motivo. Por fim, há aqueles que, como os diferentes terrenos da parábola do semeador, produzem fruto: quem trinta, quem sessenta e quem cem por um (cf. Mc 4,20). Tem fundamento a afirmação de que, com o progresso catequético, o espiritual constitui um dos as-pectos mais belos e promissores do encontro da Palavra de Deus com seu povo.

As razões de uma relação vital com a Bíblia estão re-sumidas na Dei Verbum, segundo a qual é necessário con-servar contato constante com as Escrituras, mediante a leitura assídua e o estudo diligente (cf. DV 25), porque a Bíblia é a “fonte pura e perene da vida espiritual” (DV 21). Para uma genuína espiritualidade da Palavra, recorde-se que “a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada da oração, para que possa haver o colóquio entre Deus e

65

I. Lectio Divina

o homem; pois ‘a Ele falamos, quando rezamos, a Ele ou-vimos, quando lemos os divinos oráculos’” (S. Ambrósio, De officiis ministrorum, 1,20,88: PL 16,50) (DV 25). Confir-ma Santo Agostinho: “A tua oração é a tua palavra dirigida a Deus. Quando lês a Bíblia, é Deus que te fala; quando rezas, és tu que falas a Deus” (S. Agostinho, Enarrat im Ps. 85,7). É necessário iluminar os fiéis sobre aquilo que a leitura crente da Bíblia oferece à vida do cristão, quando ele mesmo tiver feito de seu coração uma biblioteca da Palavra (Orígenes, In Genesim homiliae, 2.6, S Chr 7,108).

A Palavra de Deus contribui para a vida de fé, uma vez que não exprime, em primeiro lugar, um compêndio de questões doutrinais ou uma série de princípios éticos, mas o amor de Deus que convida ao encontro pessoal com Ele, e manifesta a sua inexprimível grandeza no acon-tecimento pascal. A Palavra de Deus propõe um projeto salvífico do Pai para cada pessoa e cada povo. Interpela, exorta, estimula para um caminho de discipulado e de seguimento, dispõe a aceitar a ação transformadora do Espírito, favorece enormemente a fraternidade ao criar vínculos profundos, suscita um empenho evangelizador. Tudo isso vale de modo especial para as pessoas consa-gradas.

Os mestres do espírito recordam as condições, graças às quais a Palavra nutre a vida do crente, gerando a espiri-tualidade bíblica: a interiorização profunda da Palavra; a perseverança nas provas, suscitada pela Palavra; por fim, a luta espiritual contra palavras, pensamentos e compor-tamentos falsos e hostis. Também a Bíblia está sob o signo da cruz; é morada do Crucificado. Tais atitudes são teste-munhadas pelas comunidades religiosas e pelos centros de espiritualidade, que dão um válido contributo para uma experiência profunda da Palavra de Deus.

66

Lectio Divina

A missão da Igreja é proclamar a Palavra e construir o Reino de Deus

A missão da Igreja nos albores deste novo milênio é alimentar-se da Palavra, para ser serva da Palavra na tarefa da evangelização (João Paulo II, Novo millennio ineunte, 6/1/2001, AAS 93, 2001, 294).

O anúncio do Evangelho é, sem dúvida, a razão de ser da Igreja e de sua missão. Isso implica que ela viva o que prega. Esse é o caminho decisivo para que pareça crível o que ela proclama, não obstante as fraquezas e pobrezas.

O anúncio da Palavra de Deus, na escola de Jesus, tem como força íntima e conteúdo o Reino de Deus (cf. Mc 1,14-15). O Reino de Deus é a própria Pessoa de Jesus, que com palavras e obras oferece a todos os homens a sal-vação. Ao pregar Jesus Cristo, a Igreja participa, por con-seguinte, na construção do Reino de Deus, ilumina a sua dinâmica de semente que germina (cf. Mc 4,27) e convida todos a acolhê-lo.

O “ai de mim se eu não anunciar o Evangelho!” (1Cor 9,16) de São Paulo ecoa ainda hoje com urgência na Igre-ja, tornando-se para todos os cristãos, não uma simples informação, mas vocação a serviço do Evangelho para o mundo.

É verdade que não faltaram nem faltam dificuldades que entravam o caminho do anúncio do Evangelho e da escuta do Senhor. Os motivos são vários: a cultura atual, por diversos fatores, desemboca no relativismo e no secu-larismo; as múltiplas solicitações do mundo e o ativismo de vida que abafam o Espírito, donde certa dificuldade em interiorizar a mensagem evangélica; a falta de subsídios bíblicos, que em muitas regiões não permite a utilização do texto bíblico nem sua tradução e difusão. E são tam-

67

I. Lectio Divina

bém, de modo especial, as “seitas” e o fundamentalismo que dificultam uma correta interpretação da Bíblia. Levar a Palavra de Deus é uma grande missão que implica um profundo e convicto sentir cum Ecclesia.

Um dos primeiros requisitos para um anúncio evangélico eficaz é a confiança no poder transforma-dor da Palavra no coração de quem a escuta. De fato, “a Palavra de Deus é viva, eficaz (...), discerne os pensa-mentos e intenções do coração” (Hb 4,12). Um segun-do requisito, hoje particularmente sentido e credível, é anunciar a Palavra de Deus como fonte de conversão, justiça, esperança, fraternidade e paz. Outros requisi-tos são a franqueza, a coragem, o espírito de pobreza, a humildade, a coerência, a cordialidade de quem ser-ve à Palavra de Deus. Escreve Santo Agostinho: “É fun-damental compreender que a plenitude da Lei, como de todas as Divinas Escrituras, é o amor (...). Quem, portanto, julga ter compreendido as Escrituras, ou ao menos parte delas, e não se empenha em construir, a partir da compreensão das mesmas, esse duplo amor a Deus e ao próximo, mostra não tê-las ainda compre-endido”. Em síntese, como afirma o Santo Padre Ben-to XVI, o receber a Palavra de Deus, que é amor, leva a que não se possa verdadeiramente anunciar o Senhor sem uma prática de amor, no cumprimento da justiça e da caridade (Bento XVI, Deus caritas est: AAS 98, 2006, 217-252).

A missão da Igreja realiza-se na evangelização e na catequese

O Diretório Geral de Catequese dá o sentido de “Pa-lavra de Deus, fonte da catequese” ao afirmar que “a cate-

68

Lectio Divina

quese deve ir sempre buscar seu conteúdo à fonte viva da Palavra de Deus, transmitida na Tradição e na Escritura”.

Nesta perspectiva, a catequese está estreitamente li-gada à Lectio Divina, enquanto experiência de escuta e de oração da Palavra de Deus desde a juventude.

Tem uma função importante o encontro direto com a Sagrada Escritura. Constitui isso um objetivo primário. A catequese “deve embeber-se e permear-se do pensa-mento, do espírito e das atitudes bíblicas e evangélicas, mediante um contato assíduo com os próprios textos” na Lectio Divina (cf. João Paulo II, Catechesi tradendae: AAS, 71, 1979, 1298).

Os bispos no ministério da Palavra

O Concílio Vaticano II ensina que “compete aos sa-grados Pastores (...) ensinar oportunamente aos fiéis que lhes foram confiados o uso reto dos Livros Divinos” (DV 25). Portanto, essa função cabe diretamente e em pri-meira pessoa aos bispos, quer como ouvintes da Palavra, quer como servidores da mesma, segundo o seu munus docendi. O Santo Padre Bento XVI realçou a necessidade de educar o povo para a leitura e meditação da Palavra de Deus como alimento espiritual, “para que, por experiên-cia própria, os fiéis vejam que as palavras de Jesus são espírito e vida (cf. Jo 6, 63). (...) Devemos alicerçar nosso empenho missionário e toda a nossa vida sobre a rocha da Palavra de Deus, o que encoraja os Pastores a dá-la a conhecer” (Bento XVI, AAS 99, 2007, 450). Por isso, o me-lhor modo de fomentar o gosto pela Sagrada Escritura é a própria pessoa do Bispo, plasmado pela Palavra de Deus. Ele tem a possibilidade contínua de ajudar os fiéis a sabo-rear a Escritura. Todas as vezes que fala aos fiéis, de modo

69

I. Lectio Divina

especial aos sacerdotes, pode dar algum exemplo e amos-tra de Lectio Divina. Aprendeu a fazê-la como deve ser, e se apresentá-la de forma simples, os fiéis aprenderão. Eis um objetivo acertado do ministério dos Pastores: a práti-ca da Bíblia e todas as iniciativas que a promovem devem ser consideradas como caminho eclesial e base de toda a devoção.

A função dos presbíteros e dos diáconos

Também para os presbíteros e diáconos, o conheci-mento e familiaridade com a Palavra de Deus é um dado de primária importância em ordem à evangelização, a que são chamados no seu ministério. O Concílio Vatica-no II diz que todos os clérigos, sobretudo os presbíteros e os diáconos, devem necessariamente manter um con-tato íntimo com as Escrituras, mediante a sagrada leitura assídua e o estudo aturado, para não se tornarem vazios pregadores da Palavra de Deus no exterior, quem não a escuta interiormente (cf. DV 25; PO 4). Tem a ver com esta doutrina conciliar a disposição canônica sobre o ministé-rio da Palavra de Deus confiado aos presbíteros e diáco-nos como colaboradores do Bispo.

No uso cotidiano da Palavra, os presbíteros e diáco-nos encontram a luz necessária para não se conformarem com a mentalidade do mundo e fazerem um sadio discer-nimento pessoal e comunitário, que lhes permita guiar com zelo, na ação apostólica, o povo de Deus nos cami-nhos do Senhor.

Na perspectiva do serviço presbiteral, a formação nos seminários exige cada vez mais um conhecimento vasto e atualizado no campo da exegese e da teologia. Exige uma formação não superficial no uso pastoral da Bíblia, uma

70

Lectio Divina

iniciação verdadeira e própria à espiritualidade bíblica, à Lectio Divina sem nunca descurar da educação para uma grande paixão pela Palavra a serviço do povo de Deus. Deseja-se, portanto, que muitos clérigos se dediquem aos estudos, mesmo acadêmicos, de Sagrada Escritura.

O papel dos leigos

O leigo, no caminho com a Palavra de Deus, não seja apenas um ouvinte passivo, mas participe ativamente em todos os campos onde entra a Bíblia: no estudo científico, no serviço da Palavra em âmbito litúrgico ou catequético e na animação bíblica nos diversos grupos. O serviço dos leigos requer competências diversificadas, que exigem uma formação bíblica específica e uma prática da Lectio Divina.

Um meio privilegiado para o encontro com Deus que nos fala é a catequese no seio das famílias, com o apro-fundamento de alguma página bíblica e a preparação da liturgia dominical. Cabe à família iniciar os filhos na Sagrada Escritura, com a narração das grandes histórias bíblicas, nomeadamente a vida de Jesus, e com a oração inspirada nos Salmos ou noutros livros revelados e, sobre-tudo, com a Lectio Divina feita em família.

Também se deve prestar uma grande atenção aos mo-vimentos ou aos grupos, como associações, agregações, novas comunidades. Com efeito, embora muito diferen-tes entre si nos métodos e campos de ação, têm como traço comum a redescoberta da Palavra de Deus e sua colocação privilegiada no projeto espiritual-pedagógico para suscitar e alimentar sua vida espiritual. Dispõem de eficazes itinerários formativos, centrados na assimilação existencial da Palavra de Deus. Ensinam como viver a li-

71

I. Lectio Divina

turgia e a oração pessoal, dando grande atenção à Palavra e privilegiando a liturgia da Igreja. Também fazem a ora-ção do Ofício e a Lectio Divina como momentos de nutri-ção espiritual.

O serviço das pessoas consagradas

Neste caminho da Palavra de Deus no povo cristão, têm um papel específico “as pessoas de vida consagra-da”. Como sublinha o Concílio Vaticano II, “tenham (elas) todos os dias entre mãos a Sagrada Escritura, para que aprendam, pela Lectio Divina e pela meditação dos Livros Sagrados, ‘a eminente ciência de Jesus Cristo’ (Fil 3,8)” (PC 6) e encontrem um renovado impulso no seu trabalho de educação e evangelização, mormente dos pobres, peque-ninos e últimos, através dos escritos do Novo Testamento, “sobretudo os Evangelhos, que são o coração de todas as Escrituras (...), promovendo, nos moldes adequados ao próprio carisma, escolas de oração, de espiritualidade e de leitura orante da Escritura” (João Paulo II, Vita Conse-crata: AAS 88, 1996, 469).

Para as pessoas consagradas, o texto bíblico deve tornar-se objeto de uma cotidiana ruminatio e de con-fronto para um discernimento pessoal e comunitário em vista da evangelização. Quando o homem começa a ler as divinas Escrituras – observava Santo Ambrósio – Deus volta a passear com ele no paraíso terrestre. A leitura orante da Palavra, feita com os jovens, é a es-trada de um renovado crescimento vocacional e de um fecundo regresso ao Evangelho e ao espírito dos funda-dores, tão recomendado pelo Concílio Vaticano II e re-centemente reproposto por Sua Santidade Bento XVI às pessoas de vida consagrada. Em particular, valorizem

72

Lectio Divina

as pessoas consagradas o confronto comunitário com a Palavra de Deus, que produzirá comunhão fraterna, alegre partilha das experiências de Deus em sua vida, e ajudá-las-á a crescer na vida espiritual. O papa João Paulo II afirmava:

A Palavra de Deus é a primeira fonte de toda a vida es-piritual cristã. Ela alimenta uma relação pessoal com o Deus vivo e com a sua vontade salvífica e santificado-ra. Por isso é que a Lectio Divina, desde o nascimento dos Institutos de vida consagrada, de modo particu-lar no monaquismo, foi tida na mais alta considera-ção. Por meio dela, a Palavra de Deus é transferida para a vida, projetando sobre ela a luz da sapiência, que é dom do Espírito. (João Paulo II, Vita Consecra-ta: AAS, 1996, 469)

A Sagrada Escritura, vínculo ecumênico

Diz o papa Bento XVI:

A escuta da Palavra de Deus é prioritária no nosso empenho ecumênico. Não somos nós, com efeito, que fazemos ou organizamos a unidade da Igre-ja. A Igreja não se “faz” a si mesma e não vive de si mesma, mas da Palavra criadora que sai da boca de Deus. Ouvir juntos a Palavra de Deus, fazer a Lectio Divina da Bíblia, ou seja, uma leitura unida à ora-ção, deixar-se surpreender pela novidade, que nun-ca envelhece e nunca se esgota, da Palavra de Deus, superar a nossa surdez para essas palavras que não concordam com os nossos preconceitos e opiniões, ouvir e estudar na comunhão dos crentes de todos os tempos: tudo isso é um caminho a percorrer para alcançar a unidade da fé, como resposta à escuta da Palavra (Bento XVI, Allocutio: L’Osservatore Romano, 27/1/2007, p. 4-5).

73

I. Lectio Divina

Em geral, nota-se com satisfação que a Bíblia é hoje o maior ponto de encontro para a oração e o diálogo entre as Igrejas e as comunidades eclesiais.

A Palavra de Deus, fonte do diálogo entre cristãos e judeus

Cristãos e judeus partilham grande parte do cânone bíblico, as “Sagradas Escrituras” (cf. Rm 1,2), que os cris-tãos chamam Antigo Testamento. Essa estreita relação fundada na Bíblia dá ao diálogo entre cristãos e judeus um cunho singular. A esse respeito, o importante docu-mento da Pontifícia Comissão Bíblica, intitulado O povo judeu e as Escrituras Sagradas na Bíblia cristã, leva à re-flexão sobre a íntima ligação de fé, já assinalada pela Dei Verbum (cf. DV 14-16). Para uma melhor compreensão da própria pessoa de Jesus de Nazaré, é necessário reconhe-cê-lo como “filho deste povo”: Jesus é judeu e é tal para sempre.

Há outros dois aspectos que merecem especial con-sideração. Em primeiro lugar, a compreensão hebraica da Bíblia pode ajudar os cristãos a entendê-la e a estudá-la. Por vezes, desenvolveram-se – e podem ainda desenvol-ver-se – formas de estudar as Sagradas Escrituras com os judeus e aprender uns com os outros, mesmo no rigoroso respeito das diversidades.

Conclusão

“A palavra de Cristo permaneça entre vós em toda a sua riqueza, de sorte que com toda a sabedoria vos possais instruir e exortar mutuamente. Sob a inspiração da graça cantai a Deus de todo o coração salmos, hinos e cânticos espirituais. Tudo quanto fizerdes, por palavra ou por obra,

74

Lectio Divina

fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a deus Pai.” (Cl 3,16-17).

A Palavra de Deus, dom à Igreja

Na sua grande bondade, Deus Uno e Trino quis comu-nicar ao homem o mistério de sua vida escondida nos sé-culos (cf. Ef 3,9). No seu Filho Unigênito Jesus Cristo, Deus Pai pronunciou, na graça do Espírito, a sua Palavra defini-tiva, que interpela todo homem que vem a este mundo. A condição fundamental para que o homem encontre Deus é “a escuta religiosa da Palavra”. Vive-se a vida segundo o Espírito na proporção em que se é capaz de dar espaço à Palavra, de fazer nascer o Verbo de Deus no coração huma-no. Não é, de fato, o homem que pode penetrar na Palavra de Deus, mas é só esta que pode conquistá-lo e convertê-lo, levando-o a descobrir suas riquezas e seus segredos e abrindo-lhe horizontes de sentido, propostas de liberdade e de plena maturação humana (cf. Ef 4,13). O conhecimen-to da Sagrada Escritura é obra de um carisma eclesial, que é posto nas mãos dos crentes abertos ao Espírito.

Diz São Máximo, o Confessor: ”As palavras de Deus, se são simplesmente pronunciadas, não são escutadas, porque não têm como voz a prática dos que as pronun-ciam. Se, ao contrário, são pronunciadas juntamente com a observância dos mandamentos, têm com essa voz o po-der de fazer desaparecer os demônios e levar os homens a construir o templo divino do coração com o progresso nas obras de justiça” (MG 90,1084). É questão de se entregar ao louvor silencioso do coração num clima de simplicida-de e de oração adoradora como Maria, a Virgem da escu-ta, uma vez que todas as Palavras de Deus se resumem e devem ser vividas no amor (cf. Dt 6,5; Jo 13,34-35).

75

I. Lectio Divina

A Igreja, como comunidade dos crentes, é convocada pela Palavra de Deus. Ela é o âmbito privilegiado em que os crentes encontram Deus que continua a falar na litur-gia, na oração, no serviço da caridade. Por meio da Pala-vra celebrada, de modo especial na Eucaristia, os fiéis se inserem na Igreja cada vez mais, comunhão que tem sua origem na Trindade, mistério de comunhão infinita.

O Pai, que no amor do Espírito Santo cria tudo o que existe por meio do Filho e em vista d’Ele (cf. Cl 1,16), con-tinua essa sua obra originária naquilo que o próprio Filho opera (cf. Jo 5,17) sobre a terra. Sua obra é sua Igreja, Igreja do Verbo encarnado, caminho que de um lado é descen-dente – de Deus para o homem – e do outro é ascendente – do homem para Deus (cf. Jo 3,13). Nesta Palavra viva e eficaz (cf. Hb 4,12), a Igreja nasce, edifica-se (cf. Jo 15,16; At 2,41s.) e encontra a plenitude de vida (cf. Jo 10,10).