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    Monica Hirst e Maria Regina Soares de Limapara 0estudo dasrelacoes internacionais no Brasil sao fundamentais e, ao longodesses anos, muito me beneficiei do dialogo com elas. AndrewHurrell, urn analista, sempre criativo da politica externa brasi-leira, fez uma leitura rigorosa dos ensaios sobre legitimidade ea ele, como a Jose Humberto Brito Cruz, Marcos Galvao, Moni-ca Hirst e Celso Lafer,devo correcoes fundamentais.

    Sao muitos os colegas diplomatas a quem devo ora algumasdas ideias, aqui retomadas, ora algumas interpretacoes,mas sempreo estimulo de refletir. Alias, refletir - e agir - com espiritopublico tern sido a experiencia dos diplomatas com quem traba-lhei e a quem devo urn sinal de respeito e gratidao, como AraujoCastro, Expedito Resende, Italo Zappa, Rubens Ricupero, PauloTarso Flecha de Lima,Ronaldo Sardenberg,Bernardo Pericas, LuisFelipe Iampreia, Sebastiaodo Rego Barros, LuizFelipe SeixasCor-rea e Marcos Azambuja. Sao alguns entre os muitos excelentescolegas que tenho encontrado ao longo da carreira.

    Ao tentar 0meu primeiro trabalho academico, uma tesede mestrado sobre a teoria da dependencia, apresentada naUniversidade de Georgetown, em 1976, pude ter com 0Profes-sor Fernando Henrique Cardoso, uma conversa esclarecedora egenerosa. Hoje, ao trabalhar diretamente com 0Presidente Fer-nando Henrique, continuo a desfrutar de suas licoes e de suasingular capacidade para entender os matizes da realidade social.

    Finalmente, uma palavra de apreco e de agradecimento aFernando Gasparian e a Christine Rohrig pelo estimulo parapublicar este livro.

    Notas1. Hurrell A., "The Academic Study of International Relations", textopreparado para 0 I Congresso Brasileiro de Relacoes Internacionais -Brasilia, 24-26 de marco de 1998.2. Lapid Y, e Kratochwil Friedrich, (eds.), The'Return of Cul ture andIdentitv ill IR Theory. Londres, Lynn Rienner, 1996. Goldstein J, eKeohane R, (eds.). Ideas (",.Foreign Policy. Ithaca, Cornell UniversityPress, 1993.

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    A QUESTAO DA ORDEM INTERNACIONAL:COMENTARIOS A PARTIRDAS IDEIAS DE

    HEDLEY BULL1

    o objetivo deste ensaio e propor uma introducao didatica aquestao da ordem no sistema internacional. Tomar-se-a, comoaponto de apoio, a reflexao que Hedley Bull faz sobre 0temacom vista a reconstruir 0que seriam "modelos ideais" de ordeminternacional moderna, ou seja, aquela que se organiza em tornode Estados soberanos. Acreditamos que a questao da ordem euma porta de entrada das mais ricas para a compreensao dealguns problemas basicos da vida internacional, sobretudo a dasIogicas que os Estados podem adotar em "sociedades anarquicas".

    Antes de chegar a Bull, vamos chamar atencao para algunsfatos da historia conternporanea e, assim, definir a "problemati-ca" com base na qual 0 tema da ordem pode ser articuladoanaliticamente.

    No pensamento classico, as caracteristicas permanentes dosistema internacional e suas "regularidades" sao discutidas apartir da dicotomia guerra-paz, que define situacoes extremas.De fato, a guerra e a expressao violenta, portanto, a ultima, dosmodos de conflito, e a paz, 0ideal a que se alcancaria com aprevalencia de padroes irreversiveis e abrangentes de coopera-cao. Na verdade, a dicotomia esconde urn continuum complexo.Nao havera, na Historia, momentos de conflito absoluto ou pazperfeita. Mesmo quando 0conflito impera, como ocorreu duranteas Guerras Mundiais, algum ingrediente de cooperacao existira selembrarmos a formacao de aliancas ou mesmo a obediencia, pre-caria, e verdade, a algumas normas do direito internacional, comoo respeito aos neutros e as populacoes civis. Durante a Guerra

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    Fria, a disputa ideologica nao impediu que as superpotenciasassinassem tratados que restringiam a proliferacao nuclear.

    Assim, passando a situacoes historicas recentes, quem ana-lisasse 0 periodo da Guerra Fria poderia levantar claramenteexpressoes de conflito, com alcance e intensidade variados,como: a) a persistencia das disputas entre as superpotencias,que levou a uma acumulacao extra ordinaria de armamentos dealtissimo poder de destruicao; b) a dificuldade de superacao decrises regionais - algumas expressas efetivamente em guerra,como no Oriente Medio - e a fragilidade dos instrument osmultilaterais para 0encaminhamento de solucoes pacificas dosconflitos internacionais; c) as formas crescentemente agressivasdas disputas econornicas, a crise da divida, os processos depauperizacao em algumas regioes do planeta: d) a existenciade situacoes de clamorosa injustica, como a da discriminacaoracial, mesmo diante dos mais veementes esforcos da comuni-dade internacional para debela-las. E, ao mesmo tempo, perce-beria que: e) nao houve guerras de alcance mundial nos ultimos50 anos; f) apesar de violacoes, certos principios de organizacaodo sistema internacional mantiveram-se e foram mais respeita-dos do que transgredidos, g) instituicoes basicas para 0convfviointernacional, como a diplomacia e os organismos multilaterais,especialmente os tecnicos, subsistiram e garantiram medidas ex-pressivas de dialogo e de cooperacao entre as nacoes. A ~NU,que e 0 simbolo maximo da cooperacao internacional, terasido inoperante em alguns conflitos centra is do periodo, comoo do Vietna, mas, ao mesmo tempo, serviu para facilitar 0processo de descolonizacao e, de suas reunioes, nasceram va-rios textos de direito internacional. Mesmo insatisfeito com 0episodio. nenhum pais propos a extincao das Nacoes Unidas.

    Se olharmos para 0 panorama atual, pos-Guerra Fria, osmesmos contrastes poderiam ser observados. De um momentoquase euforico, logo nos primeiros anos da decada de 1990,quando a comunidade internacional enfrentou 0problema daGuerra do Golfo, em que alguns imaginaram que estavamosperto de constituir uma "quase policia" internacional, com altograu de legitimidade e razoavel eficacia, passamos logo depoispara as decepcoes com a dificuldade de lidar com os desafiosda recomposicao das nacionalidades na ex-Iugoslavia. Apesar

    de exigirem leitura menos simplista do que tiveram, e sintoma-tico da arnbiguidade fundamental do sistema internacional 0sucesso que alcancaram simultaneamente 0 artigo de Fukuya-rna, anunciando 0"fim da Historia", com a perspectiva da vito-ria da dernocracia e do mercado, e 0de Huntington, indican-do, em tom pessimista, que a Guerra Fria seria substituida porconflitos de outra natureza, ja que, com 0esmaecimento dasideologias, as disputas seriam entre civilizacoes e, portanto, me-nos manejaveis diplomaticamente. Conhecemos as interpreta-coes contraditorias do fenomeno da globalizacao: para uns,afirmacao do triunfo de urn capitalismo que, pouco a pouco,levara a uma superacao gradual da desigualdade, enquanto,para outros, a confirrnacao de padroes de iniquidade, que, dei-xados sem controle, so se aprofundariam.

    Diante desses fatos e de suas interpretacoes, que condu-soes tirar sobre os fundamentos do sistema internacional? Aprimeira linha de reflexao poderia sugerir que, no continuumque vai da violencia a cooperacao, algum dos lados prevalecee a indagac,:ao levaria a: seria a cooperacao sempre episodica eo conflito, a regra? Ou, ao contrario, a guerra e a excecao, 0"defeito" do sistema? Em que condicoes a cooperacao emerge?Que tipo de "ordern" resulta desse incessante contraste confli-to-cooperacao no sistema internacional? 0que se ve e 0maximode ordem alcancavel numa estrutura constituida por soberanos?Ou e 0minimo de ordem, que pode, portanto, ser aperfeicoada? 0que favorece e 0que impede 0aperfeicoamento da ordem?

    Essas indagacoes nao sao novas e, na verdade, em expres-soes variadas, vern aparecendo desde os primeiros momentosda formacao da moderna sociedade de Estados. Talvez valhaainda uma vez retoma-las porque, como vivemos, em nossosdias, urn processo de transicao de um mundo bipolar, domina-do pelo conflito ideologico, para algo que ainda nao conhece-mos plenamente, aquelas questoes fundamentais voltam a interes-sar e se tornam frequentes, 0que significant as transformacoescontemporaneas? A perspectiva e de que a cooperacao se am-plie, se torne vitoriosa? Que conflitos 0 sistema enseja? Naovamos, neste ensaio, tentar resolver essas indagacoes. 0 proce-dimento sera outro; 0de sugerir, voltando aos classicos, de quemaneira se podem pensar model os basicos para entender 0

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    Fria, a disputa ideologies nao impediu q~e as_superpotenciasassinassem tratados que restringiam a proliferacao nuclear.

    Assim, passando a situacoes historicas recentes, quem ana-lisasse 0 periodo da Guerra Fria poderia levantar claramenteexpressoes de conflito, com alcance e intensidade variados,como: a) a persistencia das disputas entre as superpotencias,que levou a uma acumulacao extraordlnaria de armarnentos dealtissimo poder de destruicao, b) a dificuldade de superacao decrises regionais - algumas expressas efetivamente em guerra,como no Oriente Medic - e a fragilidade dos instrumentosmultilaterais para 0encaminhamento de solucoes pacificas dosconflitos internacionais; c) as formas crescentemente agressivasdas disputas econornicas, a crise da divida, os process os depauperizacao em algumas regioes do planeta; d) a existenciade situacoes de clamorosa injustica, como a da discriminacaoracial, mesmo diante dos mais veementes esforcos da comuni-dade internacional para debela-las. E, ao mesmo tempo, perce-beria que: e) nao houve guerras de alcance mundial nos ultimos50 anos; f) apesar de violacoes, certos principios de organizacaodo sistema internacional mantiveram-se e foram mais respeita-dos do que transgredidos, g) instituicoes basicas para 0conviviointernacional, como a diploma cia e os organismos multilaterais,especialmente os tecnicos, subsistiram e garantiram medidas ex-pressivas de dialogo e de cooperacao entre as nacoes. A ONU,que e 0 simbolo maximo da cooperacao internacional, terasido inoperante em alguns conflitos centra is do periodo, comoo do Vietna, mas, ao mesmo tempo, serviu para facilitar 0processo de descolonizacao e, de suas reunioes, nascerarn va-rios textos de direito internacional. Mesmo insatisfeito com 0episodic, nenhum pais propos a extincao das Nacoes Unidas.

    Se olharrnos para 0panorama atual, pes-Guerra Fria, osmesmos contrastes poderiam ser observados. De um momentaquase euforico, logo nos primeiros anos da decada de 1990,quando a cornunidade internacional enfrentou 0problema daGuerra do Golfo, em que alguns imaginaram que estavamosperto de constituir uma "quase policia'' internacional, com altograu de legitimidade e razoavel eficacia, passamos logo depoispara as decepcoes com a dificuldade de lidar com os desafiosda recomposicao das nacionalidades na ex-Iugoslavia. Apesar

    de exigirem leitura menos simplista do que tiveram, e sintoma-tico da ambiguidade fundamental do sistema internacional 0sucesso que alcancararn simultaneamente 0artigo de Fukuya-ma, anunciando 0"fim da Historia", com a perspectiva da vito-ria da democracia e do mercado, e 0de Huntington, indican-do, em tom pessimista, que a Guerra Fria seria substituida porconflitos de outra natureza, ja que, com 0 esmaecimento dasideologias, as disputas seriam entre civilizacoes e, portanto, me-

    )nos manejaveis diplomaticamente". Conhecemos as interpreta-coes contraditorias do fenomeno da globalizacao. para uns,afirmacao do triunfo de um capitalismo que, pouco a POLlCO,levara a uma superacao gradual da desigualdade; enquanto,para outros, a confirmacao de padroes de iniquidade, que, dei-xados sem controle, so se aprofundariam.

    Diante desses fatos e de suas interpretacoes, que conclu-soes tirar sobre os fundamentos do sistema internacional? Aprimeira linha de reflexao poderia sugerir que, no continuumque vai da violencia a cooperacao, algum dos lados prevalecee a indagacao levaria a: seria a cooperacao sempre episodica eo conflito, a regra? Ou, ao contrario, a guerra e a excecao, 0"defeito" do sistema? Em que condicoes a cooperacao emerge?Que tipo de "ordern" resulta desse incessante contraste confli-to-cooperacao no sistema internacional? 0 que se ve e 0maximode ordem alcancavel numa estrutura constituida por soberanos?Ou e 0minimo de ordem, que pode, portanto, ser aperfeicoada? 0que favorece e 0que impede 0aperfeicoarnento da ordem?

    Essas indagacoes nao sao novas e, na verdade, em expres-soes variadas, vern aparecendo des de os primeiros momentosda formacao da moderna sociedade de Estados. Talvez valhaainda uma vez retoma-las porque, como vivemos, em nossosdias, um processo de transicao de urn mundo bipolar, domina-do pelo conflito ideologico, para algo que ainda nao conhece-mos plenamente, aquelas questoes fundamentals voltam a interes-sar e se tornam frequentes. 0que significam as transforrnacoesconternporaneas? A perspectiva e de que a cooperacao se am-plie, se torne vitoriosa? Que conflitos 0 sistema enseja? Naovamos, neste ensaio, tentar resolver essas indagacoes. 0 proce-dimento sera outro; 0de sugerir, voltando aos classicos, de quemaneira se podern pensar modelos basicos para entender 0

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    were to obtain, but their achievement in some degree waselementary , pr imary and universa l. It was elementary be-cause such achievement was consti tutive q/ society, it wasprimary in that other goals pressuposed their achievement;and it was universal because no society was to be f oundthat did not allow for their achievement6

    pretar 0 seu alcance, ele nao exclui a possibilidade de, emcasos individuais, haver reparticao, absorcao de Estados, extin-cao de outros etc. Do ponto de vista das potencias, que naoestao, em tese, ameacadas por possibilidades de extincao Cad-mita-se que a ameaca nuclear esteja sob controle), e perfeita-mente possivel aceitar que as instituicoes hoje vigentes no sistemainternacional sao adequadas ao cumprimento daquele objetivode preservacao, portanto, existe ordem. Mas essa posicao da mar-gem a qualificacoes e criticas. Algum analista dira, por exemplo,que, para a maioria dos paises, a soberania e uma ficcao juri-dica e a insercao dependente no sistema capitalista internacio-nal mostra que as instituicoes nao sao suficientes para garantirautonomia plena, 0 controle soberano sobre 0proprio desti-no. E 0 argumento concluira: ou a soberania nao e urn dosvalores efetivamente protegidos pela ordem ou a ordem e for-temente imperfeita, ou so alguns dela desfrutam. Pode haverordem que trate seletivamente dos Estados que a integram?Outra qualificacao possivel: em certos paises, podem ocorrermodificacoes significativas em determinadas linhas de acao go-vernamental, induzidas pelo sistema internacional, 0que leva-ria a pergunta. preservou-se a soberania, a politica adotadacorresponde ao que "preferiria" aquela nacao? Como determi-nar, em casos especfficos, a partir da nocao de autodetermina-cao, da ideia da soberania popular, 0que 0 "soberano" quer?Ou seja. se argumentamos com a preservacao do Estado comocircunscrita ao territorio, esquecemos que este e somente urndos componentes do Estado. Nesse caso, 0objetivo propostopor Bull nao estaria sendo atingido _e, mesmo em sua concep-cao minimalista, nao haveria ordem.

    Essas observacoes servem para mostrar que 0conceito deordem, como tantos outros em politica, embute inevitavelmen-te uma carga valorativa. Isso inabilita 0 conceito para fundaranalises, joga-o de maneira inevitavel no dominio das utilizacoese manipulacoes ideologicas? A tentativa de Bull e frustrad~? 0tema e complexo e 0 que se tentara fazer aqui e , de formasimples, levantar questoes em torno do conceito da ordern''.o interesse e a utilidade do estudo derivarn, fundamental-mente, das possibilidades de articular uma referencia analiticapara 0trabalho critico.

    Bull tenta, portanto, dar uma medida de objetividade anocao de ordem por meio de urn movimento de reducao eprecisao do que seriam os objetivos sociais que fundam a or-dem. Ainda que nao se pudesse explicitar antecipadamente asua extensao, a essencialidade dos interesses/valores a serempreservados seria de tal forma clara que garantiria a transfor-macae da nocao de ordem de urn instrumento de avaliacaosubjetiva em urn instrumento analltico e critico.E born 0caminho apontado por Bull?A reacao imediata e

    de ceticismo, ja que, numa primeira aproximacao, parece im-possivel expurgar da nocao de ordem as conotacoes de valor.Mesmo quando se fala das exigencias minimas para que existaordem, e sempre possivel a controversia. Tome-se a questao daprotecao contra a violencia como urn sinal necessario da or-dem. Quando e possivel afirmar que as instituicoes consegui-ram a ordem? Quando nao existe mais qualquer atentado crimi-noso contra individuos? Quando existe uma margem toleravel deatentados? A estatistica policial "resolve" a medida da ordem ousera alguma sensacao subjetiva de seguranca individual? Se nosafastamos dos casos de desordem que beiram ao caos, a ten-dencia e de as formas de ordem, pela propria precariedade dasociedade dos homens, serem necessariamente imperfeitas, 0que impoe as avaliacoes valorativas, sobretudo em cases defronteiras tenues, como 0do sistema internacional.

    Sempre havera, segundo a perspectiva teorica ou ideologi-ca, variacoes sobre a formula de avaliar 0momenta em que sealcanca a protecao do essencial e se configura uma situacao deordem. Essa conclusao vale ainda com mais forca em relacaoao sistema internacional, em que cada Estado pode, em tese,propor uma avaliacao diferente para 0problema. V

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    internacional e, talvez, indiretamente, dizer algo sobre 0 siste-ma internacional contemporaneo.

    Nesse sentido, para simplificar e iniciar uma discussao, dir-se-ia que a questao da ordem admitiria, hoje, duas interpreta-coes paradigmaticas.

    Na primeira, a nocao de ordem e minimalista e nao valalern da preservacao dos Estados, A logica de preservacao, denatureza egoista, explica a dificuldade que a comunidade inter-nacional tern de juntar esforcos para lidar com situacoes deconflito, da Somalia a B6snia, do Congo a Ruanda. No planoeconomico, as indicacoes de agravamento da desigualdade ouas crises financeiras tambern apontam para os limites da coope-racao internacional. A ordem nao se identifica com solucoescompartilhadas de crises regionais, com 0 desarmamento, com 0consenso para 0encaminhamento das crises economicas, coma prevalencia das solucoes pacificas etc., e sim com a merapersistencia de Estados. Nesse sentido, e sintomatica, por exemplo,a posicao defendida por alguns analistas que advertem sobre osriscos de urn desarmamento que, se mal conduzido, pode afetar aordem - ou urn aspecto fundamental da ordem - que e 0equilibrio de forcas militates". Assim, em urn ambiente essencial-mente hobbesiano, 0que garante a ordem sao os desdobramen-tos das realidades de poder. De uma certa mane ira , 0 argumentoaplicar-se-ia ao universo do mercado ja que as regras ou a faltadelas dependeria do interesse dos hegemonicos que, agora, pre-ferem, p. ex., regras abrangentes para 0 comercio e restritas paraas financas porque assim encontram instrumentos para confir-mar a sucahegemo~ia. Por 'sua vez, 0regionalismo pode significara construcao de 'fortalezas" economicas que se preparam paralutas encarnicadas por vanta gens estrategicas. Em suma, para al-guns, a ordem pOSSIVe!dentificar-se-ia com modelos de hegemo-nia, 0que necessaria mente quer dizer "desordem" para outros.

    Se acentuarnos outros aspectos da realidade conternpora-nea, 0diagn6stico seria radicalmente diverso. Os sinais de coo-peracao sao numerosos e podem multiplicar-se e ganhar exis-tencia. No plano politico, os organismos multilaterais, apesarde dificuldades episodicas, afirmam-se progressivamente comoFontes privilegiadas de legitimidade e as formas unilaterais deafirmacao de poder sao contidas; os esforcos por desarrnamen-

    to se ampliam e, nas crises regionais, as possibilidades de en-tendimento entre as potencias sao mais frequentes. A defesados direitos humanos ganha fundamentos mais s6lidos, da mes-rna forma que se fortalecem as medidas sobre questoes am-bientais. No plano economico, a constituicao da OMC e urnfator decisivo para organizar 0comercio internacional. A globa-lizacao podera significar que os recursos do capital, agora maisabundante, se distribuiriam de forma mais abrangente e facilita-riam estrategicas bem-concebidas de desenvolvimento. 0 pro-gresso do regionalismo economico e urn elemento que "espa-Iha" geograficamente instituicoes economicas que, em algunscasos, desenham bases novas de supranacionalidade. A somadesses elementos leva, sem duvida, a uma concepcao mais am-pia do que seria a ordem internacional possivel.

    Essas visoes contradit6rias sobre a "qualidade" ou a "quanti-dade" da ordem no sistema internacional dependem naturalmentede uma definicao previa sobre 0que seja ordem. Mas e possivelalcancar, com objetividade, urn conceito de ordem internacional?

    Umas das melhores e mais profundas reflexoes sobre 0tema e a do professor de Oxford, Hedley Bull, morto prematu-ramente em 1986. Para quem lida com 0 tema, seus escritos,especialmente 0 The Anarchical Society, sao ponto de partidanecessario. Na sua definicao de ordem, diz. "By order in sociallife, 1 mean a pattern of human actioity that sustains elementary,primary or universal goals such as ... life, truth and property:".Ou seja: ao se organizarem, os grupos sociais criarn normas,praticas e processos que buscarao assegurar protecao contra aviolencia (especialrnente a que resulte em morte), 0 cumpri-mento dos entendimentos e acordos de estabilidade das possesde tal sorte que nao sejam submetidos a desafios constantes esem limites. No plano internacional, essas tres dimensoes cor-responderiarn a doutrina da guerra justa, limitadora da violen-cia, a regra do pacta sunt seruanda e, no caso da garantia daposse, ao reconhecimento mutuo das soberanias. Quando es-sas norrnas, praticas e processos forem bem-sucedidos, ha al-guma medida de ordem '. Vincent lernbra que, para Bull,

    It was not possible precisely to specify the extent to whichthese purposes needed to be protnded jbr if social order

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    A nocao de ordem tern, no mundo da politica interna,excepcional forca critica. A passagem da "ordem" a "nao-or-dem", no direito publico brasileiro, permite a intervencao fede-ral nos estados. Os casos estao prescritos na Constituicao quedefine, portanto, em moldes legais, a "desordem". Assim, mani-pulada com maior ou menor grau de subjetividade, a importan-cia da nocao de ordem, como instrumento politico, e decisiva.E evidente que nao existe transposicao perfeita dos mesmosefeitos politicos para a cena internacional, sobretudo porquenada existe que, nas relacoes entre Estados, seja simile perfeitoda Constituicao nacional, normalmente resultado de amplo con-senso social. Mas, ainda assim, a nO

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    autoridade superior, seja sob a forma institucional da Igreja,seja sob a forma juridico-rnoral do direito natural, que marca 0inicio da vida moderna do Estado. Gierke apresenta com clare-za a transicao ao referir:

    The State was no longer derived from the diuinely ordainedharmony (if the universal whole; i t was no longer explainedas a partial whole which was derived from, and preservedby, the exis tence of the greater; it was simply explained byitself. The starting point of speculation ceased to begeneralhumanity, it became the individual and self-sufficient sove-reign State; and this individual State was regarded as basedon a union (if inditnduals in obedience to the dictates (if Natu-ral Law, toform a society armed with supreme power. 10

    renca dos processos nacionais, 0fim Iogico nao pode ser sim-plesmente a construcao do Leviata supranacional. Se fosse, osEstados perderiam a sua qualidade essencial, a soberania, e aordem nao seria mais a ordem de urn mundo de Estados, masalgo qualitativamente diferente.

    A construcao da ordem deixa de ser uma questao de auto-ridade e passa a envolver condutas de autocontencao, quandose trata de soberanos. 0 que pode motivar, porem, um Estadoforte a nao se apropriar do territ6rio de urn Estado fraco, senao existe uma autoridade que tenha forca bastante para puni-10 caso desrespeite a soberania alheia? E, ainda: como e possi-vel sequer conceber que se chegue a esse conjunto de regrasde Iimitacao? Por que e como a soberania e uma barreira ainvasao?E justamente 0 paradoxo da ordem entre soberanos, ou,

    na expressao feliz de Bull, da "sociedade na anarquia", que astradicoes classicas vao procurar resolver. Fazem isso de suasforrnas paradigmaticas: ou os Estados controlam-se mutuamen-te por meio de mecanismos de balanca de poder ou, os Esta-dos se autocontern porque, em seu interesse, discernem moti-vos para tecer instituicoes internacionais. Na primeira versao, a"realista", e a propria dinamica dos jogos de poder que impoelimites ao creseimento incontido e interminavel dos mais fortes,ja que os fracos se unem para impedir a expansao e, com isso,se preservam como Estados; a ordem tern significacao minimae nao vai alern da manutencao dos Estados como tais. Na se-gunda, "raeionalista", admite-se que os Estados tern a possibili-dade de escolher a cooperacao e a ordem nasce de formas deacao conjunta, que desembocam em regras estaveis, disciplina-doras do uso da soberania. Havera uma terceira solucao, "radi-cal" ou "revolucionaria", que supera 0problema ao propor ummodelo de ordem em que desaparecem os soberanos. Incluiradesde as solucoes federalistas europeias ate, em certa medida,a proposta marxista de urn comunismo que eliminaria os Esta-dos e traria a paz mundial. E evidentemente 0paradigma quecria os mais agudos instrumentos de critica ao sistema de Esta-dos, ernbora, pelo seu feitio ut6pico, sera examinado de formamais sucinta neste ensaio, quando explorarmos a sua versaomoderna, basicamente expressa em instituicoes que proclamam

    Os Estados-orfaos sao colocados lado a lado, em condicaode igualdade juridica e, com isso, deixa de existir a alternativade que uma autoridade, legal ou moral, os ordene. "Aigualda-de repele a ordem nascida das imposicoes hierarquicas". Ou,ainda quando existam, ao lado da igualdade juridica, formas dedesigualdades, como as derivadas de diferenciais de poder, naoe facil utiliza-las para instaurar a ordem. Por causa da sobera-nia, a hegemonia nao se converte em modelo hierarquico, ins-titucionalizado, de imposicao, Havera formas de dominacao,mas as passagens entre 0 juridico e 0politico, entre a lei e 0poder, sao ambiguas no sistema internacional.

    Como ordenar soberanos? Num mundo sem pretores, aprimeira reacao e inevitavel: cada urn que lute por sua preser-vacao. Nao haveria outra garantia para que 0Estado continuas-se, a nao ser as que nascem de instrumentos construidos indi-vidual, egoisticamente. Nao e por acaso que as duas marcascaracterizadoras do momenta da passagem para a Idade Mo-derna sao, de um lado, a desvinculacao entre etica e politica,que Maquiavel opera em 0 principe e, de outro, a doutrina dasoberania, desenvolvida por Bodin. Westphalia e a consagracaoconvencional da nova realidade, que supoe, justamente, a au-sencia das orientacoes e determinacoes supra-polfticas e a ausen-. d I . IICIa e lIerarqUlas .

    Nesse novo universo, sem hierarqula, a questao da ordemgera problemas te6ricos complexos, inclusive porque, a dife-42 43

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    a defesa de valores universais, validos em si mesmos, alem dasociedade de Estados.12

    o argumento realistasoberania estava ligado a ideia de auto-suficiencia, com as co-notacoes mercantilistas que envolvem os primeiros momentosdo Estado nacional". Wight tambem sublinha que 0 interessefundamental do Estado, na perspectiva realista, e a liberdaded - 16e a

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    que os individuos ou grupos VaG ter encontros necessariamen-te conflitivos.Embora alguns autores tendam a separar as duas dimensoes,e fundamental, para que 0argumento realista se articule, quese somem a dimensao expansionists e a dimensao anarquica.Dessa cornbinacao, nasce 0 conflito necessario entre os Esta-dos, interminavel e recorrente, justamente pela impossibilidadede urn salto institucional que crie uma autoridade supra-sobe-ranos, e peIa impossibilidade de matar 0germe aquisitivo doEstado e, consequenternente, conseguir uma modificacao pro-funda de suas caracteristicas. Na visao realista, nao cabe 0 re-formismo institucional sob a forma de arranjos que apelem aetica ou ao direito, e nem e aceitavel uma psicanalise coletivaque "dome" os instintos agressivos da formacao estatal.

    Nessa situacao, nao resta ao Estado senao construir, solita-riamente ou por interrnedio de aliancas, os mecanismos de suaautopreservacao, que vao ser a materia-prima da reflexao rea-lista ao longo das diversas etapas da construcao, consolidacaoe fortalecimento do Estado moderno.

    Estabelecido 0marco em que se coloca 0argumento rea-lista, restaria desenvolver, ainda que muito esquernaticamente,algumas de suas implicacoes analiticas, 0que se faz par meiode uma sequencia de perguntas, e a primeira sera: por que osEstados sao expansionistas?

    Passa-se, aqui, da constatacao do expansionismo - que esituacao de fato a partir da qual 0 realista pensa - para 0exame das razoes do expansionisrno. Haveria, esquematicarnen-te, tres explicacoes. a) a natureza humana e guiada pela paixaodo poder, pelo animus dominandi e, ao se constituir 0Estado,fica 0 corpo politico impregnado dos mesrnos instintos quetern 0 individuo; dai ser aquisitivo 0 comportamento politico,correspondendo a busca de rnais poder 0 reflexo politico doque e a "essencia" do homern, b) a natureza do Estado deter-mina 0expansionismo, 0governante e, por definicao, alguernque exerce funcoes despoticas e, assim, tende naturalmente apromover arneacas externas para assegurar a preservacao dopoder interno, c) a natureza do sistema internacional determinaa situacao do conflito permanente, ja que a ausencia de urnsoberano supranacional gera uma estrutura de convivencia que

    exige de cada Estado a preparacao permanente para enfrentararneacas a sua integridade, 0 que, gerando respostas em ca-deia, torna a aquisicao de poder 0 caminho necessario para 0

    J7comportamento governamental ',Nessas explicacoes, 0que e marcante e a irreversibilidade.

    E perfeitamente possfvel trabalhar nos niveis propostos comexplicacoes expansionistas que tenham, contudo, uma diferen-ca basica: 0expansionisrno teria urn fim. Por exemplo: 0Esta-do, na teoria marxista do imperialismo, e tambern expansionis-ta, mas quando 0 capitalismo monopolista for superado pelosocialismo, 0Estado desaparece. No caso das hipoteses "auten-ticamente" realistas, 0 instituto de dominacao, a tendencia des-p6tica dos governos e 0feitio anarquico do sistema internacionalsao dados imutaveis e, portanto, qualquer tentativa de ordemno sistema nao pode descarta-los. Ou melhor: a ordern s6 seconstroi sobre a argamassa expansionista. Como se dernonstraa hipotese expansionista? Ha varias maneiras, desde as querecorrem a Antropologia ate as que simplesmente, ao olharpara 0sistema internacional ou para qualquer sistema de sobe-ranos (como 0das cidades gregas ou da Italia renascentista),constatarn que 0que garante - quando garante - a preserva-cao das unidades sao as forcas armadas. IS Para dar exemplomais concreto: num debate sobre a ausencia de conflito gravenos ultimos 150 anos entre 0Brasil e a Argentina,0racionalis-mo defendera a tese da solidez do entendimento diplomatico,lembrando que sempre se encontrou urn ponto de equilibrioque superou as divergencias naturais entre os dois paises, en-quanto 0realista dira simplesmente que a ausencia de conflitodeveu-se, em ultima instancia, a urn equilibrio de poder quetern impedido as vantagens da vit6ria militar.

    Diante desse quadro, encontra 0 argumento realista urnproblema delicado: por que preservar 0Estado? Os individuos,enquanto tais, nao podem ser modificados e, ainda que 0Esta-do se dissolva, nao terminariam os conflitos, ja que 0 instintocontinua. Porem, extinto 0Estado, a guerra, a forma rnais bru-tal de conflitos, se extinguiria. E, e claro, a medida que 0Esta-do seja modificado, seria consequentemente alterada a estrutu-ra do sistema internacional que, como se viu, tambem e vistacomo causa de conflito. Por que nao adrnitir a hipotese de que

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    vale a pena extinguir a sociedade de Estados soberanos? Ou,pelo menos, continuar com os Estados mas sem soberania, atri-buivel a urn Leviata mundial? Por que nao Iutar para a suasuperacao, criando mecanismos que eliminassem a anarquia? jaque 0Estado e urna instituicao artificial, representa urna, entreoutras, escolha humans para organizar politicamente os grupossociais? Ou posto de outro modo: quais sao as vantagens dapreservacao do Estado?

    A discussao e complexa e toca em questoos fundamentaisda reflexao politica. Esquematicamente, teriamos. a) 0Estadoseria urna solucao natural e, portanto, necessaria, para a orga-nizacao dos grupos hurnanos, 0 "contrato" que, a feicao deHobbes, cria 0Estado constitui a melhor alternativa para garan-tir a propria sobrevivencia da humanidade; e, se em contatocom outros Estados, 0 resultado e 0conflito constante, nada haque fazer, salvo armar-se para enfrenta-lo. Para os contratualis-tas, existiria uma diferene,:aessencial entre os individuos e Esta-dos que impede a transferencia do argumento da criacao doLeviata para 0plano internacional: como indivfduos, em"estadoda natureza, todos sao vulneraveis a todos, mesrno 0rnais forteem relacao ao mais fraco, pois 0 anao pode ferir 0 giganteenquanto este dorrne, dai, sem 0Estado, a seguranca sera sem-pre precaria. Como 0 Estado e compos to de muitos individuose alguns podem se especializar em seguranca , nao existe anecessidade de nenhuma criacao supranacional para, depoisde um segundo movimento de alienacao da liberdade garantir-lhe a seguranca 19; b) num desenvolvimento da linha do Estadocomo instrumento de garantia de valores, como 0da seguran-ca, e 0 Estado - e nao outra organizacao - que encarnara,por exemplo, os valores culturais de uma nacao, justificando-se, assim, ser preservado, e af da-se um salta importante efundamental para entender os classicos do realismo, se 0Esta-do garante a realizacao de valores, alern de dar coridicoes deseguranca, todos os Estados - ou pelo menos aqueles Estados"importantes" culturalmente - devem ser preservados.r" Valerecorrer a uma citacao de Treitschke:

    In a single State the whole range of culture could never bejiJll spanned, no singlepeople could unite the virtues ifdemo-

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    cracv and aristocracy. All nations, like all individuals, havetheir limitat ions, but i t is exactly in the abundance of theselimited qualities that the genius of mankind isexhibited."!

    (a defesa da diversidade nacional, que efetivamente agrega umanova dimensao de valor no quadro do argumento realista, temvarias consequencias, e uma delas e a de identificar nas tentati-vas de dominacao imperial - porque tern objetivos uniforrni-zadores - um inimigo que deve ser combatido sern hesita-e,:aoi2; c) finalmente, ter-se-ia a justificacao do Estado, que partedas consideracoes da estrutura do sistema internacional: por-que se constitui historicamente no quadro do conjunto de so-beranos, 0Estado passa a se justificar como uma das pecas quegarante a seguranca minima da populacao que de abriga (justifi-cacao e proxima, mas diferente da que oferecem os contratualis-tas, para estes, 0Estado nasce de necessidades dos individuosque 0compoern, enquanto, para os estruturalistas, a origem e apropria dinamica internacional; existiria uma cadeia de criacao deEstados que surge com a formacao do primeiro Estado e queexige que se componha urn segundo para a protecao das amea-cas do primeiro, e assim por diantei5.E bem sabido que a justificacao do Estado, especialmenteo resumido na letra b) pode atingir excessos, com a identifica-cao do que e proprio de um Estado com 0 necessario paratodos os Estados. Esta ai a origem das ideologias dos process osde tentativa hegemonica que, como se disse, sao 0virus basicoda ordem internacional para 0 realista2!'.

    A questao da preservacao do Estado Iiga-se naturalmente auma outra, que e a de que instrumentos podem e devem serusados para que tal fim seja obtido. Como sabemos, as teoriasrealistas sublinharn naturalmente a analise dos instrumentos deacao propostos pela escola. E, como sao instrumentos de po-der, nesse passo da logica realista, surgem as dificuldades pro-prias a criacao de uma ordem, qualquer ordem, Nummundo deconflito, 0 Estado precisa ter poder para sobreviver no embateconstante que marca as suas relacoes com os outros. Como aHistoria e dinarnica, instrumentos e meios de poder devem serpermanentemente aperfeicoados para que a "arneaca constan-te" que 0sistema engendra e renova seja bloqueada e 0Estado

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    ... a maximizacaodos recursosnao levanecessariamenteitmaximizacaoda seguranca.NaEuropatradicional,nenhumEstadopodia aumentara riqueza,a populacao ou os efeti-vos militaressem suscitar0ternor e 0ciume dos outrosEstados,provocando a reacaode umacoalizaohostil. Emcada sistema, existe urn optimum de forcas, que, se forultrapassado, provocara uma inversao dialetica, Urn au-mento de forca, par parte de uma unidade, leva ao seuenfraquecimentorelativo,devidoaos aliadosque se trans-ferem para uma posicao de neutralidade e aos neutrosque se passampara0campoadversario".

    cadoras e racionalizadoras do instinto. Nao tern sentido outro,alias, 0esforco dos realistas - que se veja, por exemplo, ostextos criticos de urn Morgenthau, de urn Aron, de urn Kissin-ger - que 0de dar "boa direcao" a politica externa das poten-cias, para que ajustem, com seguranca e prudencia, recursos eobjetivos.

    Passemos, agora, a examinar como 0 realismo trata as ob-rigacoes juridicas no sistema internacional. 0 que vale a normade uma convencao no argumento realista?

    Por tudo que se disse ate aqui, a resposta nao e inespera-da. As necessidades da "razao de Estado" como pivo do com-portamento internacional colocam a obrigacao de cumprir tra-tados, obrigacao que faz a essencia do direito internacional,em posicao subordinada as necessidades e objetivos de poder.A palavra ernpenhada sera ou nao cumprida em funcao docusto da oportunidade do cumprimento. 0 elemento de calcu-10 e que decide no cumprimento da norma, e nao 0 fato deque existe a obrigacao convencional.. Diz Treitschke que "everystate has the undoubted right to declare war at itspleasure, andis consequently entitled to repudiate treanes '". Assim, quempode 0mais, pode 0menos: quem pode a guerra pode repu-diar tratados. E continua: "All law isgrounded upon the mutualgive-and-take and that is useless to hold up phrases and doctri-nes of vaguely general humanity for the edification of the coun-tries concernedr.? A critica aqui e aos que procuram justificaros fundamentos da obrigacao juridica no sistema internacionalcom doutrinas gerais, como a da existencia de uma lei natural.E irrealista imaginar que, no mundo de soberanos, preceitosgerais que se revelem por processos intelectuais possam modelaro comportamento dos Estados. A lei internacional pode existir,aceitarn os realistas, mas so enquanto for expressao, epifeno-meno, do jogo politico. A lei esta condicionada as variacoes depoder, subsiste enquanto interessa a quem tem poder. As ex-pressoes rnais claras do fenomeno sao evidentemente recolhi-das nos tratados de paz, que selam 0fim da guerra: 0Congres-so de Viena, as negociacoes de \ersalhes em 1918-1919,a seriede conferencias que culmina na Carta da ONU sao exemplos per-feitos desse movimento de consagracao juridica de processos

    di ntrolar limitar ou mesmo avaliar uma de-!Cos,que possam co, _.. - b a Bull explora com clareza a questao num arugoClsaoso eran .do Diplomatic Investigations, em que contrapoe Grotius a Oppe-nheim e mostra que, para os grotianos, 0 tratamento da guerra eessencialmente eticizante29 . Ja para os realistas, a guerra e umaquestao de oportunidade e estar preparado para ela, uma ne-cessidade. Para 0pais expansionista, a guerra e urn instrumen-to na estrategia da expansao, para 0pais arneacado, e a solu-cao natural de defesa, ja que nao valeria a contencao que anorma juridica ou, como atualmente, que 0 organismo interna-cional incorpora. Na crueza da "razao" ateniense no dialogo deMelios, os argumentos eticos e as ideias que procurarn conter aforca sao sonho". Porque implica a sobrevivencia do Estado,ainda que resposta a instintos basicos, a guerra paradoxalmen-te exige a mais rigorosa e fria das analises, ja que e urn exerci-cio arriscado e incerto. 0 risco deve tornar a guerra e as outrasformas de aquisicao do poder urn exercicio controlado. Nemsempre mais poder e a melhor estrategia para obter 0fim ulti-mo da estrategia realista, a seguranca nacional.E esse paradoxo, central ao realismo, que Aron analisa com

    clareza ao apontar as dificuldades que a "maximizacaodo poder",com vista a "maximizacao da seguranca", pode provocar:

    E muito importante fixar a tese de Aron: 0expansionismo,que pode ate ter origens "instintivas", nao e uma forca incon-trolavel, sem direcao outra que uma satisfacao primaria quepode ser autodestruidora. 0 instinto e parte de uma construcaopolitica, em que inevitavelmente entram outras forcas, domesti-52 53

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    politicos anteriores. Da mesma forma, a revisao de Viena eVersalhesseguiu de perto as variacoes de poder na Europa.

    Nao sera possivel pensar em processos menos evidentesde transforma

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    verso de soberanos, que se reconhecem mutuamente, emboratenham capacidade desigual de acao, derivada da diferenca depoder. Essa dupla dinamica - a da igualdade formal que au~o-riza 0objetivo da preservacao e a desigualdade real que obngaa vigilancia em relacao a arneaca potencial - estara nas raizesdas possibilidades de uma ordem realista. Da os seus limites eas suas possibilidades. De fato, podemos admitir que a visaoda ordem no sistema internacional para os realistas nasce, en-tao, de "processes de generalizac,ao do calculo". Cada Estadoindividualmente "calcula" a melhor equacao de sobrevivencia apartir de condicoes comuns, historicamente dadas. A . medidaque ocorra a generalizacao do calculo, que todos calculem comos mesmos padroes, e possfvel imaginar que 0conflito poderiaser evitado em varias circunstancias (se ha calculos comuns,antecipam-se as atitudes autodestrutivas, desbalanceadas). 0 cal-culo convida a que se alcance equacoes "razoaveis" de equili-brio, e a balanc,a de poder regeria 0sistema internacional. 0calculo coletivo, de todos os participantes do sistema, deveterminar numa especie de equilibrio, em que todos se preser-vern, independentes e soberanos+.

    Delineia-se, assim, a nocao de ordem para 0realismo. Or-dem supoe 0funcionamento da balanca de poder, quase seidentifica com a balanca, na medida em que e a balanca quegarante 0 proprio nascimento das instituicoes internacionais,seja 0direito, seja a diplomacia. A ordem nasce necessariamen-te dentro da logica do poder, obediente as premissas do com-portamento intrinsecamente egoista do Estado. Valeaprofundara tese. Em definicao minimalista, ordem se identifica com amera preservacao do Estado como unidade territorial e unidadepolitica no ambito de urn sistema de Estados. Haveria desor-dem a medida que se caracterizasse fluidez territorial, que asdesintegracoes territoriais ocorressem com frequencia alta e deforma descontrolada. Por esses padroes, a desintegracao terri-torial, como a que ocorreu na Uniao Sovietica, estaria no mar-co da ordem, 0que nao e 0 caso da ex-Jugoslavia. Uma vezdefinida a soberania, para que se conseguisse, no sistema, 0objetivo minima da ordem, os Estados teriam de dispor de umaquantidade X de poder proprio necessario a autodefesa. A de-sigualdade nao seria em si mesma uma limitacao ja que, ao

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    poder nacional original, poder-se-ia agregar a possibilidade quecada Estado buscasse, no sistema, recursos complementares depoder (aliancas), adequados ao enfrentamento de ameac,as deEstado expansionista ou, na terminologia de Morgenthau, im-perialistas. Ou seja, os recursos complementares de poder de-vern estar disponiveis com facilidade, 0 que supoe urn quadrointernacional em que as aliancas nao tenham cunho ideologi-co, nem sejam permanentes.

    Chega-se, assim, a duas premissas da boa ordem no realis-mo. a da flexibilidade das alianc,as (0 que faz com que seaceite e como funcional, a desigualdade dos Estados) e, emsegundo lugar, a comunhao de uma racionalidade instrumentalja que 0 recurso ao calculo, para que seja efetivo, deve suporque todos os atores aceitern a mesma gama de nocoes sobre 0que significa poder politico. Do ponto de vista realista, sejamquais forem as ideologias de governo, 0sistema de soberanosimpora 0 realismo politico como norma de comportamento.Havera desigualdades de poder conjunturais, ja que, estrutural-mente, a equalizacao de poder e possibilidade permanente dosistema, ao menos para os paises lideres. Como diz Gentz, citadopor Bull,

    the original inequaiuy of the parties in such union [balan-ca do poder]... is not an accidental, Circumstance, muchless a causal evil, but in a certa in degree to be consideredas the j,revious conditon of the foundation of the wholesystem .As modalidades de autolimitacao nascem da propria dina-

    mica do sistema. A ordem realista supoe que, no sistema inter-nacional, convivem varios atores, desiguais em tamanho, mastodos voltados para a acumulacao de poder. 0 poder e limita-do no sistema e, para consegui-lo, e necessario calculo, frieza.Limitar a paixao do engrandecimento pela fria racionalidade eabsolutamente necessario num mundo de rivais. A patologia,que e 0 expansionismo pelo expansionismo, pela gloria oupela ideia, para lembrar a classificacan de Aron, desencadeia osmecanismos de balanca de poder, de reequilfbrio, que permi-tern que, da uniao dos fracos, nascarn meios de dobrar 0for-te3'). A logica realista repele as forr~1asde cooperacao e as leis

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    gerais como valores em si. A guerra nao e intrinsecamenteimoral, como querem os pacifistas, e pode ser mesmo funcio-nal nas ocasioes em que permite a reabilitacao do sistema,ameacado pelo imperialismo.

    Em suma, a preservacao do Estado e urn valor importantepara a humanidade, e 0sistema internacional, cumpridas certasregras de equilibrio "naturals", permite que 0objetivo se reali-ze: 0 Estado A, se tiver X poder e capacidade de articularaliancas diplornaticas, tern sempre a possibilidade de continuarcomo Estado. A ordem realista correspondera, assim, a umasequencia interrninavel de ordens provisorias, em que a estabi-lidade nao exclui nem a tensao nem 0 conflito. A ordem realis-ta e uma ordem tensa em que se exige do estadista, de urnlado, capacidade de atencao permanente as variacoes na distri-buicao de poder entre os Estados e, de outro, bases militaresadequadas. E a ordem do auto-interesse, do conflito. Uma or-dem que responde a uma visao ciclica do movimento historico,em que 0progresso se da somente nas formas de expressao deuma essencia imutavel do homem e do Estado, que e conflitiva.

    A ordem racionalistaOs grotianos, ou racionalistas,refletemsobre 0mesmo cena-

    rio de tensao e conflito que caracteriza a evolucao do mundoocidental nos ultimos400 anos. Masveern-no com olhos diferen-tes dos olhos realistas. Questionam a inevitabilidade dos confli-tos e das guerras e procuram descobrir pontos de convergenciaentre os Estados, a partir dos quais instituicoes e regras decomportamento estaveis foram fundadas. 0 problema filosoficocentral da escola e propor maneiras de articular, no sistemainternacional, instituicoes que superem 0 estado de naturezahobbesiano, sem que a soberania seja diminuida, estabelecen-do-se forrnas de contencao, internas ou externas, para 0com-portamento dos Estados. Sem perder a condicao de soberanos- ate reforcando-a - indagam-se quando e por que Estadostern, em deterrninadas circunstancias, interesse em cooperar eestabelecer regras limitadoras do seu comportamento. Numapalavra, procuram os grotianos identificar fontes de uma autori-

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    dade que estabele

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    seus componentes essenciais - 0homem, 0Estado e a meca-nica de interacoes - sao mutaveis. Assim:

    a) a natureza humana nao e movida exclusivamente porinstintos de dominacao, ao contrario, os instintos "ori-gina is" sao bons, positivos, caminham na linha da so-ciabilidade e, se for permitido que prevalecam, haveracondicoes de paz entre as nacoes,

    b) ha regimes politicos, como 0 democratico, que indu-zem a urn comportamento internacional eminentemen-te pacffico:

    c) como, no quadro do sistema de interacoes entre Esta-dos, quanto mais intenso for 0 comercio, que favorece,na perspectiva liberal, igualmente a todos os Estados,mais devem ser evitados os conflitos que interrompemfluxos economicos entre Estados45 .

    Para os grotianos, 0Estado nao se liga ao sistema interna-cional exclusivamente pela teia de preocupacoes com seguran-c,a. Ou melhor: a questao da seguranca e fundamental mas,diante de outras formas de presenc,a - como a econornica, ajuridica, ados valores - a propria mecanica da seguranc,apode ser modificada. As interacoes internacionais podem gerarmodos reais de cooperacao. Por exemplo: adotada a teorialiberal, parente proxima do racionalismo, 0 comercio interna-cional poderia trazer distribuicao ideal de beneficios em escalaglobal, como resultante das vantagens comparativas, se todosos atores da comunidade internacional eliminassern, ao mesmotempo, entraves alfandegarios. A vantagem individual, em for-ma de acrescimos de riqueza, nasce de esquema cooperativoirrestrito e amplo, que supoe participacao universal (e outrosfatores, como uma distribuicao relativamente equilibrada dasriquezas a intercambiar). Argumento similar, em que uma de-terminada condicao alcancada sirnultaneamente por todos osEstados garante a "dornesticacao" do estado da natureza, podeser aplicado a outros campos: a implantacao democratica, avitoria da racionalidade sobre as paixoes ou, no diapasao wil-sonia no , a autodeterrninacao dos povos, a eliminacao da diplo-rna cia secreta, a aceitacao dos codigos que compoern a leiinternacional etc., sao caminhos para a paz. A preferencia por

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    uma ou outra solucao depende das diferentes perspectivas ideo-logicas ou doutrinarias que, em regra, estao condicionadas amodulac,oes do proprio desenvolvimento do Estado e do siste-ma internacional. A identificacao da expansao do free tradecom as fundacoes da paz permanente e simultanea ao processode afirmacao da burguesia na Inglaterra. Urn segundo exemplo esintomatico que, a medida que se consolida 0Estado nacional enos aproximamos do final do seculo xx, abandonam-se, na Euro-pa, os projetos de corte federativo e tomam corpo as solucoespara a paz que se assentem diretamente na vontade do Estado(os tratados de arbitragem e codificac,ao do direito internacional).As Conferencias de Haia dao 0 tom do perfodo 44.

    Em suma, apostando na capacidade de transformacao doEstado e do sistema de Estados, em urn verdadeiro aperfei~oa-mento civilizatorio, 0 pensador grotiano escapa do dilema im-posto ao realista. De fato, no argumento realista, a situacao deguerra de todos contra todos que caracteriza 0sistema interna-cional, esta presa a natureza das coisas e, dai, e inescapavel ouex~ge reformas tao radicais que simples mente nao sao plausi-vets ou alterariam a propria natureza do sistema internacional.]a a postura grotiana ve a realidade com olhos que traduzem asesperanc,as i1uministas no progresso do homem e das regras einstituicoes que ele cria na convivencia social. 0 propos ito detransforrnacao e nitido em uma das mais puras expressoes daescola, a que se sustenta na lei natural que, como apontouGierke,

    ... it c : lso directed in itseJjemsand results, not to thepurpo-se qj scientific explanation of the past, but to that of theexposition and justifica!ion (!l a newfuture which was tobe called into existence",Nesse ponto, delineadas as linhas gerais da argumentaca-,

    grotiana, vale retomar, com a devida adaptacao, alguns dostenus tocados quando se tratou do realismo. as razoes da pre-servacao do Estado, 0 instrumental da cooperacao e a naturezada ordem internacional resultante da prevalencia da coopera-cao sobre 0conflito.

    A preserva

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    ta, ou mais precisamente, para alguns realistas, as origens doEstado se confundem com as origens da guerra. A guerra e urnfenomeno social que supoe Estados organizados. Ora, pard pre-servar 0Estado sera, entao, necessario atribuir-lhe urn altissimovalor que supere os males que a sua existencia acarreta para avida humana. Oaf, como se viu, a atitude de alguns realistasque chegam a uma especie de exaltacao do Estado, e, no limi-te, das "virtudes" da guerra. Ou seja: 0 Estado e tao "necessa-rio" que mesmo 0que faz de "aparentemente" negative, comoa guerra, tern efeitos positivos, por alguma razao astuciosa. Japara 0 argumento grotiano, 0Estado nao e born ou mal em sie 0paralelismo entre Estado e a ocorrencia de guerras e coisahist6rica e, como tal, podera ser superada. Nessa linha de ra-ciocinio, a preservacao do Estado nao e propriamente urn pro-blema. 0 Estado e uma instituicao social, voltada para a solu-cao de certos problemas, como 0 da organizacao de padroesordenados de convivencia e, a medida que se engaje "correta-mente" no sistema internacional, produzira vantagens adicio-. I-46nais para a sua popu acao .

    Urn corolario a explorar e tecido por Wight e estabeleceque, na defesa do Estado, os grotianos, a sernelhanca dos rea-listas, tarnbern se oporao a qualquer forma de imperio univer-sal. Vale lembrar 0texto de Wight:

    Formal international theory has traditionally resisted thecasefor a world state. At the very out set, Vitoria uncons-ciously took over Dante's conception cifuniversalis civilitashumani generis and strengthened it into an affirmationthat mankind constitutes a legal community, but he repu-diated the Dantean corolary oj universal empire. Grotiusand Pufendorf did the same, with the argument that aworld empire would be too large to be efficient. For Kantas jar Gibbon the division (if mankind into many states isthe guarantee (if jreedom not onlyfor the states themselves,through the balance of power, but jar individuals also, forwhom it means thepossibility of foreign asylum 1-.E curio so como se cornbinarn, na defesa do Estado, argu-

    mentos que dizem respeito a valores tao dispares como a efi-ciencia administrativa e a defesa e garantia da liberdade. Dife-

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    rentemente dos realistas, a defesa de certa visao do valor dacultura nacional - consequentemente, de uma especie de ra-cionalismo agressivo - nao frequenta os arraiais grotianos, muitopreocupados sempre em evitar as perigosas contaminacoes daspaixoes humanas no desenho de seu projeto de paz.

    Definidas as vantagens na preservacao do Estado, pode-mos agora entrar na analise do segundo momento do argu-mento grotiano e procurar definir quais seriam os instrumentosde cooperacao entre os Estados e quais as bases para definirregras e instituicoes de interesse comum.

    Nos capitulos iniciais do Anarchical SOCiety,Bull faz umacurta e bem-elaborada analise da evolucao hist6rica da pers-pectiva grotiana, que pode ser retomada agora para situar aquestao da cooperacao. Ele distingue, na evolucao da escola,tres momentos fundamentais, regulados pela matriz ideol6gicapredominante: a) 0da "sociedade internacional crista" (seculosXVI e XVII); b) 0 da "sociedade europeia internacional" (seculosXVIII e XIX); c) 0 da "sociedade internacional de escopo mun-dial" Cworld international society) (seculo xx). 0 micleo con-ceitual e, entao, para Bull, a ideia de sociedade, que soma"organizacao" e "finalidade". A sociedade se revela quando,entre os atores sociais, desenham-se pontos de convergencia,que permitem 0nascimento de instituicoes e regras as quais osEstados se prenderiam. Assim, a partir desse duplo ponto departida, ideologia e instituicoes, Bull propoe definir as etapasde evolucao da perspectiva grotiana ou liberal'8.

    A prime ira fase coincide com a hegemonia do cristianis-mo, que continua as licoes medievais (viu-se que, nesse senti-do, 0 realismo representa corte revolucionario na hist6ria dacompreensao dos fenomenos internacionais). E 0 fato de ospovos compartilharem a cultura religiosa crista que permite adefinicao das bases da paz. A contra partida institucional sao asregras do direito natural e seus desdobramentos. Grotius e 0seu representante maximo, ainda pr6ximo a tematica crista masIhe dando novos contornos, de cunho racionalista. Na segundafase, a europeia, 0embasamento ideol6gico e 0pr6prio senti-mento de "pertencer" a civilizacao e a cultura da Europa. Asfontes ideol6gicas tornam-se laicas, hist6ricas, e as manifestacoesinstitucionais acompanham 0movimento. A balanca de poder

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    seria 0 pivo da criacao institucional, que se expressaria pelodire ito positivo, pela codificacao de regras de intercambio di-plomatico etc. Os representantes da escola seriam Bentham,Mill, Cobden e, em certa medida, Kant. A terceira fase corres-ponde, entao, ao mundo contemporaneo. Tera seus fundamen-tos na propria ideia de que existe uma comunidade universalde Estados, da qual todos os povos tern 0direito de participar.As formas institucionais tipicas seriam as organizacoes multila-terais de vocacao universal, como a Liga das Nacoes e a ONU,cujos principios regeriam a vida entre as nacoes, dentro deparametres que combinassem a solidez das regras juridicas esentido de seguranca (a ideia de seguranca coletiva e funda-mental e supera a de balanca de poder). Bull completa 0 qua-dro da evolucao do pensamento grotiano, levantando outrosaspectos: por exemplo, quais atores participam das diversasconstrucoes doutrinarias (0 principe, 0 Estado, os organismosmultilaterais), como e feito 0 tratamento dos "outros" da socie-dade (os indios da America, 0Imperio Otomano etc.).

    Sem pretender uma analise completa da escola racionalis-ta, valeria assinalar, antes de passar ao tema da proposta deordem que gera, como se articula 0 argumento da escola. Ademonstracao do argumento realista e basicamente historica, 0conflito existe des de que os agrupamentos humanos se forma-ram e tudo leva a crer que continuarao a existir. 0argumentogrotiano deve ir alem, Ted, sem duvida, uma parcela de Histo-ria, ja que afinal a Historia tambern assinala momentos de coo-peracao e de institucionalizacao do dire ito internacional, cir-cunstancias em que constrangimentos eticos e legais limitarama acao dos Estados. Mas, e claro, se 0argumento e otimista,alern da Historia, tera de indicar por que as novas formas deordem podem prevalecer. E, ai, ha que valer a forca do con-vencimento racional e, nesse sentido, porque recorre a um tipode racionalidade substantiva, a escola pode ser chamada deracionalista.

    Que perguntas seriam, entao, pertinentes? Tomemos a ques-tao das obrigacoes convencionais. Dira 0 realista que: a) a for-mulacao do direito internacional e, em si, arbitraria, nao haverdadeiramente direito, e sim arranjos legais que consubstan-ciam situacoes de poder; b) consequenternente, 0 direito sera

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    obedecido como questao de oportunidade c) 0 direito - ,, '. , ' nao eportanto, apertel

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    laws should originate as between all states or a greatmany states; and it is apparent that the laws thusoriginating had in view the advantage n?t of a particularstate, but of the great society of Statesr", "... law is notfounded on expendiency alone, there is no state sopowerful, that it may not some time need help of othersoutside itself, eitherfor purposes of trade, or even towardojf the forces of many foreign nations united againstit...Most true is the saying that all things are uncertainthe moment one departs from laui"?'.

    Da mesma forma que 0argumento ricardiano estabe!ece apolitica comercial ideal com base na vanta gem de todos, 0argumento grotiano estabelece a possibilidade de definir 0 pa-drao legal ideal entre as nacoes. Para os hobbesianos, a sobe-rania e uma realidade tao dura que os atos do Estado na vidainternacional sao, por definicao, inquestionaveis, A "razao deEstado" permite tudo, ate a injustica, e so condena, em tese, 0calculo politico malfeito. Nao e assim para Grotius: do momen-to em que e possivel conhecer, pela razao, 0que e a vantagemde todos, sera consequenternente possivel deter minar, na acaocon creta do Estado, 0comportamento nocivo, 0comportamen-to que prejudica 0bern comum; numa palavra, sera possiveldeterminar 0comportamento ilegal ou injusto, 0comportamentoque viola os preceitos da razao ( "... is injust which is in conflictwith the nature of society of beings endowed with reason '')')2.: E impartante fixar este ponto do pensamento de Grotius.

    A alternativa ao realismo se configura quando se consegueestabelecer urn criterio aceitavel e consensual que permita dis-tinguir acoes legais e ilegais do Estado, quando e possivel terurn padrao para dizer como os beneficios das interacoes eco-nomic as podem ser me!har distribuidos.A partir desse criterio, outras questoes importantes masderivadas vao se colocar, ha condicoes para urn trabalho politicoque permita transforrnar em texto convencional as propostasemanadas das consideracoes do direito natural? Sera possivelmontar instituicoes internacionais suficientemente fortes paraque as leis sejam efetivamente cumpridas? Que forcas sociaisserao mobilizadas no processo de criacao do direito? 0 direito

    tica ou mais do jogo de forcas sociais? As respostas a essasindagacoes VaG variar de au tar a autor e de epoca a epoca.Havera momentos, como 0 fim do seculo XIX, por exemplo, emque se desenha claramente uma esperanca - combinada comurn movimento social expressivo - de que as regras de solu-cao judicial serao implantadas e poderao garantir uma ardemde contornos institucionais para 0 sistema internacional. Masnao e aqui 0casu de se compendiar essas tentativas.

    Valem, contudo, umas poucas informacoes adicionais so-bre as teses de Grotius, sobretudo as suas reflexoes sobre apassagem do mundo da razao para 0mundo dos fatos e dosditames do direito natural. Como levar adiante as propostasque trap? Como fazer com que a lei surja e seja efetivamenteacatada? Com que forcas conta Grotius para levar adiante 0seuprograma de implantacao do direito no universo internacional?Grotius condenara entao os que, ao verem as guerras e asbarbaridades, edificam solucoes formalmente admiraveis, masque contrariarn frontal e radicalrnente a realidade. As utopiasde tipo erasmiano nao sao bons argumentos, justamente par-que estao muitos distantes do que e 0 homem, do que 0ho-mem pode ser. Assim, 0caminho da persuasao e do convenci-mento - que e 0que e!e escolhe - deve apresentar forrnascalibradas, "razoaveis". 0 argumento radical, ao trabalhar comextremos, e facil, mas improdutivo, e enfraquece as propostase projetos dos que estao "well within the bounds of truth ",)oJ.Grotius nao e utopico porque 0 que pretende e explarar osmelhares feitios da natureza humana. 0 trabalho que sugeresera, assim, menos urn trabalho de mudanca do que urn derevelacao, de fazer emergir 0que ja esta incrustado na nature-za do homem.

    Prosseguindo a caracterizacao da escola grotiana, dois ca-minhos poderiam ser explarados: 0das expressoes da sociabi-lidade e 0dos instrumentos de fundacao da ordem. No primei-ro caminho, a reflexao grotiana esta diante da necessidade derevelar por que, se 0 homem e urn ser racional e a razaoaconselha a irnplantacao do direito como instrumento va lidopara reger a vida das nacoes, persistem as guerras e as dispu-tas, 0 que bloqueia a vitoria da razao? Ou: 0 que levara a

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    indica Grotius. Em Kant, as formas de revelacao seriam diver-

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    vit6ria da razao? A hist6ria da escola e, assim, a hist6ria dasdiferentes respostas a essa estrutura. Abandonadas as teses dedireito natural, tratava-se de descobrir msntuicoes ou conceitosque revelassem a mesma capacidade de corporificar a pr6priasociabilidade natural aos grupos humanos. A obra de Kant, emespecial a Paz perpetua e Ideia de uma bistoria universal, daas bases para toda reflexao moderna sobre 0 tema. Sem entrarem maior analise do pensamento kantiano, registrem-se somenteas linhas basicas do seu ensinamento.

    Seria valido dizer que as teses de Kant podem ser reduzi-das a tres paradigmas: a) a sociabilidade nasce da pr6pria dia-letica da "sociabilidade a-social" dos homens, quer dizer "leurinclination a entrer en societe, inclination qui est cependantdoublee d' une repulsion generale ii; lejaire, menacant constan-ment de desagreger cette societe i",a sociedade evolui numjogo dialetico, em que as forcas de agrega

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    cional e subordinado aos interesses do soberano no realismoenquanto, para os grotianos, a expressao de convergencias quese transformam progressivamente em constrangimentos institu-cionais crescentes e cada vez mais fortes para 0comportamen-to do Estado'. Tema mais complexo e 0da balanca de poder.o ponto de contato mais claro entre realistas e racionalistas e abalanca de poder. Embora Grotius nao 0faca, alguns grotianostomam-na como referencia para a construcao da ordem - e proprio Wight apresenta a sua versao do que seria a balancade poder racionalista. Nesse modelo, levada ao limite a logicacompleta, a balanca de poder deixa de ser necessaria paragarantir a autonomia dos Estados ou para evitar ambicoes im-periais. A marcha do progresso historico deve fazer com que abalanca essencialmente instavel, seja substitufda por instituicoesestaveis58 . Assim, para aceitarmos algum pape! para a balancano marco do racionalismo, deveriamos admitir que tem carac-teristicas que modificariam paulatinamente a dinamica do po-der, de tal forma que passaria a ser etapa de urn processo queleva a urn sistema de equilibrio crescente e permanente. 0processo de generalizacao do calculo, de que se falou no rea-lismo, deixa de estar voltado para medir as variacoes de poderdo outro e passaria a articular medidas gerais, de interesse detodos, de equilibrio entre os Estados. No realismo, 0 interesseindividual de cada Estado seria 0de descobrir brechas na ba-lanca para projetar 0 seu poder e somar ganhos relativos; noracionalismo, 0objetivo, amplamente compartilhado, seria 0dedescobrir mecanismos de correcao cada vez que a perspectivade urn desequilibrio se desenhasse. A preocupacao e "constru-tiva", 0 objetivo e descobrir mecanismos que permitam que abalanca seja permanentemente equilibrada e constitua base so-lida de instituicoes,Em segundo lugar, a ordem internacional racionalista re-sultaria de esforcos politicos que culminariam em montagensinstitucionais. Vale lembrar que, para os realistas, em suas ex-pressoes mais puras, a ordem equivale ao born funcionamentoda balanca de poder e, assim, nasce do proprio jogo mecanicodas forcas sociais. 0 homem ou a sociedade nao tern condicoesde controlar forcas tao profundas e permanentes como 0 ins-

    pectativa de que, do encontro de vontades, nasca urn certoequilfbrio que garanta a preservacao da integridade dos Esta-dos. A dificuldade de se controlar forcas sociais leva, portanto,a uma concepcao minimalista da ordem. 0comportamento rea-lista esta concentrado numa atencao permanente para as dispo-sicoes expansionistas, que podem quebrar a ordem minima ob-tida. Em sua expressao ideal, a ordem realista, que admite aguerra, sera a ordern do jogo diplomatico, ou seja, da constan-te negociacao que indique ao expansionista que seus designiosserao contrabalanc,ados por aliancas poderosas. E uma ordemsempre precaria, sempre em mutacao, em virtude das variacoesde poder. Para os grotianos, mesmo quando sao pessimistassobre a natureza humana, a presuncao e a de que os agentessociais saberiarn explorar as forcas positivas de tal forma queos maus instintos se atenuem e nao viciem 0convivio, 0con-trole nasce da cornbinacao de vontades esclarecidas e racio-nais, de processos em que a Razao venca a Paixao. Nesse com-passo, pode-se esperar mais da ordem do que as condicoesminimas de preservacao do Estado. A ordem e uma ordem deinstituicoes e regras que distinguem 0 certo do errado no com-portamento dos Estados. A ordem e uma ordem em progresso,de identiticacao do que sao os pontos de revelacao de harmo-nia na convivencia internacional.

    Ha duas expressoes classicas da ordern das instituic,oes; 0arbitramento e os organismos multilaterais de vocacao univer-sal, com a Liga das Nacoes, a ONU Em sua essencia, tanto umquanta outro carninho implicam a criacao de formas de contro-Ie de conflitos internacionais, par meio de procedimentos insti-tucionalizados de prevencao e ajuste de diferencas e conten-ciosos, sempre movidos pela vontade deliberada dos Estados.o seculo XI X sera prodigo em tratados de arbitragem e emsolucoes efetivas de disputas internacionais pela via do arbitra-mento (nesse sentido, a inteligencia diplomatica do Barao doRio Branco, que se manifestava pe!a cuidadosa capacidade detrazer argumentos juridicos para as causas do interesse nacio-nal, encontrou 0ambiente cultural propicio para que se exerci-tasse amplamente; hoje, 0processo de se resolver questoes delimites, mesmo na America Latina, e muito mais intrincado,

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    muito mais politizado). 0 que significa a arbitragem? Significa plantar melhores padroes de convivencia internacional. Vdriam

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    que os conflitos internacionais - alguns deles, pelo menos -admitem, por definicao, "solucoes racionais". Na melhor fideli-dade ao compromisso politico do liberalismo, supoe-se quevontades que discordam podem encontrar um ponto de equili-brio que signifique perdas aproximadamente iguais para ambosos lados, mas a vantagem maior e superar 0desgaste da con-troversia. A arbitragem permite que a razao "trabalhe" da mes-ma forma que, nos dispositivos sobre manutencao da paz noPacto da Ligae da Cartada ONU, tarnbem se abre espaco para aemergencia da racionalidade. Nesse sentido, sao paradigmati-cos os dispositivos da Liga que determinam, depois de esgota-dos os meios de solucao pacifica de controversia, que 0Estadoespere tres meses para iniciar a guerra, dando um ultimo espa-< ; : 0 de tempo para que os contendores aceitem a racionalidadeda nao-beligerancia (art. 12 (1) 1.) .

    Ja se viu que uma segunda caracteristica da ordem grotia-na e a possibilidade de que as relacoes entre Estados possamaperfeicoar-se. As instituicoes sao realizacoes hist6ricas possi-veis porque se acredita que forcas sociais, tendentes a univer-salizar-se, como 0republicanismo e 0comercio livre, sustenta-riam socialmente a paz e a boa convivencia entre os Estados.o Estado passaria a agir racionalmente nao por mero capricho,mas conduzido por forcas que 0 impeliram a acao correta ejusta. Nesse sentido, modernidade e paz se tornam sinonimosda obra de urn Comte, de um Saint-Simon, e de Marx; 0mo-derno "uniformiza" as nacoes que, mais iguais entre si, esta-riam menos inclinadas a guerra e ao conflito. E claro que assignificacoes do que e feitio moderno necessario a paz vaovariar de autor a autor.

    Um ultimo ponto a caracterizar a ordem grotiana e que,quando estabelece as suas metas para a organizacao internacio-nal, fica a meio caminho entre a anarquia e 0governo mun-dial. Aceitam os racionalistas a anarquia a medida que naoquestionam a condicao soberana dos Estados e, em alguns ca-sos, preconizam mesmo que se reforcem as bases de autono-mia do Estado. Acreditam, no entanto, que a ordem nao nasce-ria espontaneamente: os Estados enquanto tal devem adotarurn tipo de atitude racional que, deliberadamente, sirva a im-72

    j_

    as medidas grotianas para intervir no processo de criacao deuma ordem melhor. Ou sera a disposicao de uma razao astuciosaque trabalhara ate contra a natureza anti-social do homem ouserao os esforcos de convencimento de quem tem 0 poder dedefender as solucoes racionais,como os fil6sofose juristas.

    Os universalistas: duas palavrasPorque, hoje, nao existiria uma proposta de ordem que se

    referisse claramente a visao universalista,vamos tratarmais breve-mente de suas concepcoes centrais59. Ao mesmo tempo, emvirtude da globalizacao, embora por caminhos diversos dos quehistoricarnente trilhararn, os universalistas ganharn folego reno-vado. Veremoscomo.o trace essencial da escola e 0 abandono da soberaniacomo ponto de partida da reflexao sobre a vida internacional.Como lembra Bull, a natureza fundamental das relacoes inter-nacionais nao esta na dialetica conflito-cooperacao entre osEstados mas nos vinculos transnacionais que ligam os sereshumanos individuais que sao, por circunstancias, cidadaos deum ou outro Estado. E, prossegue:Th e dominant theme of international relations, on theKantian view, is only apparently the relationship amongstates, and is really the relationship among all men in thecommunity of mankind - which exists potentially, even ifdoes not exist actually, and which when it comes intobeing will sweep the system ofstates into limbo.60

    Isto leva a que a escola tenha uma perspectiva necessaria-mente transformadora e otimista. 0 mundo pode e deve sermelhor.o conhecimento do que e universal no ser humano, porrevelacao - no caso das religioes que tarnbem tern mensagempara toda a humanidade - ou por ciencia - no caso domarxismo - leva naturalmente a uma atitude missionaria, anecessidade de que aquele conhecimento, redentor da alma ou

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    do corpo, se generalize. Nao e por outro razao que Wight

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    chama a essa escola de "revolucionista", esclarecendo queThe Revolutionists can be defined more precisely as thosewho believe passionately in the moral uni ty of the society ofthe states or international society, that they identify themselveswith it, and therefore both claim to speak in the name qfthis unit}" and experience ans overriding obligation to ~tlveeJfect to it, as the first aim qf their inter national policies.

    Modernamente, essa descricao da escola corresponde aoprojeto marxista. A medida que 0 modo de producao ca pital~s-ta se expandisse, se universalizasse, criaria, dentro de cada pars,estruturas similares de exploracao. Os proletarios se uniriam elutariam pela implantacao do socialismo porque viveriam con-dicoes iguais. Em algum momenta da Historia, compreende-riam que, antes de serem nacionais desse ou daquele pals,pertenceriam a uma classe universal, unica, com capacidade decriar modos verdadeiramente humanos de vida para todos.o marxismo, a ultima encarnacao de urn projeto global deordem sustentado pela perspectiva de ser realizado por urnagente social identificavel, perde sua forca com a derrocada daUniao Sovietica. De outro lado, as religioes que foram outrabase de projetos universais, salvo em manifestacoes fundamen-talistas localizadas, aceitam padroes de diversidade e mutuatolerancia, nao restando nada que lembre as lutas do tempo daReforma. Ademais, num mundo dominado por valores laicos, edificil imaginar que, em uma unica religiao, se encontre a baseunica para a ordem entre Estados. Uma outra dimensao douniversalismo e 0 fato de que se incorpora em padroes ideolo-gicos das potencias que transformam, ao argum~ntar ideol?gi-camente, 0 seu interesse nacional em universal. E 0 que Wight

    1 d .,. 62chama de imperia Ismo outnnano .o fato de nao localizarmos projetos globais de corte uni-versalista nao significa que essa perspectiva tenha perdido im-portancia. Simplesmente muda de rumo, ja que a forca que aalimenta, 0 sentimento de unidade moral da humanidade, ga-nha impulso renovado, com 0 fenomeno da globalizacao. Naverdade, desenha-se urn paradoxo: as bases objetivas de unifi-cacao da humanidade se fortalecem e, ao mesmo tempo, proje-

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    tos globais de reordenacao do mundo perdprecisamente, fragmentam-se, multiplicand eO} forc;:a Ou '" o-se,", marsque envolvem 0 meio amblente, os direl'to h ProJetos par ' ,~ s clals,economica, 0 combate as drogas etc, A Co U111anos a ord' . ,ndu ' , emparciars que afetem a ordem mternacional d ,c,ao dos pro' t'I' d d (1)( Je ospo 10 0 Esta 0, como no caso das persp a de Ser mect' ono-cionalista, e passa a ser conduzido por entida 1Vas realista e ra-vao das ernpresas transnacionais as ONes t des variadas/ , , oda' , quefato de que agem segundo 10gICas globais s 111arcadas 1. , '~e ~orna internacional como ponto de referencia n' t0111am 0 siste-rio nacional. Para uma empresa multinac" ao 111ais 0 terruc, , / , 10nal 10-dlstn~Ulda pelas oportunidades que, em tese ' a produc;:ao eos parses do mundo, uma ONG que defenda' o,ferecem "todos"nos denunciara violacoes em "todos" os pa/, os direitos' 11U' . , lSes d rna-Como lidar analiticarnente com 0 unive ' _ o 111Undo etc,Haveria tres caminhos posslveis que, aqui rsallS1110moder ;;, , va1110, no,te mencionar s slmplesmen_ o primeiro, mais proximo das Verso, ,

    cepcao, procuraria urn ponto de ap e,s classicas da c010 1 on-que Fosse 0 agente social da nova ' Ora do EstadId d ordern / 0,comp eXI a e do mundo Contemp :- "1 E difkil '- " orane' nalucao reducionista. Mas, os que rn. 0 qUalquer So-iam di alS pr'flam ISSOsenam os que prop Oem "e OXimos esta-coes da ordem a forcas irnpessoal's ntregar" as sol, Co u-o mercado agora pode desempenh 1 1 1 0 0 mercad' 1 b lIar ess, L o.que ego a, de ta modo que os a a fu ncao por-1, , , gentes c- as mu tmacionais ou transnacion' ' economl'c'alS osde acordo de uma racionalidade qu. - trabalhariamque dele participasse, nao mais s e ~erviria a todos1" " ., da 'E uJelta, .p~ mcas ongma, s, n o ~stado e qUe leVa a lOjunc;:oeses na melhor dlstnbUlc;:aO de riqueza 1 1 1 a distorc;:o-brevemente es~a ~erspectiva, saberno~ Para comentarporque, em pnmerro lugar, empobr qUe e limitad'ld' eceri cor em, reduzindo-a ao economico a a nOcao de, ern c etar-lhe-ia 0 sentido utopico e radical segUndo fal-l 'do 'ex" que eva sse a uma efetiva sub" , rnarxismostttUlc' , p.por,alguma,outra instituic;:ao (afinal, 0 rnuao do Estadonacionais e regulado, amda, por n ndo das multi-1, d s) orrnaspe os Esta os ; negOciadas

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    0segundo caminho, em sentido inverso ao primeiro, mento universalista em algum tipo de poder, mesmo

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    reconheceria os sentimentos universais e os seus agen-tes, mas diria simplesmente que sao manipulados oumanipulaveis pelos Estados, ainda os donos dos mo-dos de arganizar a ordem internaciona!' Nesse caso,no marco do realismo, uma ONG de direitos humanosao examinar violacoes em determinado pais estaria,direta ou indiretamente, prestando service a um paishegemonico. No caso do racionalismo, como indica-mos, as ONGs poderiam ter um papel positivo ao ser-virem ao fortalecimento de instituicoes, embora estasficassem, sempre, em ultima instancia, sob 0controledos Estados;

    0 terceiro caminho seria 0mais complexo ja que a)admitiria que se reforca, em nossos tempos, 0sentimen-to universalista, claramente em temas como meio am-biente, que s6 seriam resolvidos com 0 concurso detoda a humanidade; a logica de solucao supera, portanto,a l6gica exciusiva dos interesses nacionais, estritamenteconsiderados; b) os agentes sociais que conduzem es-ses temas agem, freqiientemente, com autonomia emrelacao aos Estados; c) e crescente a sua importanciana definicao da agenda internacional e nas formas deconduzi-la e um dos exemplos marcantes e a presen-ca de ONGs na preparacao das grandes conferenciasglobais patrocinadas pela ONU, como a do meio am-biente, a do direitos humanos, a da mulher, a do de-senvolvimento social etc. Admitindo-se que, exatamenteporque dispersos, os diversos agentes do sentimentouniversalista nao produzem um projeto global, unifi-cado e unificador,seria impossivel desconsidera-los comoforca em alguma medida independente da logica dosEstados que e a que preside os modelos realista e racio-nalista. Entao, 0 problema seria indagar de que rna-neira e incorporavel em modelos de ordem, fundadosna soberania, a dimensao universalista. A acomoda-cao ao realismo e mais dificil, ate porque, na l6gicado modelo, 0 que mitiga a vontade de poder e umacontrapartida de poder. Ter-se-iade transformar 0senti-

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    ~I

    que exciusivamente de opiniao publica, para que fos-se cornpreensrvel em mecanismos hobbesianos. Paradar um exemplo, nao e a racionalidade da luta contratestes nucieares que levara a que diminuam, mas 0uso do poder de manejo da opiniao publica, comofez 0Greenpeace ao questionar as explosoes france-sas em Muroroa. Em suma, nao se abandonaria a logi-ca da disputa de poder, simplesmente se agregaria umoutro ator, com 0qual haveria ora aliancas ora con-fronto, em modalidades diferentes das classicas (naose intimidaria com 0 uso da forca a uma ONG comque se tivesse uma disputa). A acornodacao ao racio-nalismo, ja antecipamos, seria mais facil. Ao fazer umaaposta na revelacao gradual do que e 0melhor dasociabilidade humana, 0racionalismo encontra pontonatural de convergencia com 0universalismo. Na ver-sao otimista, as ONGs, de direitos humanos, por exem-plo, atuariam como instrumentos auxiliares de revela-c,ao do raciona!. E, a maneira kantiana se servissemem alguma circunstancia a objetivos lirr:itados e politi~camente interesseiros, a longo prazo, pelo simples fatode afirmarem valores universais, estariam servindo aoprogresso na Hist6ria.

    Voltando a um aspecto metodol6gico, a vantagem de pro-par a questao da ordern para introduzir 0estudo do sistemainternacional pode fornecer algumas hip6teses fundamentais apartir das quais problemas gerais - como 0enquadramentodos agentes das teses universalistas - podem ser equaciona-dos. 0 tema da ordern e um mapa de linhas tenues. Permitever os grandes acidentes da geografia internacional mas, paraser guia util, nao dispensa outros instrumentos.

    ConclusoesPara conciuir, retomaria observacoes de Celso Lafer, em

    oracao de paraninfo para a turma de Relacoes Internacionais

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    b) a disputa sem solucao entre os do is paradigmas termina

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    ... 0 sistema internacional contemporaneo e revoluciona-rio em termos de uma comparacao hist6rica - por forcado novo pape! que, na ordem mundial, desempenham ospeqllenos e medics Estados e pela presenca crescente deatores transnacionais. Entretanto, ele e moderado, pois re-velou-se sllficientemente flexivel para absorver estas trans-forrnacoes, assegurando rrmtinuidade e persistencia emmeio as mudancas. 0 sistema e tambern fragil - e sopensar na precariedade da economia mundial ou na inca-pacidade dos Estados de lidarem com 0 terrorismo e 0trafico de drogas - e ao mesmo tempo duro - e sorelembrar os custos, para a America Latina, do ajllstamen-to a crise da divida externa ou as interferencias militares,explicitas e encobertas, das grandes potencias.

    por atribuir plausibilidade, como instrumento de analise, aosdois: assim, e inegavel hoje que a estabilidade (entendida comoausencia de guerra entre as potencias) e derivada de uma visaoprudencial dos custos da guerra (como conceituaria urn realis-ta), como tarnbem e inegavel que, malgrado as lirnitacoes, exis-te urn minimo de institucionalidade, que permite a urn Bullencontrar no sistema internacional traces de uma "sociedadede Estados",

    c) essa visao, ao combinar os dois paradigmas, leva a quese compreenda 0 sistema internacional a partir de uma duplaestrutura 16gica e abre varies caminhos analiticos. Por exernplo:como operam simultanearnente os dois movimentos? A estrutu-ra de desconfianca, de ameacas potenciais, ao impor a necessi-dade de manter arsenais militares em constante renovacao, eurn empecilho para que os mecanisrnos grotianos entrem emmarcha? Ou, ao contra rio, e 0custo da guerra a melhor e maisestavel base para que se abra espaco para formas novas decooperacao, justamente porque "desprestigia" a utilizacao maisefetiva do poder? Ate que ponto a legitimidade, que nasce dosnumeros e da acao democratica, e poder num sistema quenecessariamente guarda uma dimensao hobbesiana?

    d) uma outra linha de conclusoes poderia, abandonando aproposta da simultaneidade das 16gicas, escolher qual a melhorbase para a interpretacao da ordem no sistema internacional,cada urn dos paradigmas, de uma certa forma, admire a "incor-poracao" de aspectos do outro: 0 realismo admire a coopera-cao como uma solucao astuciosa, e 0 racionalismo admire aguerra e 0 confronto como patologia a ser corrigida. Nessesentido, sobretudo quando se pens a no discurso de politicaexterna, os paradigmas sao usados, em regra, de forma exclu-dente (e claro que 0discurso politico tern de ser menos ambi-guo do que a analise). Porem, mesmo no discurso e dificilsalvo em ocasioes de aberta confrontacao, ser "sim~lesmente':realista. A tendencia e a de que 0realismo (a atitude dura) sejaurn prehidio para a cooperacao,

    e) essas arnbiguidades dos paradigmas nao aconselhariamtalvez a se buscar alguma terce ira solucao? Parece 0 caminhomais facil e, como se sabe, e abundante a critica tanto a 16gica

    da UnBem 1987, e que confirmam, em sintese perfeita, as con-tradicoes e as ambiguidades do sistema:

    Estamos, na verdade, diante de dois problemas. 0 primei-ro e 0 de saber se os instrumentos classicos ainda sao uteispara entender 0mundo que nos cerca. A hip6tese que propu-semos e a de que, enquanto existirem Estados e esses detive-rem 0monop6lio da forca, certamente a compreensao do siste-ma internacional devera levar em conta a logica da interacaoentre eles. ]a vimos que nao basta, e existem numerosas tenta-tivas de ir adiante, propor model os analiticos alternativos". Deoutro lado, ternos urn problema de avaliacao, ligado analitica-mente ao primeiro: afinal, existe ou nao ordem no sistemainternacional? 0 retorno aos classicos permite responder a essapergunta? Nao se buca aqui qualquer conclusao definitiva paraessas questoes, 0 que fugiria ao prop6sito mais simples, 0deapresentar uma das portas de entrada para a compreensao dosistema internacional. Para tanto, bastam algumas observac,oes"pontuais":

    a) a reflexao sobre 0 sistema internacional bern como aacao politica externa vivem permanentemente 0 dilerna entrepoder e cooperac,ao; 0 debate entre hobbesianos e grotianos erecorrente no sistema internacional e encontra similes na defi-nicao de opcao politica (veja-se, hoje, 0debate entre os "neo-realistas" e a perspectiva da interdependencia ou as alternativasda detente e da confrontacao no jogo entre as superpotencias);

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    do realismo (por exemplo: a fragilidade dos tratamentos con-

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    ceituais do poder) quanto ao grotianismo (por exemplo: 0rela-tivismo hist6rico e geografico que impede que se uniformizemos usos e compreensao da razao e, portanto, impede a constru-cao de urna etica efetivamente universal). 0faro e que, semescapar para as solucoes utopicas, ainda nao se conseguiu daros fundamentos solidos a uma terceira solucao.o nesse passo, contudo, um dado no;o cleve ser conside-rado. os dois paradigmas, tanto 0 realismo quanto 0racionalis-mo, sao constru~oes fechadas. Em que sentido? Ao definir osproblemas, da maneira como definem, eles tern, preconcebi-das, solucoes Para 0 realismo, 0 que define a estrutura dosistema sao os atores soberanos e 0 que define 0processo(movimento) sao as eventuajs desigualdades ou diferenps depoder, corrigidas pela balan~a reequilibradora, que impede quese destrua (pelo menos em seu nUdeo) a independencia dosatores. Os grotianos tern uma logica similar: 0 que define aestrutura ainda e a soberania dos atores e as eventuais diferen-cas (economicas, ideologicas, regimentais etc.), que provocamconflitos poderao ser superadas por urn processo quase auto-matico de revelacao racional;

    g) nos dois paradigrnas, existem solucoes predeterminadasque nao absorvem, plenamente, a resistencia a atenua~ao dasdiferenps: dada a estrutura de soberanos, para os hobbesianosa independencia sera preservada, bastando a atencao do esta-dista, e, no racionalismo, a coopera~ao sera atingida e frutifica-ra, bastando