Lefebvre-Teoria Dos Momentos

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TEORIA DOS MOMENTOS

(Henri Lefebvre: Crítica da Vida Cotidiana, Vol. II)

A propósito desse termo, "momento", nós diremos que ele corresponde ao sentido de uma palavra correntemente empregada, ou, se quisermos, a seu conteúdo vivido. [...] A "teoria dos momentos" tende a revalorizar o descontínuo, capturando-o no tecido mesmo do "vivido", sobre a trama de continuidade que ele pressupõe. Na linguagem comum, a palavra "momento" se distingue pouco da palavra "instante". Mas, contudo, se distingue. Dizemos: "foi um bom momento", o que implica uma certa duração, um certo valor, um arrependimento, talvez, a esperança de reviver o momento, ou de conservá-lo como lapso de tempo privilegiado, embalsamado na lembrança. Não seria esse um instante qualquer, nem um simples instante efêmero e passageiro. Nós concebemos o momento em função de uma história, aquela do indivíduo. Por outro lado, [a teoria] examina o momento em geral, e os momentos em particular, em suas relações com a vida cotidiana. Ela não pretende defini-los completamente, nem esgotá-los. Outras ciências, outros métodos, poderão estudar esses momentos. A constelação de momentos.

A vida dita 'espiritual' nos surge como uma constelação de momentos. Com grande entusiasmo adotamos esse símbolo. O dia da cotidianidade, seu claro-escuro, oculta a constelação de momentos. Porém, se algum contratempo sombrear o cotidiano, aí essa constelação surgirá no horizonte. Cada um escolhe sua estrela, livremente, ou seja, segundo uma irresistível necessidade interior. A constelação dos momentos não se presta a nenhuma astrologia, ponto fixo que é no horóscopo da liberdade. São os falsos sóis que iluminam hoje a vida cotidiana: a moral, o Estado, a ideologia. Eles fazem pior do que iluminá-la falsamente: eles a conservam distanciada e aquém das possibilidades. Infelizmente, as estrelas dos possíveis só brilham à noite. Cedo ou tarde, o dia cotidiano se elevará e os sóis, (entre eles, o sol negro da angústia vazia) atingirão o zênite. As estrelas só brilharão à noite enquanto o homem não houver transformado esse dia e essa noite. Ninguém escapa ao drama, pois a ausência do trágico cria uma situação ainda mais dramática: a da vida negligenciada, esvaziada e morna. O momento? É uma festa individual e livremente celebrada, festa trágica, portanto, verdadeiramente festa. O objetivo não será o de suprimir as festas ou de relegá-las ao abandono prosaico do mundo. O objetivo é de unir a Festa à vida cotidiana. Entre os momentos, podemos inscrever o amor, o jogo, o repouso, o conhecimento, etc. Sua enumeração não pode se esgotar, pois nada interdita a invenção de novos momentos. Entretanto, como e por que incluir tal atividade ou tal estado entre os momentos? Segundo quais índices ou critérios?

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a) O momento se discerne ou se destaca a partir de uma confusão, quer dizer, uma ambigüidade inicial, por uma escolha que o constitui. A vida natural ou espontânea só oferece ambigüidade. Os germes dos momentos aí se apresentam e se distinguem mal. Assim ocorre na infância e na adolescência em relação ao jogo e ao trabalho, ao jogo e ao amor, é necessário uma pedagogia severa e um esforço para particularizar o trabalho, a especificar o conjunto de atitudes, de comportamentos e de gestos que ele reúne, seja o trabalho material ou intelectual. De modo análogo, o jogo amoroso – as brincadeiras, o flerte, a sedução, os desafios – precedem ao amor que dificilmente se aparta dessa ambigüidade e que só emergirá tardiamente - ou, talvez, jamais - dessa mistura equívoca. Enquanto jogo e amor não se distinguirem, ainda não será o amor. O amor tem sua gravidade. Se ele joga, ele domina o jogo.

b) O momento tem certa duração e duração própria. Durável, ele se destaca do continuum das transitoriedades e do psiquismo informe. Ele quer durar. Ele não pode durar (não por longo tempo). Tal contradição interna confere-lhe intensidade própria, levada até o paroxismo, pois em sua plenitude já se manifesta seu fim inelutável. Sua duração não se associa nem à evolução contínua, nem ao puramente descontínuo (mutação brusca ou "revolução"). Ela só pode se definir como uma involução. O momento, essencialmente presente, tem um começo, um desenvolvimento e um fim, um avanço e uma posteridade relativamente bem definidos. Assim, o "amor", é um amor (esse ou aquele amor; o amor de um por outra, ou de uma por outro). E é também a sucessão de amores de tal homem ou de tal mulher, e é também a seqüência das paixões amorosas de uma história mais ampla, aquela de uma família, de um grupo, da sociedade (e, finalmente, do ser humano).

c) O momento tem sua memória. A memória amorosa não coincide com a do conhecimento ou do jogo, seja no caso do indivíduo como no dos grupos. A entrada no momento evoca uma memória particularizada. É no interior dessa memória específica que se produz o reconhecimento do momento e de suas implicações.

f) Todo o momento se torna um absoluto1. Ele pode se constituir como absoluto. Ele deve mesmo se constituir como absoluto. Ou, se não, o absoluto não poderia ser concebido, muito menos vivido. O momento se propõe como o Impossível, e o propõe. Aqui, nós nos aproximamos dos critérios fundamentais. Que amor, merecedor desse nome, não se sonharia único e total, o amor impossível? Se jamais o tiver aspirado, se desde o início houver acatado compromissos, se jamais tiver sonhado com o absoluto e a aspiração de realizar - ele mesmo, esse sonho - e de ter êxito – ele mesmo, primeiro e único a lograr ascender até essa aspiração, o amante não será, então, merecedor desse título. Por analogia, o jogo faz dos jogadores, (assim como os jogadores fazem do jogo), um 1 Dicionário Houaiss: no hegelianismo, diz-se de ou a verdade plena, simultaneamente idéia e realidade concreta, que se afirma progressivamente no decorrer do processo histórico. (N. da T.).

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absoluto: objetivo e sentido maior da vida. O jogador arrisca no jogo aquilo que não é jogo. Ele aposta, e por um ganho aleatório – pela prodigiosa vertigem do Acaso –, tudo pondo em jogo, e aí arriscando sua vida inteira. Aquele que aspira ao conhecimento sacrifica ao conhecimento tudo o que não lhe é próprio: para ele, tudo se transforma em objeto por conhecer e meio de conhecer o objeto que assim lhe é designado. O momento é a paixão, é a inevitável destruição e a autodestruição desse estado passional. O momento é o possível e o impossível vislumbrado, desejado, elegido como tal. O impossível dentro do cotidiano torna-se, então, possível, torna-se, mesmo, a regra de toda a possibilidade. Aí principia o movimento dialético 'impossível-possível' e todas as suas conseqüências.

A análise dos momentos. O momento nasce do cotidiano e no cotidiano. É dele que o momento se nutre e só assim que ele o nega. É no cotidiano que uma possibilidade se dá a descobrir (o jogo, o trabalho, o amor, etc.), em estado espontâneo, bruto e ambíguo. [...] O sujeito passa a ver o impossível em relação com a cotidianidade; a decisão transforma, precisamente, o impossível remoto em possibilidade próxima. Pela paixão que ele implica, o impossível torna-se um critério de possibilidade: quer-se o impossível, e se arrisca o possível para alcançar esse impossível que se vislumbra para além do risco e da aventura. A decisão tomada faz recuar definitivamente as fronteiras da impossibilidade. Nesse sentido, a decisão assume completamente o risco do fracasso; ela incorre e assume o fracasso terminal, aquele que põe fim à magnífica trajetória do momento. O instante do fracasso, no momento, tem, portanto, uma grande importância. Aí se situa o drama: emergência do cotidiano ou queda, sem jamais ter emergido, caricatura ou tragédia, celebração da festa ou cerimônia duvidosa. O fracasso é inerente ao momento, à sua tentativa, à sua loucura e à sua grandeza. Não se deve, para compreender e julgar, partir do fracasso, mas da tentativa que se segue ao fracasso. Trata-se de escalada e queda, começo e fim, o trágico é elemento onipresente no verdadeiro momento. É sua realização e sua perda. O momento começa e recomeça. Ele se desenvolve segundo certa forma: rito, cerimonial, sucessão necessária. Os momentos se prestam, assim, aos formalismos (do amor, do jogo, etc.), mas lá, onde triunfa o formalismo, morre o momento. Assim que o momento termina, há a ruptura. Nesse sentido, a teoria dos momentos rejeita todos os formalismos e toda a ideologia da forma pura.

Momentos e cotidianidade. O momento não pode se definir nem no cotidiano e nem através do cotidiano, nem tampouco pelo extra-cotidiano e excepcional. O momento não surge gratuitamente em qualquer situação ou instante. Festa, maravilha, mas não milagre, ele tem suas razões e não intervém na cotidianidade sem que essas razões se manifestem. A Festa só tem sentido em sua irrupção no terreno morno e macio do cotidiano. Ela consome em um segundo toda a paciência e a seriedade acumuladas pela cotidianidade. A cotidianidade, por sua vez, não se resume aos "momentos nulos", no sentido que todos os momentos da aventura se lhe escapam. Nível da

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totalidade e precisamente privada de totalidade, a vida cotidiana não pode compreender os atos que se alçam como totalidade. Eles se pretendem como existências à parte e é precisamente nessa condição que eles alcançam todo seu esplendor. Os momentos se apresentam como duplos, tragicamente magníficos, da vida cotidiana2. Podemos, assim, compreender – através de sua crítica – as mais célebres fórmulas de Lukàcs (sobre a anarquia e o claro-escuro da vida cotidiana), ou de Husserl (sobre o fluxo heraclitiano e informe do 'vivido'), sem, no entanto, privilegiar a arte ou a filosofia. Os homens que não são artistas nem filósofos emergem acima da cotidianidade em sua própria cotidianidade, porque eles conhecem os momentos: o amor, o trabalho, o jogo, etc. Se se deve, por alguma razão, situar a teoria dos momentos em uma classificação, nós diremos que sua contribuição se destina à antropologia, porém, sob duas condições: que não se confunda essa antropologia com certo culturalismo (definição, pelo viés da cultura, do homem fora da natureza e da espontaneidade) e que não se omita sua crítica radical a todas as especializações, aí compreendida a própria antropologia. No caso da antropologia, questionamos: não será o risco da afirmação dogmática tão sério quanto as conseqüências mais graves, a saber, as de uma definição limitada e limitante do homem? A teoria nos permitirá acompanhar o nascimento e a formação dos momentos na cotidianidade, sob diversas denominações psíquicas e sociológicas: atitudes, aptidões, convenções, estereótipos afetivos ou abstratos, intenções formais, etc. Talvez ela nos permita até clarear as lentas caminhadas subterrâneas e as etapas situadas entre a necessidade e o desejo. O mais importante, todavia, é que ela possa abrir a perspectiva do transpasse, e mostrar como resulta o antigo conflito do cotidiano com a tragédia, da trivialidade com a Festa.

LEFEBVRE, Henri. Critique de la vie quotidienne. 3 vol. Paris: L´Arche,

1961. (Trad.: Maria Helena Bernardes).

2 Cf. Michel Butor: "Le Roman et la Poésie", Les lettres nouvelles, fevereiro 1961, p. 53 et sq.. Michel Butor anuncia muito justamente que "um dos propósitos do romance seria o de restabelecer uma continuidade entre os momentos maravilhosos e os momentos nulos" (N. do A.).