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SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 3 Leia nesta edição PÁGINA 02 | Editorial A. Tema de capa » Entrevistas PÁGINA 06 | Raúl Antelo: A apatia do povo brasileiro como sátira PÁGINA 09 | Eneida Maria de Souza: A subversão lingüística de Macunaíma PÁGINA 12 | Maria Eugenia Boaventura: Macunaíma: ficção divertida e riqueza vocabular PÁGINA 14 | Robson Pereira Gonçalves: Brasilidade. Identidade múltipla e caótica PÁGINA 16 | Telê Porto Ancona Lopez: Uma “entidade brasileira” PÁGINA 18 | Noemi Jaffe: Síntese do Brasil, nosso veneno e nossa delícia B. Destaques da semana » Brasil em Foco PÁGINA 22 | Recordar ou esquecer? A Lei da Anistia em discussão » Entrevista da Semana PÁGINA 26 | Kenneth Serbin: “Cão-de-guarda moral”. A nova Igreja brasileira » Livro da Semana PÁGINA 32 | Regina Schöpke: O Dom Quixote da fé cristã » Invenção PÁGINA 36 | Juliana Krapp » Destaques On-Line PÁGINA 38 | Destaques On-Line C. IHU em Revista » Agenda de Eventos PÁGINA 42| Vanessa Doumid Damasceno: Jogos digitais: aliados no processo de ensino-aprendizagem » Perfil Popular PÁGINA 45| Iolanda Gomes » IHU Repórter PÁGINA 46| Adriana Karnal

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SÃO LEOPOLDO, 11 DE AGOSTO DE 2008 | EDIÇÃO 268 3

Leia nesta edição

PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa

» Entrevistas

PÁGINA 06 | Raúl Antelo: A apatia do povo brasileiro como sátira

PÁGINA 09 | Eneida Maria de Souza: A subversão lingüística de Macunaíma

PÁGINA 12 | Maria Eugenia Boaventura: Macunaíma: fi cção divertida e riqueza vocabular

PÁGINA 14 | Robson Pereira Gonçalves: Brasilidade. Identidade múltipla e caótica

PÁGINA 16 | Telê Porto Ancona Lopez: Uma “entidade brasileira”

PÁGINA 18 | Noemi Jaffe: Síntese do Brasil, nosso veneno e nossa delícia

B. Destaques da semana

» Brasil em Foco

PÁGINA 22 | Recordar ou esquecer? A Lei da Anistia em discussão

» Entrevista da Semana

PÁGINA 26 | Kenneth Serbin: “Cão-de-guarda moral”. A nova Igreja brasileira

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Macunaíma, obra de 1928, do escritor brasileiro Mário de Andra-de, é considerado um dos grandes romances modernistas do Brasil. A personagem-título, um herói sem nenhum caráter, é um índio que re-presenta o povo brasileiro, mostrando a atração pela cidade grande de São Paulo e pela máquina. A frase característica da personagem é “Ai, que preguiça!”. A parte inicial da obra assim o caracteriza: “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e fi lho do medo da noite”.

Considerado um romance fabular, mas escrito sob a ótica cômica, utiliza os mitos indígenas, as lendas, provérbios do povo brasileiro e registra alguns aspectos do folclore do país até então pouco conhe-cidos. Esta obra valoriza as raízes brasileiras e a linguagem utiliza o modo de falar dos brasileiros, buscando imitá-lo na escrita, a partir de uma idéia que Mário de Andrade tem de uma “gramatiquinha” brasileira que desvincularia o português do Brasil do de Portugal, e que vinha se desenrolando no país desde o Romantismo.

Adaptações

Macunaíma foi adaptado para o cinema por Joaquim Pedro de Andrade em 1969, enquadrando-se no gênero comédia. O roteiro foi escrito pelo próprio diretor. É um dos grandes personagens da car-reira de Grande Otelo e traz um elenco de atores renomados, como Paulo José, Dina Sfat, Milton Gonçalves, Jardel Filho, Rodolfo Arena, Joana Fomm, Maria do Rosário Nascimento e Silva, Hugo Carvana, Wilza Carla, Zezé Macedo e Maria Lúcia Dahl.

Macunaíma também inspirou uma premiada peça de teatro, de Antunes Filho, encenada pela primeira vez na década de 1970 e que chegou a ser montada em vários países.

Fonte: Wikipédia

Macunaíma

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Obra marioandradiana satiriza a apatia brasileira e é rapsódica porque “não se fi lia, não se identifi ca, não se limita”, afi rma o crítico literário Raúl Antelo. O semblante a que chamamos Macunaíma tem a força de seu gesto

POR ANDRÉ DICK E MÁRCIA JUNGES

Uma sátira à apatia do nosso povo. Essa é a função de Macunaíma na opinião do crítico literário Raúl Antelo, em entrevista que você confere a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. “Mas, por ser sátira, o texto satura o procedimento, vai além dos limites estipulados, gasta, liquida ele e, por isso, permite

passar a outra coisa. À época da redação, resenhando uma antologia poé-tica, Mário de Andrade diz que um livro deve ser amado ou detestado”. E continua: “Poderíamos pensar que Macunaíma é rapsódico porque não se fi lia, não se identifi ca, não se limita. Se avaliamos essa atitude do ponto de vista instrumental, isso é ruim. O Estado cataloga, fi xa, territorializa. Se, entretanto, o avaliamos sob um ponto de vista político, a apatia nos permite alimentar um discreto otimismo, o de não colaborar com o estabelecido. Aquilo que não tem nome, que não tem lugar, é pura potência. Pode ainda vir a acontecer. Mas, se acontecer, será sempre o desdobramento de uma força que vem do arquipassado”.

Nascido na Argentina, Antelo é professor titular de literatura brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisador-sênior do CNPq, foi Guggenheim Fellow (2004) e professor visitante nas Universidades de Yale, Duke, Texas at Austin, Autônoma de Barcelona e Leiden, na Holanda. Presidiu a Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC).

É graduado em Letras Modernas, pela Universidad de Buenos Aires (1974), e em Língua Portu-guesa, na Argentina, pelo Instituto Superior del Profesorado en Lenguas Vivas. Cursou também, graduação em Letras Modernas na Universidade de Buenos Aires (UBA) e é mestre e doutor em Literatura Brasileira, pela Universidade de São Paulo (USP).

É autor de vários livros, dentre eles Na ilha da Marapatá: Mário de Andrade lê os hispano-ameri-canos (São Paulo: Hucitec/Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1987), Transgressão e modernidade (Ponta Grossa: Editora da UEPG, 2001) e Tempos de Babel. Anacronismo e destruição (São Paulo: Lumme Editor, 2007).

A apatia do povo brasileiro como sátira

DIVULGAÇÃO

IHU On-Line – Como percebe a liga-ção entre o regionalismo, com seu folclore mais específi co, e a univer-salidade existente em Macunaíma, por meio da intertextualidade de Má-rio de Andrade1 em relação a outras

1 Mário Raul de Morais Andrade (1893-1945): poeta, romancista, crítico de arte, folcloris-ta, musicólogo e ensaísta brasileiro. Em 1917, foi publicado o seu primeiro livro de versos, Há uma gota de sangue em cada poema. A sua segunda obra, Paulicéia desvairada, colocou-o entre os pioneiros do movimento modernista no Brasil, culminando, em 1922, como uma das fi guras mais proeminentes da famosa Semana da Arte Moderna. Durante a década de 1920, continuou sua carreira literária, ao mesmo tempo em que exercia a função de crítico mu-

obras e autores?Raúl Antelo – Macunaíma não é re-gionalista no sentido em que o regio-nalismo é uma política para estipular fronteiras, que surge, já na cultura medieval européia, para coibir a pre-sença do estrangeiro. O objetivo era regere fi nes, administrar fronteiras, e eram precisamente os marqueses,

sical e de artes plásticas na imprensa escrita. Em 1928 publicou seu romance mais conheci-do, Macunaíma, considerado por muitos como uma das obras capitais da narrativa brasileira no século XX. Alguns dos seus livros de poesia mais conhecidos são Losango cáqui, Clã do ja-buti, Remate de males, Poesias e Lira paulis-tana. (Nota da IHU On-Line)

os habitantes da marca, os nobres que habitavam a linha demarcatória, os indicados dessa tarefa. Mário de Andrade elaborou uma das respostas mais contundentes ao problema. À época de lançamento de Macunaíma, resenhando a exposição de Tarsila do Amaral,2 Andrade defi nia o regionalis-mo como um valor emergente na cul-tura brasileira. Dizia que regionalismo

2 Tarsila do Amaral (1886-1973): pintora bra-sileira. Foi a pintora mais representativa da primeira fase do movimento modernista bra-sileiro, ao lado de Anita Malfatti. Seu quadro “Abopuru”, de 1928, inaugura o movimento antropofágico nas artes plásticas. (Nota da IHU On-Line)

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“Creio, sinceramente,

que esse semblante a

que chamamos

Macunaíma (uma

máscara, um vazio, um

nada, uma construção

de linguagem, enfi m)

tem a força de seu

gesto”

“em arte como em política, jamais não signifi cou nacionalismo no único conceito moral desta palavra, isto é, reali dade nacional. Signifi ca, mas é uma pobreza mais ou menos cons-ciente de expressão, se observando e se organizando numa determi nada e mesquinha maneira de agir e criar. Regionalismo é pobreza sem humil-dade. É a pobreza que vem da escas-sez de meios expressivos, da curteza das concepções, curteza de visão so-cial, caipirismo e saudosismo. Coma-drismo que não sai de beco e, o que é o pior: se contenta com o beco”. Mário, pelo contrário, não hesita em associar regionalismo e inconscien-te, porque, para ele, a manifestação mais legítima do nacionalismo artís-tico se dava, justamente, quando esse nacionalismo é inconsciente de si mesmo. Se assim for, diríamos que o nacionalismo não tem objeto. Que Mário o tenha conseguido materiali-zar, é outra história. Mas Macunaíma nasce desse desejo.

IHU On-Line - Num ensaio sobre o li-vro, o senhor escreve que “o narra-dor da rapsódia nos remete à forma-

ção de um modelo do real transcrito textualmente como multiplicidade de perspectivas e registros”. Quais se-riam essas perspectivas e registros? Raúl Antelo - Se a questão é desenhar fronteiras sabendo que não se cumpre um designio soberano, mas apenas um desenho, artifi cial e histórico, político e moderno, diríamos que podemos ima-ginar a fronteira (a fronteira do moder-no, do nacional, do social) ora de um modo formalista transcendental, como um limite inequívoco, como um contor-no que circunda uma forma ideal, ora como uma instância liminar, como uma soleira, uma passagem que nos permite reabrir a série e baralhar tudo de novo. A primeira opção é a do regionalismo. A segunda, a de Macunaíma. A primei-ra pauta-se pela cronologia. A segunda ensaia o anacronismo. Na primeira, nos movimentamos na clausura, no encer-ramento de uma disciplina instituída. Na segunda, circulamos no interior de um espaço teórico interdisciplinar que nos comunica, expande e se desborda. Des-identifi ca-se.

IHU On-Line - Que aproximação o senhor faz entre a obra de Mário de Andrade e o contexto literário lati-no-americano, antes e depois de sua criação?Raúl Antelo – Em termos de escrita experimental, como apontou pioneira-mente Saúl Sosnowski,3 Macunaíma é, disparado, um dos exemplos mais agu-dos nesse cenário. Mas, mesmo assim, há outros que lhe são congeniais: a escrita de Macedônio Fernández,4 des-dobrada em infi nitos prefácios de um romance que jamais começa, a rapsó-dia assintética do Paradiso de Lezama Lima,5 a complexa relação entre orali-

3 Saúl Sosnowski: autor do livro Borges e a Ca-bala: a busca do verbo (São Paulo: Companhia das Letras, 1991) e organizador, com Jorge Schwartz, de Brasil: o trânsito da história (São Paulo: Edusp, 1994). (Nota da IHU On-Line)4 Macedonio Fernández (1874-1952): escritor, humorista e fi lósofo argentino. Sua produção inclui novelas, histórias, poesia, jornalismo e outros trabalhos de difícil classifi cação. (Nota da IHU On-Line)5 José Lezama Lima (1910-1976): poeta, ensa-ísta e novelista cubano. Além de patriarca in-visível das letras cubanas desde 1944 até 1957, fundou a revista Verbum e esteve à frente de Orígenes, a mais importante revista cubana de literatura. Considerado um dos fundadores do neobarroco na América, emergiu interna-cionalmente com a publicação de Paradiso,

dade e escrita em Arguedas...

IHU On-Line – A apatia do brasileiro encarnada por Macunaíma tem a fun-ção de crítica ou sátira, ou ainda, de ambas?Raúl Antelo - É sátira. Mas, por ser sá-tira, o texto satura o procedimento, vai além dos limites estipulados, gasta, liquida ele e, por isso permite passar a outra coisa. À época da redação, re-senhando uma antologia poética, Mário de Andrade diz que um livro deve ser amado ou detestado. Pathos. Mas para abominar um valor é necessário mandar como emissários, como informantes, as testemunhas. Elas vão na frente, de-claram. É esse o sentido de detestari, em latim. Se, além do mais, testis, a testemunha, nunca é uma pessoa mas o relato de um processo de desubjeti-vação, concluiríamos que aquilo que se detesta é também algo (desconhecido, que nunca estamos em condições de suportar) muito amado, embora não possamos nos identifi car plenamente com ele. Por isso, no debate quanto ao gênero do texto, Mário, após ponderar muitas variáveis, inclina-se pela de sin-toma de cultura nacional. Não é símbo-lo porque no símbolo há identifi cação. É sintoma. E, quem diz symptôma, diz queda, coincidência, acontecimento fortuito, encontro fadado ao fracasso, diz tyché.

IHU On-Line – Como vê o signo da pe-dra na narrativa de Macunaíma?Raúl Antelo - Talvez como uma pionei-ra manifestação de icnologia (o saber sobre a sedimentação). Certamente, como um recuo com relação à icono-logia (o saber das imagens sagradas). A pedra é a poeira, o tempo fora do tempo, o baixo materialismo. O que conta não são os objetos, mas a inscri-ção da história nesses objetos. Signa-tura rerum.

IHU On-Line - Em que pontos existiu um diálogo entre a obra de Mário de Andrade e as obras de experimen-tação européias da época (como

em 1966. Além de uma extensa produção de ensaios e poemas, Lezama escreveu também contos singulares, que dialogam com o conjun-to de sua obra. (Nota do IHU On-Line)

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Joyce6) e de Oswald de Andrade7 (como Memórias sentimentais de João Miramar)? Quais são os princi-pais experimentos, em sua opinião, efetuados por Mário em Macunaíma?Raúl Antelo - Destacaria, fundamen-talmente, o da desgeografi cação, abso-lutamente coincidente com o princípio de estranhamento que os formalistas russos estavam testando paralelamen-te. E que antecipa o conceito de epi-fania que postularia Virginia Woolf8 muito depois. Mas se o espaço se torna desgeográfi co, isto é, torna-se descon-tínuo, o que quer dizer que o tempo também se torna anacrônico, donde, concluiríamos, é mais importante criar do que documentar. O pensamento de Aby Warburg,9 de Henri Bergson,10 de Walter Benjamin11 explorava, simulta-neamente a Mário, essas mesmas po-tencialidades do tempo.

IHU On-Line - Qual é a riqueza que Macunaíma apresenta, em termos de folclore, de reprodução de uma fala

6 James Augustine Aloysius Joyce (1882-1941): escritor irlandês considerado um dos autores de maior relevância do século XX. Suas obras mais conhecidas são o volume de contos Dublinenses (1914) e os romances Re-trato do artista quando jovem (1916), Ulisses (1922) e Finnegans wake (1939). (Nota da IHU On-Line)7 José Oswald de Sousa Andrade (1890-1954): escritor, ensaísta e dramaturgo brasileiro. Foi um dos promotores da Semana de Arte Mo-derna de 1922 em São Paulo, tornando-se um dos grandes nomes do modernismo literário brasileiro. Foi considerado pela crítica como o elemento mais rebelde do grupo. (Nota da IHU On-Line)8 Virginia Woolf (1882-1941): escritora inglesa. Estreou na literatura em 1915 com o romance The voyage out. (Nota da IHU On-Line)9 Aby Warburg: alemão, famoso historiador da arte do início do século XX, que, imbuído de um olhar antropológico, descobrira um vínculo entre a cultura dos índios hopis do Novo Méxi-co e a civilização do Renascimento. (Nota da IHU On-Line)10 Henri Bergson (1859-1941): fi lósofo e es-critor francês. Conhecido principalmente por Matière et mémoire e L’évolution créatrice, sua obra é de grande atualidade e tem sido estudada em diferentes disciplinas, como ci-nema, literatura, neuropsicologia. Sobre esse autor, confi ra a edição 237 da IHU On-Line, de 24-09-2007, A evolução criadora, de Hen-ri Bergson. Sua atualidade cem anos depois. (Nota da IHU On-Line)11 Walter Benjamin (1892-1940): fi lósofo ale-mão crítico das técnicas de reprodução em massa da obra de arte. Foi refugiado judeu alemão e, diante da perspectiva de ser cap-turado pelos nazistas, preferiu o suicídio. Um dos principais pensadores da Escola de Frank-furt. (Nota da IHU On-Line)

brasileira, de narrativas orais indíge-nas e crendices populares, de desen-volvimento da cidade de São Paulo, em oposição a outros espaços que continuam ainda inexplorados país afora?Raúl Antelo - A riqueza maior é as-sociar literatura e magia. Agamben12 nos relembra que a expressão latina indulgere Genius exprime o vínculo paradoxal que se estabelece entre a exigência do Gênio e a nossa própria felicidade. Entre o Gênio e o eu, não há continuidade: há um hiato, o da razão ocidental. Indulgere Genius é indulgere magia. Devemos, por força, abandonar-nos ao Gênio (à Magia, à Linguagem, ao Inconsciente) porque, caso contrário, se fôssemos apenas sujeito e consciência, não conseguirí-amos sequer digerir. E a antropofagia é isso: comer, digerir, defecar. O Gênio (a Magia, a Linguagem) é o que há de mais pessoal em nós, mas, ao mesmo tempo, é também o mais impessoal, é aquilo que nos ultrapassa e excede. Por isso uma escrita experimental, como a de Macunaíma, ao nos reconci-liar com o Genius (com o inconsciente, com a linguagem), busca liberar aque-les valores previamente capturados pelos dispositivos biopolíticos, e mes-

12 Giorgio Agamben (1942): fi lósofo italiano. É professor da Facolta di Design e arti della IUAV (Veneza), onde ensina Estética, e do Col-lege International de Philosophie de Paris. For-mado em Direito, foi professor da Universitá di Macerata, Universitá di Verona e da New York University, cargo ao qual renunicou em pro-testo à política do governo norte-americano. Sua produção centra-se nas relações entre fi -losofi a, literatura, poesia e fundamentalmen-te, política. Entre suas principais obras, estão Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002), A linguagem e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005), Infância e história: destruição da experiên-cia e origem da história (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006), Estado de exceção (São Paulo: Boitempo Editorial, 2007), Estâncias — A pa-lavra e o fantasma na cultura ocidental (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007) e Profanações (São Paulo: Boitempo Editorial, 2007). Em 04-09-2007 o site do Instituto Humanitas Unisinos — IHU publicou a entrevista “Estado de exce-ção e biopolítica segundo Giorgio Agamben”, com o fi lósofo Jasson da Silva Martins. A edição 236 da IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou a entrevista “Agamben e Heidegger: o âmbito originário de uma nova experiência, ética, po-lítica e direito”, com o fi lósofo Fabrício Carlos Zanin. A edição 81 da IHU On-Line, de 27-10-2003, teve como tema de capa O Estado de exceção e a vida nua: a lei política moderna. Para conferir o material, acesse www.unisinos.br/ihu. (Nota da IHU On-Line)

mo bioestéticos, para restituí-los a um possível uso comum.

IHU On-Line - O personagem Macuna-íma costuma ser visto como um retra-to do que costuma ser o estereótipo do brasileiro: malandro, preguiçoso (ele repete no livro a expressão “Ai, que preguiça”), desorganizado, de caráter duvidoso. Como vê, depois de 80 anos, essa analogia ainda sen-do feita? Que paralelos você traçaria entre o “herói sem caráter” e o bra-sileiro do jeitinho? É possível aproxi-má-los? Por quê?Raúl Antelo - O estereótipo é sinal de irrecusável necrose verbal. Onde há um estereótipo, há um discurso do poder, brecando a possibilidade dos sentidos antagônicos, complexos ou mesmo contraditórios aparecerem. Creio, sinceramente, que esse sem-blante a que chamamos Macunaíma (uma máscara, um vazio, um nada, uma construção de linguagem, enfi m) tem a força de seu gesto. O fi lósofo Vladimir Jankélévitch13 abre seu li-vro A rapsódia com uma idéia insti-gante: “La dix-neuvième siècle est le siècle de la Rhapsodie, comme il est le siècle des nationalités”.14 Ora, Jankélévitch, refi nadíssimo fi lósofo dos paradoxos da moral, dos poderes da ironia e das potencialidades da mú-sica (mas também da potência da lei, que ele ilustrou num belíssimo texto sobre os campos de concentração e sobre o caráter imprescriptivel dos crimes contra a humanidade, que não aconteceram no passado, estão sem-pre acontecendo, eles acontecem já, diante de nós), digo, Jankélévitch via, já no rapsodismo de Schumann, a ma-triz de um método de interpretação da cultura urbana, que só se tornaria visível muito mais tarde com Simmel15

13 Vladimir Jankélévitch (1903-1985): fi lósofo francês que, com apenas 23 anos, foi enviado a Praga como professor no Instituto Francês e em 1935 se doutorou em Letras. Foi discípulo de Henri Bergson, sobre o qual escreveu seu primeiro livro, Henri Bergson (1931). A maior parte de sua extensa obra fi losófi ca gira em torno dos problemas da experiência da vida cotidiana. (Nota da IHU On-Line)14 “O século XIX é o século da rapsódia, como, igualmente, é o século das nacionalidades” (Nota da IHU On-Line) 15 Georg Simmel (1858-1918): sociólogo ale-mão que desenvolveu o que fi cou conhecido como micro-sociologia, uma análise dos fenô-menos no nível micro da sociedade. Foi um dos

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e chega mesmo a estender essa linha do rapsodismo até o século XX, com a música de Bela Bartok.16 Diz que o gê-nio rapsódico de Bartók, como aliás, o de Mário de Andrade quem, muito bom músico, deu a Macunaíma essa categorização, rapsódia. E a rapsódia, diz Jankélévitch, não é, a bem dizer, um ‘gênero’, se o gênio é restrição ou, como a tragédia clássica, convenção artifi cial: a rapsódia é, antes de mais nada, ausência de gênero, explosão de todos os esquemas defi nidos e total licença concedida a uma fantasia su-cessivamente sonhadora, apaixonada e dionisíaca, que não se fi lia a nenhu-ma arte poética. Ora, nesse sentido, poderíamos pensar que Macunaíma é rapsódico porque não se fi lia, não se identifi ca, não se limita. Se avaliamos essa atitude do ponto de vista instru-mental, isso é ruim. O Estado catalo-ga, fi xa, territorializa. Se, entretanto, o avaliamos sob um ponto de vista po-lítico, a apatia nos permite alimentar um discreto otimismo, o de não cola-borar com o estabelecido. Aquilo que não tem nome, que não tem lugar, é pura potência. Pode ainda vir a acon-tecer. Mas, se acontecer, será sempre o desdobramento de uma força que vem do arquipassado.

responsáveis por criar a Sociologia na Alema-nha, juntamente com Max Weber e Karl Marx. (Nota da IHU On-Line)16 Béla Viktor János Bartók de Szuhafő (1881-1945): compositor húngaro, pianista e investigador da música popular da Europa Cen-tral e do Leste. É considerado um dos maiores compositores do século XX. Foi um dos funda-dores da etnomusicologia e do estudo da an-tropologia e etnografi a da música. Durante a Segunda Guerra Mundial, decidiu abandonar a Hungria e emigrou para os Estados Unidos. (Nota da IHU On-Line)

“A riqueza maior (de

Macunaíma) é associar

literatura e magia”

Romper com os padrões da linguagem escrita portuguesa, através de uma subversão que prima pelo estranhamento da linguagem, é um dos atributos da obra cujo protagonista é o “herói sem nenhum caráter”, analisa a crítica literária Eneida Maria de Souza

POR ANDRÉ DICK E MÁRCIA JUNGES

Uma obra que promove uma subversão lingüís-tica apelando “ao estranhamento da lingua-gem, ao procedimento de concretização do artefato lingüístico”. É assim que a crítica literária Eneida Maria de Souza se refere a

Macunaíma. “Um estilo modernista, antropofágico, pois se alimenta e mastiga de todas as fontes lingüísticas e estilísticas. Absorve o que há de mais lúdico na lingua-gem, o que há de mais escatológico na interpretação dos mitos e das anedotas. Macunaíma se apropria de todas as formas populares e eruditas do imaginário literário e cultural da América Latina e do estrangeiro”, aponta. “Sua fala é a monta-gem de várias falas, sua voz repete a dos personagens dos contos, sua malan-dragem remonta a Pedro Malazartes, aos romances picarescos, às trapaças do jabuti dos contos folclóricos”. E assegura: “A crítica à realidade brasileira reside justamente na apresentação de um herói sem nenhum caráter, pregui-çoso, malandro e esperto, o que seria a imagem também malandra do país. Mas essa interpretação é por demais complexa, pois não há, na rapsódia, nenhuma lição de moralismo em relação ao caráter do brasileiro”.

Eneida é graduada em Letras, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em Letras, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e doutora em Literatura Comparada Semiologia, pela Uni-versidade de Paris VII – Denis Diderot, na França, com a tese Des mots, des langages et des jeux — Une lecture de Macunaíma. É uma das organizadoras de Mário de Andrade — Carta aos mineiros (Belo Horizonte: UFMG, 1997), e escreveu, entre outros, O século de Borges (Belo Horizonte: Autêntica, 1999), A pedra mágica do discurso (2. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999), Crítica cult (2. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007) e Tempo de pós-crítica (Belo Horizonte: Veredas&Cenários, 2007).

A subversão lingüística de Macunaíma

DIV

ULG

AÇÃO

IHU On-Line – O que a senhora des-tacaria sobre os estudos que o autor realizou sobre mitologia indígena e folclore nacional, além da observa-ção dos costumes e língua cotidia-na, para escrever Macunaíma?Eneida Maria de Souza - O enredo de Macunaíma é retirado dos mitos amazônicos colhidos pelo alemão

Koch-Grünberg.1 As histórias para-

1 Theodor Koch-Grunberg (1872-1924): etnólogo e explorador alemão que realizou valiosas contribuições ao estudo das po-pulações indígenas da América do Sul, em particular nas tribos da região amazônica brasileira. Afi rma-se que Vom Roraima zum Orinoco (Do Roraima ao Orinoco: observa-ções de uma viagem pelo norte do Brasil e pela Venezuela durante os anos de 1911 a 1913 (São Paulo: Editora Unesp, 2006) foi uma das obras que infl uenciou Mário de An-

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“A associação com o

presente se faz de

modo a apontar as

variadas saídas para

nossa eterna sensação

de fracasso e de um

país que não dá certo”

lelas e os enxertos dos livros da Ca-rochinha, dos manuais de folclore, dos diálogos deliciosos entre animais fabulosos, dos enredos eróticos das adivinhas e dos mitos sul-americanos. Essa bricolagem mítica resulta na re-cuperação discursiva realizada por Mário de Andrade, ao transformar as histórias em diálogos que apontam a fragilidade da linguagem, o seu valor simbólico e a diferença entre o mate-rial mítico utilizado e sua construção literária. A apropriação mítica é pro-duto da bricolagem, procedimento por meio do qual a criatividade afl ora e se distingue da mera cópia ou paráfrase. Quanto à observação dos costumes e da língua cotidiana, Mário de Andrade explorou o conceito de “fala nova”, que corresponde ao seu projeto literá-rio e cultural de romper com a lingua-gem escrita de infl uência portuguesa e se apropriar da riqueza oral de nossa cultura, formada pelo índio, o negro e a malandragem branca. O papa-gaio funciona como metáfora desta “fala nova”, por se caracterizar pelo recurso à oralidade e à criatividade, repetindo e distorcendo a linguagem do outro, zombando das normas esta-belecidas e se impondo como arauto da paródia e do desleixo. A subversão lingüística de Macunaíma consiste no apelo ao estranhamento da linguagem, ao procedimento de concretização do artefato lingüístico. Lê os provérbios populares, as frases feitas, as histórias infantis ao pé da letra, desconstrói seu valor simbólico e acredita na força da palavra falada, por ser muito astuta.

drade ao escrever Macunaíma. (Nota da IHU On-Line)

IHU On-Line - Poderia apontar as maiores novidades da obra em ter-mos de estrutura, enredo, linguagem e estilo? E avaliar de que forma, nes-se sentido, a obra refl ete a “fúria de-molidora” do Modernismo em termos de expressão e crítica da realidade brasileira?Eneida Maria de Souza – A estrutura da obra segue os enredos tradicionais dos contos populares, das histórias orais. Há o nascimento do herói, suas peripécias, e o desfecho. Mas o que irá distinguir a rapsódia desses relatos tradicionais é a exploração criativa da linguagem, a utilização do estilo oral de forma a captar as contradições e falta de controle do sujeito diante do discurso. Um estilo modernista, antro-pofágico, pois se alimenta e mastiga de todas as fontes lingüísticas e estilís-ticas. Absorve o que há de mais lúdico na linguagem, o que há de mais esca-tológico na interpretação dos mitos e das anedotas. Macunaíma se apropria de todas as formas populares e erudi-tas do imaginário literário e cultural da América Latina e do estrangeiro. Ao se valer de fragmentos de discursos e de palavras alheias, a identidade se fragiliza e o herói se veste com as rou-pas descartáveis das personagens con-sagradas da cultura popular. Sua fala é a montagem de várias falas, sua voz repete a dos personagens dos contos, sua malandragem remonta a Pedro Ma-lazartes, aos romances picarescos, às trapaças do jabuti dos contos folcló-ricos. A crítica à realidade brasileira reside justamente na apresentação de um herói sem nenhum caráter, pregui-çoso, malandro e esperto, o que seria a imagem também malandra do país. Mas essa interpretação é por demais complexa, pois não há, na rapsódia, nenhuma lição de moralismo em rela-ção ao caráter do brasileiro.

IHU On-Line – Que interpretação a senhora faz do capítulo “Carta pras Icamiabas”, que é considerado, al-gumas vezes, como lembra em seus estudos, de um “corpo estranho” no texto? Qual é a fundamentação lin-güística dessa passagem na obra de Mário de Andrade, e até que ponto ela delimitaria uma passagem do co-loquial para o dito “sofi sticado”, de

forma irônica, pois o autor brincava com o parnasianismo?Eneida Maria de Souza - Com o intuito de criar uma literatura nacional sem abandonar a tradição literária ociden-tal, Mário de Andrade se insurge con-tra a retórica utilizada por seus con-temporâneos quanta à diferença entre o “português escrito” e o “brasileiro falado”. A Carta é a paródia dos dis-cursos infl uenciados pela herança da língua portuguesa, ao apontar a erudi-ção como arma retórica e falso brilho. Retrata Macunaíma encantado com a civilização, com a ilusão do progresso e da máquina retórica. A oralidade não tem lugar na carta, espaço reservado à exposição desordenada de frases sem sentido escritas pelo herói sem nenhum caráter. Frases inteiras de Rui Barbosa2 e dos doutos portugueses são enxertadas na Carta, uma forma de criticar a retórica vazia da língua es-crita, assim como do português falado imitando o português escrito. O autor pensou em retirar o capítulo do livro, por achá-lo em defasagem com os de-mais, mas o traço parodístico foi mais forte e resistiu à ameaça de extinção.

IHU On-Line – Quais foram as infl u-ências literárias de Mário de Andrade ao escrever Macunaíma?Eneida Maria de Souza - Foram muitas. Cito, entre os estrangeiros, Rabelais,3 com os livros Gargantua e Pantagruel. As peripécias, o aspecto lúdico da lin-guagem e a escatologia, uma forma da expressão da linguagem popular, são as maiores marcas do escritor francês. Sem falar em José de Alencar,4 nos ro-

2 Ruy Barbosa de Oliveira (1849-1923): juris-ta, político, diplomata, escritor, fi lólogo, tra-dutor e orador brasileiro. É membro fundador da Academia Brasileira de Letras. (Nota da IHU On-Line)3 Alcofribas Nasier (1483-1553): pseudônimo de François Rabelais, escritor e padre francês do Renascimento. Ficou para a posteridade como o autor das obras-primas cômicas Gar-gantua e Pantagruel, que exploravam lendas populares, farsas, romances, bem como obras clássicas. O escatologismo é usado para conde-nação humorística. A exuberância da sua cria-tividade, do seu colorido e da sua variedade literária asseguram a sua popularidade. (Nota da IHU On-Line)4 José Martiniano de Alencar (1829-1877): jornalista, político, orador, romancista, críti-co, cronista e dramaturgo brasileiro. É o gran-de nome da prosa romântica brasileira, tendo escrito obras representativas para todos os ti-pos de fi cção românticos: passadista e colonial

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mances populares etc. O modernismo, com Oswald de Andrade, Raul Bopp,5

Tarsila entre outros autores, compõem o painel de Macunaíma. Como bebeu de várias fontes, é até difícil delimi-tá-las.

IHU On-Line – De que maneira po-demos ver a ligação de Macunaíma com a “muiraquitã”, o seu “talismã existencial”, que a senhora conside-ra vital para o discurso do livro? Até que ponto ela é uma peça central da narrativa?Eneida Maria de Souza – É uma peça central na narrativa porque dá anda-mento e razão de ser da trama. Tudo gira em torno desta pedra perdida, uma sátira aos romances de cavala-ria e de gesta. No entanto, considero mais a relação entre a pedra mágica do discurso como o instrumento com o qual Macunaíma se safa e desconstrói a linguagem do senso comum, das fra-ses feitas, dos provérbios.

IHU On-Line - O personagem Macuna-íma costuma ser visto como um retra-to do que costuma ser o estereótipo do brasileiro: malandro, preguiçoso (ele repete no livro a expressão “Ai, que preguiça”), desorganizado, de caráter duvidoso. Como vê, depois de 80 anos, essa analogia ainda sen-do feita? Que paralelos você traçaria entre o “herói sem caráter” e o bra-sileiro do jeitinho? É possível aproxi-má-los? Por quê?Eneida Maria de Souza – Macunaíma, o herói de nossa gente, possui uma marca lingüística, o conhecido dístico “Ai! que preguiça!...”, que o distingue como personagem e o posiciona como o emblema literário da preguiça brasi-leira. A outra expressão, emitida rei-teradamente por ele, “Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são”, completa o seu perfi l discursivo, ao se investir de intenção retórica e irônica e fornecer uma resposta às teses hi-gienistas defendidas na época pelos adeptos da política de saneamento do

(O Guarani, 1857), indianista (Iracema, 1865), e sertaneja (O sertanejo, 1875). (Nota da IHU On-Line)5 Raul Bopp (1898-1984): poeta modernista e diplomata brasileiro, autor do clássico Cobra Norato. Com Tarsila do Amaral e Oswald de An-drade, amigos pessoais, participou da Semana de Arte Moderna. (Nota da IHU On-Line)

país. Realiza-se, no nível discursivo e de maneira metafórica, a condensação entre preguiça e doença, denunciada pela fala inconseqüente de Macuna-íma, pois a reiteração obsessiva de frases feitas atinge efeito derrisório e denuncia o blá-blá-blá criado em tor-no da questão. Os discursos sanitaris-tas endossados por Monteiro Lobato6

em vários de seus artigos, assim como a célebre frase de Miguel Pereira, “O Brasil é um vasto hospital”, são viva-mente criticados por Mário de Andra-de, que reinventa o Macunaíma de for-ma distinta do Jeca Tatu,7 assumindo a preguiça como valor e desprezando qualquer pretensão moralista ou rege-nerativa de sua personagem. Na com-posição desse raciocínio, o debate tra-vado entre Macunaíma, herói solar e mestre da preguiça, com a cultura do trabalho, culmina com o sentimento de fracasso experimentado pela per-sonagem, que, incapaz de realizações exigidas pela civilização cristã, encar-na, de maneira indireta, esta culpa, assim como uma saída utópica, trans-formando-se em constelação. No en-tanto, a ambigüidade criada por este impasse fi nal constitui uma abertura a mais na interpretação desse rico per-sonagem da literatura brasileira de to-dos os tempos.

O corpo macunaímicoUm exemplo das ressonâncias que

Macunaíma poderia apresentar na li-teratura brasileira contemporânea é o livro de João Gilberto Noll8, Canoas

6 José Bento Monteiro Lobato (1882-1948): escritor brasileiro popularmente conhecido pelo tom educativo, bem como divertido de sua obra de livros infantis, o que seria, apro-ximadamente, metade de sua produção lite-rária. A outra metade, composta de romances e contos para adultos, foi menos popular, mas um divisor de águas na literatura brasileira. Entre seus livros, destacamos: O picapau ama-relo (34. ed. São Paulo: Brasiliense, 2001), Dom Quixote das crianças (27. ed. São Paulo: Brasiliense, 2001), Viagem ao céu (45. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995) e Memórias da Emília(42. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994). (Nota da IHU On-Line)7 Jeca Tatu: personagem criado por Monteiro Lobato em seu livro Urupês. O livro contém doze histórias baseado no cotidiano do traba-lhador rural paulista. Simboliza a situação do caboclo brasileiro, abandonado pelos poderes públicos às doenças, principalmente a Ancilos-tomose (ou Amarelão), seu atraso e à indigên-cia. (Nota da IHU On-Line)8 João Gilberto Noll (1946): escritor brasileiro. É autor de, entre outros, Bandoleiros (1985) e

e marolas, publicado em 1999 como parte de uma série criada pela editora Objetiva sobre os sete pecados capi-tais. Cada autor escreveu sobre um dos pecados capitais, e Noll foi escolhido para escrever sobre a preguiça. Nesse texto, o escritor retoma o Macunaíma do fi nal, o Macunaíma doente, já sem viço, entregue à própria sorte. O livro de Noll é o contrário de Macunaíma; retoma o tema da preguiça, presente no texto de Mário de Andrade, mas de forma invertida, ressaltando o tédio, o desencanto, a ausência total de uto-pia e de saída no mundo contemporâ-neo. A atualidade desses corpos ente-diados, corpos atacados pela doença e pelo mal-estar, opõe-se, assim, ao corpo macunaímico, um corpo de uma plasticidade enorme, capaz de se safar de tudo. Trata-se de duas concepções da literatura, que encenam, de forma distinta, o tema da preguiça.

A associação com o presente se faz de modo a apontar as variadas saídas para nossa eterna sensação de fracasso e de um país que não dá certo. Mas a alegria do jeitinho, as saídas lúdicas de Macunaíma deveriam servir de exemplo para que o Brasil retomasse um pouco o senso de humor e a alegria da existên-cia. Não só o sentimento de fracasso.

IHU On-Line – Alceu Amoroso de Lima9

dizia que Macunaíma não era um ro-mance, nem um poema, nem uma epopéia, mas um coquetel. Como a senhora classifi caria essa obra?Eneida Maria de Souza - É uma rapsó-dia. Um amálgama de romance, conto popular, trechos de contos da carochi-nha, logo, uma mistura de vários gêne-ros e estilos. É popular, não se enqua-dra em nenhuma das qualifi cações que podem delimitá-lo.

Hotel Atlântico (1989). Venceu o Prêmio Jabu-ti por cinco vezes. (Nota da IHU On-Line)9 Alceu Amoroso de Lima (1893-1983): foi um crítico literário, professor, pensador, escritor e líder católico brasileiro. Adotou o pseudônimo de Tristão de Ataíde. (Nota da IHU On-Line)

LEIA MAIS...>> Confi ra entrevista com a autora no sí-

tio do Instituto Humanitas Unisinos:

* Crítica cultural: tendências, conceitos e deba-tes, em 27-10-2007.

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Após 80 anos de seu lançamento, Macunaíma, segundo Maria Eugenia Boaventura, é bastante estudado e não é incompreendi-do pela crítica. Fora dos padrões narrativos da época, prima pela riqueza vocabular e metaforiza a falta de perspectivas do sujeito contemporâneo

POR ANDRÉ DICK E MÁRCIA JUNGES

Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, Maria Eugenia Boaventura enfa-tizou que o que fascina os leitores de Macunaíma 80 anos após seu lan-çamento é o fantástico trabalho desenvolvido por Mário de Andrade com nosso idioma. Além disso, é “uma fi cção muito divertida”. Maria Eugenia esclarece que a obra não é incompreendida pela crítica, mas bastante

estudada. “Não é certamente uma obra simples, de leitura fácil, a começar pela riqueza vocabular manipulada pelo artista. Foge dos padrões narrativos da época. O fato de o livro ainda hoje despertar interesse se devem ao trabalho artesanal da linguagem e à ousadia da sua estrutura narrativa.” A respeito do homem “sem ca-ráter”, a pesquisadora menciona que essa é uma metáfora para a falta de projetos do homem moderno de uma forma geral, tanto no Brasil quanto fora dele.

Maria Eugenia é graduada em Letras, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), e mestre e doutora na mesma área, pela Universidade de São Paulo (USP). Leciona no Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas (Uni-camp). É organizadora de Estética e política (São Paulo: Globo, 1992) e Os dentes do dragão (São Paulo: Globo, 1992), de Oswald de Andrade, de Dicionário de Bolso de Oswald de Andrade (São Paulo/SP: Editora Globo, 2007), e também dos livros De Anchieta aos concretos (São Paulo: Companhia das Letras, 2003) e Artesanatos de poesia (São Paulo: Companhia das Letras, 2004), de Mário Faustino. Além disso, é autora de A vanguarda antropofágica (São Paulo: Ática, Coleção Ensaios, 1985) e O salão e a selva. Uma bibliografi a intelectual de Oswald de Andrade (São Paulo: Ex-Libris/Unicamp, 1996).

Macunaíma: fi cção divertida e riqueza vocabular

IHU On-Line - Seria Macunaíma uma obra “sintoma de cultura nacional”? Em termos de folclore, de língua por-tuguesa, do processo de crescimento brasileiro, o que ela recupera ou traz de novo? Por quê?Maria Eugenia Boaventura – Não di-ria que seja “sintoma nacional”. Para mim, Macunaíma é antes de tudo uma fi cção muito divertida, cujo trabalho com a língua é fantástico, e é isto que fascina o leitor até hoje. Claro que incorpora dados do folclore nacional

e elementos de época, sobretudo, da cidade de São Paulo.

IHU On-Line - Se o próprio Mário de Andrade admite ter escrito Macu-naíma nas férias, por “pura brinca-deira”, não teria a crítica dado-lhe sentidos não propostos em sua com-posição? Seu livro transcendeu os ob-jetivos e podemos dizer que a obra ganhou vida própria?Maria Eugenia Boaventura - É possí-vel que a idéia do livro e o primeiro

esboço tenham surgido numas férias, como uma brincadeira, uma diversão. Depois houve, é óbvio, por parte do escritor, um trabalho cuidadoso de pesquisa e composição até chegar à forma fi nal. Trabalho este muito eru-dito e sofi sticado e que demanda um repertório literário e cultural para que seja apreciado na sua complexidade. O papel do crítico é justamente o de remanejar métodos e técnicas a fi m de construir o sentido do texto que anali-sa, com a bagagem teórica pessoal da

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época de cada leitura.

IHU On-Line - Macunaíma é uma obra ao mesmo tempo incompreendida, considerada experimental pela maior parte da crítica, e bastante estudada por jovens em escolas, que costu-mam achar sua narrativa excêntrica. Diante disso, como Macunaíma ainda é tão debatido, ainda hoje, depois de 80 anos de seu lançamento?Maria Eugenia Boaventura – Não di-ria que Macunaíma seja uma obra in-compreendida pela crítica. Acho que é estudada, sim. Não é certamente uma obra simples, de leitura fácil, a começar pela riqueza vocabular mani-pulada pelo artista. Foge dos padrões narrativos da época. O fato de o livro ainda hoje despertar interesse se deve ao trabalho artesanal da linguagem e à ousadia da sua estrutura narrativa.

IHU On-Line - Qual é a infl uência que Mário sofreu tanto das obras de van-guarda européias quanto das obras de Oswald de Andrade, como Sera-fi m Ponte Grande,1 como a senhora constatou em estudos?Maria Eugenia Boaventura – Não trato esta questão em termos de infl uência. Prefi ro dizer que os dois escritores ti-nham projetos afi ns, e contribuíram de modo decisivo para produzir mudanças no panorama literário e cultural do país, além de terem dialogado com as diferentes propostas da vanguarda eu-ropéia. Este projeto implicou num de-terminado momento na incorporação de temas e motivos locais, sem perder

1 Serafi m Ponte Grande (São Paulo: Globo, 2007). (Nota da IHU On-Line)

de vista o processo de atualização da linguagem literária. Oswald talvez te-nha sistematizado isto de forma mais rápida e aguerrida nos Manifestos de 1924 e 1928. Textos estes sobre os quais Mário em vários momentos ma-nifestou seu apreço.

IHU On-Line - O brasileiro “sem ca-ráter” expresso por Macunaíma continua uma forma correta de nos entendermos ontologicamente? Em que sentido podemos compreender corretamente esse adjetivo do per-sonagem e considerá-lo um “homem sem projetos”, típico, na sua visão, do homem moderno?Maria Eugenia Boaventura – Não. No máximo pode servir como uma metáfo-ra para uma referência à falta de pro-jeto do homem moderno de um modo geral, daqui e de fora. Não devemos esquecer as peculiaridades múltiplas do personagem: estrangeiro, índio ne-gro e que depois vira branco.

IHU On-Line - Oswald de Andrade classifi ca Macunaíma como nossa Odisséia. Haveria possibilidade de considerar a obra de Mário também universal, ou seu personagem princi-pal seria um “anti-herói” com ampli-tude latino-americana? Por quê?Maria Eugenia Boaventura - Oswald dizia também que Macunaíma era a grande obra antropofágica. Sim, como Serafi m, o personagem do Macunaíma não sabe exatamente o que quer, está amarrado pela incompetência, pela falta de caráter, pela falta de pers-pectiva. Os dois personagens quando tiveram meios de conquistar alguma

coisa (aquilo que Serafi m chamava a felicidade) fracassaram. Um quando tinha a riqueza, o outro quando estava de posse do amuleto. Ambos têm de-senlaces patéticos.

IHU On-Line - Macunaíma pode ser considerado um conto em mosaico, um romance, uma narrativa poética, ou ele é a mistura de todos esses ele-mentos?Maria Eugenia Boaventura – Macunaí-ma, como o Serafi m, se constitui numa fantástica mistura de gêneros, outra faceta atual dos dois textos.

IHU On-Line - “A dialética da malan-dragem”, de Antonio Candido,2 seria um conceito correto para compreen-der o personagem? Que outras obras brasileiras se enquadrariam nessa característica?Maria Eugenia Boaventura - Acredito que sim: a dialética da malandragem, tão bem explorada por um dos princi-pais críticos do Modernismo, na análise de uma obra brasileira do século XIX, pode ser acionada e adaptada para a leitura de várias outras obras, inclusi-ve as duas acima. É bom lembrar que cada obra literária sugere um roteiro de leitura próprio.

2 Antonio Candido de Mello e Souza (1918): escritor, ensaísta e professor universitário, um dos principais críticos literários brasileiros. É professor emérito da USP e UNESP, e doutor honoris causa da Unicamp. Foi crítico da revis-ta Clima (1941-4) e dos jornais Folha da Ma-nhã (1943-5) e Diário de São Paulo (1945-7). Na vida política, participou de 1943 a 1945 na luta contra a ditadura do Estado Novo no grupo clandestino Frente de Resistência. Escreveu o clássico Parceiros do Rio Bonito (1964). (Nota da IHU On-Line)

“Não diria que Macunaíma seja uma obra incompreendida pela crítica. Acho

que é estudada, sim. Não é certamente uma obra simples, de leitura fácil, a

começar pela riqueza vocabular manipulada pelo artista. Foge dos padrões

narrativos da época. O fato de o livro ainda hoje despertar interesse se deve

ao trabalho artesanal da linguagem e à ousadia da sua estrutura narrativa”

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Para o crítico literário Robson Pereira Gonçalves, “Macunaíma não é o depositário dos sentidos do Brasil”, mas uma obra de arte que inventa sentidos. Sua possibilidade de síntese reside na transfi gura-ção dos “múltiplos que não se unifi cam neuroticamente na realida-de brasileira”

POR ANDRÉ DICK E MÁRCIA JUNGES

“Macunaíma não é o depositário dos sentidos do Brasil, an-tes é a obra de arte que inventa sentidos, rompe com as neuroses dos sentidos dados e aponta para uma identidade de última instância, que é uma identidade sem identifi ca-ção”, defende o crítico literário Robson Pereira Gonçalves.

A declaração faz parte da entrevista a seguir, que concedeu com exclusividade por e-mail à IHU On-Line. De acordo com ele, “a possibilidade se síntese em Macuna-íma estaria nessa transfi guração que a narrativa faz daqueles múltiplos que não se unifi cam neuroticamente na realidade brasileira, porque a busca da unidade numa identidade é uma busca neurótica, é apagamento das diferenças”. Questionado se o brasileiro ainda tem a sua muiraquitã, ele responde que ela, “tal como uma per-versão, simboliza os nossos males e nossas aversões ao trabalho, ao conhecimento e saber e, muito mais, à construção de uma sociedade mais justa. Nessa esteira, a muiraquitã é o jogo do bicho, as loterias que assolam esses sonhos e embalam a esperança — individual — de nos tornarmos felizes”.

Graduado em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Robson é mestre em Letras, pela Pontifícia Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), com a tese, já publicada, Macunaíma: carnaval e malandragem (Santa Maria: Imprensa Universitária, 1982). Doutorou-se em Lingüística e Letras na Pontifícia Universi-dade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com a tese A questão do sujeito em Fernando Pessoa. Ele leciona na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões. Escreveu inúmeras obras, das quais destacamos O sujeito Pessoa — Literatura e psicanálise (Santa Maria: Edição Mestrado em Letras-UFSM, 1995), Fábulas da província — Crônicas sobre arte e cultura (Santa Maria: Edição Mestra-do em Letras-UFSM, 1999) e Fábulas da subjetividade — Literatura & psicanálise (Santa Maria: UFSM/Reitoria/PRAE, 2002).

Brasilidade. Identidade múltipla e caótica

IHU On-Line - De que modo Macuna-íma pode ser visto sob o ângulo car-navalesco da cultura brasileira? Ele pode ser percebido por meio de quais elementos na obra?Robson Pereira Gonçalves - Já que se trata de uma entrevista, diria por conforto que a percepção carnava-lesca do mundo é operada por quatro categorias: a familiaridade, onde são suspensas as restrições às normas so-

ciais e ao relacionamento humano; a excentricidade, que afasta a repres-são e a censura; as mésalliances, que, pelo carnaval, aproximam o sagrado do profano, o sublime do grotesco, o sério do cômico, o bem do mal; e a profa-nação, onde a arbitrariedade encerra, através do carnaval, todo um sistema de relações paradoxais com relação às extravagâncias narrativas e onde a paródia é o seu lugar comum. Nessa

perspectiva, é bom lembrar que Macu-naíma não é o depositário dos sentidos do Brasil, antes é a obra de arte que in-venta sentidos, rompe com as neuroses dos sentidos dados e aponta para uma identidade de última instância, que é uma identidade sem identifi cação. Essa identidade é múltipla e caótica porque torna indiferentes, pelo não-senso, to-dos os traços que organizam a brasili-dade. Nessa medida, Macunaíma e seu

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ideal de brincar, de prazeirar o sintoma brasileiro, torna-se falange daquela alegoria primordial de uma construção de sentido, por isso é que a obra bem diz a emergência de uma identidade.

IHU On-Line - Até que ponto o perso-nagem de Mário de Andrade se inse-re na categoria da “dialética da ma-landragem”, trabalhada por Antonio Candido? Robson Pereira Gonçalves - Macunaí-ma, na herança do sargento de milícias Leonardo, age e fala entre dois pólos: o da ordem, sociedade organizada das instituições e do poder econômico e político, e o da desordem, aquele dos trabalhadores aviltados, dos assalaria-dos e aviltados pela sociedade. Sua ac-tancialidade nos mostra a possibilidade dialética de uma síntese através de um caminho terceiro que, na melhor das hipóteses, reuniria e aproximaria as características de um lado e outro na construção de uma outra sociedade. Seria uma empresa assaz “encompas-sada” e a-histórica, todavia poderia resultar numa sociedade mais justa e maneira (positiva) pela inventividade, sintoma característico do brasileiro.

IHU On-Line - Ao apresentar vários folclores, a reprodução de uma fala brasileira, de narrativas orais indíge-nas e crendices populares, de desen-volvimento da cidade de São Paulo, qual é a visão sociológica que Mário de Andrade oferece sobre o Brasil através de sua rapsódia?Robson Pereira Gonçalves – Mário de Andrade propôs em sua fi cção uma reu-nião dessas narrativas nacionais, por isso rapsódia, reunião de contos. Até poder-se-ia afi rmar que Mário estava com o intuito, nacionalista e cordial, de exacerbar pelos múltiplos a tal iden-tidade brasileira num sentido positivo. Entretanto, o que o autor está a aludir é aquela premissa de uma identidade sem identifi cação, mal-estar fundante da cultura brasileira. Nessa esteira, aponto que sua perspectiva era colocar a nu e/ou denunciar a neurose nacional que compõe esse conjunto de falares. A perspectiva daqueles múltiplos planos (mitos, ritos, folclore) que justifi cam a tal orientação sociológica do texto merece ser vista de um outro ângulo,

aquele que conjuga tais regionalismos, rituais, mitos falares e sotaques como um “atravessamento” dos múltiplos sentidos (signifi cados) da brasilidade para se chegar à referência maior do “não-caráter”, que é uma identidade sem-sentido, ou sem identifi cação. Tal herança, macunaímica, aponta para o mazombismo1 do Brasil Colônia, onde impera o arquétipo dessa desventura-da e malévola tradição de o brasileiro não saber se situar no aqui e no agora de sua língua e do que realmente quer, mas alhures e conforme os ventos das experiências. A nacionalidade se faz no sintoma da língua e o sentido da Arte na criação de signifi câncias. Dessa for-ma, a possibilidade de síntese em Ma-cunaíma estaria nessa transfi guração que a narrativa faz daqueles múltiplos que não se unifi cam neuroticamente na realidade brasileira, porque a bus-ca da unidade numa identidade é uma busca neurótica, é apagamento das di-ferenças.

IHU On-Line - Quais aspectos satíricos você destacaria como fundamentais no contexto da obra depois de 80 anos?Robson Pereira Gonçalves – Vários são os aspectos e passagens da narrativa e que se inscrevem como espelho nos dias de hoje. Pode-se falar do episódio da “Carta pras Icamiabas”, onde Macu-naíma escreve aos tapanhumas2 sobre suas andanças na civilização num por-tuguês barroco, bem ao gosto do Padre Vieira,3 e ilustra neuroticamente essa

1 Mazombismo: de acordo com Vianna Moog, é a ausência de determinação e satisfação de ser brasileiro, ausência de gosto por qualquer tipo de atividade orgânica, na carência de iniciativa e inventividade, na falta de crença na possibilidade de aperfeiçoamento moral do homem. (Nota da IHU On-Line)2 Tapanhumas: tribo amazônica na qual Macu-naíma nasceu. (Nota da IHU On-Line)3 Antônio Vieira (1608-1697): padre jesuíta, diplomata e escritor português. Veio para o Brasil em 1915 e logo começou seus estudos no Colégio dos Jesuítas. Mais tarde, ingressou na Companhia de Jesus. Foi um grande orador sacro. Desenvolveu expressiva atividade mis-sionária entre os indígenas do Brasil procuran-do combater a sua escravidão pelos senhores de engenho. Em 1641, voltou a Portugal, onde exerceu funções políticas como conselheiro da Corte e embaixador de D. João IV, principal-mente no que se referia às invasões holandesas do Brasil. Retornou ao Brasil em 1652, tendo estado no Maranhão, onde fez acusações aos senhores de engenho escravocratas na defesa da liberdade dos índios. Foi expulso do país,

vertente num ato falho sensacional onde transparece sua ignorância com a língua ao trocar versículos da bíblia por testículos e assim por diante. Em outra passagem, “A pacuera do oibê”, Mário de Andrade ironiza as identifi cações de Macunaíma e a civilização — o he-rói sem caráter leva como lembranças uma galinha Legorne, o relógio Pathek e o revólver Smith-Wesson, símbolos de outra civilização e que seriam inúteis no Uraricoera, pois que não represen-tariam avanços culturais e, muito me-nos, sociais. Esta é a sina do brasileiro, o de ser nostálgico e barroco quando fala de si e de suas fantasias, mentiras e falsas premissas. Por tudo isso, num outro episódio — “Macumba” —, Macu-naíma vai pedir proteção no terreiro da tia Ciata e se depara com deputados, ladrões, senadores, gatunos e toda a gente e pede proteção de Exu, uma contradição com as coisas do bem e dos valores ditos cristãos. É a deformação do caráter e da ética que ainda grassa em nossa terra e, pelo exemplo, coloca todas as classes no mesmo saco.

IHU On-Line - O personagem Macu-naíma normalmente é visto como um retrato do que costuma ser o estere-ótipo do brasileiro: malandro, pregui-çoso (ele repete no livro a expressão “Ai, que preguiça”), desorganizado, de caráter duvidoso. Como vê, depois de 80 anos, essa analogia ainda sen-do feita? Que paralelos você traçaria entre o “herói sem caráter” e o bra-sileiro do jeitinho? É possível aproxi-má-los? Por quê?Robson Pereira Gonçalves - Uma das li-ções que tiramos do Macunaíma é que a personagem-título parece refl etir mi-meticamente os tais múltiplos que com-põem a cultura brasileira, todavia não constrói o sentido de um caráter. Se as-

juntamente com outros jesuítas. Envolveu-se, posteriormente, com a Inquisição e chegou a estar detido por um ano. Voltou ao Brasil em 1681, para a Bahia, onde veio a falecer anos mais tarde, no Colégio de Salvador. Entre suas obras, estão Sermões, composto por 16 vo-lumes que foram escritos entre 1699 e 1748; História do futuro (1718), Cartas (1735-1746), em três volumes; Defesa perante o tribunal do Santo Ofício (1957), composto por dois volumes, e Arte de furtar, escrito em 1744, porém, de autoria duvidosa. Confi ra a edição 244 da IHU On-Line, de 19-11-2007, Antônio Vieira. Imperador da língua portuguesa. (Nota da IHU On-Line)

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sim o é, pode-se afi rmar com segurança que hoje, mais do que nunca, aquela aproximação é relevante e imperiosa para se entender de vez porque ainda vivemos nessa miséria ética, intelectu-al, moral. Hoje, se tem uma cumplici-dade malandra, seja nas relações so-ciais, seja, e para pior, nas relações de governo, judiciário, legislativo e povo. Portanto, uma aproximação do Macunaí-ma com o “jeitinho” dos brasileiros deve estar espelhada na assunção que hoje se percebe da malandragem, dos avessos, dos maneirismos negativos em todos os segmentos sociais. Notadamente nas instituições que deveriam zelar pelas re-lações de um projeto Brasil, onde o es-tatuto da ética e da moral conformariam um tertius na relação ordem versus de-sordem. Se antes imperava uma ordem sedimentada na força, na defesa incon-dicional das classes autoritárias, hoje se observa o império da desordem institu-cional, da violência urbana. Seria esse o nosso destino, o de ser como Macunaíma um “brilho bonito mas inútil porém de mais uma constelação”?

IHU On-Line - O brasileiro ainda busca o seu muiraquitã? Qual seria ele? Há um projeto de Brasil ou “Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são” continua sendo um dito atual?Robson Pereira Gonçalves – Na questão da saúde, mormente se tenha avanço na medicina social, ainda abarrotamos nos-sos hospitais com os Jecas Tatus (vide Monteiro Lobato), tanto pelo descaso com a educação quanto pela ignorância que se nos povoa. Até hoje não sei qual seria o tal projeto Brasil, se o do dístico da bandeira — ordem e progresso — ou esse sentimento ufanista de ser brasilei-ro, a terra do sol e de Deus, porém sem leis e sem fronteiras e que em nome de discursos populistas para a ignara multi-dão faz ressurgir a esperança dos renun-ciadores à vida, pois um nirvana os espe-ra atrás das palavras do líder. O que resta é uma fantasia, a tal da muiraquitã, que tal como uma perversão simboliza os nos-sos males e nossas aversões ao trabalho, ao conhecimento e saber e, muito mais, à construção de uma sociedade mais jus-ta. Nessa esteira, a muiraquitã é o jogo do bicho, as loterias que assolam esses sonhos e embalam a esperança — indivi-dual — de nos tornarmos felizes.

Ao invés de um estereótipo, uma entidade brasileira, e um convite permanente a pensar sobre verdades humanas, como o medo de crescer, a evasão à responsabilidade, a importância do ócio criativo e a crítica à alienação: eis algumas caracterís-ticas da atualidade de Macunaíma

POR ANDRÉ DICK E MÁRCIA JUNGES

De acordo com a escritora Telê Porto Ancona Lopez, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, chamar Macunaíma de estereótipo do homem brasileiro é “uma visão muito esquemática do protagonis-ta da rapsódia do herói da nossa gente”, e concorda com Alfredo Bosi e Paulo Prado, quando eles destacam que o objetivo do autor

era captar a “entidade brasileira”. Ela assinala que o livro mostra uma vasta pesquisa de elementos de nosso país, e que nele “está o avesso do futurismo, do ponto de vista ideológico”. Para ela, o que faz Macunaíma continuar lido e discutido entre os estudantes é o diálogo que propõe conosco, homens e mulheres contemporâneos, ao tocar não apenas “verdades do homem no Brasil, como verdades humanas, atuais, como o medo de crescer, a evasão à responsabilidade, a importância do ócio criador, a crítica do trabalho for-miga, alienado”.

Telê é graduada em Letras Neolatinas e especialista em Língua e Litera-tura Francesa e Portuguesa Brasileira, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Na Universidade de São Paulo (USP), cursou especia-lização em Literatura Brasileira, Portuguesa, Teoria Literária e Literatura Comparada, mestrado e doutorado em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada). Sua disssertação intitulou-se O se-seqüestro da dona ausente: reconstrução de um estudo de Mário de Andrade a partir de suas notas de leitura, e a tese Mário de Andrade: ideologia e cultura popular. É livre-do-cente pela mesma instituição com o trabalho O cronista Mário de Andrade. Lançará, pela Agir/Ediouro, ainda este ano, uma edição comentada de Ma-cunaíma. Estudiosa do modernismo e da obra de Mário de Andrade, é cura-dora do arquivo desse escritor no IEB-USP. Leciona, escreve e forma quadros universitários, dedicando-se principalmente à exploração das vanguardas do século XX, à análise da obra de modernistas brasileiros — sobretudo a de Má-rio de Andrade —, à crítica textual e à crítica genética, bem como ao estudo dos chamados gêneros de fronteira, onde estão a epistolografi a, a crônica jornalística, os diários e as memórias.

Uma “entidade brasileira”

IHU On-Line - O personagem “anti-herói” ou “herói de nossa gente” de Mário de Andrade é muitas vezes tomado como um retrato do estere-ótipo do homem brasileiro, sobre-tudo por sua “preguiça”. Haveria, ainda hoje, essa aproximação, e o que Macunaíma simboliza para a li-

teratura e a cultura brasileiras?Telê Porto Ancona Lopez - Estereó-tipo seria uma visão muito esquemá-tica do protagonista da rapsódia do herói da nossa gente. Bosi1 e outros

1 Alfredo Bosi (1936): professor univer-sitário, crítico e historiador de literatura brasileira. É um dos imortais da Academia Brasileira de Letras. Escreveu, entre outros,

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críticos inteligentes mostram pontos de contato com as idéias de Paulo Pra-do2 no Retrato do Brasil, e destacam que Mário de Andrade se propôs captar a “entidade brasileira”.

IHU On-Line - Quais são os principais elementos revelados na estrutura da narrativa de Mário de Andrade para que haja uma reavaliação de lingua-gens próprias ao ambiente brasileiro, do folclore, das crendices? O que o autor trouxe de seu interesse pelo Brasil para sua criação?Telê Porto Ancona Lopez - Respondo perguntando se a expressão “crendi-ces”, contida na pergunta, refere-se — e de modo etnocêntrico! — a mitos, lendas e práticas de cunho religioso li-gadas à magia que se liga à visão de mundo do índio, do homem do povo do Brasil? Eu diria que o livro espelha uma formidável pesquisa de elementos do Brasil, em diversas áreas, realizada em função de um projeto literário bra-sileiro moderno.

IHU On-Line - Há uma tentativa de mostrar a entrada no Brasil na Revo-lução Industrial, com o crescimento, por exemplo, de São Paulo, numa espécie de choque entre a nature-za de uma geografi a inexplorada e a máquina urbana, opressora, capita-lista, assim como entre o indígena e o branco?Telê Porto Ancona Lopez - Macunaí-ma é literatura, portanto, arte. Não se propõe a mostrar esse ingresso, porque não é um livro de História. Plasma sim-plesmente, em uma ação romanesca, os contrastes e as contradições, nos dois espaços freqüentados pelo herói — a natureza e a cidade “macota”, marcada pela industrialização, na qual existe ainda o anseio e a capacidade de acolher o mito de Paiuí Pódole, o Cruzeiro do Sul, e o de Paluá.

IHU On-Line - Por que Mário teria considerado Macunaíma uma rapsó-dia e, na sua visão, isso se dá numa mistura entre romance e conto? O que havia, nesse ideal, da presença

Bras Cubas em três versões (Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2006) e História conci-sa da literatura brasileira (44. ed. São Paulo: Cultrix, 2007). (Nota da IHU On-Line)2 Paulo Prado (1869-1943): escritor e ensaísta brasileiro. (Nota da IHU On-Line)

de idéias, por exemplo, do movimen-to futurista? Telê Porto Ancona Lopez - A rapsódia de Mário de Andrade continua a coser, em 1928, o traje de arlequim que Pau-licéia desvairada propõe em 1922, um projeto que se apropria, que transfi -gura matrizes de todo tipo, cultas e populares, marcadas ou não pelas van-guardas européias do século XX. Avalio que, em Macunaíma, está o avesso do futurismo, do ponto de vista ideológi-co. A escrita rapsódica, prosa experi-mental e, conforme estudou Suzana Camargo,3 sátira menipéia, admite a mistura de gêneros (conto, romance, carta), assim como incorpora a cria-ção musical popular, rezas, parlendas, versos de bumba-meu-boi etc. Esta rapsódia é, principalmente, um can-to, segundo o “Epílogo”; “canto novo” que pratica rimas e ecos a toda hora, ignorando ditames da prosa culta de então. Análises de Gilda de Mello e Souza4 e de Suzana Camargo, feitas à luz do pensamento de Bakhtin,5 colo-

3 Maria Suzana Camargo: autora de Macuna-íma: ruptura e tradição (São Paulo: Massao Ohno/João Farkas, 1977). (Nota da IHU On-Line)4 Gilda de Mello e Souza (1919-2005): fi lósofa, crítica literária, ensaísta e professora universi-tária brasileira. É conhecida por seus estudos sobre a obra de Mário de Andrade, sobretudo pelo livro O tupi e o alaúde: uma interpreta-ção de Macunaíma (São Paulo: Ed. 34, 2003), apontado como referência. Era esposa de An-tonio Candido e sobrinha de Mário de Andrade. (Nota da IHU On-Line)5 Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975): lingüista russo. Seu trabalho é considerado in-fl uente na área de teoria literária, crítica lite-rária, análise do discurso e semiótica. Bakhtin também é considerado como fi lósofo da lin-guagem, e sua lingüística é uma “trans-lingü-ística” porque ela ultrapassa a visão de língua como sistema. Isso porque, para Bakhtin, não

cam Macunaíma na esfera da carnava-lização.

IHU On-Line - Na sua visão, os pre-ceitos da Semana de Arte Moderna de 22, com a tentativa de destacar a cultura nacional — visível na poe-sia Pau-Brasil de Oswald de Andrade, por exemplo —, se mostram presen-tes em Macunaíma?Telê Porto Ancona Lopez - A Semana não tinha “preceitos”. As propostas mo-dernistas no “Prefácio interessantíssimo” de Paulicéia desvairada e no manifesto de Klaxon, em 1922, destacam a pesqui-sa, a busca de soluções estéticas visando inserir o Brasil no século XX. O “Prefácio interessantíssimo” e os poemas de Mário de Andrade mostram um crivo crítico das diferentes vanguardas européias, crivo que decorre do assumir da condição de brasileiro. Em “O trovador”, profi ssão de fé do poeta moderno e modernista, o verso “Sou um tupi tangendo um alaúde” cristaliza esse crivo crítico, antropofagia “avant la lettre”. O Brasil em traços que lhe são próprios, comparece — artisti-camente! — nas obras de Mário, Oswald de Andrade, Alcântara Machado6 e nas obras dos demais modernistas brasilei-ros. A criação popular, cuja dignidade é reconhecida desde o poema “Noturno” de Paulicéia, a História do Brasil, lirica-mente parodiada na poesia Pau Brasil, e tantos elementos de nossa cultura in-gressam transfi gurados na criação literá-ria culta dos modernistas, respondendo aos apelos, às necessidades intrínsecas de cada texto, de cada obra. Não vejo uma “tentativa de destacar a cultura na-cional”, e sim descobertas multiplicadas de um Brasil multifário, feitas por artis-tas, na literatura, nas artes plásticas e na música, no decênio de 1920. E o que

se pode entender a língua isoladamente, mas qualquer análise lingüística deve incluir fato-res extra-lingüisticos como contexto de fala, intenção do falante, a relação do falante com o ouvinte, momento histórico. Bakhtin pro-fessa uma abordagem marxista da língua e da lingüística, pois para ele “a palavra é o signo ideológico por excelência” e também “uma ponte entre mim e o outro”. Alguns conceitos fundamentais de Bakhtin são o dialogismo, a polifonia, a heteroglossia e o carnavalesco. Entre suas obras, destacamos Problemas da poética de Dostoievski (2. ed. Rio de Janei-ro: Forense-Universitária, 1997). (Nota da IHU On-Line)6 Antônio Castilho de Alcântara Machado d’Oliveira (1901-1935): jornalista, político e escritor brasileiro. Escreveu Brás, Bexiga e Barra Funda (1927). (Nota da IHU On-Line)

“Estereótipo seria uma

visão muito

esquemática do

protagonista da

rapsódia do herói da

nossa gente”

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é cultura nacional?

IHU On-Line - Em se tratando da lin-guagem de Macunaíma, como Mário utiliza nele suas idéias a respeito de uma língua abrasileirada? Ele conse-gue “carnavalizar a linguagem”, para utilizar uma expressão de Bakhtin?Telê Porto Ancona Lopez - Trata-se da questão muito importante do emprego artístico (estilizado) da língua portu-guesa falada no Brasil, tão focalizado por Mário em suas cartas. Esse é o pilar lingüístico do projeto modernista do escritor, explorado em sua fi cção nos anos de 1920, em Belazarte, Amar, ver-bo intransitivo e Macunaíma.

IHU On-Line - Será lançada, ainda este ano, uma edição comemorativa de Macunaíma organizada pela se-nhora? Na sua visão, por que é ainda é uma obra tão debatida em escolas e universidades?Telê Porto Ancona Lopez - A edição co-memorativa terá estudos críticos publi-cados em 1928, 1934, 1945 e em nossos dias. A razão principal de Macunaíma continuar lido e discutido nas escolas — desde o ensino médio ao universitário — está no fato de ser uma obra que conti-nua dialogando conosco porque toca não só verdades do homem no Brasil, como verdades humanas, atuais, como o medo de crescer, a evasão à responsabilidade, a importância do ócio criador, a crítica do trabalho formiga, alienado etc.

Para ser deglutido, ao invés de devorado, Macunaíma é um livro cubista, de crítica nacionalista e faz uma colagem de inúmeros aspectos. Polimorfi a do personagem é nosso veneno e nossa delícia, defi ne a crítica literária Noemi Jaffe

POR ANDRÉ DICK E MÁRCIA JUNGES

De acordo com a escritora Noemi Jaffe, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, a polimorfi a do anti-herói Macunaíma, ora formiga, ora pé de urucum, ora preto retinto, é um dos traços principais e mais belos da obra. Assim, Mário de Andrade “sintetiza o Brasil, tão difícil de defi nir e, em muitos casos, insolúvel também por

causa dessa difi culdade. Nosso veneno e nossa delícia”. Um livro cubista, de forte crítica nacionalista, Macunaíma é uma “colagem de vivências, amiza-des, lendas indígenas e mitológicas de vários países, língua falada e escrita, história antiga e moderna”. Para Jaffe, esse não é um livro para ser “devo-rado”, mas para ser deglutido aos poucos, “indo, voltando, relendo”.

Jaffe é colaboradora do jornal Folha de S. Paulo. Atua como professora do ensino médio e escritora. É doutora em Literatura Brasileira pela USP. Escreveu Macunaíma (São Paulo: Publifolha; Coleção Folha Explica, 2001) e Ler palavras, ver imagens (São Paulo: Global, 2003).

Síntese do Brasil, nosso veneno

e nossa delícia

IHU On-Line - Até que ponto os acontecimentos da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, do crescimento da cidade, da amizade com Oswald de Andrade e outros intelectuais, foi importante para Mário de Andrade ter escrito Macu-naíma? E, dentro desse contexto, na sua visão, quais foram as infl u-ências literárias de Mário de Andra-de ao escrever Macunaíma?Noemi Jaffe - No livro Roteiro de Macunaíma, de Cavalcanti Proença,1 a maior parte das infl uências que Ma-rio de Andrade sofreu na escrita de Macunaíma está relatada. O próprio Mário dizia que seu livro era um “plá-gio”. Na verdade, Macunaíma é uma colagem de vivências, amizades, lendas indígenas e mitológicas de vá-rios países, língua falada e escrita, história antiga e moderna. Acredito que tudo que Mário de Andrade tinha

1 Manuel Cavalcanti Proença: autor, entre outros, de Roteiro de Macunaíma (5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978). (Nota da IHU On-Line)

vivido e sobre o qual tinha refl etido entrou na produção de Macunaíma, que é um livro cubista, mas com for-te crítica nacionalista.

IHU On-Line - Quais são os prin-cipais experimentos da obra em termos de estrutura, enredo, lin-guagem e estilo, por meio de sua textualidade? Nesse sentido, como Mário faz a reutilização do folclore, a reprodução de uma fala brasilei-ra, de narrativas orais indígenas e crendices populares, e como se dá o enfoque sobre o desenvolvimen-to da cidade de São Paulo, em opo-sição a outros espaços que continu-am ainda inexplorados país afora?Noemi Jaffe – Como disse acima, a obra tem vários elementos cubistas, como o multiplicidade de pontos de vista narrativos, a confusão espacial e temporal, a não linearidade e a mistura de registros. O capítulo “Car-ta pras Icamiabas”, por exemplo, gera muita difi culdade de compreen-

“O livro espelha uma

formidável pesquisa de

elementos do Brasil,

em diversas áreas,

realizada em função

de um projeto literário

brasileiro moderno”

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são da parte dos leitores, que muitas vezes não compreendem a linguagem empostada e a função narrativa do ca-pítulo no meio do livro. Mas é só pres-tar um pouco mais de atenção (aliás, atenção é fundamental na leitura des-se livro), para ver que é uma crítica ao parnasianismo e a um certo opor-tunismo misturado com ingenuidade, da parte do personagem. Macunaíma também faz uma crítica emocionan-te ao desenvolvimento, no capítulo de sua chegada à cidade, que é sur-preendentemente válida até hoje. O livro mostra muito bem as diferenças de urbanização e de desenvolvimento social nas várias regiões do Brasil, que infelizmente ainda perduram.

IHU On-Line - Quais foram as críticas obtidas na época do lançamento do livro? Quem leu Macunaíma estra-nhou a utilização de uma terminolo-gia e de uma sintaxe estranhas? Noemi Jaffe – Sim, Macunaíma obte-ve recepção dúbia, de celebração por parte dos modernistas e de seus entu-siastas, e de muita rejeição também. Como, aliás, ainda acontece.

IHU On-Line - O personagem Macuna-íma costuma ser visto como um retra-to do que costuma ser o estereótipo do brasileiro: malandro, preguiçoso (ele repete no livro a expressão “Ai, que preguiça”), desorganizado, de caráter duvidoso. Como vê, depois de 80 anos, essa analogia ainda sen-do feita? Que paralelos você traçaria entre o “herói sem caráter” e o bra-sileiro do jeitinho? É possível aproxi-má-los? Por quê?Noemi Jaffe - Há muitos enganos nes-sa redução de Macunaíma a esse este-reótipo, a meu ver, como também no

próprio estereótipo dessa imagem do brasileiro. A obra Macunaíma contém muitos elementos críticos ao próprio personagem e à sua difi culdade em le-var as coisas adiante. Mas mostra um Macunaíma amoral, não imoral, muitas vezes melancólico, que tem um obje-tivo e parte em busca dele até conse-gui-lo (a muiraquitã) e que sabe lançar grandes maldições sobre quem não o soube receber, além de boas interpre-tações sobre o Brasil também (pouca saúde e muita saúva, os males do Bra-sil são). Por outro lado, o estereótipo do brasileiro malandro e improvisador também não corresponde à realidade. Como diz Chico Buarque,2 “o malan-dro pra valer, não espalha, aposentou a navalha, tem mulher e fi lho e tralha e tal” e a guerra no Rio já não trata mais de malandros ingênuos.

IHU On-Line - Como entender a po-limorfi a do “anti-herói” que ora é formiga, ora é pé de urucum, ora é preto retinto?Noemi Jaffe – É um dos traços prin-cipais e mais belos de Macunaíma, a meu ver. Dessa forma, ele sintetiza o Brasil, tão difícil de defi nir e, em muitos casos, insolúvel também por causa dessa difi culdade. Nosso veneno e nossa delícia.

IHU On-Line - Que aspectos você destacaria quanto à crítica que Má-rio de Andrade faz a língua portu-guesa escrita? Seguindo esse cami-nho, que parecia, sobretudo, uma crítica ao parnasianismo, continua contemporânea a tentativa de Mário “abrasileirar” a linguagem também

2 Chico Buarque de Hollanda (1944): músico e escritor brasileiro, autor, entre outros, de Es-torvo, Benjamim e Budapeste, lançados pela Companhia das Letras. (Nota da IHU On-Line)

literária?Noemi Jaffe – Acredito que continua muito atual. Ainda vemos uma certa hegemonia de padrões desnecessários na linguagem jornalística, teórica e principalmente na linguagem acadê-mica, muitas vezes presa a rigores do século XIX.

IHU On-Line - Como o desprezo pelo mecanismo geográfi co-temporal con-vencional dá cadência à obra?Noemi Jaffe – É essa dança assimé-trica e, em certa medida, difícil, que confere graça (entre outras coisas) a Macunaíma. Não é certamente um li-vro para devorar (trocadilho incluso). É um livro para deglutir lentamente, indo, voltando, relendo. É uma cadên-cia vertiginosa e também lenta.

IHU On-Line - Há estudos de respei-to sobre a obra Macunaíma (como os de Gilda Mello e Souza,3 Haroldo de Campos,4 M. Cavalcanti Proença, en-tre outros). Poderia destacar, como especialista, alguns que considera de maior relevância para compreen-der o personagem marioandradino?Noemi Jaffe – Adoro os dois estudos, com suas contradições e tendo a con-cordar com os dois, embora eles sejam até contraditórios (mas suas aborda-gens são muito distintas). Gosto mui-to também dos ensaios de José Miguel Wisnik,5 que abarca as diferenças de forma mais circular, e de Alfredo Bosi. Além de lembrar sempre como é funda-mental o livro de Cavalcanti Proença.6

3 O tupi e o alaúde: uma interpretação de Ma-cunaíma (São Paulo: Ed. 34, 2003). (Nota da IHU On-Line)4 Haroldo de Campos (1929-2003): poeta, tradutor e crítico literário brasileiro. É autor de Xadrez de estrelas (2. ed. São Paulo: Pers-pectiva, 2008) e Morfologia do Macunaíma (2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008), um estudo baseado na Morfologia do conto maravilhoso, de Vladímir Propp. (Nota da IHU On-Line)5 José Miguel Wisnik (1948): professor de Teo-ria Literária da USP, é também crítico literário e músico. Escreveu, entre outros livros, O som e o sentido (São Paulo: Companhia das Letras, 1999), Sem receita (São Paulo: Publifolha, 2004) e Veneno remédio (São Paulo: Compa-nhia das Letras, 2008), recém-lançado. (Nota da IHU On-Line)6 Roteiro de Macunaíma (5. ed. Rio de Janei-ro: Civilização Brasileira, 1978). (Nota da IHU On-Line)

“Macunaíma também faz uma crítica

emocionante ao desenvolvimento, no capítulo

de sua chegada à cidade, que é

surpreendentemente válida até hoje”

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Brasil em Foco

Pesquisadores comentam a Lei da Anistia no Brasil

POR GRAZIELA WOLFART E PATRICIA FACHIN

Décadas depois, a Ditadura Militar ainda gera polêmica e di-vergência. Um pacto, em 1979, entre os militares de plantão e algumas lideranças políticas, possibilitou a Lei da Anistia. Depois disso veio a Constituição de 1988. Diferentemente de outros países da América Latina, no Brasil, nenhum tor-

turador, respaldado pela Lei da Anistia, foi punido. Os ministros Tarso Genro (Justiça) e Paulo Vanucchi (Secretaria Especial de Direitos Huma-nos) levantaram, recentemente, uma questão candente.

Para discutir a questão, a IHU On-Line propõe o debate a seguir. Com base nas perguntas enviadas pela nossa equipe, professores dos cursos de Direito e de Filosofi a da Unisinos comentam a proposta dos ministros Tarso e Paulo, favoráveis à punição dos torturadores que atuaram durante o Re-gime Militar. Confi ra os depoimentos concedidos por e-mail à IHU On-Line. Veja o que foi perguntado aos entrevistados:

Recordar ou esquecer?

A Lei da Anistia em discussão

IHU On-Line – A Lei da Anistia pode ser reavaliada e modifi cada, juridicamen-te? O senhor concorda com a proposta do ministro Tarso Genro, favorável à punição de torturadores que atuaram no Regime Militar? Em que aspectos essa medida é positiva ou negativa para a história do país?IHU On-Line – Em que medida a Lei da Anistia comprometeu os direitos hu-manos, no país?IHU On-Line – Tortura pode ser consi-derada um crime político? IHU On-Line – Quais são as implicações de abrir os arquivos da ditadura? Sob o ponto de vista democrático e político é melhor recordar ou esquecer esse assunto?

“O ministro Tarso Genro sustentou a necessidade de reavaliar a aplicação da Lei da Anistia para aqueles que agiram por excesso de mandato. Esses, portanto, não cometeram crimes políticos. Nisso se enquadra, obviamente, a tortura, que sempre é violadora da Lei, da Constituição e dos tratados internacionais. Nem o regime de exceção avalizava legalmente a tortura. Mas, pergunto e respondo, é possível punir, ainda hoje, esses torturadores? Penso que sim. Tortura é crime imprescritível. Mesmo que a Constituição apenas tenha tornado a tortura imprescritível em 1988, portanto, depois da Lei da Anistia, os tratados internacionais dos quais o Brasil era signatário colocavam-na como crime contra os direitos humanos e imprescritíveis. Esse foi o caso da Argentina, em que a Suprema Corte julgou inconstitucional a Lei da Obe-diência Devida, que anistiara os militares que praticaram tortura. Mas essa é uma questão complexa, que demanda uma longa entrevista, para evitar mal-entendidos, principalmente na comunidade jurídica, em face do princípio da reserva legal, para citar apenas esse ponto de extrema controvérsia.

A Lei da Anistia comprometeu os direitos humanos quando permitiu aplicação ta-bula rasa, não separando o joio do trigo. Na verdade, em muitos casos, fi camos com o joio. Os arquivos da ditadura devem ser abertos. Trata-se de um direito fundamental da nação. Ela precisa saber o que aconteceu.”

Lenio Streck é mestre e doutor em Direito, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e pós-doutor, pela Universidade de Lisboa. Docente do curso de Direito da Unisinos, ele é membro da Comissão Permanente de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros e presidente de honra do Instituto de Hermenêutica Jurídica.

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“Em primeiro lugar, gostaria destacar alguns princípios fi losófi cos deste debate. O principal deles é que o esquecimento da barbárie perpetrada no passado promove a sua reprodução no futuro. Só a memória das violências cometidas pode evitar que elas se repitam no futuro. Um segundo pressuposto é que o esquecimento submete às vítimas a uma dupla injustiça: elas sofreram a barbárie da tortura e agora se pretende apagar seu sofrimento através do esquecimento. Só a memória detalhada de cada vítima, de seu sofrimento, do horror cometido contra ela, pode ajudar a reparar, em parte, a barbárie e injustiça que sofreram. Esquecer signifi ca negar as vítimas e seu sofrimento; o esquecimento as condena a uma segunda morte, a morte da história, e uma segunda injustiça: a injustiça do olvido.

Antes de falar de anistia, haveria que diferenciar entre os conceitos de esqueci-mento e perdão. Só se pode perdoar se há memória viva do acontecido. Quando se esquece não se perdoa, simplesmente se ignora a responsabilidade do torturador e a dor da vítima. O perdão, necessário em muitos casos, só pode acontecer como evento político se a memória da barbárie e o sofrimento das vítimas são rememorados como ato do presente. A anistia não pode ser esquecimento, ela poderá vir a existir como ato político do perdão, porém e só uma vez que se restabeleça a memória de todo o acontecido com as vítimas e as responsabilidades dos torturadores.

O tribunal de Nüremberg, ante a barbárie nazista, teve de inovar uma categoria jurídica: os crimes contra a humanidade. Há consenso fi losófi co, jurídico e político de que os crimes contra a humanidade não prescrevem no tempo nem sua responsabili-dade fi ca restrita a um país. Se a tortura sistemática, em grande escala, praticada por aparatos do Estado, não fosse considerada um crime contra a humanidade, o que mais poderia ser considerado? A tortura, mais do que um crime político, deve ser conceitua-da como crime contra a humanidade, por isso sua responsabilidade não prescreve.

No que se refere à abertura dos arquivos da ditadura, dois pontos estão em questão: a justiça das vítimas; e evitar que no presente e futuro venham se repetir os atos de tortura como estratégia de controle biopolítico. Para tanto, se requerem duas medi-das: trazer à memória o detalhe dos fatos acontecidos para fazer justiça às vítimas, e responsabilizar judicialmente aos torturadores pelo que fi zeram. Após a sentença judicial, se poderá falar em anistia como perdão da pena ditada pelo tribunal. Porém, é necessário que esse julgamento aconteça para que a impunidade não perpetue a barbárie entre nós.”

Castor Bartolomé Ruiz é graduado em Filosofi a e Teologia, pela Universidade de Comillas, mestre em História, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e doutor em Filosofi a, pela Universidad de Deusto, Espanha. Ruiz é docente do PPG em Filosofi a da Unisinos.

“As conjunturas políticas algumas vezes exigem que se concorde em assinar, ou acatar, uma Lei de Anistia, mas, antes de qualquer lei positiva, há uma lei natural, que podemos chamar de direito humano fundamental, cujo fundamento último é uma razão crítica, a qual nenhuma lei positiva pode suprimir. Por isso, determinados atentados contra a vida humana são considerados como imprescritíveis, isto é, que não prescrevem nunca. Este tipo de crime clama por justiça por si só. Não são as pessoas que gritam, é a própria injustiça que grita nos homens, e nem o tempo nem a omissão conseguem abafar esse clamor. A saúde cívica de uma nação depende de dar ouvidos a este clamor, de aceitar a dor, de enxergar a ferida e tratá-la; afogar esse grito, negar, esquecer vira sintoma dos muitos aos quais estamos quase acostu-mados como a corrupção, a violência e o sentimento de insegurança.”

* Alfredo Culleton é graduado em Filosofi a, pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijui), mestre em Filosofi a, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e doutor em Filosofi a, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atualmente, é professor do PPG em Filosofi a e do PPG em Direito da Unisinos.

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“Não se trata de se modifi car ou de se reavaliar a Lei de Anistia de 1979. Trata-se apenas, a meu ver, de interpretá-la de modo mais coerente e corre-to (o que envolve sua análise pelo fi ltro da Constituição de 1988 e da Lei de Anistia de 2002). Torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados reali-zados por agentes do governo ditatorial não são crimes políticos (as leis em vigor na ditadura militar consideravam criminosas essas condutas), mas sim ‘crimes contra a humanidade’, o que é assente na ordem jurídica interna-cional desde o Tribunal de Nüremberg, em 1945. O Brasil pertence à Organi-zação das Nações Unidas (que se ergueu exatamente a partir de Nüremberg) e ratifi cou tanto a Declaração da ONU quanto, mais adiante, em 1952, a Convenção das Nações Unidas sobre Prevenção e Repressão do Genocídio e, em 1957, as Convenções de Genebra de 1949. Em todos esses tratados, o chamado ‘direito humanitário’ aparece com grande força, assim como a noção dos ‘crimes contra a humanidade’. A imprescritibilidade de tais crimes é da sua própria essência, é inerente à sua tipifi cação, princípios e contexto histórico, restando hoje explicitamente reconhecida por diferentes normas nacionais e tratados internacionais, dos quais o mais recente é o Estatuto de Roma, ratifi cado pelo Brasil inclusive. Além disso, os crimes de desapa-recimento forçado constituem crime permanente, não havendo sequer que se cogitar de sua prescrição até que sua elucidação se complete. Assim, sou favorável, sim, à tese do ministro Tarso Genro e considero levianas e injustas as acusações que são feitas a ele de ser movido por interesses particulares e eleitorais. Considero o ministro Tarso Genro um verdadeiro democrata e o parabenizo pela sua coragem em assumir publicamente este debate. Na minha opinião, a Lei de Anistia de 1979 não foi ampla, geral e irrestrita. Se ela propiciou o retorno de muitos exilados e a libertação dos presos políticos (o que no contexto da época já foi um feito memorável e importante), ela também serviu, política e historicamente, para garantir a impunidade dos agentes do governo, pois prevaleceu até hoje a tese de que os crimes con-tra a humanidade cometidos por tais agentes estavam inseridos na duvidosa expressão ‘crimes conexos’, contida na lei de 1979, e que, portanto, os seus autores também estariam anistiados. Este fato alimenta uma cultura de violência e impunidade, que é muito forte hoje em nosso país. Muitas pes-soas, por exemplo, acham que é perfeitamente normal que o Estado torture e mate em sua ação policial. Basta ver, por exemplo, o que acontece hoje contra os jovens pobres e negros da periferia carioca.

Em função disso, eu pergunto: que direito têm as Forças Armadas de man-terem inacessíveis à sociedade brasileira documentos que contribuem para elucidar a sua própria história? As Forças Armadas, na verdade, temem que a sua imagem junto à opinião pública fi que seriamente abalada e que, é claro, se consubstanciem provas sólidas contra pessoas que integraram e integram os seus quadros, muitas delas vivas até hoje. Mas é um direito do povo bra-sileiro saber o que aconteceu, é o ‘Direito à memória e à verdade’. Como vamos esquecer aquilo que nem sequer foi conhecido? Como vamos superar um problema que não foi enfrentado? Como vamos anistiar quem nem sequer foi acusado e julgado (ao contrário do que aconteceu com os militantes po-líticos que resistiram a um governo ilegítimo e inconstitucional)? Esquecer o que está pendente não é superar e pacifi car, mas sim recalcar o que há de pior do que se tenta fugir. Nossa sociedade violenta e desrespeitadora dos direitos humanos está aí para comprovar isto. Esta história não tem dono, e é direito, especialmente dos mais jovens, conhecê-la.”

José Carlos Moreira da Silva Filho é doutor em Direito, pela Universidade Federal do Paraná. Atualmente, é professor do Programa de Pós-Graduação e da Graduação em Direito na Unisinos, avaliador do Ensino Superior pela SESu/INEP e conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

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“A Lei de Anistia foi um produto da transição do autoritarismo para a democracia. De certa forma, um acordo político entre a oposição (respal-dada fortemente pelo movimento social) e o poder militar. A exigência dos governos da época foi de uma anistia ampla e geral, o que pressupunha não só a reconciliação nacional, mas o encobertamento dos crimes, no caso específi co o crime da tortura, tido em tratados internacionais como um cri-me hediondo, cometidos pelo Estado contra seus cidadãos. O que se está discutindo desde as manifestações do ministro da justiça é a possibilidade de investigação, e eventual punição, destes crimes e não a revisão da Lei da Anistia. Ainda sobre os torturadores, mesmo nos Atos institucionais não se pode encontrar nenhuma autorização expressa a tal prática, embora a eliminação do habeas corpus possa ser um indicador de sua utilização pelos aparatos repressivos, militares ou civis.

Deve se investigar, e é disto que fala o ministro Tarso Genro. Há provas evidentes de práticas de tortura e assassinatos de opositores do Regime Militar. A experiência internacional não apresenta casos de anistia a tortu-radores e a autoridades responsáveis por estas práticas de investigação e de destruição da integridade física e psíquica dos que a ela foram submetidos. As experiências internacionais demonstram que, nos países em que os responsáveis pelas práticas de tortura foram julgados e condenados, o índice de violência diminuiu signifi cativamente. Especialmente a violência originada do Estado e exercida por seus agentes em nome da sociedade. A impunidade dos torturadores de uma época estimula a manutenção destas práticas ao longo do tempo.

A experiência internacional, basta aqui recuperar a memória dos tribunais de Nürenberg e de Haia, consideram a tortura um crime hediondo, a Constituição de 1988, chamada de Constituição Cidadã, referenda os tratados interna-cionais. A tortura, mais do que um princípio primitivo de investigação, sempre teve como objetivo eliminar a consci-ência das sociedades e substituí-la pelo medo. Não por acaso, ela está presente na história humana quando as forças autoritárias negam a democracia e a soberania dos povos e das nações.

A Anistia é a construção do entendimento entre as diferentes correntes de pensamento de uma sociedade. No caso brasileiro, foi mais uma mediação um acerto pragmático do que uma reconciliação nacional. Quando, por exigência dos governos militares, a anistia se fez “ampla e geral”, foram incluídos na lei não só opositores do Regime Militar, mas criminosos que atuaram em nome do Estado e, portanto, de toda a sociedade, fora dos limites da lei, mesmo da lei de exceção. Os Direitos Humanos não existem para defender a impunidade; pelo contrário, seus pressupostos exigem o cumprimento de normas que garantam a justiça para todos, e aqueles que cometem crimes devem ser responsabi-lizados pelos atos que cometem.

Um país precisa encontrar-se com seu passado. Revisitá-lo, apreender com ele, é a única forma de nunca mais cometer os mesmos erros. Já tardamos além do desejável para abrir os arquivos da ditadura. Encobrir a História não é esquecê-la; é permitir que os erros se repitam indefi nidamente. Não se trata aqui de condenar as forças sociais que exorbitaram em suas ações, mas de percorrer caminhos que coloquem a justiça como ponto de partida das relações políticas e sociais. O esquecimento não só elimina o passado, mas impede a sociedade de se libertar do medo e de constituir a democracia como forma de regulação da vida política e econômica.”

Solon Eduardo Annes Viola é doutor em História, pela Unisinos, onde, atualmente, é professor de História da Educação e de Direitos Humanos e Democracia na América Latina. O pesquisador também participa da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos e é membro do Comitê Brasileiro de Educação em Direitos Humanos.

LEIA MAIS...

>> Confi ra um depoimento do professor Lenio Streck sobre o Dicionário de Filosofi a do Direito, publicado nas Notícias do Dia do sítio do IHU em 09-05-2006. >> Confi ra a entrevista concedida por Alfredo Culleton à IHU On-Line edição 160, de 17-10-2005, junto com o historiador Nilton Mullet Pereira, intitulada Em nome de Deus: um retrato de época, comentando aspectos do fi lme apresentado no Ciclo de Estudos Idade Média e Cinema, promovido pelo IHU. Outra entrevista com Culleton pode ser conferida sob o título A in-terculturalidade medieval, na edição 198, de 02-10-2006. Suas contribuições mais recentes à nossa publicação aconteceram

na edição 232, de 20-07-2007, quando, junto com o juris-ta Vicente Barreto, falou sobre Ética mundial e Direito: uma contribuição de Hans Küng e na edição 240, de 22-10-2007 falou sobre Uma crítica ao idealismo em favor de uma certa autonomia da política. >> Confi ra uma recente entrevista concedida pelo professor Solon Viola à IHU On-Line número 257, de 12-05-2008, sobre os movimentos sociais brasileiros. >> Confi ra uma entrevista com o professor José Carlos Moreira da Silva Filho sobre a criminalização dos movimentos sociais, publicada na IHU On-Line número 266, de 28-07-2008.

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Entrevista da Semana

Kenneth Serbin avalia as transformações da Igreja ao longo dos anos

POR PATRICIA FACHIN

Sem ter a pretensão de julgar as atitudes da Igreja Católica ao longo dos anos, Kenneth Serbin, Prof. Dr. da Universidade de San Diego, EUA, atua como um observador da história. Em entrevista exclusiva, concedida por telefone à IHU On-Line, na semana passada, ele avalia as mudanças ocorridas no clero brasileiro, e discute questões polêmicas, como a obri-

gatoriedade do celibato e os crescentes abusos sexuais dentro da Igreja. Entre tantas observações, Serbin ressalta uma mudança no perfi l dos padres.

Segundo ele, isso está diretamente relacionado às transformações mundiais ocor-ridas nos anos 90, e ao modelo neoliberal que pouco a pouco também vem se proliferando pela Igreja. Padres idealistas estão sendo substituídos por jovens seminaristas, que “percebem o fi el como um consumidor de religião”, alerta. E afi rma ainda que, diferentemente dos veteranos fundadores da Teologia da Liber-tação, o novo clero “acredita que o trabalho do padre não é fi car todo o tempo ao lado do povo, mas ser um exemplo para ele”.

A opção pelos pobres, assumida com tanta efervescência pelos seguidores liber-tários, está perdendo a intensidade, alerta o pesquisador. “Não sei se essa opção ainda vai avançar. Pelo menos não nessa linha que existiu nos anos 60. Haverá, cada vez mais, essa visão da religião como bem de consumo. A linha da libertação vai ter de lutar para sobreviver”. A Igreja vive hoje o que Kenneth Serbin chama de “cão-de-guarda moral”, ou seja, ela “não tem mais aquele sentimento in-formal da época pré-conciliar, nem aquele embate frontal do período de D. Ivo Lorscheiter”. Segundo ele, a Igreja está atuando como uma conselheira, “sem se envolver em questões sociais como antes”.

Ph.D. em História pela Universidade da Califórnia, Serbin está no Brasil, lançando seu novo livro Padres, celibato e confl ito social. Uma história da Igreja Católica no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 2008). Ele também é autor de Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura (São Paulo: Companhia das Letras: 2001). Entre um compromisso e outro, o brasilianista nos concedeu a entrevista a seguir.

“Cão-de-guarda moral”. A nova Igreja brasileira

IHU On-Line – Quais são as maiores preocupações dos que optaram por ser padres na Igreja do Brasil? O que eles se propõem fazer como padres?Kenneth Serbin – O último capítulo do meu livro Padres, celibato e confl ito social. Uma história da Igreja Católica no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 2008) tem como preocupação discutir os desafi os que os padres en-frentam no novo milênio. Além disso, apresenta os dois modelos de padres

que estão sendo cogitados no Brasil. Por um lado, temos um arquétipo que pertence à Teologia da Libertação,1

1 Teologia da Libertação: escola importante na teologia da Igreja Católica, desenvolvida depois do Concílio Vaticano II. Ela surge na América Latina, a partir da opção pelos po-bres, e se espalha por todo o mundo. O te-ólogo peruano Gustavo Gutierres é um dos primeiros que propõe esta teologia. A Teolo-gia da Libertação tem um impacto decisivo em muitos países do mundo. Sobre o tema, confi ra a edição 214 da IHU On-Line, de 02-04-2007, intitulada Teologia da libertação. (Nota da IHU On-Line)

traçado nos anos 60, momento históri-co de muita turbulência, marcado por protestos estudantis, pela guerrilha no Brasil e pelo surgimento de novas cul-turas. Nesse contexto de mudanças, surgiu um movimento de seminaristas no país, no qual padres e teólogos de-senvolveram um papel muito impor-tante.

O Rio Grande do Sul foi o centro desse movimento que se chamava

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União dos Seminaristas Maiores do Sul (Usmas).2 O grupo preconizou esse mo-delo de padre mais voltado ao povo, e que, ao invés de morar em grandes se-minários como o ex-Seminário Central de São Leopoldo, formado por grandes prédios, optava por fi car em pequenas comunidades. Ele almejava um modelo moderno de formação sacerdotal, ou seja, desejava acompanhar o movimen-to estudantil, a política, querendo a profi ssionalização do clero. Os padres, dentro desse modelo, ainda pretendiam ser profi ssionais: jornalistas, professo-res, psicólogos, advogados etc. Busca-vam, assim, uma maneira de sobreviver independente da Igreja. Como refl exo do movimento dos padres operários na Europa, em 1960, no Brasil muitos sa-cerdotes foram trabalhar em fábricas. Antes dessa época, eles viviam dos dí-zimos dos leigos e de benesses das pes-soas ricas ou dos ingressos das próprias paróquias ou das dioceses.

Os jovens seminaristas queriam também uma formação integral, ou seja, holística. Em vez de concentrar o seminário na disciplina, propunham uma formação psicológica mais sadia.

Outra grande questão que eles co-locaram em pauta nos anos 60 foi a da obrigatoriedade do celibato. Acredi-tavam que poderiam ter dois tipos de cleros: um celibatário, que não iria casar nem ter fi lhos; e um outro clero de casados, mas que poderiam exercer todas as funções dos padres. Claro que a Igreja não aceitou essa proposta, e até hoje esse é um ponto controvertido na Igreja do Brasil. De qualquer modo, o movimento dos seminaristas criou um modelo libertário de padre que atuou com destaque até os anos 80.

Segundo modelo Na década de 90, por outro lado,

surgiu um modelo de padre mais con-servador, como Marcelo Rossi.3 Esse

2 Usmas: foi um movimento que visava à or-ganização nacional dos seminaristas. Eles pre-tendiam, através do movimento, formar um sindicato nacional de seminaristas. (Nota do entrevistado)3 Marcelo Mendonça Rossi (1967): formado em Educação física, é sacerdote católico brasileiro que tornou-se um fenômeno de mídia e cultura de massas no fi nal dos anos 90. Ficou muito conheci-do pela forma como adota danças e coreografi as típicas da Renovação Carismática Católica (RCC) e pela publicidade dos trabalhos (CDs, DVDs, ci-nema e televisão). (Nota da IHU On-Line)

não enfatiza a relação com o povo, as questões políticas ou sociais. Numa outra perspectiva, estabelece uma ên-fase na espiritualidade tradicional, ou seja, fala mais dos santos, das curas que as pessoas obtêm ao rezar e ir à missa, das questões pessoais de famí-lia, do comportamento, do casamento. Esse clero acredita que o trabalho do padre não é fi car todo o tempo ao lado do povo, mas ser um exemplo para ele. Embora seja um modelo mais elitista, não quer dizer, de qualquer modo, que esses padres não tenham interesse de manter contato com o povo. Entretan-to, eles disseminam suas atividades, sobretudo através da mídia.

IHU On-Line – Que fatores levaram a essa mudança de postura dos padres dos anos 60 para os 90? Kenneth Serbin – São muitos fatores, mas a grande questão está relacionada à geração. Os jovens seminaristas dos anos 60 — isso se percebia muito no seminário de Viamão — eram idealis-tas, ou seja, queriam mudar o mundo. Essa geração nasceu depois da Segun-da Guerra Mundial, e viu o Brasil pro-gredir nos anos 50 com a construção de Brasília, a introdução das indústrias automobilística e de bens de consumo. Entretanto, enquanto o Brasil começa-va a se afi rmar como um país capitalis-ta, esses jovens percebiam a pobreza, o crescimento das favelas, a superlo-tação de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. Eles sentiam essas contra-dições, e queriam que o mundo fosse

mais igualitário. Nesse cenário, foram infl uenciados pela Revolução Cuba-na, que questionava o capitalismo e o predomínio dos EUA sobre a América Latina.

Mudança de rumoAcontecimentos como o fi m da

Guerra Fria, a queda do muro de Ber-lim e o fi m da União Soviética tira-ram fôlego do movimento libertário e criou-se assim o modelo neoliberal, que visa à efi ciência capitalista. Isso infl uenciou também a atuação na Igre-ja. Os jovens que observei em meus estudos percebem o fi el como um consumidor de religião. Diferente de hoje, nos anos 60, ninguém pensava a religião como bem de consumo. Acre-dito que o seminarista jovem, hoje, reconhece que o Brasil virou um gran-de mercado de religiões. Isso ocorreu porque, entre os anos 70 e 90, houve um crescimento das igrejas neopente-costais, que passaram a competir com as igrejas católicas.

Além disso, o mundo mudou, e nos anos 90 surgiu uma nova geração de jovens que não estava mais ligada no idealismo. Essa é uma geração mais realista, sem grandes ideais, desejos e modelos para mudar o mundo. Hoje, a religião se tornou mais individualis-ta, isto é, perdeu o sentido de coletivo dos anos 60.

IHU On-Line – O que motiva um jo-vem, hoje, a ser padre católico no Brasil e o que motivava no período pesquisado pelo senhor?Kenneth Serbin – O que motiva os jo-vens é a salvação da alma das pessoas. Nesse sentido, os seminaristas voltaram para um modelo pré-anos 60, ou seja, o que chamamos de pré-conciliar.

A Igreja do Concílio Vaticano II4 era mais solidária com as questões so-ciais e deixava de lado a espirituali-dade tradicional, focando a salvação das pessoas na terra. Mas os jovens

4 Concílio Vaticano II: realizado entre 1962 e 1965, é considerado o maior acontecimento da história da Igreja, do século XX. Durante o Concílio Vaticano II, foram publicados dois documentos. A constituição dogmática Lumen Gentium, que foi tema de capa da revista IHU On-Line na edição nº 124, de 22-11-2004, e a constituição pastoral Gaudium et Spes, que foi tema de capa da Revista IHU On-Line, nº 157, de 26-09-2005. (Nota da IHU On-Line).

“Os jovens que observei

em meus estudos

percebem o fi el como um

consumidor de religião.

Diferente de hoje, nos

anos 60, ninguém pensava

a religião como bem de

consumo”

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dos anos 1990 e 2000 não visam mais essa posição. Percebo, assim, uma nova preocupação com o “além desta vida”. Essa geração mais recente está recuperando aspectos do catolicismo que foram deixados de lado e ignora-dos pelos seminaristas dos anos 60.

IHU On-Line – A Igreja latino-ameri-cana e brasileira optou pelos pobres. Esta opção é assumida pelos padres formados nos seminários pesquisa-dos pelo senhor?Kenneth Serbin – Entre as décadas de 1960 e 1980, a opção pelos pobres era abertamente aceita em muitos semi-nários do Brasil. Era, inclusive, a mais popular, mas hoje em dia ela está de-saparecendo. Ainda existem padres, seminaristas e bispos na Igreja do Bra-sil que estão a favor dessa opção, mas ela não é mais hegemônica como nas décadas anteriores. No passado, todos os bispos achavam importante reco-nhecer tal opção, e permitiam que os padres agissem nessa linha.

Entretanto, a corrente libertária da Igreja utilizava os conceitos marxistas para interpretar a realidade brasileira. Mas isso não quer dizer que eles fossem comunistas. De qualquer modo, João Paulo II não gostava do envolvimento dos padres brasileiros com a política e tampouco dos questionamentos rea-lizados por Leonardo Boff,5 por exem-

5 Leonardo Boff (1938): teólogo brasileiro, da ordem dos franciscanos. Foi um dos criadores da Teologia da Libertação e, em l984, em ra-zão de suas teses a ela ligadas e apresentadas no livro Igreja: carisma e poder – ensaios de eclesiologia militante (3. ed. Petrópolis: Vo-zes, 1982), foi submetido a um processo no Vaticano. Em 1985, foi condenado a um ano de “silêncio obsequioso” e deposto de todas as suas funções. Dada a pressão mundial sobre o Vaticano, retornou a elas em l986. Em l992, sendo outra vez pressionado com novo “silên-cio obsequioso” pelas autoridades de Roma, renunciou às suas atividades de padre. Con-tinuou como teólogo da libertação, escritor e assessor das comunidades eclesiais de base e de movimentos sociais. Desde l993, é profes-sor de Ética, Filosofi a da Religião e Ecologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de mais de 60 livros nas áreas de teo-logia, espiritualidade, fi losofi a, antropologia e mística. Boff escreveu um depoimento sobre as razões que ainda lhe motivam a ser cris-tão, publicado na edição especial de Natal da IHU On-Line, número 209, de 18-12-2006, e concedeu uma entrevista sobre a Teologia da Libertação na IHU On-Line número 214, de 02-04-2007. Sua contribuição mais recente à nossa revista aconteceu na edição 238, de 01-10-2007, intitulada Francisco. O santo, com a

plo, no que se refere às estruturas de poder na Igreja. Começou, então, na década de 80, uma grande pressão do Vaticano para diminuir ou eliminar, no Brasil, essa opção pelos pobres.

No meu livro, relato um embate que ocorreu no Recife, quando fecha-ram o seminário Serene II (Seminário Regional do Nordeste II), em 1989, por ordem expressa do Vaticano, pois esse seguia a opção pelos pobres e a Teolo-gia da Libertação. Também ordenaram o fechamento do Instituto de Teologia do Recife (ITER). Essas foram grandes perdas para a Igreja do Brasil, na me-dida em que eram instituições com idéias muito interessantes, contando, inclusive, com teólogas como Ivone Gebara.6 Com essas mudanças, a par-tir dos anos 90 se construiu um perfi l diferente de padres. Quando o jovem seminarista procurou o seminário, ele não encontrou mais modelos como Se-rene II ou ITER.

IHU On-Line – Por que essa pressão do Vaticano para acabar com essa op-ção pelos pobres?Kenneth Serbin – Porque João Paulo II, junto com outros elementos conserva-dores na Igreja do Brasil, tinham medo do comunismo. Devemos lembrar que, nos anos 1960 e 1980, ainda estávamos em plena Guerra Fria. Nesse período, quando o papa veio à América Latina e percebeu que os padres eram enga-jados, políticos e que tinham simpatia

entrevista “A ecologia exterior e a ecologia interior. Francisco, uma síntese feliz”. (Nota da IHU On-Line)6 Ivone Gebara (1944): doutora em fi losofi a com uma tese sobre Paul Ricoeur. Ingressou na Congregação das Irmãs de Nossa Senhora, em 1967. Estudou Teologia. Em 1973 se transfere para Recife. Durante 17 anos foi professora de Teologia e Filosofi a no Instituto Teológico de Recife — ITER, fechado em 1989 pelo Vaticano. Assessora de grupos populares, especialmente de mulheres, é professora visitante em dife-rentes universidades e centros de aprendizado no Brasil e no exterior. Escritora de livros e artigos de fi losofi a e teologia na perspectiva feminista da liberação, dentro os quais desta-camos: Teologia Ecofeminista (São Paulo: Ed. Olho d’Água, 1988) e Longing for Running Wa-ters (Minneapolis: Fortress Press,1999). Ivone Gebara contribui na edição 219 da IHU On-Line, intitulada O aborto em debate, de 14-05-2007, na qual concedeu a entrevista “Em defesa da legalização e da descriminalização do aborto” e na edição número 210, de 05-03-2007, com a entrevista “A crise do mascu-lino se situa na falta de sua nova identidade”. (Nota da IHU On-Line)

pelo marxismo, ele fi cou horrorizado, pois foi justamente contra esse tipo de pensamento que ele lutava, no Leste Europeu. A Polônia foi dominada pelos soviéticos por décadas. Para ele, esse sistema era totalitário, ateu e anti-ca-tólico.

IHU On-Line - Para avançar nessas questões (opção pelos pobres), seria necessária uma reforma na formação dos padres, tornando-os mais atuantes nas comunidades? Como o senhor ava-lia a formação deles nos seminários? Kenneth Serbin – Não sei se essa op-ção pelos pobres ainda vai avançar. Pelo menos não nessa linha que existiu nos anos 60. Haverá, cada vez mais, essa visão da religião como bem de consumo. A linha da libertação terá de lutar para sobreviver. Com esse papa-do, não ocorrerão reformas, questões sociais e políticas não terão grande abertura, pois ele dá continuidade ao mandato de João Paulo II. Bento XVI7 tem olhos alemães e observa o mun-do dessa forma. Quando ele esteve no Brasil, se sentiu como um peixe fora d’água. O papa João Paulo II era um pastor, enquanto Ratzinger é um inte-lectual. Por isso, é difícil para o povo brasileiro se sentir empolgado com esse tipo de papa. Penso que a popu-lação brasileira não vai à Igreja para ouvir grandes discursos, e sim para sentir Deus no coração.

Esse impulso de reforma na forma-ção dos padres deve vir dos dois lados. A Igreja do Brasil terá de se auto-afi r-mar, como continua fazendo. Mesmo apresentando uma posição mais tra-dicional, enfatizando menos a opção pelos pobres, a Igreja brasileira ainda sente o desejo de independência. Esse sentimento persiste desde a época do padre Feijó,8 que propunha uma Igreja

7 Joseph Ratzinger: teólogo alemão, atual-mente Papa Bento XVI, foi escolhido pontífi ce em 19 de abril de 2005, sucedendo a João Pau-lo II. Anteriormente, era o Cardeal Joseph Rat-zinger. Autor de uma vasta e importante obra teológica. (Nota da IHU On-Line)8 Diogo Antônio Feijó (1784-1843): sacerdote católico e estadista brasileiro, também conhe-cido como padre Feijó ou Regente Feijó, foi um dos fundadores do Partido Liberal. Atuou como sacerdote em Santana de Parnaíba, Gua-ratinguetá e Campinas. Também foi professor de História, Geografi a e Francês. Como polí-tico, foi deputado por São Paulo (1826-1830), senador (1933), ministro da Justiça (1831-1832) e regente do Império (1835-1837). (Nota

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na qual os sacerdotes poderiam casar, não precisassem usar batina e pudes-sem ajudar o povo a melhorar com a agricultura. A Igreja da Libertação pretendia a mesma coisa: autonomia e um modelo brasileiro de formação. Por isso, no Brasil, os padres vivem uma grande tensão com o Vaticano. Eles nascem em terras brasileiras, mas devem obediência ao bispo e ao papa. Nesse sentido, vivem divididos entre a fi delidade à Igreja e ao povo brasi-leiro, e se questionam: “Como padre, vou acatar o que meu coração brasi-leiro diz, ou o que ordena o papa, no Vaticano?”. Independente dessas difi -culdades, penso que a Igreja brasilei-ra ainda terá vertentes nacionalistas. Surgiram novos movimentos e desejos de expressar um modelo brasileiro de ser Igreja.

IHU On-Line – A religião como bens de consumo é uma tendência mundial?Kenneth Serbin – Sim. Tudo na vida está virando bem de consumo. Infe-lizmente, a religião também está se-guindo esse caminho. O desafi o das religiões é recuperar os valores tradi-cionais e, nesse sentido, eu concordo com qualquer católico ou mesmo com o papa, que quer recuperar os valo-res tradicionais. Quando digo isso, me refi ro aos valores da religião: como tratamos o nosso próximo, nossos vizi-nhos na América Latina, por exemplo. Precisamos prestar mais atenção nas questões éticas e morais, e a religião precisa recuperar esses traços.

IHU On-Line - O senhor disse recen-temente, numa entrevista ao jornal Estado de S. Paulo, que a tendência geral da Igreja no Brasil é de agir com muita cautela nas questões sociais. A que se deve essa postura?

da IHU On-Line)

Kenneth Serbin – Isso acontece por-que o mundo, o perfi l da sociedade e a política brasileira mudaram. No Brasil, atualmente, existe o que chamamos de convergência política. Vinte anos atrás, quando Lula era candidato à presidência, líderes da Igreja progres-sista, como Leonardo Boff e Frei Betto pediam votos para ele, e o apoiavam publicamente. Havia uma sintonia en-tre a Igreja libertária e o PT. Hoje, ela não existe mais. Lula tem como gran-de aliado o Partido Liberal (PL), que é um reduto da Igreja Universal do Reino de Deus9. Isso demonstra que o terreno político no Brasil mudou. As diferen-ças ideológicas dentro do Congresso Nacional, hoje, são muito menores do que no passado. Ou seja, a polariza-ção política, que existia no Brasil nos anos 1960 e levou ao golpe militar de 1964, acabou. Hoje, Lula se entende com Collor,10 com a Direita e a com a Igreja Universal. Agora, a Igreja está num contexto onde não há mais polari-zação, não há mais Guerra Fria. Nesse sentido, observo que ela age com mais cautela, justamente devido a essas mudanças na política.

9 Igreja Universal do Reino de Deus: sobre ela, confi ra os Cadernos IHU Idéias número 36, publicado pelo IHU, de autoria de Airton Luiz Jungblut, intitulado Igreja Universal do Reino de Deus no contexto do emergente mercado religioso brasileiro: uma análise antropológi-ca. Esse número está disponível no sítio www.unisinios.br/ihu (Nota da IHU On-Line)10 Fernando Collor de Mello: empresário e político brasileiro, atualmente fi liado ao Par-tido Trabalhista Brasileiro. Foi o primeiro pre-sidente da República eleito por voto direto após o Regime Militar, em 1989, pelo período de 1990 e 1992. O governo foi marcado pela implementação do Plano Collor, pela abertu-ra do mercado nacional às importações e pelo início do Programa Nacional de Desestatiza-ção. Renunciou ao cargo na tentativa de evitar um processo de impeachment fundamentado em acusações de corrupção. Teve seus direi-tos cassados por oito anos por determinação do Senado Federal, e só foi eleito novamente para cargo público em 2006, tomando posse como senador por Alagoas em 2007. (Nota da IHU On-Line)

IHU On-Line – O fato de Lula ter parti-cipado de movimentos sociais católi-cos na juventude deveria infl uenciar na sua posição frente as questões so-ciais, atualmente?Kenneth Serbin – Muitos achavam que, a partir de 2003, seria o momen-to de o movimento popular no Brasil se afi rmar na política. Mas aconteceu o contrário. As relações entre Lula e a Igreja progressista são menos calo-rosas. O grande eleitorado do presi-dente são os despossuídos, aqueles que vivem do Bolsa Família, e que por teoria não tinham muita participação na Igreja progressista da época. Aliás, essa foi uma das falhas da Igreja: ela deveria ter atraído mais militantes po-bres. Esses, ao contrário, foram para a Igreja Universal do Reino de Deus, para as neopentencostais. Por isso, percebemos hoje não só Lula mas mui-tos políticos brasileiros participando de comícios com as igrejas evangéli-cas. Eles sabem que o voto do povo não está só na Igreja Católica.

IHU On-Line – O senhor pesquisou a gestão da presidência de D. Aloísio Lorscheider e de D. Ivo Lorscheiter na CNBB, durante a Ditadura Militar. Como analisa a longa direção de D. Luciano Mendes de Almeida na CNBB? Quais são as continuidades e as des-continuidades destas gestões com as posteriores?Kenneth Serbin – D. Aloísio Lorschei-der esteve na direção da CNBB (Con-ferência Nacional dos Bispos do Brasil) entre os anos 1970 e 1978. Em segui-da, assumiu D. Ivo Lorscheiter, que permaneceu até 1986. Ambos estive-ram à frente da instituição no período em que a Igreja enfrentou as maiores difi culdades de relacionamento com o governo. Além disso, precisavam lidar com problemas ligados a violação dos direitos humanos e à falta de democra-cia no país. Entretanto, nas reuniões secretas entre o Regime Militar e os bispos, os irmãos Lorscheiter agiam de maneira diferente. Enquanto D. Aloí-sio Lorscheider estava disposto a esta-belecer um diálogo, D. Ivo Lorscheiter apresentava um posicionamento mais rígido, criticava a falta de liberdade e a política socioeconômica da época.

“As diferenças ideológicas dentro do Congresso

Nacional, hoje, são muito menores do que no passado.

Ou seja, a polarização política, que existia no Brasil nos

anos 1960 e levou ao golpe militar de 1964, acabou”

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Nesse período, a Igreja foi uma das poucas instituições que conseguiu se manifestar livremente. Ela represen-tava — como dizia D. Hélder Câmara11 — “a voz dos que não tinham voz”.

Com a volta da democracia em 1985, e depois com as eleições de 1986, a Igreja não precisou mais “falar em nome dos oprimidos”, pois se insti-tuiu a liberdade de expressão no país, abrindo espaço para o surgimento de novos movimentos sociais e sindica-tos, que passaram a desempenhar um papel signifi cativo na área dos direitos humanos, por exemplo.

Com a democracia instituída, o su-cessor da CNBB, D. Luciano Mendes de Almeida12, que permaneceu na presi-dência por oito anos, atuou num con-texto totalmente diferente. Na gestão dele, ocorreu o impeachment do pre-sidente Collor, eleito em 1989. Nesse momento, as preocupações da Igreja

11 Dom Hélder Câmara (1909-1999): arcebis-po lembrado na história da Igreja Católica no Brasil e no mundo, como um grande defensor da paz e da justiça. Foi ordenado sacerdote aos 22 anos de idade, em 1931. Aos 55 anos, foi nomeado arcebispo de Olinda e Recife. As-sumiu a Arquidiocese em 12 de março de 1964, permanecendo neste cargo durante 20 anos. Na época em que tomou posse como arcebis-po em Pernambuco, o Brasil encontrava-se em pleno domínio da Ditadura Militar. Momento político este que o tornou um líder contra o autoritarismo e os abusos aos direitos huma-nos, praticados pelos militares. Paralelamente às atividades religiosas, criou projetos e orga-nizações pastorais, destinadas a atender às co-munidades do Nordeste, que viviam em situa-ção de miséria. Dedicamos a editoria Memória da IHU On-Line número 125, de 29-11-2005, a Dom Hélder Câmara, publicando o artigo Hélder Câmara: cartas do Concílio. Na edição 157, de 26-09-2005, publicamos a entrevista “O Concílio, Dom Helder e a Igreja no Brasil”, realizada com Ernanne Pinheiro. Confi ra, ain-da, a editoria Filme da Semana da edição 227 da IHU On-Line, 09-06-2007, que comenta o documentário Dom Hélder Câmara — O santo rebelde. (Nota da IHU On-Line) 12 Dom Luciano Mendes de Almeida (1930-2006): padre jesuíta, arcebispo de Mariana, e ex-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Dele, a IHU On-Line publicou uma entrevista na 24ª edição, de 01-07-2002, por ocasião de sua participação no Simpósio Nacional Bem Comum e Solidarie-dade, promovido pelo IHU em junho de 2002, um artigo na 85ª edição, de 24-11- 2003, e outro artigo na 95ª edição, de 5-04-2004. Por ocasião de seu falecimento, em 27-08-2006, o sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu), ofereceu ampla repercussão sobre sua vida e trajetória. Para conferir detalhes, acesse as Notícias do Dia de 28-08-2006. Em 03-09-2007, publicamos uma entrevista especial com Dom Pedro Luiz Stringhini, intitulada “O leilão da Vale não foi ético, dizia D. Luciano Mendes de Almeida”. (Nota da IHU On-Line)

estavam centradas no debate da ética na política e na vida pública. Com a posse dele, fi cou clara a volta de uma Igreja mais conservadora, sob o papa-do de João Paulo II.

Continuidades Depois da gestão de D. Luciano

Mendes de Almeida, a Igreja passou a apresentar uma atitude, a qual chamo de “cão-de-guarda moral”, ou seja, ela não tem mais aquele sentimento informal da época pré-conciliar (antes do Concílio do Vaticano II), que man-tinha com Getúlio Vargas13 e Juscelino Kubitschek,14 nem aquele embate fron-tal do período de D. Ivo Lorscheiter. Agora, ela continua com suas posições morais, mas denuncia o que considera imoral na sociedade brasileira, como a falta de políticas sociais adequadas. Ela atua mais no sentido de aconselhar, advertir, ou seja, simplesmente chama a atenção para os fatos. Desse modo, ela não se envolve mais nas questões sociais como antes.

IHU On-Line – O último Encontro Na-cional de Presbíteros solicitou que a Igreja revisse a lei do celibato, tor-nando-o opcional. A CNBB não enca-minhou o pedido ao Vaticano. Como explicar tanta resistência da Igreja a mudanças no que diz respeito ao celibato? O que uma mudança de po-sicionamento por parte da Igreja po-deria representar para a comunidade católica? Kenneth Serbin – A discussão do celi-

13 Getúlio Vargas (1882-1954): ex-presidente da República. Sobre ele, a revista IHU On-Line publicou os seguintes materiais: edição 111, de 16 de agosto de 2004, intitulada A Era Var-gas em Questão — 1954-2004, e a edição 112, de 23 de agosto de 2004, chamada Getúlio. Confi ra também o texto do Prof. Dr. Juremir Machado da Silva, da PUCRS, publicado no nú-mero 30 dos Cadernos IHU Idéias, chamado Getúlio, romance ou biografi a?. Vale destacar o Cadernos IHU em formação número 1, publi-cado pelo IHU em 2004 e intitulado Populismo e Trabalho. Getúlio Vargas e Leonel Brizola. As versões eletrônicas encontram-se disponí-veis no sítio www.unisinos.br/ihu. (Nota da IHU On-Line)14 Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902-1976): médico e político brasileiro, conhecido como JK. Foi presidente do Brasil entre 1956 e 1961, sendo o responsável pela construção de Brasília, a nova capital federal. Sobre JK, con-fi ra a edição 166, de 28 de novembro de 2005, A imaginação no poder. JK, 50 anos depois, disponível para download na página do IHU www.unisinos.br/ihu. (Nota da IHU On-Line)

bato sempre esteve presente na histó-ria do Brasil. Essa é uma questão po-lítica de interesse nacional. Na época do padre Feijó, o tema foi debatido na Assembléia Nacional. Nos anos 1960, o assunto foi tratado entre seminaristas e bispos, os quais reconheciam a ne-cessidade de mudança. Mas a contes-tação foi barrada e proibida pelo papa Paulo VI.15 Ou seja, o Concílio Vaticano II foi a maior reforma nos dois milênios da história da Igreja, e ainda assim, não tocou nessa questão. Pelo contrá-rio, Paulo VI reafi rmou o celibato como obrigação dos padres. Isso foi uma tra-gédia para a Igreja do Brasil, porque ela perdeu, entre os anos 1965 e 1980, mais ou menos três mil padres.

Uma vida paralela No Brasil, muitos padres, embora

continuassem exercendo o sacerdócio, constituíram família; e acredito que essa continua sendo uma prática nos dias atuais. Esses homens sofrem mui-to, e por isso mantêm relacionamentos paralelos. Em Um espinho na carne. Má conduta e abuso sexual por parte de clérigos da Igreja Católica do Brasil (Santuário, 2002), o padre norte-ame-ricano Gino Nasini, que atua no Brasil há anos, mostra que muitos sacerdotes ainda mantêm relações com mulheres. Isso acontece porque eles nunca acei-taram o celibato. Do mesmo modo, os leigos nunca se importaram com essas questões. Essa era uma preocupação dos bispos, e foi uma das causas que motivaram a instalação de seminários no Brasil. Até a época do padre Feijó, existiam poucos seminários no país e a formação seminarística era fraquís-sima. A Igreja investiu nesses colégios justamente para implantar o celibato. Lá, isolavam meninos de oito e nove anos, os quais não podiam ter conta-to com as mães e outras mulheres. Só visitavam a família em ocasiões espe-ciais. Por que tudo isso? Para formar padres celibatários.

Divisão na IgrejaEm 2003, um estudo realizado pelo

Ceris (Centro de Estatística Religiosa e 15 Paulo VI (1897-1978): Giovanni Battista Montini foi papa da Igreja Católica entre 1963 e 1978. Chefi ou a Igreja Católica durante a maior parte do Concílio Vaticano II e foi decisi-vo na colocação em prática das suas decisões. (Nota da IHU On-Line)

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Investigações Sociais), órgão da CNBB, mostrou que 42% dos padres querem que o celibato seja opcional, ou seja, quase metade dos sacerdotes. Só que o papa e a Igreja não aceitam esse debate.

Os bispos reivindicavam essa mu-dança, porque percebiam que estavam perdendo sacerdotes. Além disso, os ca-tólicos são somente 73% da população, e a cada ano está diminuindo a propor-ção católica na sociedade brasileira. Não bastasse isso, as igrejas neopetencostais estão construindo mais templos, for-mando pastores em menos tempo e libe-rando-os para casar. Em contrapartida, na Igreja Católica a proporção de padres disponíveis para atender a população é muito desigual. São mais de 10 mil fi éis para cada padre. Como a Igreja vai dar atenção a essas pessoas se não existem mais padres? Se permitissem o casamen-to dos sacerdotes, acredito que surgi-riam mais vocações na Igreja brasileira. A comunidade católica iria se benefi ciar dessa questão, pois, além de permitir a volta dos padres casados, iria regulari-zar a situação dos que vivem, segundo a Igreja, em pecado.

IHU On-Line - No livro Padres, celi-bato e confl ito social. Uma história da Igreja Católica no Brasil, o se-nhor afi rma que desde os anos 30 padres cometiam abuso sexual e não eram punidos. O senhor acredita que os bispos continuam ignorando essa realidade? Por que é tão difícil para a Igreja se posicionar rigidamente diante desses acontecimentos? Kenneth Serbin – Sim. Eles continuam ignorando a realidade e colocando o lixo embaixo do tapete. Nasini cons-tatou que 10% dos padres brasileiros cometem abusos sexuais. Ele inclui, nesse estudo, padres que mantêm re-lacionamentos com mulheres. Discordo dele nesse sentido, porque penso que esses sacerdotes não praticam abuso sexual. Nesse caso específi co, ambos (o padre e sua companheira) vivem um relacionamento difícil, proibido, pois a Igreja não permite a união.

De qualquer modo, sabemos que é relevante o número de sacerdotes abusando de crianças, mulheres e homens. Entretanto, quantos bispos questionam isso? Quantas pesquisas existem sobre esse fato? E as puni-

ções? As penalidades que conheço são realizadas pela justiça. Raramente sai uma notícia no jornal mostrando, por exemplo, que um padre foi processado por abusar uma crianças.

Exemplo americanoQuando foram noticiados casos de

abuso sexual nos EUA, o Vaticano dis-se que eles eram um problema local. A mídia americana, como sempre, não pesquisou a situação em outros países. Mas, ao tomar conhecimento dessas práticas, a Igreja norte-americana criou uma comissão especial, instituiu regras novas, fez uma devassa em toda a Igreja para acabar com aquele tipo de comportamento. A Igreja do Brasil ainda não enfrentou essa questão. A imprensa brasileira não está interes-sada em pesquisar o assunto, e a so-ciedade é tolerante com esse tipo de problema.

Claro que isso não acontece ape-nas no Brasil. Desde os anos 1930, nos EUA, por exemplo, quando um padre abusava sexualmente de alguém, e era descoberto pelo bispo, simplesmente era transferido, sem receber qualquer punição. Tampouco era excomungado.

No meu livro, relato o caso de um pa-

dre que abusava de seminaristas, e, ao ser descoberto, foi transferido para tra-balhar com crianças. Isso é uma hipocri-sia muito grande. Então, como se pode perceber, a Igreja do Brasil passa pela mesma crise moral que passou a Igreja dos EUA. A responsabilidade de mudar essa realidade cabe não só aos padres brasileiros, mas também ao papa.

IHU On-Line - Há semelhanças entre a Igreja Católica do Brasil e dos EUA? Em quê? Quais são as principais dife-renças entre elas?Kenneth Serbin – A Igreja nos EUA sempre foi minoritária, e nunca teve uma concordata moral como ocorreu no Brasil. A Igreja brasileira era quase um outro Estado, pois ela sempre teve o poder político, econômico e moral, ou seja, representava um poder parale-lo, enquanto a Igreja norte-americana sempre viveu uma situação de pluralis-mo. Só agora a Igreja brasileira come-ça a enfrentar a realidade do mundo moderno, ou seja, a perceber que na sociedade existem outras fés, igrejas, crenças e maneiras de ver o mundo. Muitos integrantes da Igreja brasileira, inclusive os progressistas, não queriam diálogo, e tampouco pretendiam reco-nhecer o crescimento de outras religi-ões. Somente agora estão refl etindo so-bre isso. Ou seja, demorou muito para se chegar a esse ponto.

IHU On-Line - Quais as principais de-fi ciências da Igreja brasileira, hoje? Kenneth Serbin – A falta de compro-misso com o espírito do Concílio do Vaticano II. O Brasil foi um dos países que mais aderiu a esse espírito inova-dor. Hoje, a posição assumida naquela época está muita fraca. A Igreja recua de muitos desafi os. Já avançamos no que diz respeito à participação das mulheres na Igreja, mas poderíamos prosperar mais nesse sentido.

No atual estado do mundo, o deba-te sobre o aborto também deve ganhar mais destaque. Não digo que a Igreja deva abrir mão de seu ensinamento moral sobre o tema, mas essa é uma questão de saúde pública. Existem tan-tas mulheres se automedicando, reali-zando abortos em clínicas clandestinas, isto é, há muito sofrimento nesse senti-do. Essas ações mostram como a Igreja,

“A Igreja precisa recuperar

esse espírito do Concílio,

valorizar o diálogo com

outras crenças, fi losofi as,

e aprender que o mundo

é plural. O problema da

Igreja na América Latina

é que ela sempre foi um

monopólio. Hoje isso está

mudando, pois o

continente está mais

democrático e pluralista”

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a imprensa e a sociedade brasileira não valorizam a posição da mulher. Tenho certeza que, se os homens pudessem fi -car “grávidos”, o aborto seria legaliza-do. A sociedade precisa valorizar mais a experiência da mulher. A Igreja bra-sileira poderia desenvolver um papel profético nesse sentido, poderia aco-lher essas pessoas e ajudá-las, ao in-vés de simplesmente impor uma norma dizendo que aborto é pecado. A vida é mais complexa do que isso.

IHU On-Line - O senhor diz que “so-mente olhando para o passado é que a Igreja vai se preparar para o fu-turo”. Nesse sentido, que aspectos devem ser resgatados para projetar um futuro melhor para a Igreja? Que futuro podemos esperar para a Igre-ja nos próximos anos, especialmente na América Latina e no Brasil?Kenneth Serbin – A Igreja precisa re-cuperar esse espírito do Concílio, va-lorizar o diálogo com outras crenças, fi losofi as, e aprender que o mundo é plural. O problema da Igreja na Améri-ca Latina é que ela sempre foi um mo-nopólio. Hoje isso está mudando, pois o continente está mais democrático e pluralista. A Igreja tem de se adaptar a essa situação. Temo que, se ela não recuperar esses aspectos, poderá cair na irrelevância. Além disso, a Igreja deve valorizar mais a cultura brasilei-ra e seu povo. A própria América Latina vive uma sensação de inferioridade. A Usmas, nesse sentido, queria valorizar o país e o que é brasileiro na tradição católica, construindo uma formação ge-nuinamente nacional. Esse é o desafi o.

LEIA MAIS...>> Confi ra outra entrevista concedida por

Serbin à IHU On-Line, e artigos publicados nas Notícias do Dia. O material está na nossa página eletrônica www.unisinos.br/ihu.Entrevista: * Dom Ivo Lorscheiter morreu. Ele foi um gigante da esperança. Entrevista especial com Irmã Lour-des Dill e Kenneth Serbin, de 05-03-2007, publi-cada nas Notícias do Dia.

Artigos:* CF 2007 – Um documento que recupera o ativis-mo do catolicismo libertário, de 25-02-2007;* Concordata. Quando o Estado disse amém, de 13-05-2007;* Os bastidores de uma paróquia nos EUA. Uma religião patriótica que não criará revoluções, de 20-04-2008.

Regina Schöpke fala sobre a obra que é relançada no Brasil 100 anos após a publicação da primeira edição

POR GRAZIELA WOLFART

Apesar de se tratar de uma obra de cunho doutrinário, Regina Schöpke vê como mérito de Gilbert Keith Chesterton, no livro Ortodoxia (São Paulo: Mundo Cristão, 2008), o fato de “ter idéias próprias e, sobretu-do, convidar a todos para um diálogo franco e aberto, ainda que ele não possa fugir completamente de um certo dogmatismo”. Ela ainda

ressalta a disposição do autor para combater o materialismo e a ciência, “num tempo em que poucos tinham coragem para isso”. Segundo ela, “nesse combate, suas armas são as idéias, o que também deve servir de exemplo para os nossos contemporâneos, numa sociedade em que renascem certos fanatismos sangui-nários que costumamos julgar um vestígio sombrio do nosso passado”. Regina lembra também que, para Chesterton, “a alegria é a expressão mais viva de uma fé autêntica e incondicional, que se baseia na certeza de um sentido para a sua existência e para a do mundo”.

Regina Helena Sarpa Schöpke é doutora em Filosofi a, pela Unicamp, mes-tre em Filosofi a, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e em História Medieval, pela Universidade Federal Fluminense. É tradutora, resenhista dos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo e autora do livro Por uma fi losofi a da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade (São Paulo: Edusp/Rio de Ja-neiro: Contraponto, 2004).

O Dom Quixote da fé cristã

IHU On-Line - Qual o interesse em publicar Ortodoxia, 100 anos de-pois do lançamento da obra? Qual a atualidade do livro?Regina Schöpke - Primeiramente, é preciso que se diga que os bons li-vros são sempre atuais, e os maus li-vros já nascem “mortos”. A força da arte e da fi losofi a reside justamen-te no fato de que, embora criadas, elas entram numa espécie de devir eterno, podendo ser atualizadas em qualquer tempo e lugar. Nenhuma pessoa com amor pelo conhecimen-to questionaria a publicação de uma obra de Platão ou de Aristóteles e, no entanto, quase 2.500 anos nos separam deles. Com relação à Orto-doxia, a questão não é muito dife-rente. Trata-se de um livro original, concordemos ou não com as idéias de Chesterton, sejamos ou não cris-tãos. No fundo, o maior problema das obras de teor religioso ou polí-tico, das obras doutrinárias de um

modo geral, é que elas são extrema-mente dogmáticas e se fecham para a refl exão mais ampla. O mérito de Chesterton, nesse caso, é ter idéias próprias e, sobretudo, convidar a to-dos para um diálogo franco e aberto, ainda que ele não possa fugir com-pletamente de um certo dogmatis-mo. Afi nal, a despeito de todo o seu humor e leveza, ele também acre-dita (como todo espírito religioso) ter atingido uma verdade que exclui todas as outras alternativas. Ele é um homem de fé, antes de qualquer outra coisa. Não deixa, no entanto, de ser digna de admiração a sua dis-posição para combater o materialis-mo e a ciência, num tempo em que poucos tinham coragem para isso. Nesse combate, suas armas são as idéias, o que também deve servir de exemplo para os nossos contemporâ-neos, numa sociedade em que renas-cem certos fanatismos sanguinários que costumamos julgar um vestígio

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sombrio do nosso passado.

IHU On-Line - Em que consiste a tese de Chesterton de que “só no cris-tianismo há liberdade” e de que o cristianismo era “a única saída au-têntica” para os problemas da mo-dernidade? Regina Schöpke - Chesterton nunca escondeu seu horror ao ateísmo, às diversas formas de materialismo e a todos os modernos sistemas de pen-samento que prescindiam da idéia de Deus: o positivismo e o determinismo científi co, o darwinismo, o marxismo, e até mesmo o capitalismo. Apesar do próprio Chesterton ter passado por uma crise religiosa, ter vivido uma fase cética, ele — como um bom fi lho pródigo — assume a defesa integral de uma religião que é, para ele, o único e verdadeiro exemplo de liberdade em nosso mundo. De fato, a tese cristã é que o homem é essencialmente livre, capaz de escolher seus caminhos e tomar decisões sobre a sua vida — o que pensadores como Schopenhauer1, Nietzsche2 e Holbach3 (para citar

1 Arthur Schopenhauer (1788-1860): fi lósofo alemão que introduziu o budismo e a fi losofi a indiana na metafísica alemã. Ficou conheci-do por seu pessimismo e entendia o budismo como uma confi rmação dessa visão. (Nota da IHU On-Line)2 Friedrich Nietzsche (1844-1900): fi lósofo alemão, conhecido por seus conceitos além-do-homem, transvaloração dos valores, niilis-mo, vontade de poder e eterno retorno. Entre suas obras, fi guram como as mais importantes Assim falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janei-ro: Civilização Brasileira, 1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A genealogia da moral (5. ed. São Paulo: Centauro, 2004). Es-creveu até 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso que nunca o abandonou, até o dia de sua morte. A Nietzsche foi dedi-cado o tema de capa da edição número 127 da IHU On-Line, de 13-12-2004. Sobre o fi lósofo alemão, conferir ainda a entrevista exclusiva realizada pela IHU On-Line edição 175, de 10 de abril de 2006, com o jesuíta cubano Emilio Brito, docente na Universidade de Louvain-La-Neuve, intitulada “Nietzsche e Paulo”. A edi-ção 15 do Cadernos IHU em formação é inti-tulada O pensamento de Friedrich Nietzsche. (Nota da IHU On-Line)3 Paul Henri Thiery (Barão de Holbach - 1723-1789): ateísta alemão, determinista e mate-rialista. Considerava o universo como um sis-tema complexo, organizado através das leis de causa e efeito. Expressou em suas obras idéias radicais e defendia que o ateísmo era um pré-requisito para qualquer teoria ética válida. So-bre a religião, ele dizia que ela estava baseada em dogmas e rituais inúteis e sem sentido. Seu livro mais famoso foi O sistema da natureza (1770). (Nota da IHU On-Line)

apenas três) negam com veemência, mostrando que a vontade é sempre determinada por alguma coisa (valo-res, necessidades, idéias), ou seja, mostrando que a liberdade humana é mais uma das fi cções que nós criamos. No entanto, para Chesterton, idéias como essas envenenariam o homem, pois não lhe dariam qualquer saída para a sua vida. É aí que entra a sua crítica profunda à razão — que ele, no entanto, não deixa de usar para cons-truir seu próprio edifício teórico. Ele julga a razão arrogante e pretensiosa quando ela pensa poder se sustentar sem Deus. Para ele, o cinismo do seu tempo tem origem exatamente na fé exacerbada na “luz natural” (e, aqui, ele se volta contra os iluministas, para os quais a razão está acima de qual-quer outra coisa). Para Chesterton, é por enaltecer demais os poderes da ra-zão que o homem termina por se colo-car no lugar da divindade, a se pensar acima de todas as coisas. Ele entende que é isso que leva a um esvaziamento do sentido da vida, fazendo a huma-nidade sentir-se perdida e solitária, sem vínculos entre si e com o resto do universo. Não nos cabe aqui, por uma questão de espaço, fazer uma crítica profunda deste pensamento, mas é claro que Chesterton busca justifi car a fé também com argumentos racionais. Nesse sentido, sua posição se aproxi-ma da de Voltaire,4 que, embora seja um dos maiores iluministas, acredita que sem a fé em Deus o homem (e a própria ordem social) desmoronaria e se perderia. Essa não deixa de ser uma

4 Voltaire (1694-1778): pseudônimo de Fran-çois-Marie Arouet, poeta, ensaísta, dramatur-go, fi lósofo e historiador iluminista francês. Uma de suas obras mais conhecidas é o Dicio-nário Filosófi co, escrito em 1764. (Nota da IHU On-Line)

perspectiva pragmática e sociológica da fé, porque o que ele quer dizer, no fundo, é que a fé (e mais ainda, a cris-tã) é, antes de qualquer outra coisa, uma necessidade social, uma diretriz para a boa convivência entre os ho-mens.

IHU On-Line - Como justifi car a im-portância do cristianismo hoje, em nossa sociedade marcada pela secu-larização? O livro de Chesterton aju-da nesse sentido?Regina Schöpke - A religião continua viva, apesar de todo o materialismo do mundo em que vivemos, e a ra-zão disso se encontra no fato de que a humanidade continua à espera de uma salvação externa, transcendente, de algo que dê alívio aos seus sofri-mentos e exorcize os seus fantasmas. O homem transferiu essa esperança primeiramente para a política e mais tarde para a ciência, mas nada disso pode realmente corresponder às suas expectativas. É claro que, em termos políticos, a Igreja Católica já não tem a mesma força que tinha na Idade Mé-dia, mas a religião é uma questão de fé e não de atualidade. É claro que o nosso tempo, em comparação com os séculos passados, é extremamente cé-tico e materialista, mas nem por isso a necessidade do maravilhoso, do trans-cendente, deixou de ser forte no ser humano. Quanto ao papel do livro de Chesterton, creio que ele pode refor-çar a fé dos crentes e até mesmo di-recionar o misticismo difuso de alguns indecisos, mas certamente não conse-guirá ser uma trombeta de Josué, ou seja, não pode convencer senão aos que já estão propensos ou em dúvida. Mas isso, no fundo, ocorre com qual-quer idéia.

IHU On-Line - Como entender a de-fesa da fé cristã feita por Chesterton no contexto histórico de sua época, início do século XX, na Europa?Regina Schöpke - Depois de um perío-do de pleno poder, que se estendeu até o fi m da Idade Média, a Igreja foi per-dendo a sua hegemonia, especialmente com a expansão do ensino laico e com a Reforma. Nos séculos XVII e XVIII, muitos fi lósofos contestavam as bases da fé cristã, que não resistiam a um

“A tese cristã é que o

homem é essencialmente

livre, capaz de escolher

seus caminhos e tomar

decisões sobre a sua vida”

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exame crítico isento. Com a Revolução Francesa, a Igreja viu-se reduzida a uma instituição entre outras, perden-do muito do seu poder e prestígio. No século XIX, essa decadência atingiu o seu ponto máximo, com a ciência as-sumindo o papel da Igreja como produ-tora de verdades e de valores, como a grande redentora da humanidade. No início do século XX, época da publica-ção de Ortodoxia, o mundo vivia uma espécie de êxtase materialista, que só a Grande Guerra iria desfazer. Para um homem de fé, essa situação era angus-tiante e intolerável. Chesterton, com uma coragem comovente, assume o papel de defensor de uma causa apa-rentemente perdida. Expõe-se dian-te de seus inimigos de uma maneira que não é nem um pouco estranha ao cristianismo original. É por isso que o pensamos como um Dom Quixote da fé cristã. A diferença entre Chesterton e muitos intelectuais cristãos é que ele teve coragem de fazer abertamente a defesa da sua fé. É nisso que consiste a sua originalidade.

IHU On-Line - Quais as bases que ali-cerçam a ardorosa fé de Chesterton?Regina Schöpke - No fundo, a fé ardo-rosa já é a sua própria base, sustenta a si mesma, ainda que isso soe como um terrível círculo vicioso. É verdade que o próprio Chesterton enumera mil razões para ser cristão, mas todas elas implicam numa fé a priori na verdade dessas proposições. Num certo sen-tido, Chesterton é um cristão muito pouco convencional, embora defenda os dogmas tradicionais. Isso quer dizer que ele não é prisioneiro de uma re-ligião institucional que, ao contrário do que dizem os seus dirigentes, está submetida às mudanças que afetam toda a sociedade. Num mundo ma-terialista, capitalista e cientifi cista, mesmo os religiosos parecem precisar cada vez mais de motivos palpáveis para crer, de provas da divindade do seu Deus (até mesmo de provas cientí-fi cas). Chesterton tem fé e não precisa de nada mais, eis o ponto.

IHU On-Line - Como Chesterton li-dava com os paradoxos da doutrina cristã? Regina Schöpke - De certa forma,

pode-se dizer que — do ponto de vista da fé — não existem exatamente pa-radoxos, mas apenas mistérios que o homem não consegue desvendar. Po-rém, para justifi car-se pela via da ra-zão (que é a sua arena de combate), é inevitável que Chesterton procure har-monizar o irreconciliável, juntar peças que não se encaixam de modo algum. Aliás, o cristianismo (não enquanto fé, mas como religião institucional roma-na), sempre tendeu para o que pode-mos chamar de “racionalização da fé” (e, é claro, que isso diz respeito à he-rança grego-romana que, juntamente com o judaísmo, ajudou a formar o espírito cristão). Se, na Idade Média, muitos teólogos chegaram a ser acu-sados de heréticos por conta disso, a verdade é que a originalidade do cris-tianismo, sobretudo do catolicismo, está nesse diálogo (sempre perigoso) que ele procurou manter com a razão. No fundo, esta é uma das causas da sua força e também da sua fraqueza (pelo menos, enquanto crença). Ches-terton reconhecia os paradoxos de sua doutrina, mas chamava a atenção para o fato de que o paradoxo não é uma contradição, é apenas uma aporia, é algo sem resposta, sem saída. Seja como for, para Chesterton, esses pa-radoxos apenas expressam as tensões e os contrastes da vida e da própria razão. Contrastes que, segundo ele, só a doutrina cristã consegue conciliar e harmonizar, mesmo porque, das três religiões monoteístas, apenas no cris-tianismo Deus é espírito, mas também é homem.

IHU On-Line - Quais são as diferenças entre o cristianismo de Chesterton e o cristianismo que se institucionali-zou?Regina Schöpke - Do mesmo modo como se pode alegar que o Deus guer-reiro e vingativo do Velho Testamento não é compatível com o Deus amoroso e tolerante do Novo Testamento, po-demos dizer que o Cristo dos Evange-lhos não se encontra no Catolicismo Romano. A mensagem de humildade e fraternidade de Cristo soa estranha diante da pompa autocrática do pa-pado romano, que por tantos séculos foi tão ou mais vicioso que os déspo-tas seculares. Chesterton é um cristão autêntico, que procura afi rmar sua fé com todas as forças de seu coração e também de sua razão, porque é claro que ele está sempre buscando argu-mentar a favor da sua fé. Ele deseja que todo cristão faça o mesmo: que afi rme, que viva a sua fé sem medo, que faça da alegria a sua força e da esperança sua razão para viver. Essa é a única maneira que ele encontra de fazer frente aos inimigos do cris-tianismo: provando que, na prática, a sua fé oferece melhores condições de existência e maiores razões para viver do que o materialismo e o determi-nismo, que apenas levariam o homem ao desânimo e à perda de entusiasmo pela existência. Seu cristianismo não é aquele que prega o medo do inferno, mas o que convida o homem a pensar nas delícias do paraíso.

IHU On-Line - Como entender a afi r-mação de Chesterton de que “a ale-gria é o gigantesco segredo do cris-tão”?Regina Schöpke - No fundo, como ho-mem de fé, Chesterton considera o cristianismo como ele “deveria” ser, e não como ele é na sua realidade obje-tiva. Num certo sentido, desde os seus primórdios, é possível verifi car que existem dois cristianismos, como fala-mos anteriormente: o de Cristo e o de Roma. O de Cristo é uma mensagem de amor e tolerância (ou, como diz Ches-terton, uma mensagem de esperança e alegria), mas foi o romano que preva-leceu sobre os espíritos, e este, em sua forma institucionalizada, foi tirânico

“Para Chesterton, é por

enaltecer demais os

poderes da razão que o

homem termina por se

colocar no lugar da

divindade, a se pensar

acima de todas as coisas”

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e, muitas vezes, sanguinário. Afi nal, antes de qualquer outra coisa, a Igreja Católica era uma instituição de poder, que não mediu esforços para impor seu credo por toda a Europa. Como não existe dominação sem medo, não é exagero dizer que a imagem do cris-tão sempre se assemelhou mais à dos homens atormentados das pinturas de Hieronymus Bosch5 (com um pé na vida e outro no inferno) do que a do homem alegre e entusiasmado de Chesterton. É verdade que Chesterton deseja ser o porta-voz de um cristianismo “puro”, mas puro não quer dizer “novo”. É na ortodoxia, como ele próprio deixa cla-ro, que está a “salvaguarda segura da moralidade e da ordem”, e também é com ela, e apenas com ela, que Ches-terton acredita poder combater os verdadeiros inimigos da fé cristã ou, mais propriamente, da liberdade hu-mana. Em suma, a alegria, para ele, é a expressão mais viva de uma fé au-têntica e incondicional, que se baseia na certeza de um sentido para a sua existência e para a do mundo.

IHU On-Line - Quais as críticas que você faz à obra Ortodoxia?Regina Schöpke - Nos tempos do nos-so Cinema Novo, jovens estudantes esquerdistas da classe média faziam fi lmes políticos para educar as mas-sas. Porém, muitos acusavam esses fi lmes de serem realmente entendidos e apreciados apenas pelos próprios es-querdistas da classe média. A obra de Chesterton sofre do mesmo mal: ela convence plenamente os que já estão convencidos, mas fracassa no seu ob-jetivo de defender a fé perante uma sociedade materialista. A convicção é algo poderoso, tanto do lado dos re-ligiosos quanto dos não-religiosos. Re-petimos que a fé não é algo racional – embora, sob um certo aspecto mais amplo e decisivo, é claro que a razão é a criadora de todas as suas “verda-des” (afi nal, todas as coisas do espíri-

5 Jeroen van Aeken, cujo pseudônimo é Hie-ronymus Bosch, e também conhecido como Jeroen Bosch (1450-1516): foi um pintor e gravador neerlandês dos séculos XV e XVI. Muitos dos seus trabalhos retratam cenas de pecado e tentação, recorrendo à utilização de fi guras simbólicas complexas, originais, imagi-nativas e caricaturais, muitas das quais eram obscuras mesmo no seu tempo. (Nota da IHU On-Line)

to, inclusive a moral e a religião, são criações humanas). Mas, em termos mais estritos, a razão (nos moldes gre-gos) é algo que põe em juízo todas as coisas e, assim, faz (ou deveria fazer) ruir as fi cções “ilegítimas”. Mas, para lá da questão da própria crença, e a despeito da alegria inabalável e da vontade de viver de Chesterton (algo que ele atribui a sua fé, mas que ou-tros pensadores podem atribuir a ou-tras razões), ele não consegue escapar das armadilhas do “espírito” religioso, e uma delas é o dogmatismo. É as-sim que, apesar de toda a sua capa-cidade de argumentação e de todo o seu humor, boa parte de suas idéias não resiste realmente a uma refl exão mais profunda. É a crença e não a ra-zão que o comanda. Isso não seria um problema para Chesterton, é claro, já que ele próprio se vê como um crítico “mordaz” da razão (para ele, a razão já provou que não pode direcionar o homem para o verdadeiro caminho da felicidade e do bem-estar geral). O problema é que ele ataca a razão, mas faz isso com as próprias armas da razão. Desse modo, assim nada mais faz do que provar que é possível ar-gumentar tanto a favor quanto contra qualquer coisa, desde que se tenha uma boa retórica. Porém, isso não é garantia alguma de “verdade” e, mui-to menos, é condição para alguém crer ou deixar de crer em Deus. De fato, as certezas inquestionáveis podem até dar um “sentido à vida humana”, mas elas não se apóiam certamente em nada além da própria fé. É por isso que seus argumentos só podem realmente atingir os que já estão mergulhados na mesma “lógica”. Não se pode inverter a “marcha da razão” com a alegação de que é “melhor” a religião do que o materialismo puro ou porque as teorias científi cas ou fi losófi cas não podem conter a crueldade, como denuncia Chesterton, mesmo porque, na práti-ca, também as religiões nunca conse-guiram frear a crueldade e as loucu-ras humanas. Em outras palavras, a fé perde a sua inocência quando precisa do auxílio da razão para se defender.

IHU On-Line - Como Chesterton trata da questão do pecado na obra?Regina Schöpke - Com relação ao pe-

cado, Chesterton expõe claramente seu lado mais ortodoxo e retrógrado. Ele considera que o pecado “consti-tui a única parte da teologia cristã que pode realmente ser provada”. A queda do homem, a partir do peca-do original é, para ele, uma verdade inquestionável (como muitas outras, aliás); e aqui ele se dirige tanto aos descrentes quanto aos “novos teólo-gos”, que sustentam que num mun-do criado por Deus não pode existir o pecado (já que Deus é justo e per-feito). É aqui que Chesterton usa de toda a sua ironia, alegando que Deus realmente não tem pecados, mas que os homens têm, e muitos. É nesse ponto que ele usa também de toda a sua força de argumentação (não dei-xando, é claro, de produzir sofi smas, como todo bom retórico), associando o pecado à loucura humana, ou seja, fazendo do pecado, no fundo, o fruto de um mundo que perdeu de vez os seus parâmetros e a sua perspectiva real. No fi m de tudo, é a própria ra-zão que é acusada por ser a respon-sável pela desrazão. “O que gera a insanidade é exatamente a razão”, diz Chesterton. Ou, mais exatamen-te, é ela quem gera os pecados. Pode ser... mas também é ela quem cria os deuses! Em poucas palavras: talvez haja algum sentido na idéia do peca-do original — como pensa Chesterton —, mas talvez ela diga respeito ao homem ter perdido, ao romper (ou tentar romper) com a natureza, a sua “saudável razão natural”, como bem diz Nietzsche.

LEIA MAIS...

Gilbert Keith Chesterton foi um escritor, poeta, narrador, ensaísta, jornalista, historiador, biógrafo, fi lósofo, desenhista e conferencista bri-tânico. Em 1893, ingressou na escola de arte Slade School de Londres, onde iniciou a carreira de pin-tura que vai depois abandonar para se dedicar ao jornalismo e à literatura. Nascido em família an-glicana, converteu-se ao catolicismo em 1922 por infl uência do escritor católico Hilaire Belloc. Ao falecer, em 1936, deixou todos os seus bens para a Igreja Católica. A sua obra foi reunida em quase quarenta volumes contendo os mais variados te-mas sob os mais variados gêneros. O Papa Pio XI

foi grande admirador de Chesterton.

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InvençãoEditoria de Poesia

Juliana Krapp

POR ANDRÉ DICK

A poeta Juliana Krapp nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1980. Ainda inédita em livro, já publicou poemas nas revistas Inimigo Rumor (RJ), Poe-sia Sempre (RJ) e Modo de Usar & Co. (SP) e no site Germina (www.germina-literatura.com.br). Na área acadêmi-ca, por sua vez, graduou-se em Jor-nalismo e é mestre em Comunicação Social, pela Universidade do Estado do Rio do Janeiro (UERJ). Além disso, participa do grupo CAC (Comunicação, Arte e Cidade), também do Rio.

Não há dúvida, quando se lê seu trabalho, de que ele traz uma sensa-ção de originalidade, no que se refere sobretudo ao encadeamento de idéias, à escolha vocabular e ao ritmo implíci-to, pois Krapp difi cilmente faz uso de rimas. Percebe-se uma leitura, em sua obra, sobretudo dos poetas simbolis-tas, mais sugerindo do que revelando os objetos, como desejava o francês Stéphane Mallarmé. Mas a paisagem, situada por alguns elementos que se referem a precipícios, montanhas, águas, rochedos, vegetações, corren-tezas, fala muito da cidade em que Krapp mora, o Rio de Janeiro. No en-tanto, ela troca o calor e a paisagem maravilhosa — traços bastante referi-dos em poetas da cidade — por uma espécie de cortina de névoa, em que as ações de pessoas, às vezes envolvi-das por um momento alegre, são sem-pre despistadas por uma sensação in-cômoda de vertigem, como se percebe no poema “A estrutura íntima das ho-ras”: “Você, ao volante, não percebe

/ mas isso tudo é como nós dois, / na Cinelândia, às cinco horas / de uma tarde de verão, com uma / caixa de alfajores e vontade de café, quando / há no ar algo de concha, / estira-mento, zona cega: a experiência / do precipício”. Nesse sentido, ela parece ter uma leitura muita apurada de uma conterrânea, Ana Cristina Cesar, que elaborava uma poética baseada numa certa melancolia.

Onirismo e tempestade da natureza

Juliana costuma encadear seus po-emas com um pensamento ora suces-sivo — em que a sintaxe desempenha papel essencial para costurar as diver-sas imagens —, ora fragmentado, in-terrompido, descontínuo — conferin-do ainda mais sensação de vertigem, como em “Enseada”: “nessa praia / as ondas enevoadas arrebentam o branco / os barcos / desabotoam a precisão das linhas / e as ilhotas, desgrenha-das / atracam viscos de luz”. Desse modo, ela lida, em todos os poemas que publicou até agora, uma sensação de perda. Mas não se trata de uma perda de algo passado, e sim de uma perda presente, que parece ser senti-da apenas quando o texto é escrito, o que confere uma lacuna que remete a um onirismo, remetendo ou a lugares abertos (como campos) ou fechados (quartos, casas, lugares reclusos em geral): “uma casa / / requer formas como dormideiras / que se recolhem à carícia quando todas as carícias /

são íntimas é tão surrado reconhecer / nas paredes que a única proprieda-de possível / é a fuga e mais ainda o sono profundo”. O corpo, ao mes-mo tempo, sustenta um desconforto que se refere à perda: “nele a ossa-tura se escancara a ponto de romper / com um estrondo a própria voz / e seu olhar apenas lembra / dobradiças, rosetas / cremones / e toda a sorte / de ferragens maliciosas”. Há uma sen-sação, sempre, de que o corpo pode trazer consigo a autodestruição, mas também a liberdade, como se mostra claro no fi nal do poema como “Per-manência”: “[...] o corpo / que não sobe, apenas / fi ca, margeado / por uma linguagem irrespirável, esperan-do / o último canto do canário belga / às quatro da tarde, o coração / en-rodilhado em matizes / de um passeio no lago”. O silêncio parece cada vez mais presente, mas, ao mesmo tempo, interrompido pela tempestade da na-tureza (“somente as ventanias são de fato enamoradas / e apenas nelas ali-jam-se / as imundícies mais profundas / como somente os ramos / estralha-çam-se e engravidam-se / num único carretel de músculos em escombros”) e pela presença de animais, como o gato, que corresponde, para a autora, à morte. Desse modo, ao mesmo tem-po em que Juliana foca o aprazível, o leitor é situado num ambiente de desconforto e mudança, como se per-cebe também no poema inédito, sem título, que ela enviou especialmente à IHU On-Line.

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Uma voz interiorque dissesse: as amuradas, as inundaçõesNão sei se a quero ou se ela apenas deslizarumo às placas tectônicasnão em off, masdesmesurada

Seu destinoé habitar o fossoonde o capim cresce e esperneiamos monstros sinuosos (também delesé o mundo)

Uma voz interiore seu coração de lata: última balana agulha

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Destaques On-LineEssa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU.

Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponí-veis nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu) de 04-08-2008 a 09-08-2008.

A reabertura do caso Angelelli, bispo assassinado pela ditadura militar argentinaEntrevista com Washington UrangaConfira nas Notícias do Dia 04-08-2008Hoje, há 33 anos, Enrique Angelelli, bispo de La Rioja, Argentina, militante dos direitos dos pobres, morreu num acidente que nunca foi esclarecido. Acidente ou assassinato? O jornalista argentino comenta a reaber-tura do caso.

Encruzilhada Natalino, 30 anos. O nascimento de um acampamentoEntrevista com Antonio CechinConfira nas Notícias do Dia 05-08-2008Há 30 anos surgiu o acampamento de Encruzilhada Na-talino. “Para as Comunidades de Base que pariram o MST, Encruzilhada Natalino representou o demonstrativo para a Igreja e a Sociedade de que ‘tinham vindo para ficar’”, afirma Antonio Cechin.

Consumo sustentável. O que é isso? Entrevista com Lisa Gunn.Confira nas Notícias do Dia 06-08-2008“O/a consumidor/a precisa cobrar das empresas das quais está acostumado a consumir as informações so-cioambientais do processo produtivos e também do pré-

consumo e pós-consumo”, defende a socióloga.

“A anistia não pode significar esquecimento”Entrevista com Augustino VeitConfira nas Notícias do Dia 07-08-2008. Para o advogado, não abrir os arquivos da ditadura torna o povo brasileiro carente da sua própria história.

Referendo na Bolívia: uma solução para crise? Entrevista com o deputado federal Dr. Rosinha.Confira nas Notícias do Dia 08-08-2008. Para o integrante dos Observadores do Mercosul, a aprovação do referendo na Bolívia, ou seja, a aprovação pelo povo bo-liviano da continuidade de Evo Morales à frente do país, pode amenizar a crise política boliviana.

O agronegócio é um grande problemaEntrevista com Iara PietricovskyConfira nas Notícias do Dia 09-08-2008Para a cientista política, a Rodada Doha foi um sucesso exatamente pelo fato de o governo brasileiro não ter chegado a um acordo com a União Européia, os Estados Unidos e o Japão.

www.unisinos.br/ihu

acesse

Análise da Conjuntura

A Conjuntura da Semana está no ar. Confi ra no sítio do IHU — www.unisinos.br/ihu, no dia 05-08-2008.

A análise é elaborada, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores

- CEPAT - com sede em Curitiba, PR, em fi na sintonia com o IHU

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Agenda da SemanaConfi ra os eventos dessa semana, realizados pelo IHU.

A programação completa dos eventos pode ser conferida no sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu).

PARTICIPE DOS NOVOS EVENTOS DO IHU CONFIRA A PROGRAMAÇÃO EM

WWW.UNISINOS.BR/IHU

Dia 13-08-2008

Conversas sobre o Mundo do Trabalho e a Vida dos/das

Trabalhadores/as: As políticas de trabalho, emprego e renda na

região do Vale do Rio dos Sinos

A proteção social e previdenciária dos trabalhadores/as no Vale do

Rio dos Sinos

Debatedores: Carolina Cerveira (Coordenadora do Centro de Re-

ferência e Assistência Social — CRAS de São Leopoldo), Charles

Pranke (titular da Secretaria Municipal de Assistência, Cidadania e

Inclusão Social de São Leopoldo), Luiz Antônio Rocha (servidor da

Previdência Social de Canoas) e Rosângela Maria Herver dos Santos

(especialista em Direito Previdenciário e professora da Unisinos)

Horário: das 19h30min às 22h

Local: Sala 1G119 — Instituto Humanitas Unisinos — IHU

Dia 18-08-2008Encontros de Ética

O jogo digital nos processos de ensino aprendizagem de língua

portuguesa: um estudo através das seqüências narrativas

Palestrante: MS Vanessa Doumid Damasceno

Horário: segunda-feira, das 17h30min às 19h

Local: Sala 1G119 — Instituto Humanitas Unisinos — IHU

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Vanessa Doumid Damasceno pensa o jogo como uma concepção do desenvolvimento humano, do ponto de vista biológico e cultural, a ser assumida no âmbito do ensino-aprendizagem de línguas, em particular, no ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa

POR BRUNA QUADROS

Em plena era digital, os jogos virtuais não servem apenas para entreter, mas, também, para educar. A inserção desta metodologia nos processos de apren-dizagem impulsiona o interesse e a motivação dos alunos pelo conteúdo das aulas, evitando, assim, a evasão escolar. Segundo a Profa. MS Vanessa Doumid Damasceno, em entrevista concedida por e-mail à revista IHU On-Line, qual-

quer jogo que tenha como enfoque a cooperação pode ser adotado como metodologia de ensino. No entanto, é o Role Playing Game, o RPG, que surge como uma das ferra-mentas virtuais mais utilizadas no processo de ensino. Isso “porque o jogador, além de desempenhar bem seu papel na aventura, precisa ter muita responsabilidade, cumprir regras, cooperar com o grupo e ainda manter a seriedade no jogo”. Para Vanessa, que estará no Instituto Humanitas Unisinos — IHU, no dia 18 de agosto, para discutir o tema O jogo digital nos processos de ensino aprendizagem de língua portuguesa: um estudo através das seqüências narrativas, no evento Encontros de Ética, esses quesitos todos são importantes na formação do caráter do indivíduo.

Vanessa Doumid Damasceno possui graduação em Letras, pela Universidade Católica de Pelotas (Ucepel), e mestrado em Lingüística Aplicada, pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Atualmente, integra o corpo docente da Escola de Ensino Fundamental Mario Quintana, em Pelotas, onde também é professora de cursos prepa-ratórios para concursos, revisora no Profícere e palestrante na Microlins.

Jogos digitais: aliados no processo de ensino-aprendizagem

IHU On-Line - Seus estudos têm como objetivo apresentar o jogo num am-biente digital, possibilitando o ensino-aprendizagem de língua portuguesa através da narrativa. Qual a efi cácia desta proposta, em comparação a um processo tradicional de ensino, que não utiliza jogos virtuais?Vanessa Doumid Damasceno - Um dos assuntos mais discutidos em educa-ção, atualmente, é como aumentar o interesse dos alunos e evitar a evasão escolar. O uso de jogos virtuais, como estratégia de ensino, é extremamente efi caz para o aumento da motivação dos alunos e uma poderosa ferramenta do professor para o processo ensino-aprendizagem. Além disso, os jogos de RPG são essencialmente cooperativos.

IHU On-Line - Além do RPG, que ou-tros jogos virtuais podem ser adota-dos como metodologias de ensino? De que forma estes ambientes refl e-tem no desenvolvimento humano, do ponto de vista biológico e cultural?Vanessa Doumid Damasceno - Qual-quer jogo que tenha como enfoque a cooperação pode ser adotado como me-todologia de ensino. Pois o “jogo pelo jogo” não traz resultados positivos para a educação. Determinados jogos podem promover, junto com a motivação e a aquisição de conteúdo, algumas atitu-des não desejadas pelos professores, como a competitividade excessiva. Fá-bio Brotto, em seu livro Jogos coopera-tivos,1 preconiza que, “se o importante

1 Brotto, Fábio. Jogos cooperativos. São Pau-

é competir, o fundamental é cooperar” e, com isso, propõe um novo paradigma para os jogos. Nesse novo enfoque, a vi-tória pode (e deve) ser alcançada quan-do um jogador ajuda o outro a vencer, para que ambos possam vencer juntos. Nos jogos tradicionais, derivados dos esportes, o enfoque é competitivo, ou seja, para haver vitorioso, tem de ha-ver um derrotado. Se admitirmos que situações vividas por um indivíduo em um jogo refl etem o comportamento dele na vida ou vice-versa, esse com-portamento “competitivo” durante o jogo não pode ser considerado educa-tivo. Os professores necessitam, cada vez mais, de estratégias motivadoras, e

lo: 1999, Projeto Cooperação Editora. (Nota da IHU On-Line)

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“O uso de jogos virtuais, como estratégia de ensino, é

extremamente efi caz para o aumento da

motivação dos alunos e uma poderosa ferramenta do

professor para o processo ensino-aprendizagem”

que agreguem aprendizagem de conte-údo com desenvolvimento de aspectos comportamentais positivos, de acordo com o planejamento escolar. Sendo as-sim, os jogos atingem a primeira parte da assertiva, pois, inegavelmente, são atividades que geram motivação intrín-seca. Jogos comuns que desenvolvam o conteúdo são encontrados facilmente em diversos livros, manuais e outras mí-dias, como CD-Roms, Livros-Jogo, Jogos em Rede. Porém, ainda falta a esses jo-gos alguns componentes comportamen-tais, como a socialização, a expressão e, principalmente, a cooperação. É pre-ciso, portanto, que se tenha um jogo cooperativo e que possa proporcionar a construção do conhecimento que o pro-fessor pretende desenvolver.

IHU On-Line - Em que fase da vida (infância, adolescência...) o uso de jogos digitais no processo de ensino-aprendizagem apresen-ta resultados mais signifi cativos? Vanessa Doumid Damasceno - Os jogos eletrônicos denominados de Role Playing Game — RPG enfatizam narrativas de fantasia num contexto histórico. São exemplos de resolução de problemas projetados com uma abordagem lúdica. Os adolescentes repetem a experiência lúdica do faz-de-conta da infância na perspectiva desenvolvista e cultural, com a serie-dade de regras escritas em ambien-tes virtuais que “ensinam” a criar um mundo fi ctício com regras próprias, por isso a escolha de trabalhar esses jogos na adolescência.

IHU On-Line - A metodologia de inse-rir tais jogos na proposta pedagógica de ensino não tende a levar os alunos a imergir em um mundo individuali-zado, tendo em vista que o contato pessoal com os demais colegas po-deria estar prejudicado? Além desta

possível individualização, que outros riscos estes jogos podem apresentar?Vanessa Doumid Damasceno - Como o jogo se dá em grupo e sempre há uma tarefa a ser solucionada cooperativa-mente, o RPG está muito próximo das dinâmicas de treinamento empresarial usadas nos dias atuais, o que o torna importante na escola, pois os alunos são inseridos nos conceitos modernos de trabalho e relações pessoais, que valorizam muito a capacidade de tra-balho em grupo. O jogo de RPG tem um destaque especial, porque o joga-dor, além de desempenhar bem seu papel na aventura, precisa ter muita responsabilidade, cumprir regras, co-operar com o grupo e ainda manter a seriedade no jogo. Esses quesitos to-dos são importantes na formação do caráter do indivíduo.

IHU On-Line - A senhora afi rma que os jogos digitais não são modismos ou algo passageiro, mas, sim, algo que possa realmente contribuir com a formação humana. Por que esta forma de ensino consegue prender a atenção dos alunos, fato que, nos métodos convencionais, às vezes, não acontece? O que garante que os jogos não são apenas modismos?Vanessa Doumid Damasceno - Penso o jogo como uma concepção do desen-volvimento humano, do ponto de vista biológico e cultural, a ser assumida no âmbito do ensino-aprendizagem de línguas, em particular, no ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa. Maturana2 & Verden-Zoller (2004),3

2 Humberto Maturana: biólogo chileno, cria-dor da autopoiese e um dos propositores do pensamento sistêmico. É doutor em Biologia pela Universidade de Harvard, tendo alcança-do repercussão mundial ao lançar as noções de biologia do conhecimento e biologia do amor. (Nota da IHU On-Line)3 Gerda Verden-Zöller: psicóloga alemã. É membro do Centro Bávaro de Pesquisa Educa-cional do Instituto Estatal para a Educação na Primeira Infância e fundadora do Instituto de

com a credibilidade científi ca que seus trabalhos possuem, propõem que o ato de jogar contribui tanto para o desen-volvimento biológico quanto cultural. Aponta-se, assim, a estreita implica-ção do jogo para o processo de ensino-aprendizagem. Os dados da pesquisa desses autores sobre o conhecimento do próprio corpo e do corpo do outro, em relação à consciência social das crianças, indicam uma capacidade operacional que elas adquirem normal-mente, como resultado de seu viver num domínio de total aceitação mútua nas interações com suas mães. A partir daí, pode-se defender a idéia de que os jogos, no caso, desse estudo, os jo-gos digitais, não são modismos ou algo passageiro e sim algo que está relacio-nado ao desenvolvimento humano. Os autores, em suas conclusões, propõem que as consciências individual e social da criança surgem mediante suas inte-rações corporais com as mães, numa dinâmica de total aceitação na intimi-dade do brincar. Ninguém pode agir ou comporta-se fora do domínio de pos-sibilidades que sua corporeidade (é a maneira pela qual o cérebro reconhe-ce e utiliza o corpo como instrumen-to relacional com o mundo) implica. Uma criança necessariamente chegará a ser, em seu desenvolvimento, o ser humano que sua história de interações com sua mãe e os outros seres que a rodeiam permitir, dependendo de como sua corporeidade se transforme nessas interações.

IHU On-Line - Qual é o papel dos pais, diante deste novo modelo de ensino que está se instaurando na socieda-de, partindo da premissa de que a criança tem fácil domínio sobre os jogos e, conseqüentemente, poderia dispensar o auxílio do pai e da mãe? Vanessa Doumid Damasceno – Atual-mente, as mães estão mais voltadas para o lado profi ssional, e as condições das sociedades modernas submetem à continua exigência de afastar a aten-ção de seus fi lhos, ocasionando nas crianças uma difi culdade para o desen-

Pesquisa de Ecopsicologia da Primeira Infância de Passau, na Bavária. Escreveu, juntamente com Humberto Maturana, o livro Amar e brin-car — Fundamentos esquecidos do humano (São Paulo: 2004, Palas Athena Editora). (Nota da IHU On-Line)

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volvimento adequado de sua consciên-cia individual e social. Nesse sentido, deve-se pensar criticamente a afi rma-tiva de que brincar é coisa de criança. Com esse mundo dos jogos virtuais, vi-deogames, surge o fascínio do brincar e a ressignifi cação do brinquedo tanto para crianças como para adultos.

IHU On-Line - Como a senhora defi -ne a crise da representação que os meios digitais permitem, conforme apontado nos seus estudos?Vanessa Doumid Damasceno - O ad-vento da tecnologia digital cria um corte epistemológico. É uma crise da representação que os meios digitais permitem. Isso se chama de corte epistemológico, autorizando a criação de seres absolutamente fantásticos, em que se rompe a relação de adequa-ção com o mundo dito representacio-nal, base para a existência de signos. Não se assume, na radicalidade, ain-da, esse corte epistemológico. Talvez essa seja a razão pela qual jogar RPG é questionável pela cultura do adulto. Penso que, para haver a ruptura epis-temológica que o mundo dos games exige, seja necessário trazer o elemen-to de uma estética que desconstrói o analógico — trata-se, possivelmente, da estética contemporânea. Nela, vê-se a possibilidade do imaginário que os games solicitam, em nosso entendi-mento. A criança e o adulto que estão expostos a um cotidiano da estética contemporânea por certo terão uma atividade e julgamento favoráveis ao que os jogos eletrônicos lhes solicitam. É importante afi rmar que a compreen-são da cultura infantil dos games exi-ge sua vinculação à estrutura familiar, à arte contemporânea e à tecnologia digital. Os games pressupõem, do pon-to de vista do usuário, uma profunda transformação da estrutura familiar — do mundo adulto e infantil. No mun-do do trabalho, criança e jovem vão para a rua. Ocupam os espaços urba-nos. Trata-se de uma cultura de ocu-pação da cidade: vitrines, vendedores ambulantes e casas de jogos. O brincar surge indiferenciado entre o privado, a casa, e o público, a rua.

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Em continuidade ao evento O capitalismo visto pelo cinema, o Centro de Apoio e Pesquisa aos Trabalhadores (CEPAT) exibirá o fi lme Tucker — Um homem e seu sonho. A obra, de 1988, dirigida por Francis Ford Coppola, será exibida e debatida no dia 16 de agosto, sob a perspectiva do capitalismo concor-

rencial (mercado e Estado). Além de proporcionar uma refl exão acerca do atual contexto de so-

ciedade, embasado na lógica capitalista, o objetivo do evento é identifi -car os códigos usados em cada um dos fi lmes que serão exibidos, estabe-lecendo uma relação à compreensão científi ca do capitalismo. Mais do que isso, pretende relacionar o desenvolvimento do capitalismo com as atuais formas de organização econômica e social, através dos debates.

Com entrada gratuita, a exibição do fi lme será no Sindicato dos En-genheiros — SENGE/PR, das 8h30 às 12h30. O evento é promovido em parceria com o Instituto Humanitas Unisinos — IHU.

O capitalismo visto pelo cinema: Tucker — Um homem e seu sonho

A realidade da proteção social e previdenciária dos

trabalhadores do Vale do Sinos em debate

No dia 13 de agosto, o Instituto Humanitas Unisinos — IHU dá conti-nuidade ao evento Conversas sobre o mundo de trabalho e a vida dos tra-balhadores: as políticas de trabalho, emprego e renda na região do Vale dos Sinos. Desta vez, o tema será analisado sob a perspectiva da proteção social e previdenciária dos servidores. Entre os debatedores, que estarão provocando uma análise refl exiva sobre o assunto, está a professora e es-pecialista em Direito Previdenciário Rosângela Maria Herver dos Santos, integrante do corpo docente da Unisinos, no curso de Direito, e membro da Comissão Municipal de Emprego e Renda de São Leopoldo.

Ao conversar por telefone com a revista IHU On-Line, Rosângela sa-lientou que o número de pessoas que, por motivo de doenças crônicas e irreversíveis ou pela falta de oportunidades no mercado de trabalho, cresce constantemente. Diante desta situação, “faltam medidas assis-tenciais para quem deixa de contribuir com o Instituto Nacional de Se-guridade Social (INSS), devido às circunstâncias apontadas acima”, diz ela. Durante o evento, a professora irá abordar o refl exo desta situação, para a população mais carente, que sofre com o desamparo previden-ciário. “Ao deixarem de contribuir, os trabalhadores perdem o direito à assistência, mas esta situação não pode continuar”, destaca.

De acordo com Rosângela, a saída para quem enfrenta esta reali-dade acaba sendo a aposentadoria por idade ou, ainda, ingressar com um processo por meios judiciais. “Muitas vezes, as pessoas acabam perdendo o benefício previdenciário por causa de doenças adquiridas no próprio ambiente de trabalho.” Esta e outras questões tentarão ser respondidas no evento, que será realizado na sala 1G119, junto ao Ins-tituto Humanitas Unisinos — IHU, das 19h30 às 22h.

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Perfi l Popular

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Simples e elegante. Estas palavras mostram um pouco da per-sonalidade de Iolanda Gomes, 60 anos, o Perfi l Popular desta semana. Em visita à redação da revista IHU On-Line, ela des-tacou que um dos princípios que seus pais lhe transmitiram e que ela honra até hoje é a honestidade. A vida em São

Leopoldo, sua cidade natal, foi simples. Filha única, Iolanda não teve muitos amigos, quando era criança. Ela conta que fez amigos no grupo de Economia Solidária Magia do Encanto, também de São Leopoldo, do qual faz parte há um ano. O trabalho foi uma das maneiras que ela en-controu para se distrair, depois que fi cou viúva, há dois anos. Conheça um pouco mais da história de Iolanda Gomes:

Iolanda Gomes

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A cidade de São Leopoldo, na região do Vale do Rio dos Sinos, é o município de origem de Iolanda Gomes, dona de casa, 60 anos. Filha dos operários Ger-vázio Martins Lucas e Maria Célia Lu-cas, Iolanda conta que sua família era muito simples, mas lhe ensinou a cres-cer com dignidade. “Ser honesta. Esta foi o principal valor que meus pais me passaram.” Filha única, Iolanda não teve muitos amigos, quando criança. Aliás, esta, foi uma fase da vida que ela não pôde desfrutar. “Naquela épo-ca, tu estudavas pela manhã, teus pais trabalhavam fora e, à tarde, tu tinhas que fazer a lida da casa. Não tinha muita chance de brincar.” Filha única, Iolanda lembra que seus pais não lhe deram todo o carinho que ela gostaria de ter recebido. “Às vezes, fi co pen-sando que me faltou isso na infância. Eles eram muito antigos e também não tiveram esse carinho, por isso não po-diam me dar.”

O gosto pelos estudos era intenso, durante a juventude. No entanto, por falta de incentivo do seu pai, ela cursou apenas até a 2ª série ginasial, hoje, En-

sino Médio. “Se eu fosse mais nova, vol-taria a estudar. Gostaria de ser juíza.” Na trajetória profi ssional, Iolanda tem uma breve passagem, de dois meses, no escritório das Lojas Pernambucanas, quando estava com 16 anos de idade. “Como eu era fi lha única, minha mãe dizia que eu não iria servir de escrava para os outros, trabalhando em fi rmas.” Iolanda conta que sempre fi cou em casa, e é dona de casa até hoje. Aos 24 anos, casou e começou a construir a sua fa-mília. O marido, Mário Gomes, também achava que a mulher não era para o lar, mas, sim, para trabalhar. O casamento, que durou 33 anos, foi interrompido em 2006, com a morte do esposo.

Da união, fi cou um único fi lho, o Má-rio Gomes Júnior, que está com 29 anos. “Meu fi lho é a minha vida. É o que me restou. Minha família é o meu fi lho, a coisa mais importante que tenho.” De-pois que fi cou viúva, Iolanda precisou de algo que pudesse servir como distra-ção. E encontrou. Há um ano, faz parte do grupo Magia do Encanto, baseado nos princípios da Economia Solidária. “Para mim, foi uma terapia. Eu estava

muito triste, depois da morte do meu marido. Não sabia que rumo tomar.” Foi através de uma amiga que Iolanda conheceu o trabalho desenvolvido no grupo, “uma forma que achei de não pensar no problema e me distrair.” Nesta atividade, o foco de Iolanda é a culinária. É ela quem prepara os pas-téis de forno comercializados nas feiras de Economia Solidária. “Me sinto muito feliz no grupo. Encontrei amigos que, durante a infância, não tive.”

Atualmente, Iolanda mora no bairro Campina, em São Leopoldo. Ela conta que, nos momentos de folga, dispensa badalações. “Não gosto de bailes, nem de cinema. Sou muito de fi car em casa, mas gosto muito de ir à Igreja. Sou ca-tólica praticante.” Sobre a política bra-sileira, Iolanda acredita que há muita corrupção. No entanto, “não podemos generalizar; ainda há políticos bons. Não estou muito satisfeita, assim como muitos brasileiros”. Na opinião dela, há muito para mudar no país, e esta mudança depende do povo, “porque somos nós quem escolhemos as pessoas para governar”.

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IHU Repórter

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O interesse pelo idioma inglês acompanha Adriana Karnal, 38 anos, desde a infância. Aos 16 anos, a língua passou a ser encarada como profi ssão, quan-do ela começou a dar aulas de inglês em cursinhos. No ensino superior, a opção foi pela faculdade de

Publicidade e Propaganda, cursada na Unisinos. No entanto, a passagem por esta área foi muito breve, e Adriana decidiu que seria, mesmo, professora de inglês. Em 2003, ela ingressou na Unisinos, como docente, no Unilínguas, instituto de idiomas da universidade. Hoje, ela também leciona na área de inglês técnico para os cursos de engenharia e para as áreas de admi-nistração, nos cursos de Gestão e Comércio Exterior. Em entre-vista à IHU On-Line, ela destacou aspectos marcantes da sua trajetória de vida e, ainda, elogiou o governo Lula.

Adriana Karnal

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Origens – Nasci em São Leopoldo, onde moro até hoje. Sou de uma família grande: somos quatro irmãos. Eu sou a do meio e estou com 38 anos. O meu pai tinha uma empresa de calça-dos e também passou pelas difi culdades que as empresas do setor calçadista tiveram no início dos anos 1990. Hoje, ele e minha mãe estão direcionados para a espiritualidade, traba-lhando com terapias alternativas.

Infância – Passei a infância e adolescência no bairro Cristo Rei. Nós tínhamos sítio em Guaíba, então eu pescava, anda-va de bicicleta, jogava bolinhas de gude com o meu irmão e brincava de bonecas. Foi uma infância muito vívida. Hoje, o

>> “Olá! Parabenizo a edição da IHU On-Line, desta semana. Achei riquíssimas as refl exões so-bre o tema que traz o signifi cado da fi gura pa-terna, tema merecedor de aprofundamento. Estamos num momento de revisão de valores e investigação dos indicadores sociais para tentar explicar a ocorrência da violência e vários estudos têm demonstrado grande re-lação nas causas da violência com a ausência da fi gura paterna na estruturação dos sujeitos. Ótima leitura, adorei. Obrigado por me enviar. Abraço.”Rochele Sachet, membro da Fundação de Assistência Social da Prefeitura Municipal de Caxias do Sul.

>> “Recebi pelo correio a revista com as várias entre-vistas e fi quei muito bem impressionada com o traba-lho que vocês conseguiram fazer. Não sei como se dá a distribuição da revista, mas seria bem interessante pela temática que pudessem fazer circular junto aos PPG’s de Política, Antropologia ou História aqui da UFRGS ou mes-mo da PUC, pois o material está muito bom. Abraço.”Maria Izabel Noll, professora e coordenadora do PPG em Ciência Política da UFRGS, entrevistada na IHU On-Line número 264, de 30 de junho de 2008, cujo tema de capa é A crise gaúcha. Algumas refl exões críticas.

>> “Muito obrigado pela amabilidade de me enviar a entrevista, que saiu excelente. Vocês conseguiram realmente captar com muita felicidade o que era mais importante nas respostas. Abraços”.Rubens Ricupero, ex-secretário geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), entrevistado na IHU On-Line número 267, de 04 de agosto de 2008, sobre a Rodada Doha e a postura do Brasil em relação ao agronegócio.

>> “Muito grata pela notícia da publicação de nossa ma-téria. Já percorri os três links e reforço minha excelente impressão pelo sério e dedicado trabalho dessa editoria. Gostaria de deixar meus cumprimentos a todos da IHU On-Line e colocar-me à disposição para qualquer ativida-de que possa colaborar com a revista. Novamente, meus cumprimentos a toda equipe pela revista que está de grande valor cultural e interessantíssima.”Yeda Arouche, entrevistada na IHU On-Line número 265, de 21 de julho de 2008, cujo tema de capa é Nazismo: a legitimação da irracionalidade e da barbárie

>> “Muito obrigado pelo envio da revista. Ficou muito bom e fi co muito contente com esta participação.”Márcio Seligmann-Silva, entrevistado na IHU On-Line número 265, de 21 de julho de 2008, cujo tema de capa é Nazismo: a legitimação da irracionalidade e da barbárie.

Cartas do LeitorReproduzimos mensagens recebidas recentemente, envia-das por leitores e entrevistados da revista IHU On-Line: