LEILA SILVA DE JESUS OS (DES)CAMINHOS DO INDIVÍDUO … · de si mesmo, isto é, ... Veltinho vive...

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS MESTRADO EM ESTUDO DE LINGUAGENS LEILA SILVA DE JESUS OS (DES)CAMINHOS DO INDIVÍDUO NA CIDADE: UMA LEITURA DE UM TÁXI PARA VIENA D’ÁUSTRIA Salvador 2015

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS MESTRADO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

LEILA SILVA DE JESUS

OS (DES)CAMINHOS DO INDIVÍDUO NA CIDADE:

UMA LEITURA DE UM TÁXI PARA VIENA D’ÁUSTRIA

Salvador

2015

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LEILA SILVA DE JESUS

OS (DES)CAMINHOS DO INDIVÍDUO NA CIDADE:

UMA LEITURA DE UM TÁXI PARA VIENA D’ÁUSTRIA

Salvador

2015

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de

Pós-graduação em Estudo de Linguagens da

Universidade do Estado da Bahia – UNEB Campus I,

como requisito parcial obrigatório para obtenção do grau

de Mestre em Literatura.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Augusto Magalhães.

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FICHA CATALOGRÁFICA

Sistema de Bibliotecas da UNEB

Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592

Jesus, Leila Silva de

Os (des)caminhos do indivíduo na cidade: uma leitura de Um táxi para Viena D’Áustria /

Leila Silva de Jesus . – Salvador, 2015.

97f.

Orientador: Carlos Augusto Magalhães.

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências

Humanas. Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens Campus I.

Contém referências.

1. Torres, Antônio, 1940 - -Crítica e interpretação. 2. Literatura - Crítica e interpretação.

3. Linguagem e cultura. I. Magalhães, Carlos Augusto. II. Universidade do Estado da Bahia,

Departamento de Ciências Humanas.

CDD: B869.3

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TERMO DE APROVAÇÃO

LEILA SILVA DE JESUS

OS (DES)CAMINHOS DO INDIVÍDUO NA CIDADE:

UMA LEITURA DE UM TÁXI PARA VIENA D’ÁUSTRIA

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Literatura,

Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia –

UNEB CAMPUS I, pela seguinte banca examinadora:

Carlos Augusto Magalhães – Orientador ____________________________________________

Doutor em Letras, Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Universidade do Estado da Bahia

Elisabeth Gonzaga de Lima: ______________________________________________________

Doutora em Teoria e História Literária, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Universidade do Estado da Bahia

Aleilton Santana da Fonseca: ______________________________________________________

Doutor em Literatura Brasileira, Universidade de São Paulo (USP)

Universidade Estadual de Feira de Santana

Salvador, ___ de ______________ de 2015.

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AGRADECIMENTOS

Ao Professor Doutor Carlos Augusto Magalhães, pela orientação e sabedoria, pela paciência e

por transmitir sua paz e tranquilidade nos momentos de inquietude e desespero.

À Profª Drª Elisabeth Gonzaga de Lima, ao Prof. Dr. Cláudio Cledson Novais e ao Prof. Dr.

Aleiton Santana da Fonseca, pela atenção em aceitar o convite para participar da Banca

Examinadora.

Aos professores, pelas aulas enriquecedoras e pelas sugestões sempre oportunas.

Ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia.

Aos colegas do curso, parte desta jornada, pela busca do conhecimento e crescimento intelectual.

Em especial, a Antônia Claudia Cordeiro com quem dividi minhas inquietações e

questionamentos.

Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação, pela generosidade e gentileza no atendimento.

A meus pais, pelo apoio incondicional e pelo incentivo.

Aos amigos, pelas palavras de encorajamento e de compreensão nos momentos de ansiedade e de

crise. A Rafael Miguel dos Santos, sem o qual não haveria pesquisa nem sofrimento.

A todos que, direta ou indiretamente, contribuíram com a realização desta pesquisa.

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[...] Quanto mais pesado é o fardo, mais próxima

da terra está nossa vida, e mais real e verdadeira

ela é.

Em compensação, a ausência total de fardo leva o

ser humano a se tornar mais leve do que o ar,

leva-o a voar, a se distanciar da terra, do ser

terrestre, a se tornar semi-real, e leva seus

movimentos a ser tão livres como insignificantes.

(Milan Kundera, 2008, p. 11).

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RESUMO

A pesquisa busca fazer uma análise das transformações das vivências e das experiências do

sujeito contemporâneo, a partir da observação de suas relações consigo e com o Outro, tomando

como base a leitura do romance Um táxi para Viena d’Áustria, de Antônio Torres. O estudo

procura observar, também, as relações do sujeito com as instâncias existenciais do tempo e do

espaço. Ambientada no Rio de Janeiro, a narrativa tematiza tal urbe como espaço desestabilizado

e desestabilizador, uma vez que se apresenta não só como cenário que possibilitaria ou até

mesmo encaminharia processos de perda de referências, mas também como palco onde se

processam e se encenam quadros de violência, decorrentes, principalmente, das desigualdades,

diferenças e segregações. A proposta de trabalho se fundamenta ainda na compreensão de que tal

romance possibilita uma reflexão perspicaz sobre o sujeito desnorteado e imerso em crise,

condição que se adensa ante os estágios dos sentimentos de incerteza, insegurança, desamparo e

solidão.

Palavras-chave: Literatura; Sujeito; Cidade; Vivência; Experiência.

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ABSTRACT

The research seeks to analyze the life lessons and the experiences of the contemporary subject,

from the observation of his/her relation with himself/herself and with the other, taking as a basis

the reading of the novel Um Táxi para Viena d’Áustria by Antônio Torres. The study also aims to

observe the subject relations with the existential instances of time and space. Set in Rio de

Janeiro, the narrative thematizes such city as a destabilized and destabilizer space, once it

presents itself not only as a scenario that would enable or even lead to a reference loss process,

but also as a stage where violence, portraits are processed and staged, due mainly to inequalities,

differences and segregations. The proposal is still based on the comprehension that such novel

makes possible a perspicacious reflection about the bewildered add immersed in crisis subject, a

condition that worsens before the stages of feelings of uncertainty, insecurity, helplessness and

loneliness.

Keywords: Literature; Subject; City; Living; Experience.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 9

1 O JOGO NARRATIVO E SEUS DESDOBRAMENTOS......................................... 16

1.1 VOZES ESTILHAÇADAS ......................................................................................... 16

1.2 LEITURAS DA SUBJETIVIDADE: DESAMPARO E ABSURDO ........................ 23

1.3 ESTRUTURA E TEMA: UMA EQUIVALÊNCIA ................................................... 35

1.4 NAS TEIAS DA LINGUAGEM: METONÍMIA E METÁFORA ............................. 42

1.5 METÁFORA E MÚSICA: REPRESENTAÇÕES ..................................................... 53

2 O SUJEITO E A CIDADE .......................................................................................... 59

2.1 NAS TRILHAS DO INDIVIDUALISMO ................................................................ 69

2.2 O EU NO CONTEXTO SOCIAL .............................................................................. 78

2.3 GEOGRAFANDO A VIOLENTA CIDADE ............................................................ 86

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 92

REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 95

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INTRODUÇÃO

O texto literário, com todas as suas nuanças, desde sempre se apresenta não só como

espaço de interação com o mundo, como também das representações desse universo. As

narrativas que abordam vivências e experiências com o tempo e com o espaço têm sido

recorrentes, até porque a preocupação com tais categorias sempre se constituiu em uma das mais

densas inquietações existenciais do homem e se acirraria no mundo contemporâneo1. O romance

Um táxi para Viena d’Áustria, de Antônio Torres, expõe questões relacionadas com a

desorientação do sujeito, integrante da cidade caótica, o qual se vê enredado em novas

configurações sociais que podem e costumam desestabilizar sua trajetória. Essa narrativa permite

inferir que as rápidas e intensas transformações nas relações com a dupla de esferas – tempo e

espaço – podem desencadear formas e modos inusitados com que o sujeito passa a se ler, a se

relacionar e a interagir consigo e com o outro.

Na contemporaneidade, há um maior intercâmbio de culturas, as distâncias diminuem e

também há um aumento da competitividade e do individualismo, o que acarreta igualmente a

diminuição da solidariedade e da construção de projetos coletivos que possam se agregar. Na

narrativa em estudo, o mundo retratado é instável, incerto, e a relação de pertencimento a tal

universo torna-se frágil, o que leva o sujeito a fazer indagações acerca da vida e do próprio

destino. Veltinho, protagonista do romance, valendo-se da memória e do sonho, empreende uma

aguda reflexão sobre o espaço citadino e suas transformações ao longo de sua trajetória de

migrante que se instala na metrópole, além de refletir também sobre a própria história pessoal.

Por um lado, Veltinho nos apresenta um Rio de Janeiro de sons e belas paisagens e, em outra

direção, nos é mostrado uma cidade bem diferente – suja, desorganizada, engarrafada,

burocrática, que tenta estabelecer relações com o mundo globalizado, ainda que não disponha de

suporte satisfatório para isso. Ao mergulhar na própria interioridade, o protagonista busca

1 São focalizadas aqui as décadas de 1950/1960, período no qual a migração e a vida urbanas se acirram no Brasil.

Com efeito, as estatísticas mostram o crescimento populacional das cidades brasileiras, em especial, do Rio de

Janeiro, urbe diretamente relacionada com as abordagens que aqui se farão. Convém chamar atenção que o signo

contemporâneo se faz presente ao longo desse texto levando-se em consideração o sentido com que o termo é

empregado nos dias atuais, principalmente, no universo urbano. Contemporâneo é visto como o que se relaciona

como próprio do momento atual. Não são ignorados os argumentos do filósofo italiano Giorgio Agamben para quem

contemporâneo vem a ser justamente o inatual. (O que é o contemporâneo? e outros ensaios).

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estabelecer outras leituras e outras relações com o espaço, em termos de constatar e avaliar como

a praia, o calor, o mar são preteridos pelo habitante que se entrega à política e à espoliação

econômica, aspectos negativos que vão repercutir em cheio na vida familiar. O olhar restritivo

sobre a urbe recorta-a sob a ótica da violência, do congestionamento, do caos, da mesquinhez das

práticas cotidianas, do desemprego. Todos esses aspectos repercutem e caracterizam os desgastes

e as perdas de qualidade de vida.

Nesse sentido, buscou-se investigar como se realiza o processo de desorientação do

personagem, ante os impasses sociais e culturais, interpretado através das transformações

ocorridas nos processos de vivências e de experiências2 com o tempo e com o espaço. A narrativa

problematiza a perda de referências no mundo contemporâneo, a partir da voz de Veltinho, que

analisa a própria trajetória. Esse balanço lhe permite articular o drama individual e psicológico

com o percurso pessoal empreendido na cidade.

O narrador-personagem nos apresenta a fragilidade do eu diante das exigências e

contradições do mundo. Veltinho, homem migrante, internaliza os códigos das metrópoles (São

Paulo e Rio de Janeiro), estabelecendo novas identificações. Ascende social e economicamente,

mas passa a vivenciar uma desorientação em decorrência do desemprego, o que o faz perceber, de

outro modo, a cidade e seus habitantes. Entram em cena aí leituras críticas, melancólicas e menos

esperançosas.

Na problematização dessa temática, o intuito foi analisar o discurso apresentado na

narrativa e os elementos estruturais que permitem caracterizá-la como uma metonímia do sujeito

contemporâneo. As imagens criadas ao longo da narrativa buscam ilustrar o desassossego e a

inquietação que se fazem presentes tanto no recurso narrativo como na mente tumultuada do

personagem em contato diuturno com a urbe. Veltinho entra em um processo de confusão

temporal, em termos de desconexão do passado com o presente, o que, de certa forma, remete-o a

estágios de delírios. As fantasias, melhor dizendo, os delírios são decorrência do sentido de perda

de si mesmo, isto é, Veltinho vivencia o sentimento de esmaecimento das referências, do não

reconhecimento individual, do afastamento de si.

Veltinho vive e enfrenta os desafios da cidade, mas também convive com uma sofrida

inquietude e perda de autoestima, que o levam a se jogar nas situações e configurações intricadas

com que se delineiam os mecanismos das novas relações econômicas da metrópole carioca,

2 Os conceitos de “vivência” e “experiência”, na perspectiva benjaminiana, serão qualificados mais adiante.

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interações essas que o descentram, empurrando-o para a crise. Ao fracassar no plano pessoal, o

personagem se vê movida por estranhamentos que se articulam com o desfazimento das ilusões e

dos sonhos, tão carinhosamente acalentados ao longo da vida. O fato é que, inesperada e

abruptamente, Veltinho se torna um assassino – mata Cabral, seu melhor amigo!

Após o crime, o personagem entra num táxi, momento e lugar que remetem o tumultuado

homem ao refúgio possibilitado por devaneios que o reconduzem a momentos da infância. Nesse

sentido, usando a memória, o protagonista se vê na casa do bisavô, local e tempo em que

experimenta um sono tranquilo e reparador. O sonho e o sono são interrompidos pelo barulho

decorrente de um assassinato e, naquele momento, sua mente se fixa nas artimanhas e saídas que

o homicida teria de empreender para não ser preso, para não ter de expiar a culpa. Preocupa-se

também com o que estaria ocupando a mente do criminoso. Agora, ante a própria experiência

com o crime, Veltinho, no táxi, num estado de delírio, se pergunta qual teria sido o último

momento em que vivenciara um sono realmente tranquilo. Agora, também como assassino, ele

imagina modos e formas de escapar do fato há pouco acontecido. E se instala a metáfora da saída

via Viena d’Áustria. Ele se imagina na capital europeia, dançando com uma loura numa praça

vienense. O táxi é o veículo que o conduz para aquele mundo de tranquilidade, paz e ausência de

culpa. Culpa que comparece não só em função do ato violento efetivamente praticado, mas

também, e talvez com mais ênfase, diante da massacrante situação de desempregado, condição

social que tanto sofrimento lhe causa.

Retrato dos terríveis sofrimentos e autoacusações e dos dramas enfrentados na atualidade,

o narrador-personagem costura a narrativa interligando os fios da memória e do sonho, resultado

que brota do entrecruzamento de fronteiras geográficas e temporais. Enfim, Veltinho se situa

entre a mobilidade desejada e a impossibilidade de fuga.

O delírio remete Veltinho a um universo em que, aleatoriamente, faz uma reflexão sobre

sua condição no mundo e o próprio senso de pertencimento é questionado. Desse modo, faz um

balanço sobre sua vida, isto é, o estágio de semiconsciência faz com que ele busque tecer os fios

de sua história. Nesse momento de introspecção, ele se vê descentrado, flerta com o suicídio, mas

de certa forma volta ao real e, diante da impossibilidade de escapatória, embora não consiga

estabelecer que caminho seguir, opta pela vida.

A narrativa em fragmentos, dotada de estrutura não linear, mistura sonho e realidade,

elementos com que se ilustram as dificuldades de encarar e de lidar com as exigências do mundo

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adulto. O delírio lhe possibilita o retorno à infância, tempo-espaço do contato com o prazer, uma

vez que o tempo-espaço contemporâneo o coloca em contato com a violência urbana, com a

indiferença e com a discriminação étnico-social. O devaneio de Veltinho lhe permite realizar o

sonho e o desejo de paz e serenidade, conquistas que a música das ruas de Viena lhe

proporcionaria.

Um táxi para Viena d’Áustria ilustraria uma possibilidade de reflexão ante o nonsense e a

crise de valores com que se depararia o sujeito contemporâneo. As variadas e rápidas

transformações tempo-espaciais impõem ao sujeito o desafio de informar-se e colocar-se sempre

em alerta diante da rapidez com que a superação e a instalação de valores se fazem valer; é como

se passasse a ser imperativo um contínuo vestir-se e desvestir-se. Os aspectos e as relações com o

tempo e espaço são analisados mais adiante, levando-se em consideração, sobretudo as

perspectivas e pontos de vista de David Harvey (2012) e Fredric Jameson (2002).

As reflexões desses autores sobre o momento atual permitem que se chegue à conclusão

de que a vivência e a experiência com o tempo e com o espaço desencadeariam, no homem

contemporâneo, relações em que ganhariam corpo situações de conflito, insegurança, solidão,

crise de valores.

Para o estudo dessas questões, foram buscados suportes nas teorias e críticas de Walter

Benjamin, Paul Ricouer, Zygmunt Bauman, Frederic Jameson, David Harvey, Sérgio Paulo

Rouanet, Michel Le Guern, Jesús Martín-Barbero, Néstor García Canclini, Alfredo Leme Coelho

de Carvalho, Carlos Augusto Magalhães. O trabalho se estrutura a partir de duas seções: O JOGO

NARRATIVO E SEUS DESDOBRAMENTOS; e O SUJEITO E A CIDADE.

Na primeira seção, o estudo concentra-se na estrutura, no foco narrativo e na linguagem

de Um táxi para Viena d’Áustria, elementos que colocariam esse romance no rol de importantes

produtos da ficção brasileira contemporânea. O romance, construído a partir da mimetização de

uma espécie de delírio, condição que o torna um relato pleno de cortes e de interrupções, vem a

ser a representação de um universo bastante familiar ao cidadão contemporâneo, realidade e

percepção que não poderiam estar ausentes nas representações artísticas atuais. O texto é

atravessado por linguagens, imagens, ecos, ressonâncias que desencadeiam uma identificação,

talvez até por conta dos processos vivenciais de um sujeito em cuja vida se entrecruzam estágios

de segmentação articulados com a fantasia ou com a memória.

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A metonímia e a metáfora são apresentadas como mecanismos com que se busca fazer a

leitura do sujeito, como também de sua relação com o universo urbano. Elementos que se fazem

presentes ao longo da narrativa, a metonímia e a metáfora constroem e disponibilizam as imagens

mais expressivas do romance. Os recursos simbólicos da metáfora permitem que se discutam as

contingências da vida e da morte, além de ilustrarem um dos impasses relacionados com uma

questão tempo-espacial – a dificuldade da mobilidade urbana, entrave de que padecem as grandes

cidades brasileiras. A inviabilização do trânsito vem a ser importante metáfora com que se traduz

não só o estágio vivencial de Veltinho, mas do país como um todo, paralisado por problemas de

ordem geral, especialmente os de natureza econômico-social. Com a metáfora, constrói-se uma

imagem de um Brasil engessado, imóvel, num impasse que atravanca qualquer mobilidade e

qualquer saída redentora.

A segunda seção apresenta os conflitos internos vivenciados e experienciados pelo

personagem, levando-se em conta suas dúvidas e angústias, diante de uma cidade que se mostra

caótica e indiferente àqueles que não se encaixam nas engrenagens que a movimentam. O Rio de

Janeiro muda e, com isso, a percepção do personagem acerca dele; são muitas as transformações

físicas, sociais e culturais, contornos definidos pela movimentação das categorias do tempo e do

espaço, fundamentais nos desenhos da trajetória do sujeito.

A narrativa Um táxi para Viena d’Áustria aborda temas universais, a exemplo de vivência

de crises, da solidão, da sensação de estar deslocado, e, sobretudo, dos impasses do mundo

contemporâneo, situações com que também se elabora uma crítica à sociedade capitalista. Como

se pode observar, as ações sociais mediadas pelo capitalismo se fundamentam no valor

econômico, fator que também interfere nas relações com o tempo e o espaço, posto que essas

categorias, constantemente, são olhadas, vivenciadas e transformadas em perdas e ganhos. Tais

relações não interferem somente nos modos de relacionamento com as mercadorias, mas também

com o indivíduo, envolto em práticas nas quais ele próprio é tratado à luz de um crescente

utilitarismo reducionista e nivelador.

As mudanças advindas da produção em massa, a padronização dos bens, a diluição das

fronteiras de espaço e de tempo, o fluxo contínuo de renovação pela renovação das coisas e até

mesmo de pessoas, enfim, tudo faz com que as relações se tornem diluídas e sem densidade. É o

que se observa no esmaecimento de fronteiras e distâncias, o sentimento de aceleração do tempo,

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a perda de sentido de interligação do passado com o presente e com o futuro, a inconsistência dos

contatos, relações e vínculos humanos.

As produções de Antônio Torres costumam tematizar a trajetória de seres tidos como

deslocados (louco, desempregado, migrante, suicida). Tais personagens e situações ilustram, de

maneira crítica, quadros e perfis passíveis de localização no País como um todo. Retrata-se a

condição humana sob a ótica da liquidez e inconsistência do mundo. Trata-se de textos marcados

por metáforas e ironias que tanto impressionam o leitor. Antônio Torres joga com a linguagem

coloquial e cotidiana que contempla e abarca os mais diversos gêneros textuais – notícia de

jornal, poemas, canções. Há a mimetização tanto do universo rural do Brasil quanto de cenários

citadinos, além de temáticas históricas como a ocupação do País pelos portugueses e o sequestro

do Rio de Janeiro pelo corsário francês René Duguay-Trouin.

As vivências e experiências do escritor também se fazem sentir em seus textos, uma vez

que Antônio Torres apresenta-se como um migrante, jornalista e publicitário, como a maioria de

seus personagens. O próprio gesto da escrita, no romance em estudo, Um táxi para Viena

d’Áustria, ocorre levando-se em conta manifestações de seu inconsciente. Nesse sentido, Antônio

Torres narra um sonho em que ele teria disparado um tiro na barriga de um amigo. No sonho, é

como se o ventre expressasse a dor sentida, gritando “dói, dói, dói”. Depois do horror inicial,

diante de tanta violência, o escritor decide produzir um romance. Para que a atividade fosse

prazerosa, ele precisaria elaborar a atividade imaginativa, retirando o caráter de pessoalidade. Ao

compor a narrativa em estudo, a experiência onírica vivenciada estaria distante, pois tudo passa a

ser regido pelos percursos da ficcionalização. Guiado pela inspiração, o artista atende a um

desejo de expressão e faz o que, para ele, de fato importa – a escritura. O debate acerca da relação

entre a vida do autor e a obra criada, a linha que traçaria uma separação se faria presente na

ficcionalização, aspecto que, por si só, expõe traços e características que esboçariam universos do

real e da criação.

O sonho que Antônio Torres, efetivamente, vivenciara e veio a inspirar a escrita do

romance, foi descrito por ele como terrível3, a ponto de levá-lo a buscar a psicanálise com o

desejo de que viesse a entender o quê e o porquê daquele sonho tão violento. Após algum tempo,

a fantasia ganhou vida com o auxílio de uma linguagem coloquial, cotidiana, que dá forma à

3 O depoimento foi dado por Antônio Torres em conferência no II Simpósio de Literatura Baiana, realizado pela

Universidade do Estado da Bahia – Campus XIV, em junho de 2013.

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narrativa. O texto, desse modo, apresenta um narrador-personagem que poderia ser o duplo

ficcional do autor com seu sonho, imaginário e verdade.

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1 O JOGO NARRATIVO E SEUS DESDOBRAMENTOS

A linguagem tem a possibilidade de fazer curtos-circuitos em sistemas

orgânicos intactos, produzindo úlceras, impotência ou frigidez. Porque são

as palavras que carregam consigo as proibições, as exigências e

expectativas. E é por isto que o homem não é um organismo, mas este

complexo lingüístico a que se dá o nome de personalidade. (ALVES,

1980, p. 54).

Um táxi para Viena d’Áustria (TORRES, 2002 b) apresenta um discurso narrativo

estilhaçado, o qual se faz presente tanto nas múltiplas vozes que buscam ressonância no espaço

romanesco, como nos processos de elaboração, conformação e disposição dos capítulos, aí

construídos e dispostos de modo notadamente espedaçado. O fracionamento se identifica com a

pluralidade relacionada com as diversas linguagens que desembocam num estuário onde se

estabeleceria a completude. A narrativa não se limita apenas a incorporar linguagens e vozes, ela

aglutina elementos oriundos de diversos componentes ficcionais: a violência verbal, a

fragmentação, a intertextualidade, além de uma verossimilhança de onde emanam densas e

consistentes emoções.

Tal verossimilhança contempla a realidade social do País, na medida em que privilegia

não só medos e angústias, mas também a qualificação e a explanação de sonhos e expectativas do

homem contemporâneo.

1.1 VOZES ESTILHAÇADAS

Um táxi para Viena d’Áustria tematiza a desarmonia do homem urbano nos contatos

travados nos entremeios da vida contemporânea. O cotidiano do cidadão é regido por

descompassos em que se imiscuem os desafios das inumeráveis premências e imposições de

natureza econômica, social, cultural. Os desencontros são representados por meio de mecanismos

narrativos que ilustram o quadro fragmentário, desconexo e irônico da sociedade brasileira,

mostrada através do recorte metonímico que elege a sociedade carioca. A fragmentação textual

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que se identifica e se concretiza também na não linearidade narrativa, imprime uma ideia de

turbulência e/ou ausência de sentido da vida humana. Vive-se num mundo em que a essência

humana perde espaço para as convenções sociais, as quais, longe de encaminharem a realização

pessoal, escravizam e limitam a trajetória existencial do ser.

Por meio de uma linguagem peculiar, com muitas imagens, o texto adota um fluxo

narrativo frenético, alucinado, em que se alternam focos narrativos de primeira e de terceira

pessoas. Diversas vozes se cruzam e se complementam. Elas são oriundas das ruas, de poemas,

de contos, do jargão publicitário, da fala cotidiana, de canções e de letras de músicas. Enfim, tais

vozes ajudam a construir imagens soltas, pensamentos desconexos, em última análise, recursos

com que se constrói a representação de conflitos do personagem Veltinho, mergulhado em um

tempo existencial pleno de sofrimento, remorsos e autoacusações. Assim, valendo-se de uma

fusão de linguagens que encaminha um tom pessoal, o texto expressa as sutilezas de uma

subjetividade em crise, confusa, contraditória, envolvida pela culpa, dividida entre a fantasia da

morte, mas também muito presa aos chamamentos da vida. Veltinho representa a realidade

caótica e as tensões de uma sociedade que se apega a valores materialistas, os quais interferem de

maneira incisiva nas vivências e experiências existenciais de onde deveriam emanar o equilíbrio

do ser e o sentido da vida.

É por meio de recursos imagéticos que a trajetória de Veltinho e também a daqueles que

cruzam seu caminho são retratadas. O romance não apresenta aspectos tidos como próprios do

romance tradicional, em termos de uma sequência narrativa em que se esboçariam começo, meio

e fim. Ao contrário, o autor utiliza uma proposta babélica e incoerente na condução dos fatos.

Tais aspectos podem surpreender o leitor, acostumado, de certa forma, com enredos ordenados e

que aí vem a se deparar com uma imprevisibilidade na condução dos acontecimentos.

A não linearidade, a desordem narrativa, o não encadeamento textual apresentam-se

também como elementos que ilustram a fragmentação do ser e do mundo contemporâneos. Como

se sabe, a mente humana não funciona de modo linear, o que faz com que os pensamentos se

apresentem de modo não sequencial. Assim, presente, passado e futuro se intercalam e se

intercambiam a cada instante. Nesse universo, as fantasias ganham largos espaços e, não raras

vezes, elas se constituem como mundos idealizados. A não ordenação narrativa seria uma

imagem do universo psíquico humano. Em Veltinho, o turbilhão se torna mais denso, pois se trata

de um sujeito mergulhado em conflitos de natureza diversa.

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O monólogo interior é um discurso que, como afirma Reis e Lopes (1987, p. 230), “[...]

exprime sempre o discurso mental, não pronunciado, [no qual] o narrador desaparece e a voz do

personagem atinge o limite possível da sua autonomização”. Sem dúvida, o discurso de Veltinho

mimetiza o próprio mundo em polvorosa, mas expressa também o Outro, mostrado ao leitor

através das reflexões de tal protagonista. Veltinho vê esse Outro como ser igualmente fragilizado,

envolto em questões pessoais, preocupado, como ele, em salvar as aparências. Ele próprio

também se vê incurso nos falsos valores norteadores da sociedade de consumo.

O caos reinante torna claro o esfacelamento do ser no tempo e no espaço. Retrato da

problemática existencial, essa ficção toma como matéria as representações do “mal-estar” da

sociedade, manifestado também através da angústia individual e do abismo que se interpõe entre

o eu e o coletivo, ambos à mercê de um mundo caótico e absurdo.

O primeiro capítulo do romance é narrado em terceira pessoa. Há um relato do caos

urbano e das desavenças daí decorrentes. O narrador apresenta o protagonista por meio de uma

descrição-narrativa difusa e não tão esclarecedora. A princípio, a narração especula a respeito de

quem seria aquele homem que, apressadamente, desce as escadas daquele prédio de Ipanema.

Imediatamente, o narrador começa a desvelar os mistérios, em termos de quem seria aquele ser

solitário que desce os degraus correndo em direção à rua. E o relato vai ganhando terreno. O

narrador esclarece que se trata de um desempregado. Há a constatação do cansaço, do medo de

ser preso, da saudade da família, do sonho da noite anterior, enfim, o leitor vai-se inteirando

sobre Veltinho e sobre o acidente com um caminhão ocorrido naquelas ruas daquele nobre bairro

carioca.

No capítulo seguinte, a narrativa se debruça especificamente sobre Veltinho. A história

pessoal e o mundo interior do personagem ganham foco. O fluxo de consciência abre espaço para

o delírio. Segundo Carvalho (1981), o termo fluxo de consciência, cunhado pelo psicólogo

William James, indica um movimento constante e contínuo dos fenômenos psíquicos, que

jorrariam tanto no plano consciente como no da inconsciência.

No romance em estudo, parte da narrativa chega ao leitor através do fluxo de consciência

de Veltinho, que vivencia dúvidas, apreensões, desejos, medos. Revela-se seu mundo interior:

lembranças, sentimentos, fantasias, autoquestionamentos. Os pensamentos fluem como uma

correnteza e são colocados para o leitor por intermédio de um fluxo contínuo e constante de

ideias, embora bastante atropelado e fragmentado. Ao exprimir a fluida realidade psíquica, o

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texto se constrói desordenada e, em certa medida, ilogicamente. O entrecruzamento temporal, isto

é, a presença intensa e confusa de lembranças, imaginações, reflexões, se projeta na estrutura da

narrativa. Pode-se afirmar que o entrecruzamento caótico entre passado, presente e futuro, índice

da confusão de que Veltinho é tomado e que comparece na desarticulação narrativa, poderia ser

um indicativo de seu denso estado de crise, de sua desordem existencial.

O tempo interior é privilegiado, e sua representação no texto faz com que as palavras

fluam, ocupem sete laudas, tudo construído e constituído por um único parágrafo. Há a

exteriorização do que se passa na consciência do narrador-personagem. Numa nítida proposta de

tradução do fluxo de consciência, tudo é expresso sem que se delimitem pausas. É nesse

transbordar que a agonia da alma contraditória aflora com força total e o fluxo de consciência faz

com que o leitor saiba do assassinato perpetrado pelo narrador Veltinho. Ele mata o melhor

amigo. Ante esse fato indiscutível, o personagem-narrador faz questionamentos se realmente vale

a pena viver: “Acabei de matar um homem. [...] Viver é o melhor remédio? O único? Mesmo que

a gente esteja na pior? E matar?” (TORRES, 2002 b, p. 39-40). A partir de então, as indagações,

a aflição, os pensamentos mais obscuros e secretos são confessados: o gozo ao cometer o crime, o

impulso suicida, a revolta contra os que lhe negaram ajuda. A angústia e o sofrimento existencial

remetem o personagem ao estado de delírio e, num recurso escapatório, ele imagina estar em

Viena, mundo da música, universo pacífico e distante de todo o caos e sofrimento daquele

instante.

A narrativa apresenta três tipos de foco narrativo que dialogam e até se alternam. A

trajetória das personagens é mostrada através das vozes que ganham expressão no texto. A voz do

narrador-protagonista se caracteriza por ser o discurso do sujeito que, predominantemente, se

debruça sobre si mesmo. Os acontecimentos de sua vida e o cruzamento com outras personagens

chegam ao leitor por meio do fluir de seus pensamentos, de suas lembranças, de suas fantasias.

Nesse jorrar, há uma mistura de sentimentos, de percepções que ultrapassam as fronteiras do

tempo. É por meio do monólogo interior que o leitor passa a conhecer o mundo caótico do

narrador-personagem. Assim, ele se expressa:

Ontem à noite eu não sabia que ia matar um homem. Nem ontem à noite, nem há

poucos minutos atrás. É, acho que não faz nem uma hora que matei um homem.

Certo, não estou com cabeça para cronometrar os acontecimentos. E nem tenho

um relógio. Desempregados não precisam se preocupar com as horas. Apenas

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contam os meses ou os dias que faltam para o dinheiro acabar. (TORRES, 2002

b, p. 91).

A narrativa começa com o foco narrativo em que ganha corpo a voz do narrador-

observador. Este acompanha os movimentos que acontecem à sua volta, observa e descreve, de

maneira objetiva, o deslocamento de Veltinho, homem desconhecido que sai apressado de um

edifício: “Nesse exato momento há um indivíduo descendo apressado pelas escadas do edifício nº

3 da rua Visconde de Pirajá, Ipanema, aqui no Rio de Janeiro. De que será que ele está fugindo?

Ainda não sabemos. Nada de pânico. Por enquanto, tudo parece normal” (TORRES, 2002 b, p.7).

Há o relato de acontecimentos provocados por um acidente do caminhão da Coca-Cola, fato que

inviabiliza o tráfego e causa desordem:

Como eu ia dizendo, não se avexe. Há preocupações maiores para esta tarde,

aqui no pedaço. Você foi salvo da curiosidade pública e privada por um

caminhão da Coca-Cola que capotou há instantes ali na esquina, justinho onde a

rua Canning desemboca na Gomes Carneiro, bem no calcanhar dessa nossa

Visconde de Pirajá. E aí, veio todo mundo ver – ora, direis, carioca não adora

amenidades? Faz ajuntamento até pra ficar olhando conserto de buraco.

Imagine o caos: uma garganta por onde escoam três ruas, no sentido de

Copacabana, completamente bloqueada por engradados, garrafas e cacos. E a

(previsível) multidão atrapalhando mais ainda. E a polícia já descendo o cacete

na pivetada que avança sobre as garrafas aproveitáveis. E toda aquela trilha

sonora que a gente tanto aprecia. Fonfom. Pipiiiiiiiiiiiii.

Nas tardes de Ipanema há um céu azul demais. E arranha-céus que daqui a

pouco podem ficar da cor dos engradados da Coca-Cola. Vermelhões. Vem fogo

aí. (TORRES, 2002 b, p.12).

Tal narrador observa, agindo como um repórter. Vez ou outra, de maneira imparcial e

distante, estabelece, ainda que de forma contida, um diálogo com o protagonista e com o leitor,

em trechos como: “Calma cidadão. Devagar majestade. Vai tirar o pai da forca?” e “Imagine o

caos”. As imagens captadas por seu olhar atento são fragmentadas e, a princípio, não dão conta

do todo, no entanto, aos poucos, ele se mostra dotado de onisciência. Tem-se, portanto, um foco

narrativo mutante, assim descrito por Carvalho (1981, p. 45): “[...] o narrador observador passa,

em alguns momentos, a autor onisciente, descrevendo fatos que normalmente não poderia ter

presenciado”. Na narrativa, o conhecimento do desemprego de Veltinho é uma marca dessa

onisciência. A partir do segundo capítulo, o leitor passará a conhecer os segredos, as questões

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íntimas e particulares do personagem através do enfoque conduzido por ele próprio. A voz da

própria consciência do protagonista toma forma e consistência e assume a narrativa até o

penúltimo capítulo.

O narrador onisciente conhece a mente de Veltinho e não só relata os fatos que ocorrem

com o personagem, mas também seus pensamentos e sentimentos. Ele ainda chega a interromper

a narração para fazer considerações e formular julgamentos de valor acerca das atitudes e

comportamentos das personagens, como pode ser verificado: “Até prova em contrário, os

claustrófobos e os barrigudos de canelas enferrujadas não são dados a correrias de quem foi

mordido nos calcanhares pelo medo. Esse sujeito está muito esquisito. Alguma ele fez”

(TORRES, 2002 b, p. 07-08).

Quando o protagonista passa a expor suas experiências, percebe-se, apenas em

determinados momentos, a interferência da voz narrativa em terceira pessoa. Tais vozes da

narração dialogam, como é possível observar no trecho a seguir, em que comparece o foco

narrativo da primeira pessoa, com a intromissão do foco em terceira pessoa:

Os boleros que tocam nos rádios da espanhola são os mesmos que a gente ouvia

em todas as vitrolas de Natal, em todas as festinhas e bailes de Natal, no puteiro

de Natal. (Epa, cortar isso. A carta é para a sua mãe, rapaz). Cuidado, Não

contar nada sobre aquela vez que você ficou olhando pelo buraco da fechadura

enquanto a espanhola tomava banho. [...] Um dia, numa tarde de chuva... – corta,

corta. Dizer apenas que ela está sendo uma mãe. Nos dias de chuva a espanhola

me protege em seus braços [...]. (TORRES, 2002 b, p. 78-79).

As vozes se misturam e podem confundir o leitor desatento quanto ao condutor da

narrativa, isto é, a dúvida pode residir na identificação da voz do narrador-personagem ou do

narrador-observador. A citação acima é constituída por duas vozes narrativas que se mesclam. O

relato é feito em primeira pessoa, havendo ingerências da terceira, em trechos como: “Epa, cortar

isso. A carta é para a sua mãe, rapaz”, “Cuidado, Não contar nada sobre aquela vez que você [...]”

“– corta, corta”. Vale ressaltar que tais intervenções são pontuais e podem ser constatadas

também em outros trechos do romance.

Em outra passagem do texto, o narrador-personagem, ao pensar no assassinato que

cometera, é flagrado pela voz de Cabralzinho, a qual se entremeia com a sua. A vítima passa a

relatar os momentos que antecedem a própria morte.

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Levantou-se. Deve estar melhorando, pensei. Engano. Agora estava pior do que

antes.

Levou a mão à barriga e disse que dor mais filha da puta.

E desatou a falar, falar, falar, como se delirasse.

Tenho dez livros na gaveta, que ninguém publicou e agora não adianta mais

publicá-los, porque aqui somos o tempo todo atropelados pela realidade, não dá

para planejar nada, estamos em guerra, há uma guerra nos morros, há uma

guerra no campo, há uma guerra nas ruas, mesmo que ninguém queira perceber,

estamos em guerra, mas ela não é pior do que isso.

[...]

Levantou a camiseta. Com força. Com fúria.

E disse olhe essa barriga, ela fala por mim.

Juro que vi e ouvi. A barriga inchadona dele falou. Começou baixinho e foi num

crescendo dói, dói, dói, dói, DÓI.

Não agüentei. Apertei o gatilho. Pois não é que a Pistolet Central Brezilien tinha

bala?

Pau. Um tiro bem no centro da barriga falante.

E vi sua cara estatelar-se e eu disse agüente firme, daqui a pouco você não

sentirá mais dor nem horror. Será o alívio eterno. (TORRES, 2002 b, p. 216-

217).

A narração em primeira pessoa passa de Veltinho para Cabral. Este último relata o

sofrimento vivido por causa das dores provocadas por sua estranha barriga, mal-estar que levaria

o amigo a disparar o tiro fatal. Após o ato absurdo, a descrição é retomada pelo narrador-

protagonista. Carvalho (1981, p. 17), comentando acerca do sistema de Manoel Komroff, diz que

o ponto de vista interno caracteriza-se por ser em primeira pessoa, isto é, por alguém que

participa dos acontecimentos. E assinala que Komroff destaca, como vantagem desse tipo de

ponto de vista, a facilidade de aceitação de uma história estranha, por parte do leitor. Essa

facilidade adviria do impacto provocado pela vivência da aventura, a “maior intensidade” e

“intimidade da experiência”, narrada em primeira pessoa. Tal posicionamento é depreendido na

descrição, a partir da agonia de Cabralzinho, retratada de modo intenso pela própria vítima. As

comparações evocadas para enfatizar a intensidade da dor chegam a assumir um tom delirante e

prepara o leitor para a surpresa que viria a seguir. As manifestações das dores, pronunciadas pela

própria barriga: “dói, dói, dói, dói, DÓI”. Fato absurdo que, diante do caráter inimaginável, pode

ser visto como insólito.

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O sujeito é agente e paciente na cena narrativa. Há a exposição das várias faces de uma

consciência que se movimenta livremente e se mostra atormentada. O estado interior de Veltinho

se revela marcado por desejos, frustrações, dúvidas, inquietações que, frequentemente, se

apossariam também das crises do homem contemporâneo. Tal sujeito costuma pautar sua vida

pela corrida desmedida e sem limites por valores externos, num mundo árido de solidariedade e

de sentimentos duradouros. A fragmentação da voz narrativa revela a complexidade da vida

contemporânea, e o inacabamento da obra representa a desestabilização do sujeito em crise. O

discurso confuso de Veltinho revela sua inquietude e difícil relação com os próprios sentimentos

e com o mundo. O tempo existencial apresenta-se difuso, em consonância com o mal-estar

proveniente da vivência da crise.

1.2 LEITURAS DA SUBJETIVIDADE: DESAMPARO E ABSURDO

Um táxi para Viena d’Áustria assume duas direções. Uma foca o ritmo e o movimento da

metrópole e de seus habitantes, como se verá no segundo capítulo deste trabalho. A outra se volta

para os desenlaces do narrador protagonista que vive o desamparo e a solidão. A realidade

objetiva é posta em questão por intermédio de fenômenos que assombram e atormentam – a

barriga falante de Cabral, a parede branca que se movimenta e cerca Veltinho. Tais elementos

geradores de ansiedade e desconforto são como “Fantasmas” que Veltinho deve enfrentar

sozinho. A solidão do personagem é vivenciada tanto a partir das atitudes e da ausência do Outro,

que efetivamente o abandona, como também do seu olhar para dentro, isto é, o sentimento de

vazio e de isolamento de que ele tomado ante sua solidão existencial. Numa leitura do sujeito da

modernidade e de seus desencontros, Bernardo Tanis (2003, p. 87), discutindo a solidão de quem

a vivencia ainda que esteja arrodeado de pessoas, tece considerações que se adequariam também

a Veltinho: “[...] não é uma solidão imposta pelos outros, nem uma solidão intencionalmente

buscada. É a solidão do homem consigo mesmo, com a dimensão desconhecida de si mesmo”.

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Assim, no personagem em tela, observa-se que a face sombria da subjetividade em crise é

revelada por meio das situações absurdas vivenciadas nos estágios em que ele se encontra4.

Ao longo do romance, Veltinho se mostra um homem, em certa medida, “absurdo”.

Albert Camus reconhece a incapacidade de definição de tal conceito, no entanto, em O mito de

Sísifo (2010), o escritor tece algumas considerações acerca das significações de tal noção. Camus

analisa o “absurdo” como um universo desprovido de sentido, reino destituído de lógica e

totalmente distante da razão. O sentimento do absurdo seria oriundo do confronto entre o apelo, o

grito humano, e a indiferença e o silêncio do mundo. O personagem de Um táxi para Viena

d’Áustria sente e reconhece a falta de sentido das coisas, de tudo; ausência de sentido no

momento em que estava empregado e não podia aproveitar a natureza, também no fato de estar

desempregado agora e perder o respeito e a admiração da família e dos amigos. Falta de sentido

igualmente no viver e também no morrer. Há sofrimento ante a indiferença do universo que se

cala diante de seu padecimento.

O sentimento de incompreensão do mundo, que não se compadeceria da dor individual,

ganha consistência a partir do momento em que Veltinho experimenta o desespero diante do

próprio desemprego. Ao se deparar sem trabalho, a dor faz com que ele perceba a incompreensão

e a insensibilidade do mundo com lentes ampliadas. É por meio de experiências dolorosas e

trágicas que o personagem consegue enxergar e se dar conta, com mais sentimento, de aspectos

da condição humana até então não percebidos – a felicidade, a morte, o prazer, a solidão, as

emoções.

O impossível e o inaceitável acontecem e ganham corpo a partir da existência de um

crime cometido sem qualquer razão, sem que ele encontrasse alguma justificativa, enfim, tudo se

colocando ali de encontro aos valores morais e éticos da sociedade. Tudo acontece de forma

repentina e sem propósito. Veltinho aperta o gatilho para conter e sanar o sofrimento de Cabral,

com sua horrenda barriga falante, órgão que expressa, por meio de barulhos, todas as dores por

ele vivenciadas. O ato criminoso foi banal, e Veltinho foge, não quer ser preso. Sabe que, se for

pego, será julgado e condenado, por isso entra no primeiro táxi que encontra. O desespero gera

ansiedade, ele perde a noção de si, oscila entre a indiferença e a culpa. No táxi, abrigo provisório,

Veltinho delira. A mente ensaia certo sentido de culpa e se refugia num lugar imaginário, lugar

4 Pode-se afirmar que os aspectos com que Bernardo Tanis caracteriza o sujeito moderno se apresentam como

adequados e oportunos também na leitura do sujeito contemporâneo, igualmente, imerso em processos de solidão

que, em dias bem atuais, ele tentaria driblar com o arsenal tecnológico de última geração.

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perfeito – Viena D’Áustria. Viena, Rio d’Onor, Pasárgada, Shangrilá ou qualquer outro lugar –

locais imaginários que representariam a fuga e a escapatória de uma situação absurda.

Rio d’Onor e Shangrilá são criações ficcionais. A primeira é uma aldeia comunitária

situada em Portugal, criação do escritor Cabralzinho. A cidade tomada emprestada de um conto,

nessa narrativa vem a ser, para Veltinho, o lugar ideal onde o Outro seria colocado num sistema

de alteridade plena, bem diferente das relações de uso do Outro com que se pautam os contatos

no Rio de Janeiro. Os vínculos, nesse mundo de quimeras, não estabelecem relações

descomprometidas com o respeito, como ocorre no cotidiano urbano. Shangrilá, outra fantasia,

remete a um mundo harmonioso e feliz que se contrapõe ao universo de desavenças e de

desrespeito, que levam Veltinho a afirmar: “Aqui não sou feliz” (TORRES, 2002 b, p. 132). O

inóspito mundo cotidiano remete Veltinho a outro universo de utopia: Pasárgada. Trata-se de

antiga cidade persa, mote para um poema de Manuel Bandeira. Nos versos do poema, a cidade se

transforma em um símbolo de fuga benfazeja, lugar que proporcionaria bem-estar e a realização

de desejos. Ao evocar os versos de Bandeira, Veltinho ingressa num mundo de paz, integração,

harmonia e, principalmente, prazer: “Toca para Pasárgada, lá sou amigo do rei. Lá tenho a mulher

que quero, na cama que escolherei” (TORRES, 2002 b, p. 132).

Pasárgada e Viena são cidades presentes nos mapas. Ocorre que a plenitude e a realização

tão desejadas ganham existência apenas no plano do imaginário. No universo de Veltinho,

Pasárgada e Viena se tornam também locus do encontro, da pacificação, do amor, assim como

Rio d’Onor e Shangrilá. Todas são cidades da paz, da compreensão, em que o indivíduo não é

usado e manipulado ao bel-prazer dos jogos reificantes do mundo das aparências. Ao se referir ao

romance em estudo, Sarkissian Junior [s.d.] observa: “[...] o autor se apóia na idéia de um mundo

utópico justamente para nos despejar diante dos olhos a imagem de um mundo cujos valores são

absurdos, mas que, através do culto das aparências, da publicidade, e do sistema de controle

social, nos é vendido como normal”.

Os sucessivos choques vivenciados por Veltinho fazem com que ele perceba a intricada

rede através da qual o homem se veria atado, amarrado. Assim, marcado pela contradição e pelo

conflito, esse “eu” se debate e busca se refugiar em planos e estágios imaginários. No entanto, a

evasão é fugaz e, ao despertar, o personagem se depara com o atravancamento e o incessante

barulho do trânsito, rotina da cidade inviabilizada, que continua em seu ritmo alucinante,

indiferente aos dramas individuais cotidianamente vivenciados: “[...] o problema é o desconforto

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– lá dentro, bem no fundo, no meu íntimo. Há algo de errado. Não sei o quê” (TORRES, 2002, p.

74), talvez o problema seja até mesmo “[...] a falta de fé em alguma coisa, qualquer coisa”

(TORRES, 2002, p. 124). Diante disso, o vazio, o estranhamento e a indiferença que o

personagem percebe no mundo, seriam uma projeção de si mesmo. Assim, toda a sua ânsia, ao

flanar imaginariamente por espaços edênicos, na verdade, vem a ser a busca por um porto seguro.

O crime absurdo cometido por Veltinho atinge diretamente J. G. Cabral ou, simplesmente,

Cabralzinho, escritor paulista que, aos 20 anos de idade, consegue agradar à crítica com seu

primeiro livro. Ocorre que o desregramento e a falta de tato nas relações sociais terminam por

dificultar sua trajetória como escritor. Assim, desde esse momento, a postura e o comportamento

de Cabral já indiciavam o fracasso. Após 25 anos sem se verem, o reencontro com Cabral nas

condições de fracassado faz Veltinho se apiedar ante aquele quadro de infortúnio. Agora, depois

de morto, Veltinho vê a morte de Cabral como a libertação com a qual o amigo estaria sendo

premiado, já que a vida inexpressiva nada mais teria sido que um exercício de mediocridade.

O narrador-personagem também experimenta o fracasso e, com o assassinato do amigo,

ele próprio se vê arremessado a uma situação-limite. Torna-se um assassino, realidade que não

consegue entender, tampouco explicar: “Eu gostava tanto dele. Por isso o matei. Dá para

entender? Não? Paciência” (TORRES, 2002 b, p.52). A despreocupação e a indiferença que

poderiam se configurar diante do crime não são verdadeiras, não se efetivam. Prova disso é o

estágio a que Veltinho chega – a alucinação delirante. Tal estágio viria a ser a válvula com que

ele escapa ao se deparar com a realidade inexplicável – o assassinato de Cabral, fuga de um

presente avassalador que o tortura, até mesmo em sua viagem imaginária. Na fantasia, ele se vê

interrogado pelo morto e passa a delirar, enxergando o rosto da vítima em toda a parte. Veltinho

se vê também perseguido pela lembrança do mandamento que fora exaustivamente repetido por

sua mãe – “Não matarás”. O personagem se apresenta como um homem descrente, mas o valor

religioso ensinado ecoa e recai na questão moral que lhe imprime um peso: “E assim me tornei

um matador” (TORRES, 2002 b, p. 72).

Veltinho revisita o passado, divaga pelos fragmentos de sua memória e encontra

conexões entre o antes e o agora. Lembra que, na infância, se ocupara das emoções, dos medos e

até com o destino de um criminoso. Veltinho revive as emoções e percepções que o tomaram na

meninice e que agora ganha consistência e peso maior, já que, dessa vez, foi ele próprio quem

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matou um homem. O personagem não consegue explicar ou definir o que experimenta, já que se

flagra envolto em um turbilhão de sentimentos e medos.

As reminiscências fazem com que o leitor tome conhecimento do que aproxima e

diferencia Veltinho do Outro, no caso, Cabral. Ambos fracassam diante da manutenção de uma

existência performática e aparente, através da criação de uma imagem de si polida e estetizada

com suas vidas sociais. A solidão, a decadência social, o abandono, o desconforto e o mal-estar

com o mundo marcam essas personagens unidas pelo absurdo da vida e por meio de um laço

trágico e definitivo – a morte.

Todas as perdas vivenciadas por Veltinho e Cabralzinho incorporam, representam e

significam verdadeiras mortes. Na verdade, a falência profissional seria uma entre outras que se

esboçam na narrativa. A ausência de trabalho e as perdas daí decorrentes como o processo de

baixa total de autoestima, a dor da anulação social e do não reconhecimento assumem sentidos de

morte. No campo social, a morte seria a impossibilidade de qualquer tipo de poder e a total

destituição de bens de que se sustentam os valores da sociedade de consumo. O caráter trágico

dessas mortes se consolida na morte real de Cabralzinho, retirado de cena pelo próprio amigo,

que reconhece o assassinato como um ato “torpe, cruel, brutal, desumano. Bárbaro” (TORRES,

2002 b, p. 93).

O estado a que Veltinho é remetido depois de cometer o crime não poderia ser outro que

não o estágio de delírio. O assassinato não foi planejado, mas, em sua ótica, o ato por ele

cometido teria contribuído para a retirada do pesado fardo que Cabral era obrigado a suportar –

aquela vida medíocre e sem sentido. Assim, depois da morte do amigo, Veltinho se sente até

satisfeito, cheio de poder e de vitalidade. Gargalha diante do fato consumado. Mas, de repente,

ele se dá conta da realidade e, logicamente, o suposto prazer se esvai. E agora o assassino encara

os fatos sem devaneios. Ele terá de conviver com o peso de se saber um vil e ignóbil criminoso.

O gosto amargo da morte fará parte de sua vida, sem dúvida, isso não é mais uma de suas

fantasias.

Para Joel Birman (2014), o mundo atual é conturbado. Inesgotável fonte de surpresas, os

acontecimentos são cada vez mais imprevisíveis e improváveis, realizando-se quase sempre de

maneira intempestiva. A dificuldade de o sujeito pensar o futuro, de certa forma, desencadeia o

sentimento de incerteza e a sensação de estar sempre à beira de um abismo. Assim sendo, a

elaboração de subjetividades se realizaria em universos de instabilidade e de desencantamento.

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A subjetividade é formada a partir da atuação de elementos de ordem individual em

interação com fenômenos de natureza coletiva e institucional. Tais componentes estão à mercê e,

talvez, seriam até mesmo moldados pela ação dos mecanismos da comunicação midiática, dos

valores sociais, das práticas com que o cotidiano é construído. Dessa forma, o sujeito se apresenta

como resultado de uma convergência de fatores que brotam dos contatos diuturnos e constantes a

que o indivíduo se submete em sua trajetória. Com isso, a reconstituição da subjetividade é um

processo incessante em que o sujeito há de se adequar a comportamentos e modos de ser, não

raras vezes, passíveis de questionamentos e discussões.

Pode-se dizer que certos princípios da sociedade atual fazem com que instituições como

família, religião, escola percam força, o que pode contribuir para o aumento de sentimentos de

incerteza e de desnorteio. Novas e imperativas demandas sociais se identificam com valores

individualistas e fortemente ligados aos princípios do mundo exterior, bastante carregado de

jogos de aparência. O desamparo, a dor, a solidão podem ser olhados também como produto da

falta de referências, da dissonância e da desarmonia dos laços sociais, já que um indivíduo é

vinculado ao outro por meio de sistemas contratuais. Em muitas situações, preocupado com a

realização de desejos imediatos, o homem contemporâneo imagina preencher o vazio interior

com os signos reificados que lhe são apresentados. Enfim, é como se o mundo atual tivesse

receitas para quase tudo.

Veltinho apresenta-se como personagem modelado por princípios e interesses sociais

capitalistas. A construção de sua subjetividade está ligada também à sua performance social. O

Outro representa companhia, mas, sobretudo serve para reafirmar a própria existência. Como já

se viu, certos acontecimentos desorganizam sua postura e trajetória. A crise faz com que ele passe

a refletir sobre as experiências agora desencadeadoras de estranhamentos, angústias e incômodos.

O Outro e o mundo começam a ser pensados e sentidos de forma diferente. Até o olhar sobre a

cidade se transforma, pois agora ele consegue vislumbrar paisagens, cenários, acontecimentos

que lhe eram indiferentes. De certa maneira, ele passa a fazer o caminho inverso de seus

contemporâneos, já que, em alguns momentos, ele se debruça e se volta para a realização de um

balanço existencial.

Christopher Lasch, em A cultura do narcisismo (1983), considera que o autocentramento

juntamente com a perda da relação com o passado e a dificuldade em reconhecer a alteridade são

ausências que constituem traço fundamental da cultura do narcisismo. A dificuldade de

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convivência ou até mesmo a não percepção da alteridade e da intersubjetividade costumam ser

vistos como aspectos básicos do narcisismo. Na cultura do narcisismo, o sujeito nutre uma

intensa preocupação com se realizar individualmente e não cede espaço para os ideais coletivos.

Há um superinvestimento no próprio eu, em detrimento das relações com o Outro. Para Debord

(2003), a sociedade do espetáculo insere os sujeitos na cena social como se fossem personagens;

a imagem é altamente valorizada. A exigência da performance submete as ações do indivíduo que

busca autopromoção e, com isso, a elevação de si. Sua vida é transformada em espetáculo. As

teorizações sobre a cultura do narcisismo e sobre a sociedade do espetáculo se completam e

intercambiam.

Na contemporaneidade, identificam-se os traços que marcam as formulações de Lasch e

Debord. Constatam-se situações em que há a exaltação do eu. Isso se alarga com o uso dos

aparatos virtuais, a exemplo das redes sociais. Nesse ambiente, as pessoas tendem a construir

uma imagem, uma persona, uma representação de si para se exibir ao Outro. Elas expõem a

própria intimidade, falam do que têm, o que fazem, exteriorizam sentimentos, medos, apreensões,

alegrias. Fazem também a reprodução de pensamentos, ideologias, concepções que, em sua

maioria, nem sequer são pensadas ou discutidas, apenas copiadas e expostas, tudo, enfim, sendo

invocado para a construção de uma imagem falsa de si mesmo. A imagem fabricada

costumeiramente é positiva e feliz, muitas vezes vem a ser uma tentativa desesperada de

reconhecimento. Como prenunciou Debord (2003), a espetacularização da vida atinge níveis

inimagináveis, pois, aliada ao narcisismo, tal espetacularização imprime um tom plástico à

contemporaneidade.

Veltinho e Cabralzinho, inebriados pelos sentidos e valores do mundo do espetáculo e do

narcisismo, desenvolvem uma subjetividade autocentrada e ligada à exterioridade. Para ambos, o

olhar do Outro, isto é, a visão da esfera social e até da mídia são importantes, pois validam seus

“Eus”, que precisam ser enaltecidos. Tudo é regido pelo mundo das aparências, pois, no fundo,

na verdade, tais personagens estão mergulhadas em sentimentos de desamparo e de angústia.

Inseridos no mundo do exibicionismo, as personagens se envolvem em/com trocas

intersubjetivas vazias, desprovidas de investimento pessoal, afetivo, até porque as companhias se

mostram temporárias e a solidariedade é escassa e superficial. Diante do voltar-se excessivamente

para si mesmo, a alteridade tende a ser anulada, e o Outro é usado, não poucas vezes, como

objeto de gozo e como instrumento de realização de desejos. Veltinho, ainda que não atente para

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esses aspectos, mesmo de modo inconsciente, vê na figura do mendigo Zé do Éter um objeto para

uso de seu amigo Cabral. Zé do Éter seria instrumentalizado como Veltinho, que também fora

enganado, usado e descartado.

Assim, o narrador-personagem, centrado em si mesmo, na ânsia de se valorizar cada vez

mais, age de maneira impulsiva. Em busca de autopromoção, empreende posições exponenciais,

de que resulta arrependimento, angústia, dor. A perda do emprego se configura em um fracasso,

uma queda de status social, o que faz com que a autoimagem venha a ser posta em xeque. O

declínio social é motivo para que ele seja ignorado e desprezado. O que resta de outrora são as

lembranças de um tempo em que era solicitado, reconhecido, admirado.

Cabral, não menos individualista e narcisista, também só pensava em si. Sentia-se

irresistível, gabava-se de suas produções, e é assim descrito por Veltinho: “E Cabralzinho

continuou. Porque eu isso, porque eu aquilo, eu, eu, eu, eu. Bendito pronome pessoal. J. G.

Cabral, vírgula, Primeira Pessoa do Singular. Era do tipo que só devia tomar banho com sabonete

Eucalol. Aquele que tinha cheirinho de eucalipto. Tudo com eu” (TORRES, 2002 b, p.108-109).

O deslocamento social e a decadência financeira trazem o sofrimento e os conduzem à crise. Sem

referências, sem prestígio, sem poder, tais sujeitos são também impossibilitados de realizar

interações humanas, já que o Outro também repete suas atitudes e comportamentos

individualistas.

Mais um elemento bastante comum na contemporaneidade, o desemprego, se faz presente

também na obra em estudo. Como se sabe, muitos dos aspectos narcísicos giram em torno

também da questão econômico-social do indivíduo. O desemprego abala a posição e o olhar de si,

afinal de contas, muito da leitura do sujeito e do Outro é regida por aspectos identificados com o

estágio econômico-social em que o indivíduo se situa. A queda na hierarquia social, que tanto

valida leituras do “eu” construídas por parte de Veltinho, como aquelas edificadas pelo Outro,

criam nele o vazio que abre espaços para sua desorganização em geral.

As idas e vindas no tempo e no espaço, ainda que Veltinho se encontre imóvel fisicamente

dentro de um táxi, não o conduzem a um entendimento das transformações de sua vida. Ele não

tem certeza das atitudes que deve tomar nem tampouco sabe para onde deve ir. O personagem,

em seu desamparo, cultiva sentimentos contraditórios. Ao se referir ao desemprego, confessa:

“[...] palmas para quem consegue tirar um desemprego de letra. Eu não estou conseguindo. Os

meus sentimentos a respeito, na verdade, são contraditórios. Às vezes penso que, quando pintar

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uma oportunidade, vou ficar muito chateado” (TORRES, 2002 b, p. 146). Veltinho deseja um

novo emprego para se manter na engrenagem social e ostentar uma posição privilegiada, mas

admite que “emprego é um saco”. Ele se vê dividido entre os opostos, Rio d’Onor, aldeia cujo

sistema econômico é baseado em trocas, e Amsterdam, centro comercial e industrial. Sente

saudade do tempo em que a praia de Copacabana era limpa, reclama da ausência das

Organizações ecológicas e, ao mesmo tempo, concordaria em trabalhar no atol de Mururoa nos

testes de bombas atômicas. Faz crítica à desonestidade das construtoras e dos políticos, mas

pensa em ganhar dinheiro com uma empresa chamada Spiritual’s, nas suas palavras, “[...]

especializada em assaltos, seqüestros, chantagens, estelionatos, lavagem de dólares e todo tipo,

mas todo tipo mesmo, de trambique” (TORRES, 2002 b, p. 65).

O mergulho em si se torna possível a partir da tomada de consciência em relação às

aparências e da constatação da estranheza e do mal-estar generalizados. Tal estágio de reflexão

ganha corpo com o desemprego. A interrupção abrupta do tipo de vida ocasionada pelo

desemprego faz com que essas reflexões ganhem terreno. O desempenho profissional, o poder, a

glorificação do eu era tudo o que importava. Acostumado a estar rodeado de pessoas,

movimentava um sistema que explorava as dores e os desejos alheios (a publicidade). Tal como

Narciso, seguia sem pensar no Outro e sem se ater às questões fundamentais do ser.

A consciência do universo artificial em que Veltinho estaria inserido revela a solidão e a

precariedade das relações do homem contemporâneo. Este, ao se dar conta do universo frágil das

trocas inter-humanas e da debilidade da vida, é muitas vezes tomado por um sentimento de

angústia, de deslocamento, de abandono. Para Veltinho, tal experiência se materializa através do

estranhamento diante de uma parede branca que o persegue. A aflição causada faz brotar a ideia

de suicídio, solução imediata para os problemas. No entanto, chega à conclusão de que se

suicidar é “quebrar a cara”. Mais uma identificação com o homem absurdo. Para Camus (2010,

p.19), tirar a própria vida seria um fracasso existencial, seria “[...] confessar que fomos superados

pela vida ou que não a entendemos”. Veltinho reage à ideia de um destino trágico, por isso nega o

suicídio. Assim, não adere à autodestruição. Sabe que deve aprender a conviver com os males,

com as desigualdades, com a desarmonia entre o mundo e o ser, sem apelar para a fé ou para um

Deus. Veltinho convive com sentimentos que se movimentam em torno do absurdo: pessimismo,

impotência, desconforto, solidão, angústia. Os dois últimos se destacam nesse eu fraturado e

contraditório, indiscutivelmente uma subjetividade maculada pelo crime.

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Um táxi para Viena d’Áustria tenta falar das dores humanas como também os desarranjos

do corpo social, em um universo de expectativas e solicitações frustradas e até recalcadas. Na

verdade, o romance se detém num círculo vicioso, que incorporaria uma espécie de “mito de

Sísifo”. A fixação obstinada no desemprego abrupto e suas consequências e o não afastamento

das reflexões sobre as perdas só fazem aumentar o sofrimento, que, cada vez mais, se intensifica,

pois crescente é o olhar sobre aquele estágio desolador. Ao tecer o perfil das personagens,

sobretudo a de Veltinho, senhor de uma subjetividade complexa, a obra em estudo esboçaria um

quadro da sociedade contemporânea, não menos complexa e caótica.

A falta de comunicação e de relacionamento com outras pessoas atormenta Veltinho, que

se sente infeliz ao ter de lidar com a ausência de solidariedade e de compaixão. Até sua mulher o

olharia com desconfiança, pois vê nele apenas um alcoólatra: “E minha mulher, o que me diria?

‘Você bebeu demais, a sua vida inteira. Queimou os neurônios. Não admira nada que agora esteja

vendo coisas’. (Obrigado, querida. Eu sempre soube que podia contar contigo.)” (TORRES, 2002

b, p.125).

O personagem não dispõe de companhia, nem de quem o apoie. Na tentativa de encontrar

paz de espírito e atenuar a solidão, busca as ruas, mas nestas há uma intensificação do mal-estar,

já que, para uns, ele é invisível, para outros, motivo de repulsa: “Há os que passam e não me

olham. Os que olham e não me vêem. Há os que me fixam na fórmula de uma frase: – É apenas

um bêbado. (Um bêbado bem-comportado.)” (TORRES, 2002 b, p. 49). O único encontro bem-

sucedido é com uma estranha senhora que também não tinha com quem estabelecer diálogo.

Ambos compartilham alguns de seus dramas, e o protagonista, por alguns instantes, se sente

“cheio de bons sentimentos” (TORRES, 2002 b, p. 206).

Há momentos em que a desorientação e o sentimento de estranheza assumem caráter

desafiador. A angústia e a solidão chegam a um ponto em que Veltinho parece perder as

dimensões de tempo e de espaço. Veltinho chega a regredir à infância e a procurar, nas ruas do

Rio de Janeiro, a casa que seria a de sua mãe. Ele deseja e busca sair do caos, e é desse modo

que, aos poucos, redescobre e se apresenta mais ligado à natureza. Esta, mesmo não sendo

salvadora, comparece como inspiração para um pouco de paz. Busca algo em que se sustentar,

um ponto de referência para uma alma atormentada pela perda e pela impotência em solucionar

conflitos íntimos e sociais.

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Com certo gozo e em comunhão com a natureza, um bem-estar era possível, já que, como

indivíduo originário do interior, estava acostumado com as belezas naturais. São Paulo, primeira

parada no Sul do País, não lhe agrada; a arquitetura esconde o céu, e grande quantidade de

fumaça polui o ar. Nesse primeiro momento de sua vida, o protagonista sente saudade do mar, da

areia, o que faz com que o Rio de Janeiro seja eleito como lugar ideal: “Troquei o Rio Grande do

Norte por São Paulo porque era para lá mesmo que todo mundo ia. [...] Depois troquei São Paulo

por Copacabana. Nostalgias do mar. Saudades de uma areia e de uma onda [...]” (TORRES, 2002

b, p. 139). Marcado pelos lugares em que morou e pelas experiências vividas, Veltinho fantasia

Viena, cidade que seria a representação da aspiração por uma almejada e, quiçá, permanente

calma interior, espaço de proteção, segurança, acolhimento.

Veltinho e Cabral representam o homem contemporâneo que, solitariamente, carrega

medos, angústias, sonhos. Eles seriam símbolos de um mundo, em certa medida, constituído de

pessoas deslocadas, perdidas, fragmentadas e voltadas para seu próprio eu. Para esse sujeito, o

presente se faz inevitável, sem compartilhamento de um passado ou desprovido de abertura para

um futuro. O presente é cada vez mais intenso, avassalador e tingido pela fugacidade, pela

efemeridade, inclusive do sentimento de bem-estar.

A narrativa, marcada por fatos descontínuos e pela gratuidade da ação criminosa, nos

coloca diante de realidades que se desmancham. Assim, há um frente a frente com angústias, às

vezes mais dolorosas que o contato com a morte física e que propõem e instauram a busca de

uma existência com certo equilíbrio interior. Como se sabe, Veltinho não tem fé em coisa alguma

e dispensa a presença de um Deus e a promessa de salvação. Ele não quer paliativo para o seu

desamparo, tampouco se apega a algo supremo cuja existência constitui dogma de fé. O presente

é dominador e se avoluma. Dele não se foge, física nem imaginariamente. Os sons da cidade se

colocam como um aviso. Por isso, ao acordar do delírio, o que lhe ocorre é ter de apostar na sina

dilacerante e viver a vida com o que ela lhe destinaria – a prisão. Ao se dar conta da intensidade

das luzes que o iluminam, reconhece a escuridão em que tenta se esconder. Nesse instante, é

conduzido a uma liberdade desconhecida. O agora e a serenidade que o invadem se tornam a

única realidade, nada o faria abrir mão da beleza daquele pôr do sol.

O homem contemporâneo pode ser lido em Um táxi para Viena d’Áustria, a partir dos

sentimentos do desamparo, conceito tematizado por Birman (2014), com base em uma teorização

de Freud, e do absurdo, ideia discutida por Camus. Desamparo e absurdo caracterizam o mal-

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estar do sujeito, que busca artifícios para camuflar os padecimentos que se manifestam na perda

de si e no vazio existencial de que resultariam certas compulsões.

Discutindo o conceito freudiano do mal-estar da civilização, Birman aponta o sentimento

de desamparo do sujeito na relação com o corpo, com a natureza e com as ambivalências da

relação com o Outro. O mal-estar está relacionado com as exigências pulsionais do indivíduo e

com a possibilidade de satisfação delas. A dificuldade de o “eu” encarar sozinho as demandas e

necessidades pulsionais ou externas originam o desamparo, a susceptibilidade a perigos. Assim,

da impossibilidade de harmonia entre a pulsão e a satisfação, surge o desamparo, condição do ser.

Para Birman (2014, p. 25), o desamparo no mundo atual está relacionado com a autoexaltação do

indivíduo. Nessa direção, o psicanalista afirma:

O que justamente caracteriza a subjetividade na cultura do narcisismo é a

impossibilidade de poder admirar o outro em sua diferença radical, já que não

consegue se descentrar de si mesma. Referido sempre a seu próprio umbigo e

sem poder enxergar um palmo além do próprio nariz a cultura do espetáculo

encara o outro apenas como um objeto para seu usufruto.

Ao verificar que, tanto diante do desamparo quanto do absurdo, o sujeito sabe-se frágil e

finito, as reflexões de Freud e de Camus dialogam. O desamparo e o absurdo instauram o mal-

estar no sujeito. Com base em Freud, Birman (2014) afirma que o conflito gerado pelo desamparo

não pode ser ultrapassado. Para Camus, ao se deparar com o absurdo, o homem não pode dele se

desvencilhar. Por isso, ambos defendem a tese da gestão do conflito. Desamparo e absurdo

devem ser geridos pelo sujeito, de modo a neutralizar a função trágica de que ele é tomado

quando se percebe marcado pela finitude, pelo imprevisível e sem ter em que se sustentar. O

absurdo, como se viu, surge para Veltinho por meio de situações extremas, e, enredado por tal

sentimento, ele sente-se fraco, impotente. Destituído do que lhe era familiar e lhe concedia certa

proteção, ele vê sua relação com o mundo ser colocada em xeque. A incerteza e a contradição que

dominam o personagem, refletem o mal-estar – desamparo – que o aflige.

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1.3 ESTRUTURA E TEMA: UMA EQUIVALÊNCIA

Os signos escrevem as cidades, moldam os sujeitos e possibilitam a redescrição da

realidade contemporânea, tão marcada pelo espetáculo e pela publicidade. Em Um táxi para

Viena d’Áustria, o uso das linguagens jornalística, cinematográfica e publicitária é constante.

Elas atravessam todo o texto e constroem a imagem do personagem principal que chega a se

expressar como se estivesse a reproduzir um jargão propagandístico. Veltinho é perpassado pelos

anúncios que elaborou. Suas criações o marcam de forma a contribuir para a construção de seu eu

narcísico e exibicionista. O personagem é muito envolvido com o trabalho que fazia, pois, mesmo

desempregado, não para de pensar em slogans: “Não adianta. Até andando na praia eu faço

anúncio. Sou do ramo. Difícil é convencer o mercado disso” (TORRES, 2002 b, p.164). Os

antigos hábitos ainda permanecem no personagem, que se sente inspirado pelos signos da cidade.

As marcas da vida profissional constituem uma das facetas que integram a história pessoal de

Veltinho, e contribuem para o esboço de sua subjetivação.

O protagonista carrega, como o eu lírico do poema “Eu, etiqueta”, de Carlos Drummond

de Andrade (1984), muitas marcas, inclusive a literária. As inscrições vão além do corpo, elas

estão nas imagens que encaminham sua compreensão do mundo, do ato de criar, dos sentimentos.

Na agitação de seus pensamentos, nomes de diversos escritores se acumulam e contribuem para a

formatação do mosaico de seus sentimentos conflitantes. As impressões dos textos lidos, assim

como os escritores, sobrevivem no protagonista, que elabora reflexões valendo-se de um conto de

Jorge Luís Borges:

Passara a vida lendo.

E para quê? Para lembrar-se agora do final de um conto do argentino Jorge Luis

Borges. Que terminava assim:

[...] agora era ninguém. Ou melhor, era o outro: não tinha destino sobre a terra e

matara um homem.

[...] Jamais poderia imaginar que esse continho de pouco mais de duas páginas

um dia pudesse fazer tanto sentido. (TORRES, 2002 b, p. 28).

Veltinho é um amante e conhecedor da literatura, presença influente em sua trajetória. No

entanto, ele aniquila o sonho do amigo Cabralzinho em se tornar um escritor renomado. Este,

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diferente dos evocados pelo narrador-personagem, não se tornara um mito, por isso não seria

lembrado. Cabralzinho alimentava o sonho de ser um escritor imortal. Ocorre que ele não

alcançara tal estágio, e o que o aproximaria dos escritores renomados e imortais trazidos por

Veltinho é que, verdadeiramente, ele também estava morto.

Os traços e as identificações literárias não param por aí, eles seguem na narrativa com

trechos de poemas e até mesmo com intertextualidades com romances do próprio Antônio Torres.

O romance em estudo evoca outras publicações ficcionais de seu autor: a imagem dos “pés

redondos”, construída por Veltinho ao manifestar a vontade de andar, já havia aparecido em Os

homens dos pés redondos, obra de Torres (1999 b) que mostra o desencanto de pessoas que

caminham sem destino definido, rumo a lugar nenhum. Cabral, vítima de Veltinho, escritor e

jornalista que passa bom tempo de sua vida internado em um manicômio onde é submetido a

tratamento com eletrochoques, fato que remete ao livro Um cão uivando para a lua (2002 a) e ao

personagem A, jornalista que vive experiências terríveis em um hospital psiquiátrico. Outra

intertextualidade observada no mesmo livro está nas menções ao uivo do jazz escutado por

Veltinho, e cujo solo instrumental dá origem ao título Um cão uivando para a lua. Outra imagem

que se faz presente é a da tentativa de reencontro do eu de um tempo passado com que se

reconstruiria, na atualidade, a vida social. Tal resgate faz relação com o romance Balada da

infância perdida (1999 a). As reminiscências e alucinações que perturbam Veltinho, também

estão presentes em Calunga, personagem de tal obra. Nela, o narrador-personagem também vive

no Rio de Janeiro e seu delírio se desenrola ao som das rajadas de bala que estrondam no morro

ao lado de sua casa, situação tal que comparece também nas impressões de Veltinho. Ele afirma

que as noites de Copacabana são embaladas pelo som dos constantes tiroteios nos morros do

entorno.

As estruturas textuais são desenhadas em paralelo com os estágios vivenciais do sujeito, o

que se faz bem representado a partir da presença de uma linguagem que indicia o que se passa na

subjetividade de Veltinho. Homem cuja existência é desprovida de grandes feitos, Veltinho tem

seu equilíbrio emocional e narcísico garantidos pelo sucesso como publicitário. Ao perder essa

posição, é lançado à escuridão de um inferno particular, já que a maioria de suas conquistas se

nutre do sucesso profissional. É uma subjetividade também constituída pelos eixos narcísicos que

correspondem a um superinvestimento emocional centrado no exibicionismo, traço de

personalidade que guarda forte relação com certo glamour com que se apresentam muitas pessoas

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envolvidas em mensagens publicitárias. O fracasso profissional lhe imprime enorme peso e denso

sentimento de fracasso pessoal e de solidão. A culpa e a vergonha o atormentam, ele já não sabe

se seria capaz de se reerguer.

Em seu desamparo, Veltinho identifica-se com um pintor que mora em seu prédio. Ele se

reconhece naquela figura triste e solitária, consumida pela bebida alcóolica. Pablo, amante das

artes, argentino radicado no Brasil, não chega a decolar sua carreira como artista plástico;

consegue certo destaque como diretor de arte em uma agência de publicidade, mas acaba por

ficar desempregado e amargar o fracasso. Uma vez fora do mercado, vivencia o dia a dia entre a

instalação em um banco da portaria do prédio e a visita aos bares da redondeza. O argentino

mantém a ilusão de que um dia sua arte seja reconhecida.

Ainda que mal se conheçam, a situação degradante do argentino de alguma forma

incomoda Veltinho, mas nunca ele falou tão proximamente como naquele momento, quando a

identificação ganha dimensão superlativa. Como se vê, também Veltinho passa a fazer o percurso

diário entre a praia e os botecos. Também ele se vê tomado pela letargia e pela desolação. Mais

do que nunca, Pablo é o espelho em que o publicitário se vê agora: “Aqui e agora ele

compreendia, finalmente, por que a solidão daquele argentino o perturbara tanto, durante todo

aquele ano, e por que agora se lembrava dele, com uma intensidade igualmente incômoda. Ele era

você amanhã. Isto é, hoje” (TORRES, 2002 b, p. 190).

O misto de lembranças e fantasias ganha espaço em instantes em que Veltinho está no

táxi. Ali, ele revive sua vida pretérita e se entrega à fantasia do presente, que é desencadeada pelo

Réquiem de Mozart, canção ouvida do rádio do táxi. Veltinho é imaginariamente transportado

para Viena, capital da Áustria e da música, espaço geográfico em que ele experimentaria a paz

tão distanciada agora. O tempo do sofrimento é desfeito e substituído tanto no plano espacial

como no temporal. As fronteiras espaciais e temporais são eliminadas, pois o tempo e o lugar da

dor são dissolvidos pela fantasia. Assim, a narrativa se desloca na consciência de um sujeito

(narrador) preso a tempo-espaço que ganha dimensões de deslocamentos fundamentais, pois

relacionados a tempos-espaços passados e futuros:

Alguma coisa está acontecendo. Ou já aconteceu.

E deve ser numa esquina de São Paulo. Ou dentro do túnel Rebouças, no Rio de

Janeiro. O maior túnel urbano do mundo. [...] Desse jeito nunca vou chegar a

Viena d’Áustria. Mamãe, onde é a sua casa? Alô, mãe? Já procurei em toda a

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parte e nunca acho a sua casa. Só vejo prédio alto. Cadê o cheiro das suas

goiabas, no quintal? [...] Aliás, vou me encontrar com Ele daqui a pouco, em

Viena d’Áustria, onde tem música nas ruas. Quer se encontrar comigo lá?

Mamãe também vai? (TORRES, 2002, p.172).

O romance é estruturado com dez capítulos, sendo que o primeiro e o último são divididos

em fragmentos nomeados e fogem das categorias tradicionais da narrativa. As unidades de tempo

e de espaço são fragmentadas e sem ordenação. A ação dá lugar às divagações e aos delírios. O

texto é desordenado, inconcluso. Assim, Um táxi para Viena d’Áustria, narrativa circular, cuja

temática aborda um universo e um sujeito sem referências, sempre a se reinventar e se

reconstruir, vivendo à mercê do desamparo, representa a realidade aparente com certa harmonia.

Estrutura e tema se complementam. Aqui, há um resgate de algumas passagens que se

identificam com discursos que revelam uma subjetividade angustiada e contraditória.

Em “Ocorrências”, capítulo I, a narrativa é feita em terceira pessoa e inicia como uma

apresentação de noticiário: “Neste exato momento há um indivíduo descendo apressado pelas

escadas do edifício nº 3 da rua Visconde de Pirajá, Ipanema, aqui no Rio de Janeiro” (TORRES,

2002 b, p.7). O leitor, assim, é situado, toma conhecimento do local onde os acontecimentos

ocorrem no que aparenta ser o relato de uma fuga. Quem estaria fugindo e por quê? Os

acontecimentos à vista do narrador são apresentados: um homem que sai apressado de um prédio

como se estivesse a fugir de algo, um acidente que provoca um grande congestionamento, um

tumulto com ameaças de linchamento, a ação e o pânico dos comerciantes do local.

O título do capítulo remete ao registro de confusões, acidentes, fatos suspeitos,

desavenças. Os subtítulos ratificam as suspeitas: atenção; coisas de amador; profissional faz

assim; evidências; barra limpa; pausa para uma coca; fala o povo; ultimato; gritos e sussurros;

universo em desencanto; essa não refresca; ensaio geral; guerra é guerra; alerta estadual;

comunicado federal; balanço; honra ao mérito; decepção; desculpe qualquer coisa. O capítulo,

aos poucos, desvela a urbe e seus símbolos, assim como os sentimentos do personagem Veltinho.

Tais aspectos são representados a partir do enfoque de referências culturais como a música e o

cinema. Há também a presença de elementos sinestésicos que aguçam, no leitor, percepções

auditivas e visuais que contribuem para que se conheça não só o personagem, mas todo o

ambiente. Há, assim, imagens do tráfego congestionado, da violência urbana, da indiferença, da

desconfiança, assim como a grandiosidade da natureza e a beleza da música, que também está

presente na cidade e nos seres.

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Alguns capítulos do romance são divididos em pequenos fragmentos, enquanto outros não

possuem separação interna. O capítulo VI tem apenas uma página e se constitui de uma epígrafe e

a constatação do narrador-protagonista, como se verá abaixo. O fluxo de consciência, frenético e

caudaloso, é interrompido por uma expressão contundente carregada de sentido: Alfred

Hitchcock, famoso cineasta inglês, conhecido por seus filmes de suspense teria dito que “É

difícil, é muito penoso e toma muito tempo matar alguém”. Afirmação prontamente rejeitada por

Veltinho: “– Desculpe, Mister Alfred, mas desta vez você errou” (TORRES, 2002 b, p. 85). Para

o protagonista, matar fora fácil e rápido.

Em “A parede branca”, capítulo VIII, Veltinho anuncia toda sua infelicidade e desamparo.

Em seu discurso, aparecem falta de fé, de dinheiro, ausência dos amigos e falta de tempo ou

motivação para ajudá-los, a hipótese da loucura, do suicídio, a resistência da parede, que pode ser

lida como suas angústias, o deleite proporcionado por uma canção de Mozart, a qual concorre

com os sons e com a violência das ruas, o desejo de sair do caos e se abrigar em uma “catedral

consoladora em Viena d’Áustria” (TORRES, 2002 b, p. 132). O capítulo é marcado pela

confusão de ideias e também pela densidade das indagações. As ideias de salvação, arte e religião

se misturam a ponto de o próprio narrador não saber distinguir entre uma coisa e outra: “[...]

Jesus é a salvação? Jesus, Deus, Mozart, o motorista do táxi? Jesus é música? Deus é arte?

Mozart é religião? E o motorista do táxi, o que é?” (TORRES, 2002 b, p.128).

Síntese de todo o devaneio, o capítulo carrega tons de absurdo. A parede branca que

acompanha o personagem, ganha terreno quando Veltinho se dá conta da dificuldade em

conseguir um emprego. Começa, então, a procura por alguém que o ajude a transpô-la. Ele

solicita auxílio, cria estratégias para se desvencilhar dela, mas cada tentativa se mostra infrutífera.

Quando as possibilidades do plano real se esgotam, ele apela para o amparo de lugares

fantasiosos, especialmente uma catedral consoladora em Viena d’Áustria, que também vem a ser

um sonho inatingível, fruto da imaginação. O capítulo mostra como o delírio de Veltinho é

carregado de ambiguidades: sentimento de desamparo e desejo de acolhimento, tristeza e alegria,

aflição e serenidade.

Nele, mais uma vez, as vozes narrativas se mesclam. A narração conduzida em primeira

pessoa sofre um corte e surge a voz da terceira pessoa; o narrador-personagem fala de si mesmo

como se estivesse referindo-se a Outro: “[...] afinal, onde estou? Você está saindo do Correio, em

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São Paulo, onde acabou de despachar uma carta para a sua mãe. E agora vai dar uma ligadinha

para os amigos, no orelhão da esquina” (TORRES, 2002 b, p.128).

O capítulo IX, intitulado “Diário de um desempregado, assassino potencial ou

consumado, obviamente impune etc.”, é construído a partir de 44 fragmentos separados por

números arábicos. O suposto diário é marcado por saltos no tempo, pela incoerência dos fatos, e

expressa a confusão dos sentimentos de Veltinho acerca do Rio de Janeiro, das pessoas com

quem ele convivia e de algumas impressões sobre si mesmo. O diário poderia ser a marca da

ambiguidade do personagem, de sua mente confusa, do tormento pela solidão e pelo desamparo

diante do absurdo da vida. Veltinho parece tentar sistematizar os acontecimentos recentes ou não

de sua vida, mas só consegue dar voltas em torno de si mesmo. Ele recai sempre nas mesmas

questões, isto é, tudo não passaria de um grande círculo vicioso. Convém dizer que talvez ele só

consiga reencontrar-se consigo mesmo através do contato apaziguante experimentado na

proximidade com a natureza: “Foda-se o mundo. Vou à praia. Andar, andar, andar, até ficar de pé

redondo, como um bêbado. [...] Andar, andar, andar. Para descobrir que ainda tenho olhos para a

beleza” (TORRES, 2002 b, p. 145).

Intitulado “O encontro”, o último capítulo descreve o dia de Veltinho antes de sair para

visitar Cabral, as preocupações, os incômodos e perturbações que o acometem, a indiferença e a

beleza da cidade. A narrativa, após nove capítulos e algumas intromissões, volta a ser feita em

terceira pessoa, sendo retomada pela primeira pessoa apenas nos dois últimos fragmentos, “Não

acredito!” e “Muito longe mesmo de Viena d’Áustria”. Tais fragmentos narram, respectivamente,

o reencontro entre Cabral e Veltinho e o despertar do delírio de que foi acometido. Marcado por

forte carga emotiva, o capítulo, além de expressar as dores e prazeres de Veltinho, expõe toda a

solidão de Cabral, o que se evidencia pela desordem da casa do suposto escritor, o lamento de sua

vida feito pela voz narrativa de Veltinho, isto é, o álcool, o cigarro, a aflição diante da diuturna

convivência com a lancinante dor na barriga.

Veltinho, ante as dificuldades de uma vida de tantas demandas, carrega o peso de viver.

No entanto, ao contemplar o mundo natural com toda a sua luminosidade, suas cores, seus

cheiros, a leveza que dele emanaria, passa a vivenciar sentimentos aprazíveis. Assim, a natureza

se torna um desvio, um novo ponto de observação. As imagens construídas a partir dela não

desvanecem. A contemplação e a fruição dela são também uma espécie de fuga, já que é um lugar

do prazer, de certo aconchego.

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O romance apresenta uma sucessão de imagens que compõem mais uma fantasia que,

como tal, é construída a partir de uma linguagem ágil, cujo encadeamento dá a ideia de cenas

rapidamente esboçadas. A fantasia remete Veltinho a mais um universo apaziguante em que ele

escaparia do sofrimento em que se encontra, pois entraria em contato com um Ser que o perdoaria

e não o julgaria:

[...] e no entanto acabo de cruzar com Deus, que passou por mim dentro de uma

nuvem. E Ele é mesmo muito bonito, divino e maravilhoso. E havia uma aura,

um halo de luz e cor, a cercar a Sua imagem de Deus. E eram todas as cores do

arco-íris. E Suas melenas eram longas e brancas. E Suas vestes também eram

longas e brancas e imaculadas. E Seu rosto apolíneo e beatífico. E Seu olhar

sublime e sábio, cheio de bondade. E Ele parecia um Homem feliz. Mas passou

depressa e não respondeu ao meu aceno. E então tive certeza de que se tratava

mesmo de Deus. (TORRES, 2002 b, p. 219).

A passagem assume contornos irradiantes, é colorida e evoca o anseio do personagem em

se deparar com um ser bondoso, que transmita paz e lhe dispense a atenção tão desejada, sem

acusações e sem pressa. No entanto, o que seria um sonho bom se mostra como a realidade, cheia

de urgência e desatenção. O momento ideal para a restituição do equilíbrio se transforma em

frustração.

Enfim, no romance em estudo, identificam-se certos arranjos da estrutura narrativa e

aspectos com que possivelmente se apresentaria a sociedade contemporânea. A estrutura

narrativa busca captar aspectos interligados com uma interdisciplinaridade que alcança até

mesmo a produção do escritor, como foi descrito anteriormente, em termos do resgate de

aspectos caracterizadores de personagens de outras narrativas. O discurso textual – atropelado,

espedaçado, entrecortado por focos narrativos diferentes, às vezes, destituído de uma sequência

lógica – poderia ser olhado como indício de aspectos com que se apresentariam a cidade e o

sujeito contemporâneos, como se buscou qualificar a partir, principalmente, do protagonismo

vivenciado e experienciado5 por Veltinho no Rio de Janeiro, urbe tão bela apesar de ser palco de

acontecimentos que tentam enfeá-la.

5 Os conceitos de “vivência” e “experiência”, à luz da teoria benjaminiana, serão tematizados e qualificados no 2º

capítulo desta dissertação.

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1.4 NAS TEIAS DA LINGUAGEM: METONÍMIA E METÁFORA

Como vem sendo exposto, as questões formais da escritura podem ser tomadas como

elementos com que se procede à compreensão dessa ficção e do personagem principal. Assim

sendo, a metáfora e a metonímia, recursos de riqueza expressiva largamente usados na construção

do romance em foco, são valiosos para este estudo. A metáfora se apresenta na construção de

associações e similitudes expressas na fantasia e no desejo experienciados pelo protagonista. Já a

operação metonímica está relacionada com o mundo visível e próximo, refletido principalmente

na estrutura narrativa. A feitura do texto, que reúne cortes e interrupções, descentraliza qualquer

visão que se pretenda totalizadora. O romance, em sua fragmentação, é metonímico.

Um táxi para Viena d’Áustria apresenta uma estrutura narrativa marcada por um aspecto

labiríntico, no que diz respeito à trama e aos descolamentos espaciais. Como dito anteriormente, a

imaginação do personagem empreende inúmeras viagens de forma anárquica e sem qualquer

espécie de fronteira. Sem uma referência e sem vivência consistente do tempo, os acontecimentos

e fantasias se misturam. É o que acontece com Veltinho, pois, para ele, tanto no âmbito da

realidade como no campo da imaginação, o tempo perde sua relevância. Observem-se as

passagens: “[...] não estou com cabeça para cronometrar os acontecimentos” (TORRES, 2002 b,

p. 91); “[...] o tempo estava correndo, mas ele não tinha a menor pressa” (TORRES, 2002 b, p.

179). O esmaecimento do tempo ainda pode ser observado a partir do mergulho no universo do

intimismo, quando as questões pessoais e particulares são posicionadas como centro diante do

mundo, até porque ele “[...] tinha tempo demais para pensar” (TORRES, 2002 b, p. 53). O

aspecto labiríntico, portanto, se faz presente também na deriva do protagonista. Tal estado

fomenta sua angústia e desafia o leitor a não se perder nos inúmeros direcionamentos do enredo.

Ainda em relação com a perspectiva metonímica, a ficcionalização do drama de Veltinho

se apresenta como pequeno fragmento da vida do cidadão urbano em geral. Como num jogo de

espelhos, Veltinho reflete, levando-se em conta seu fracionamento e (des)encontros, a angústia do

mundo contemporâneo e a solidão e o desamparo do sujeito descentralizado. A partir de certos

acontecimentos que estão no plano do discurso, o leitor pode estabelecer uma identificação com a

realidade imediata, comunicada pelo próprio texto. Em um vaivém de imagens que contrapõem e

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mesclam o real imediato e o ficcional, a figura de Veltinho parece se reproduzir em textos de

tantos outros escritores por ele citados, como James Joyce, Machado de Assis, João Guimarães

Rosa, Clarice Lispector, Dostoievsky. Trata-se de escritores argutos dissecadores de aspectos da

condição humana. Veltinho, como se viu, questiona a si e ao mundo. Ele também carrega um

peso, uma experiência, de teor único e profundo, aspectos identificados na escrita, nas

manifestações verbais e nas situações tematizadas por tantos escritores.

A linguagem literária e as representações tematizam os enigmas do mundo e possibilitam

certa apreensão da essência humana. Mesmo posta como devir de uma subjetividade inacabada,

as recriações artísticas elaboram aspectos da realidade e as tensões sociais. O narrador do texto

em foco joga com a linguagem, trapaceia e transgride aspectos dos gêneros textuais. A priori, o

texto parece ser um romance policial, o narrador age como um detetive a analisar as situações

suspeitas, comporta-se como um apresentador de TV a convocar os telespectadores para mais um

espetáculo e, por fim, mostra uma mente em conflito.

A linguagem do capítulo I flerta com o narrador de thriller6, cria certo suspense no leitor.

Cabe ressaltar que o narrador é um contador de história que não pretende verdadeiramente criar

expectativas. Ao levantar dúvidas acerca do homem que desce correndo as escadas de um

edifício, o narrador o faz de forma irônica. O personagem que mata sem um motivo, é um ser

enleado pelo inesperado, pelo absurdo da vida e traz consigo toda a dor causada pela incerteza e

pela incompreensão de si, do Outro e do mundo. Este, assim como o homem, é uma incógnita.

Com exceção do item 19, o capítulo traz, de forma objetiva e clara, uma visão geral,

panorâmica do texto. O capítulo reúne o que virá a ser debatido e expresso no fluxo de

consciência do protagonista; o tempo é o presente. Narrado como um espetáculo, adota, em

alguns trechos, uma linguagem própria dos apresentadores de programas de TV. “É hoje. Dentro

de alguns instantes entra no ar um espetáculo para ninguém botar defeito” (TORRES, 2002 b, p.

17). O cenário é o Rio de Janeiro, Ipanema, com ruas atravancadas que contrastam com a “areia

morna, fofa e sensual” da praia. O sujeito que surge em meio ao caos e desperta a atenção do

narrador parece imprimir certa nostalgia à voz implacável e indiferente do “repórter”, que muda

6 Luís Nogueira, em Géneros cinematográficos (2010), diz que o thriller é caracterizado pela forte tensão dramática

e pelo desafio das expectativas narrativas. Um dos gêneros mais apreciados do público é organizado em torno de três

preceitos: a intenção de criar no espectador uma intensa excitação e nervosismo, a instauração e perpetuação da

constante dúvida sobre o desfecho dos acontecimentos e sobre o destino das personagens e o lançamento de uma

sugestão verossímil, que acaba por se mostrar enganosa, para que o espectador entre num jogo de inquietação,

incerteza, nervosismo. O autor ainda informa que o pai do gênero é Alfred Hitchcock.

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de tom e revela certo desabrigo: “Eu quero mamãe. E uma casa no campo” (TORRES, 2002 b,

p.18). Em suma, o capítulo apresenta o espaço em que os fatos ocorrem, o caos reinante e o

desejo de evasão das pessoas que nele se encontram.

Com a construção de imagens insólitas e absurdas, alterações no tempo e no espaço, que

se tornam relativos, confusos, o texto é em certa medida cheio de estranhamentos e, em sua

opacidade, possibilita uma leitura do cotidiano. Os acontecimentos e as questões vivenciais do

homem são revelados, em sua maior parte, por um narrador conhecedor do desamparo e do

absurdo. Desse modo, a apreensão que se tem do mundo é de um universo incerto, relativo,

incompleto, como o próprio ser humano.

Como aponta Mário Vilela (1973, p.19), “[...] a metonímia apresenta uma visão

fragmentária da realidade pelo realce dado a uma parte do todo”. Nesse sentido, a partir do

microorganismo carioca, o todo ganha relevo. Nas andanças e até mesmo dentro do táxi, Veltinho

vivencia a dinâmica da cidade, que poderia ser qualquer outra dada à uniformidade do mundo

urbano contemporâneo. Todos podem estar em qualquer lugar e quase tudo é igual. Ao pensar a

sua existência e colocá-la em questão diante da estranheza do mundo, Veltinho pensa também na

realidade social, lamenta a falta de cuidado e os fenômenos perversos a que a urbe está suscetível.

Assim, a narrativa, ao trazer os dilemas da realidade em um mundo em que as relações são

pautadas por valores superficiais e de consumo, estabelece um jogo com o social. No entanto,

ainda que traga o social, Um táxi para Viena d’Áustria privilegia a questão do sujeito, a exemplo

do sentimento de desamparo, o que seria próprio do ser.

Veltinho carrega consigo um incômodo que pode ser percebido até mesmo nos momentos

de sucesso. Ele passa parte de seu tempo bastante envolvido com o trabalho ou com o consumo

de bebida alcoólica, mecanismos com que se preencheriam certas lacunas interiores. Tais

comportamentos não seriam indicativos de sentimentos de vazio e de desamparo? Ambos não

seriam meios de driblar a experiência do vazio, da solidão, através do disfarce e da negação?

A metáfora permeia toda a narrativa, comparecendo nas falas do narrador e das

personagens. Para Paul Ricoeur (2005), a metáfora é muito mais do que um jogo de linguagem

utilizado nos textos, uma vez que ela se apresenta como estratégia do discurso que preserva,

desenvolve e amplia a capacidade de criação da linguagem. A metáfora possibilita a recriação de

realidades que tocam o abstrato e, por isso, torna-se um recurso essencial para que o indivíduo

realize a compreensão e faça leituras do mundo e de si. No texto em análise, observa-se que o

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escritor utiliza reiteradamente o jogo metafórico, ênfase que se faz presente também como

estratégia de construção dos sentidos da verossimilhança. A esse respeito, Ricouer (2005, p.336)

afirma:

O texto é uma entidade complexa de discurso cujos caracteres não se reduzem

aos da unidade de discurso ou frase. Por texto não entendo somente nem

principalmente a escritura, embora a escritura ponha por si mesma problemas

originais que interessam diretamente ao destino da referência; mas entendo,

prioritariamente, a produção do discurso como obra. Com a obra, como a

palavra o indica, novas categorias entram no campo do discurso, essencialmente

categorias práticas, categorias da produção e do trabalho. Antes de tudo, o

discurso é a sede de um trabalho de composição, ou de ‘disposição’ – para

retomar a palavra da antiga retórica –, que faz de um poema ou de um romance

uma totalidade irredutível a uma simples soma de frases. Em seguida, essa

‘disposição’ obedece a regras formais, a uma codificação que já não é de língua,

mas de discurso, e o transforma no que acabamos de chamar um poema ou

romance. Esse código é dos ‘gêneros’ literários, isto é, dos gêneros que regulam

a práxis do texto. Enfim, a produção codificada se encerra em uma obra

singular: este poema, aquele romance.

O romance (nosso foco) é lugar de possibilidades interpretativas, cujo desfrute vai residir

não só na compreensão do que se revela inicialmente no discurso por si só, como também se

levando em consideração as construções oriundas do entrecruzamento do sentido inicial da

metáfora com as mesclas e ampliações decorrentes das vivências e experiências do leitor. Assim,

são produzidos e postos em ação significados em cujas feições e traços se observa certa

subjetividade, na verdade, um produto das amplificações dos sentidos que se elaboram a partir

das interações leitor/texto. Não se perca de vista o que Aristóteles (apud RICOUER, 2005, p.

295) afirma: “[...] a maior coisa é de longe, o uso da metáfora, só que isto não pode ser ensinado:

é dom de gênio, pois usá-la bem é ver o semelhante”. Reforce-se, então, que a maior

grandiosidade é, sem dúvida, ser-se mestre na metáfora. A metáfora assume importância

fundamental na construção dos sentidos das diversas produções textuais, uma vez que se trata de

um recurso e uma habilidade humana ante os propósitos de potencialização e ampliação dos

significados, não só do texto escrito e artístico. Observe-se que a metáfora é importantíssima

também na fala e na comunicação diária. Ela ocupa dimensão não menos importante na

linguagem e nos discursos publicitários e até mesmo nas construções em que se flagra o senso

comum.

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Observando-se bem, a metáfora como linguagem vem a ser uma impertinência e uma

nova maneira de apreensão do mundo. Na narrativa em estudo, observa-se como as imagens

metafóricas tão acessíveis, na verdade, remetem a universos sutis e dotados de aspectos que

possibilitam certa profundidade reflexiva. A vida é permeada por metáforas, construções que,

portando uma função hermenêutica, permitem que o real seja ressignificado. Ricouer (2005, p.

371) declara que “[...] é a obra poética como um todo – o poema – que projeta um mundo”.

Um olhar sobre o título da narrativa em análise, Um táxi para Viena d’Áustria, em suas

várias possibilidades de leitura, aponta menos para uma análise e interpretação denotativas.

Como que corroborando tal assertiva, Paul Ricouer (2005, p. 338) ressalta que “[...] o prazer

artístico, à diferença do exame científico, parece ligado a ‘sentidos’ desprovidos de ‘denotação’”.

Voltando a leituras do romance em foco, constata-se que, chegar a outro continente por meio de

um táxi, é irrealizável. Isso permite e encaminha a afirmação, segundo a qual, a princípio, se

estabelece uma incompatibilidade semântica. Segundo Mário Vilela (1973), a metáfora rompe

com a lógica, pois constitui um desvio em relação à ideia inicial, no que se refere à linguagem

denotativa. Identificada a instância metafórica que se imbrica no título, elaboração que se torna

plausível com um rompimento com a linguagem padronizada e com a ampliação dos semas,

cabe-nos desvendar os sentidos e imagens que se entrecruzariam nessa “viagem”.

O título Um táxi para Viena d’Áustria parece representar a saída, o escape diante da

realidade opressora, fuga que ocorreria pela via da imaginação. A palavra táxi indica e traduz

imagens que se identificam com sentidos de movimento, de locomoção, de transmigração. Viena,

como cidade, representa o destino a que se quer chegar. Veltinho se encontra dentro do táxi e, de

repente, vislumbra Viena, urbe-destino que se planta em sua imaginação, a partir da canção

executada no rádio do carro – a composição de Mozart. As expressões “táxi” e “Viena” remetem

a conceitos que, de algum modo, mantêm relações e sentidos em que apareceriam ideias de

semelhança. A esse respeito, Le Guern (1973, p.85) afirma:

[...] é com a semelhança, e não com a comparação no sentido restrito que a

metáfora tem relações de significação.

A semelhança tem de comum com a metáfora o facto de fazer intervir uma

representação mental estranha ao objectivo da informação que motiva o

enunciado, isto é, uma imagem.

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O título representa não o deslocamento físico para outro país através, efetivamente, de um

meio de transporte. As imagens se identificam com o escape da opressão ali vivenciada via

imaginação, elemento que remete o protagonista a uma tranquilidade que lhe possibilitaria um

local distante e totalmente alheio ao clima sombrio e de sufocamento vivenciado naquele tempo-

espaço físico e existencial. Recupera-se a ideia de semelhança, o sentido metafórico ganha relevo

e o texto se enriquece, enriquecendo-se também o leitor que mergulha naquele universo

possibilitado e disponibilizado pela potencialidade da linguagem imagética.

O jogo de linguagem na narrativa evoca imagens que expressam analogias e evidenciam,

como salienta Le Guern (1973), atributos inicialmente estranhos ao contexto, como, no caso do

título, os sentidos, imagens, significados aos quais o signo “táxi”, na proposta de denotação, por

si só jamais remeteria. A analogia desfaz a incompatibilidade semântica inicial, visto que, no

plano imaginativo, os sentidos se articulam e estabelecem correspondências que amplificam as

significações primeiras. Nas palavras de Le Guern (1973, p. 92), a analogia “[...] imposta na

metáfora como único meio de suprimir a incompatibilidade semântica, estabelece-se entre um

elemento pertencente à isotopia do contexto e um elemento que é estranho a esta isotopia e que

por essa razão, faz imagem”. Desse modo, a metáfora constitui a imagem, e o impacto sobre a

sensibilidade introduz um sentido que extrapola a lógica, e o estranhamento aguça a imaginação.

Viena, capital da Áustria, considerada um dos grandes centros da música erudita é

constantemente chamada de “a cidade dos músicos”. Músicos como Franz Schubert e Strauss

nasceram em Viena, urbe que também abrigou Beethoven, Johannes Brahms e muitos outros,

entre eles, Mozart, compositor da “Missa em dó maior”, que embala o devaneio meio delirante de

Veltinho. A inspiração para o título da narrativa parece brotar da musicalidade tida como atributo

de Viena. Tal musicalidade se relacionaria com a ideia de escape e de evasão de um tempo-

espaço de desolação e de angústia. Nas palavras de Ricoeur, (2005, p. 303), “[...] o poder da

metáfora seria o de romper uma categorização anterior a fim de estabelecer novas fronteiras

lógicas sobre as ruínas das precedentes”. Imbricam-se, dessa forma, todas as possibilidades que o

signo viagem desencadearia. A metáfora se torna plena com a associação e não com a

significação corrente das palavras, o que permite a supressão de alguns detalhes e a acentuação

de outros, até remetendo a esses arranjos com que a potencialidade da metáfora se configura, se

faz valer, ganha consistência (RICOEUR, 2005). Nesse sentido, Le Guern (1973, p.151)

assegura:

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[...] é essencial estudar as metáforas no seu contexto, sem o que seria impossível

reconstituir os elementos de permanência e as metamorfoses deste universo

estranho à realidade descrita, mas muitas vezes mais importante para o autor do

que esta realidade. Os efeitos de eco que tornam uma metáfora tão obcecante

para o leitor como o era para o escritor, podem ser salientados por este estudo

das metáforas em contexto.

Viena remete a um destino tido, em certos aspectos, como melhor. Tal urbe também

costuma figurar entre as primeiras no ranking daquelas que ofereceriam certa excelência em

termos de qualidade de vida. Os estudos levam em conta a estabilidade econômica, os níveis

avançados dos serviços públicos em termos de saúde, educação, cultura, enfim, infraestrutura

urbana, índices que suplantariam os oferecidos pelo Rio de Janeiro, cidade da qual Veltinho

deseja fugir e que poderia ser muitas outras.

A narrativa começa justamente com o relato da fuga. Veltinho sai assustado do

apartamento do amigo Cabral, que ele acabara de matar. Ao entrar no táxi, ele viverá todo o

processo anteriormente descrito. A viagem imaginária lhe possibilita saltos que o conduzem ao

passado e ao futuro, mas, sobretudo, ele se imagina naquela capital europeia, onde, conforme lhe

disseram, há música nas ruas.

Todas as considerações aqui trazidas sobre a metáfora permitem que se afirme mais uma,

também de importância capital na narrativa – o congestionamento do trânsito. Assim sendo, a

inviabilidade que se esboça em espaços físicos reais do Rio de Janeiro – esquina “[...] onde a rua

Canning desemboca na Gomes Carneiro, bem no calcanhar desta nossa Visconde de Pirajá”

(TORRES, 2002 b, p. 12), com o acidente do caminhão de Coca-Cola que ali tomba –, assumem

sentidos cuja plenitude e força se tornam consistentes, por assim dizer, principalmente com os

desdobramentos possibilitados pela metáfora. Assim, o congestionamento nas ruas de Ipanema

representa o travamento e os processos de inviabilização pelos quais o Brasil em não poucos

momentos passa, ao vivenciar e experimentar situações vistas e tidas como críticas. Não se perca

de vista que o País empreende uma modernização precária, que efetivamente não prepara apenas

a infraestrutura para os deslocamentos urbanos, mas também para as demandas, sobretudo de

natureza econômico-social, de que a população do Brasil em geral tanto padece. O Rio de Janeiro

e o País pagam o alto preço do crescente aumento populacional nas grandes cidades, que entram

no século XXI experimentando, a cada instante, a precariedade da educação, da saúde pública,

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dos transportes, da segurança pública, entre outros aspectos. É vivenciando todos esses estágios

que o Brasil também busca se inserir nas esferas do mundo capitalista.

Pensando a contemporaneidade, Bauman (2001, p. 70) afirma que “[...] hoje o capital

viaja leve – apenas com a bagagem de mão, que inclui nada mais que pasta, telefone celular e

computador portátil. Pode saltar em quase qualquer ponto do caminho, e não precisa demorar-se

em nenhum lugar além do tempo que durar sua satisfação”. Tal mobilidade e leveza, que se

identificam com sentidos do estar em trânsito, destoam das imagens pesadas das ruas em

Ipanema, Rio de Janeiro, como de resto, de todas as ruas importantes das grandes cidades

brasileiras. As imagens dos congestionamentos das metrópoles representariam os obstáculos

estruturais vivenciados diuturnamente no/pelo País – a inviabilidade urbana, a precariedade da

educação, da economia, da saúde pública, da tecnologia indispensável para certos avanços e, até

mesmo, dos impasses criados pelos altos níveis de violência, que tanto apavoram.

A estagnação do trânsito metaforiza a estagnação social. Como o trânsito lento e que

constantemente trava, também os desencontros e as diferenças sociais costumam inviabilizar e até

mesmo parar o crescimento efetivo e a melhora das condições de vida da população. O

engarrafamento ilustrado no romance vem a ser um símbolo do país burocrático, desigual,

desprovido de infraestrutura satisfatória.

O texto tematiza também o preconceito em relação ao poder econômico-social. Nesse

sentido, observa-se como um típico morador da Zona Sul carioca se refere aos moradores do

morro. A discriminação étnico-racial e social se desenha com clareza: “[...] Tudo preto e pobre

[...]” (TORRES, 2002 b, p. 21). O nível de irritação e de aborrecimento diante do quadro que se

desenha é muito grande e tem gerado situações de neurose urbana, a qual se articula com um

cotidiano que não vislumbra transformações significativas. Veltinho afirma: “[...] que país mais

emperrado” (TORRES, 2002 b, p. 80). A viagem imaginária corrige, mesmo que

momentaneamente, essa realidade insatisfatória, e o protagonista vivencia uma saída. Assim, ele

se vê no rumo certo para o escape. Nesse sentido, ora se imagina a caminho de Viena, ora já se

encontra lá, na catedral de Santo Estêvão. Enfim, a realidade torna-se tão terrível, tão brutal, que

a saída vem a ser mesmo o processo de delírio. Imerso em um estado entre o sono e a vigília, uma

espécie de “entre-lugar”7 situado no meio dos polos da consciência e da inconsciência, Veltinho

7 Termo cunhado por Silviano Santiago (2000). A expressão aparece aqui com outro sentido.

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chega a se confundir: “[...] não! Estou acordando. Mas ainda não sei se estou partindo ou

chegando” (TORRES, 2002 b, p. 220-221).

Veltinho se apresenta como um sujeito destituído de referências. Os princípios morais se

arrefecem a ponto de, a despeito do mandamento repetido por sua mãe, “Não matarás”, ele se

flagrar como assassino do melhor amigo. Vítima de tantas incertezas e entregue ao estresse

diário, à angústia e ao vazio, ante um mundo em que não se pode planejar o futuro e nem se

conhece o lugar e o sentido da existência, parece que o delírio é o único recurso para continuar

sobrevivendo. Como se vê, todo o quadro de rompimento com os valores faz com que ele

também se flagre envolvido com a violência, colocada tantas vezes sob a ação dos processos de

espetacularização, o que contribui para sua banalização.

O pau vai comer solto, amigo ouvinte. A cobra vai fumar.

Prepare o seu coração para muita emoção.

É hoje. Dentro de alguns instantes entra no ar um espetáculo para ninguém botar

defeito. Ação. Suspense. Terror. Cenas de violência explícita.

Finalmente. Chegou. Agora no Brasil. A Ipanema Pictures orgulhosamente

apresenta, com sangue, suor e sufoco,

A GUERRA DAS GARRAFAS

(Salve-se quem puder.) (TORRES, 2002 b, p. 17).

Viena é então tomada pelo personagem para representar o sossego, a paz, a ordem e o

desenvolvimento. Ao despertar diante da “musicalidade do trânsito”, “Fonfom. Pipiiiiiiiiiiiii”, e

ainda aturdido pela viagem imaginária, Veltinho se percebe inerte dentro do táxi, ainda em frente

ao apartamento do qual fugira. Assim, ele volta um pouco ao mundo do Rio de Janeiro: “Buzinas,

sirenes, vozes, gritos. Estridências nos meus ouvidos. Alguma coisa aconteceu, está acontecendo

ou vai acontecer. Não pode ser Viena. Lá não acontece nada, desde que Mozart morreu”

(TORRES, 2002 b, p. 220). O caos percebido não condiz com a organização e o desenvolvimento

de Viena, lugar cujo acontecimento mais turbulento é a morte de um grande músico.

As ruas estão travadas, os carros não saem do lugar, “não pode ser Viena”. A estagnação é

física, mas também psicológica. Outra metáfora relaciona-se com o congestionamento: Veltinho

não sabe o que fazer de sua vida e qual direção seguir. O travamento é também dele mesmo. A

encruzilhada em que o protagonista se encontra, vem a ser a própria situação-limite em que ele

está. Veltinho se sente preso, travado. Pensa em como se desprender e se questiona se deve voltar

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para casa como se nada tivesse acontecido, ou se deve se entregar às autoridades pelo crime

cometido. O impasse o domina por inteiro:

Luzes e cores que se fundem nos meus olhos embaçados e se propagam,

banhando edifícios, calçadas, ruas, automóveis, pessoas. E se derramam para

dentro de um lugar muito escuro, onde inutilmente tento me esconder.

Agora tenho vontade de correr, correr, correr. Como um atleta, um louco, um

bandido. Mas não. Vou andar por aí, bem devagar, vestido de luz, e chegar ao

topo da montanha mais alta que houver, para ficar mais perto do céu. Até que

venha uma nuvem e me leve para um lugar tão longe que nem Deus sabe onde

fica (TORRES, 2002a, p. 222).

Assim, Um táxi para Viena d’Áustria abre questionamentos acerca da vida individual em

meio a uma sociedade desarticulada e decadente, que vive em cidades caóticas, como se percebe

no trecho a seguir: “[...] Oh, Mozart: vês quem te ouve? Mais forte que a tua missa, porém são as

buzinas, as sirenes o vozerio das ruas, os gritos, as rajadas de balas. Isso é só para que eu não me

esqueça de que estou numa esquina de Ipanema [...]” (TORRES, 2002 b, p. 127-128). Diante da

tensão, do mal-estar e insegurança vividos nesses espaços reais, o personagem se vê num mundo

de intranquilidade e desafios inúteis, envolto nas questões da vida e em questionamentos sobre o

sentido desta. A ausência de sentido daquele mundo absurdo o leva a interrogar o amigo

Freitinhas: “Viver é o melhor remédio? O único? Mesmo que a gente esteja na pior? E matar?

[...] Você é feliz? Está contente com o presente? O que você tem a dizer às novas gerações? Tem

planos para o futuro?” (TORRES, 2002 b, p. 40-41). Vê-se, no entanto, que as perguntas para o

interlocutor são direcionadas a si mesmo. O autoquestionamento desencadeia perplexidades que o

fazem concluir que, na contemporaneidade, como diz um livro que lera, “[...] todo o mundo corre

porque se perdeu a fórmula para parar” (TORRES, 2002 b, p. 198).

Envolvido nas próprias contradições, o personagem percebe que ama a vida, mas também

se flagra no desespero, com vontade de morrer: “A vida é bela, viver é natural [...] Melhor,

talvez: um tiro no peito. Mas não tinha um revólver. E desmaiaria antes, só de pegar na arma.

Outro jeito seria cortar os pulsos. Aí, não. Todo aquele sangue escorrendo. O melhor mesmo era

ir para a praia” (TORRES, 2002 b, p. 27; 181-182). A confusão mental o remete de modo

tumultuado a pensamentos que encaminham à consciência da instabilidade e incerteza de tudo ao

seu redor, mas, por fim, não renuncia à vida.

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O delírio, de certa forma, transporta-o para dentro de si mesmo, como se sabe, mundo

também permeado por conflitos, como a cidade em que habita. No táxi, como em um divã de

psicanalista, à medida que vai se jogando no desvario, lhe vêm à tona imagens do passado,

momento em que aparecem a mãe e a mulher – símbolos da segurança de outrora, em termos de

dispor, no tempo pretérito, da estabilidade empregatícia. Os desafios da sociedade e do mundo

globalizado fazem com que se vá a estabilidade que pacifica e equilibra. É vivendo todos esses

estágios de desagregação que ele se encontra com Cabralzinho e, em seguida, sem mais nem

menos, provoca o desenlace fatídico.

E entra em cena a capital da Áustria! Viena surge em uma mente atordoada e caótica.

Trata-se de um indivíduo a vagar no tempo-espaço, no qual vivencia sentimentos diante de fatos

e também de desencontros temporais, através de avanços e recuos em relação ao passado e ao

presente. Enfim, o quadro de crise e de desespero resulta do tormento vivenciado por conta do

desemprego, do assassinato, tudo se enfeixando no barulho do trânsito. Mais uma vez, a

metáfora: o caos das ruas e do trânsito barulhento metaforiza o caos e o barulho interiores do

protagonista.

A metáfora traduz o que é abstrato e de difícil compreensão. Nas palavras de Le Guern

(1973, p. 111), “[...] permite quebrar as fronteiras da linguagem, dizer o indizível. É pela

metáfora que os místicos exprimem o inexprimível, que traduzem em linguagem o que ultrapassa

a linguagem”. O romance traduz a aflição do sujeito que vive a dor de se ver desempregado por

meio da metáfora da parede branca cuja imagem diuturnamente acompanha Veltinho. A parede

cresce e diminui de acordo com a movimentação do protagonista e chega a se interpor entre ele e

as outras pessoas. Cortina que persegue e aflige, bloqueia a relação do protagonista com o mundo

que já não vê nem encontra meios de se desvencilhar daquele intruso tão perturbador. Não se

liberta também das imagens opressivas do desemprego, contingência que tanto o angustia e o faz

sofrer: “[...] à tarde, ia me encontrar com Cabralzinho, para jogar um pouco de conversa fora, me

distrair, deixar de pensar, coisa praticamente impossível, para um desempregado” (TORRES,

2002 b, p. 53).

Assim como o fantasma do desemprego, a parede aparece até mesmo em sonhos. Ao

relacionar a parede que o persegue à sua condição de desempregado, constata-se mais uma

metáfora. A parede serve de bloqueio, dificulta o acesso às coisas e às pessoas. Veltinho prefere

não encontrar os amigos, uma vez que falar sobre o próprio desemprego vem a ser uma tortura.

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Le Guern (1973, p. 150) explicita que “[...] mais ainda do que os efeitos produzidos pela selecção

sémica, é o modo como se articulam o nível da comunicação lógica e o da imagem associada que

revela uma visão do mundo [...]”. Nesse sentido, as imagens metafóricas falam com bastante

perspicácia e convencimento como o desemprego resvala em Veltinho, desestruturando-o e

interferindo em sua maneira de ver o mundo, o Rio de Janeiro, a vida, a si próprio, a família, os

amigos. Parede e desemprego articulam-se, identificam-se, mesclam-se como recursos

linguísticos que comungam com propósitos voltados para a comunicação de aspectos desde os

mais exteriores até os mais recônditos do intimismo do personagem:

O pior é quando ela se interpõe entre mim e as pessoas, sejam elas a minha

mulher e os meus filhos, os amigos, conhecido, vizinho ou estranhos. É uma

situação constrangedora, que não está dando para explicar, mesmo porque

ninguém vai entender.

[...] E se eu procurasse um psicanalista e contasse tudo sobre a minha parede?

Mas como, se já não tenho recursos para esses luxos? Bem poderia me abrir com

os amigos. Mas eles andam tão sumidos! [...]

Na praia é a mesma coisa. Principalmente nos fins de semana, quando aparecem

os amigos e conhecidos que você invariavelmente encontra batendo perna na

areia ou no calçadão. Tudo bem? Como vão as coisas? Patati, patatá, você acaba

abrindo o jogo, a maldita palavra escapa da usa boca. Desemprego. Ai, que

horror. Até parece sinônimo de lepra. Aí o papo fica atado, não vai pra lá nem

vem pra cá. (TORRES, 2002 b, p.124-125-138).

Valendo-se uma vez mais de Le Guern (1973), observa-se que a metáfora carrega consigo

uma grande força de persuasão, além de desempenhar a função de juízo de valor.

1. 5 METÁFORA E MÚSICA: REPRESENTAÇÕES

A música, para muitos, tem efeito terapêutico, pois aciona emoções e sentimentos dos

ouvintes. Na situação em análise, observa-se quanto os acordes musicais assumem grande peso

para Veltinho. Para ele, a música é um manancial de que ele se vale também para suas leituras do

mundo, de si próprio, do outro. Neste sentido, os acordes são também instrumentos com que ele

nomeia o sofrimento. A “Missa em dó maior”, para Veltinho, lembra uma oração e remete

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também à ideia de morte, instância há pouco vivenciada com o assassinato de Cabralzinho. A

clave em que a que a missa é tocada – dó –, foi criada para representar a voz humana, o que faz

com que o personagem venha viver o lamento e a dor.

O rádio do táxi está tocando uma música lindíssima, que mais parece uma

oração para consolar defunto fresco. É a Missa em dó maior, de Wolfgang

Amadeus Mozart, informa o locutor da FM. Ele se sente numa catedral em

Viena d’Áustria, embora não fizesse a menor idéia de como era a catedral de

Viena d’Áustria. Excelsa glória. Música. Missa. Mozart. [...] Estamos viajando

em dó maior, o tom sob medida para os torturadores abafarem os gritos dos

torturados. (TORRES, 2002 b, p. 29-51).

Um táxi para Viena d’Áustria é um livro musical. Não só pelas referências feitas à música

e a compositores, mas pelo ritmo e cadência das palavras, o que contribui para a significação da

narrativa e constituição do personagem, entregue continuamente a altos e baixos,

semelhantemente à composição musical. A música, como insinuado na narrativa, está em todo

lugar; no som dos passos das pessoas, nos estalos de uma fogueira, com o vento ao tocar a

plantação e as árvores, porque a natureza também faz música e ela se comunica com os seres.

Veltinho tenta construir significado para sua vida por meio da música, articulando-a ao vivido,

aos sentimentos e às emoções não apenas suas, mas também de Cabralzinho e das pessoas em

geral.

Por que se embriagava tanto de jazz? Porque era o estilo perfeito da meia-noite,

para o desempregado (era o seu caso) que não precisava acordar cedo e há muito

perdera o sono. O som a um só tempo selvagem, como o uísque, e refinado,

como o vinho. Rude e delicado, como um incerto e temperamental amigo

chamado Cabralzinho [...]. Aos ouvidos desse Cabralzinho, o que entrava

melhor era um chorinho. Às vezes um bolero, um samba-canção, menos em

certas horas trôpegas, em que ele estava mais para um tango argentino. Cada

música tem o seu momento, dirão os programadores de todas as rádios do

planeta. Há aquele instante em que você liga o rádio à procura da canção que

lembre a garota com quem você saiu na noite anterior. Mas, pela manhã, bom

mesmo é um rock, para você pegar o pique e ir à luta cheio de garra, passando

por cima de todo mundo que lhe atravesse o caminho. Já à meia-noite... jazz

tudo, no silêncio entrecortado por gemidos que vêm das cavernas urbanas.

(TORRES, 2002 b, p. 25-26).

Aqui a metáfora estabeleceria certa relação com a música, já que ambas dispõem de

mecanismos próprios com que se elabora a criação de novos sentidos e novas realidades. É o que

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acontece com Veltinho. Ouvir o tão amado jazz ou o “Réquiem” de Mozart remete-o à

associações com seu momento vivencial. Em suma, a metáfora é básica na narrativa, como se

observa nas imagens de um desempregado e assassino, preso dentro de um táxi, em mais um

congestionamento urbano. É como se, metaforicamente, quisesse ilustrar os impasses da cidade e

do sujeito contemporâneos.

Ainda a respeito do jazz, palavra que designa um gênero musical, em determinada

passagem, estabelecem-se relações de semelhança com o verbo jazer, que remete ao descanso e à

morte: “[...] já à meia-noite... jazz tudo, no silêncio entrecortado por gemidos que vêm das

cavernas urbanas, uivos remotos de forçados que um dia se extenuaram como cães nos campos de

trabalho escravo, os pés na América e o coração numa selva africana para fazer a noite doer”

(TORRES, 2002 b, p. 26). Tudo que Veltinho quer é descansar, por isso a presença das fantasias

suicidas. A música o faz sentir a intensidade de sua tragédia.

O jazz e o trabalho, como metaforicamente posto na narrativa, estão intimamente ligados.

Segundo Costa (2011), em História social do jazz, Eric Hobsbawm descreve a evolução histórica

do gênero musical ligada ao entretenimento profissional de trabalhadores pobres e ao crescimento

das grandes cidades. O jazz, que mescla música europeia e africana, passa a ser considerado

gênero musical por volta de 1900, no entanto, vale ressaltar que suas primeiras manifestações

vêm do lamento dos escravos nas plantações. A esse respeito, Mundim (2005, p. 97) afirma: “[...]

as Canções de Trabalho funcionavam como uma manifestação dos pensamentos dos

trabalhadores e revelavam seu cansaço”.

A metáfora construída em torno do jazz como uivos que entrecortam o silêncio, evoca não

só a origem do gênero musical, mas também o sofrimento, o gemido daqueles que tiveram um dia

de trabalho fatigante e buscam consolo nas suas raízes. A sensibilidade e a imaginação fazem

perceber a analogia metafórica presente no signo lamento pela aproximação entre o solo dos

instrumentos característicos do gênero e o uivo, que também pode ser apreendido como o grito

daqueles que, indignados, fazem suas denúncias através da arte. Neste sentido, Le Guern (1973,

p.36) assevera:

A interpretação da metáfora é apenas possível graças à rejeição do sentido

próprio, cuja incompatibilidade com o contexto orienta o leitor ou o ouvinte para

o processo particular da abstração metafórica: a incompatibilidade semântica

desempenha o papel de um sinal que convida o destinatário a selecionar entre os

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elementos de significação constitutivos do lexema, aqueles que não são

incompatíveis com o contexto.

O jazz está para além do lamento de um trabalhador cansado e sofrido, pois é também

como “[...] uma vertigem. Alucinante. [...] A música para a idade adulta. O som de uma meia-

noite de lua cheia, ainda que invisível. E bêbada. E drogada. A melhor trilha para um filme

policial” (TORRES, 2002 b, p. 26). Assim sendo, o jazz aparece como expressão de vida

revelada pela melodia, pelo ritmo da música, ora como instância identificada com o lamento, ora

com desvairamento. Um som suave e agressivo: “[...] a um só tempo selvagem, como o uísque, e

refinado, como o vinho” (TORRES, 2002 b, p. 25). A vida, assim como o jazz, se apresenta com

momentos de calmaria e de conturbação, a exemplo do que acontece com Veltinho, sujeito bem

organizado e estruturado, que se desestabiliza diante dos inesperados acontecimentos. A

comparação do jazz com a bebida pode remeter a fases da vida.

Gênero que conta com a sensibilidade do músico em conjunto com o ritmo, as estruturas

melódicas e harmônicas, o jazz traz consigo a ideia de liberdade, não só pela transgressão que

remete a sua origem, mas também pela abertura ao improviso. Segundo Murray (2013, p. 22),

“[...] o objetivo de uma composição de jazz é preparar o palco para a improvisação que se segue

ao tema e, por isso, é sinônimo de improvisação e não de realização de notas escritas”. O que nos

leva a ratificar a semelhança do jazz com a vida, como posto no parágrafo anterior, já que ela se

inscreve a cada dia, sujeita a grandes transformações que necessitam do indivíduo estar aberto às

mudanças e preparado para a ação. Característica de distinção do jazz e fator comum à vida

diante de sua instabilidade, os sujeitos devem estar abertos à improvisação. Veltinho, diante das

circunstâncias que lhe são repentinamente apresentadas, precisa ensaiar um novo modo de viver a

cidade e as relações.

Ao contrário de Veltinho, que aceita a vida com suas intempéries, Cabral nutre uma

revolta diante de sua situação como escritor que não se submete às imposições do mercado. Ele

conhece a condição esmagadora à qual está sujeito, mas não se resigna. Cabe a Veltinho selar seu

destino, pondo assim um fecho no destino trágico do amigo. Veltinho aniquila, de uma vez por

todas, o distante sonho do amigo que tanto deseja ser reconhecido por seu trabalho. Liberta-o da

responsabilidade de ser bem-sucedido e do sofrimento que essa corrida lhe impunha. O diálogo

com o escritor parece que neutraliza as prostrações de Veltinho, ou seja, o sofrimento entra em

suspensão ante o padecimento daquele Outro. Metaforicamente, a reação do protagonista parece

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abreviar a angústia do amigo – a morte se faz incontrolável, e, em um gesto, de maneira

intempestiva e impensada, o destino de Cabral chega ao fim, efetivamente, ele “jazz”. É nesse

momento que o destino de Veltinho também é selado, pois o tormento de estar desempregado dá

lugar a outro, ao transformá-lo num assassino. O delírio embalado pela música faz o personagem

se dar conta do crime e admiti-lo, por isso chega a ver o rosto de Cabral em todos os lugares.

No que toca ao crescimento das cidades, a música faz parte das ruas, ela está presente na

constituição de cada canto e cresce com a urbe. Os espaços citadinos, especialmente os das

metrópoles, não param e se apresentam nos sons e barulhos que a movimentam: nos motores dos

carros, nas buzinas, nas sirenes, no som de tiros, nas músicas dos bailes, no som da televisão, dos

pássaros, dos cães, dos trabalhadores nas obras, dos anunciantes, dos vendedores. Como aponta o

romance, “[...] a música [...] sustenta as imagens que vêm dos subterrâneos e vão subindo,

verticais, em frente da sua janela, seja qual for a cidade onde você esteja. Porque toda cidade é

um caixote que produz música. Às vezes terna, lírica, sentimental. Às vezes, como uma vertigem.

Alucinante. Como o jazz” (TORRES, 2002 b, p. 26). O ritmo das cidades é expresso pelos sons

que ela produz e evidencia o desequilíbrio e a luta pela sobrevivência. Viena, como toda cidade,

tem música nas ruas, mas diferentemente do Rio de Janeiro é uma música não opressora, ao

contrário, é terna e, por isso, se apresenta como destino ideal para Veltinho.

Criadas pela semelhança, as imagens da narrativa despertam emoções e evocam novos

sentidos que marcam o romance pelo estranhamento que provoca, ao ser abstraído e concretizado

pelo leitor. A realidade do Brasil, enquanto país estagnado é abordada por Antônio Torres não só

em Um táxi para Viena d’Áustria, mas também em obras como Um cão uivando para a lua e

Balada da infância perdida. Desse modo, faz-se necessário estabelecer uma breve relação entre

essas obras, cuja metáfora evoca a violência, a inércia, a desigualdade, a falta de sensibilidade e

de solidariedade, a instabilidade de um país que vivencia uma situação trágica.

A imagem do congestionamento em Um táxi para Viena d’Áustria pode ser relacionada

ao atropelamento de uma mulher em Um cão uivando para a lua. Nesta narrativa, os carros que

se seguem ao atropelador, passam por cima da vítima sem lhe prestar socorro, por não poder

parar, a fim de evitar um engavetamento e o congestionamento da via.

Deu no jornal: CORPO É DESTRUÍDO NA HORA DO RUSH.

A insensibilidade das grandes metrópoles pôde ser vista ontem, em toda a sua

frieza, por quem dirigia, às 20 horas, do Centro para a Zona Sul. Atropelado por

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dezenas de carros, um corpo de mulher era destruído vorazmente pelas rodas dos

veículos. (TORRES, 2002 a, p. 161).

Já em Balada da infância perdida, a imagem da cidade que se destaca é a de um tiroteio

no morro próximo à casa do protagonista, o que desencadeia um mergulho em lembranças. Aqui,

o condutor para o sonho é o som das rajadas de bala, como se observa: “Ganidos e uivos

lancinantes, circunvoluções de helicópteros e gritos e pânico e horror debaixo de uma tremenda

fuzilaria no morro bem ao pé da minha cama” (TORRES, 1999, p. 9).

Todas essas imagens ilustram, por meio de metáforas, a ideia de um país agredido que não

se desenvolve de maneira satisfatória e coage seus cidadãos. A cidade do Rio de Janeiro, cenário

que ambienta as narrativas, é apresentada pela sua beleza e pela violação sofrida, bem como por

situações em que o sujeito constantemente é arremessado à “vivência do choque” no contato com

o cotidiano. Assim, trata-se do espaço que abriga e desampara, pois desperta nas personagens

sentimentos que se alternam entre o querer ali ficar e o dali evadir-se.

Com base nas considerações aqui levantadas e nas palavras de Ricouer (2005) acerca do

poder da metáfora em redescrever a realidade a partir de algumas ficções, é possível dizer que a

linguagem metafórica nas obras de Antônio Torres possibilita essa redescrição para, de certo

modo, questionar o funcionamento da sociedade e apontar a desorientação dos indivíduos. Essas

questões são identificadas na linguagem metonímica do romance, que oferece ao leitor a

oportunidade de perceber o mundo atual e talvez a si mesmo dividido, incerto, inseguro. Além da

possibilidade de o romance, sua estrutura e a cidade ali ficcionalizada serem olhados como

metonímias do país, outras tantas podem ser visualizadas.

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2 O SUJEITO E A CIDADE

As cidades, mais do que conjuntos de ruas, casas, prédios, praças e

monumentos, são depositárias das memórias, aspirações, anseios, sonhos,

desilusões, conquistas, fracassos, alegrias e invenções da vida de inúmeras

gerações que passaram por suas esquinas. Uma cidade guarda experiências

intangíveis; é feita, para o bem e para o mal, da matéria e da memória

acumulada pelas gerações sucessivas que a habitaram. (SIMAS, 2013,

n.p.).

De símbolo cultural a palco de várias expressões humanas: entre tantos atributos, a cidade

se configura como uma representação das mais significativas – desde a modernidade,

modernização e modernismo, até os dias corriqueiros e, com certeza, os que virão8.

Em sua ambivalência, a urbe atrai e encanta, repele e desilude. Por outra via, também

expõe os indivíduos a estímulos e experimentos diversos. Na qualidade de aglomerado urbano,

ela abriga diferenças em um espaço dinâmico que nem sempre acolhe, especialmente quando se

trata das grandes metrópoles cujas avenidas longas e áreas sociais bem demarcadas segregam,

separam e estabelecem zonas de atrito, o que se reflete no modo com que os habitantes veem e

sentem tal universo. Convém ressaltar que, a despeito de tantos problemas, a cidade grande

continua atraindo grandes levas populacionais.

No mundo contemporâneo, os contatos se tornam imediatistas, anônimos, impessoais e as

ruas, como se aponta adiante, acabam se tornando espaços a ser percorridos apressadamente. Tais

elementos urbanos tornam-se também locais de experiências em que aparecem sentimentos

relacionados com o medo e com a solidão. Para Magalhães (2008), as ruas já não são tão olhadas

e tidas como espaços de lazer, de encontro e de comunicação entre os transeuntes; podem ser

vistas e vivenciadas também como locus desinteressante e árduo, locais de desconforto e de

desconfiança. Assim, em certo sentido, as ruas das grandes cidades são olhadas como locais de

8 No livro Cena moderna: a cidade da Bahia no romance de Jorge Amado, Carlos Augusto Magalhães (2011 b)

dedica um capítulo à explicitação desses conceitos e de seus elementos caracterizadores no contexto ocidental, a

partir do século XIX. A modernidade seria caracterizada como uma etapa histórica que se mostra como uma

mudança de paradigmas e, também, como momento de ruptura com as condições históricas precedentes. O

modernismo representa esse momento nas artes. Já a modernização surge como um processo que empreende ações

na economia, na estrutura urbana, na política. Todos esses processos refletem, de certa forma, a inovação tecnológica

com que também se constrói aquele momento histórico – a modernidade.

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barulho e expostos à carência de infraestrutura, tornando-se, muitas vezes, mero espaço de trajeto

com que se chegaria a algum destino.

As ruas centrais das grandes cidades deixam de apresentar importantes sentidos

simbólicos, tão fortes em momentos pretéritos de sua história, haja vista o valor representacional

de tantas ruas centrais das urbes modernas – a Avenida Rio Branco e a Cinelândia, no Rio de

Janeiro, a Rua Chile, em Salvador, a Rua Augusta, O Largo de São Francisco, em São Paulo, a

Rua da Praia, em Porto Alegre. Jorge Amado chega a dedicar um capítulo de sua obra Bahia de

Todos os Santos, ao significado e importância da Rua Chile para Salvador nos anos 40, 50 e 60.

No romance em estudo, o Rio de Janeiro é lido como cidade múltipla, diversa, plural,

como quase todas as grandes urbes brasileiras atuais, em que convivem e se conciliam (ou não)

incongruências, progressos e avanços, violência e afetuosidade, opulência e miséria. Em meio a

contrastes e belas paisagens, o espaço urbano acaba por expor desencontros e desigualdades,

estágio tal que pode abalar o mito de ‘cidade maravilhosa’.

De acordo com Magalhães (2012 a), ainda nas primeiras décadas do século XX, as

representações, à luz dos princípios e imperativos da ideia de Estado-nação, noção cujas raízes

estão no século XIX, fantasiam uma visão do nosso país como um elemento coeso, unificado e

homogêneo. A literatura, com o prestígio de que dispunha na época, contribui para a criação

dessa ideia de identidade nacional unificada. A partir de 1920, a música popular desponta, em

especial, o samba, com recriações em que se ressaltaria a pluralidade do Brasil9, olhar e temática

até então ignorados pela elite brasileira, da qual fazem parte os escritores. A música popular

brasileira dos anos 20, 30 e 40 assume, de certa maneira, posição diferente das produções

literárias e contribui também para a construção de uma imagem de brasilidade mais ampla, o que

se aproxima da multiplicidade com que o País já se apresentava naquele momento. Assim, em

diversas canções, a alegria, o charme e a simplicidade de vida e a espontaneidade do povo são

evocados.

Mais adiante, a bossa nova, gênero musical surgido na década de 50, traz um jeito

peculiar de cantar o Brasil a partir de cidades, principalmente o Rio de Janeiro, Capital da

República, Distrito Federal. Essa maneira de fazer música centrada na Capital estabelece uma

forte relação com o bairro de Copacabana, importante recorte da cidade, tão cantado por aquele

gênero. O ritmo recém-inaugurado esboça a ideia de uma vida embalada, por exemplo, pela

9 Considerado o primeiro samba brasileiro gravado, a canção “Pelo telefone” foi composta em 1916.

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beleza e pelos prazeres de uma tarde à beira-mar: “Dia de luz / Festa do sol / Um barquinho a

deslizar / No macio azul do mar / Tudo é verão / Amor se faz / Num barquinho pelo mar / Que

desliza sem parar”10

. A intimidade com o meio ambiente e as relações sociais que ali se

estabelecem, permitem ao cidadão carioca uma maior identificação com a urbe, especialmente

para aqueles que dispõem de recursos econômicos para desfrutar dos prazeres e ares de bom

gosto, da finesse do referido bairro.

Nas décadas de 50/60, as canções da bossa nova retratam a cidade de modo idealizado e

glorificado. É o momento em que tal gênero musical ganha destaque em todo o mundo. Vive-se a

euforia do governo de Juscelino Kubitschek e o momento utópico em que ganham consistência

imagens identificadas com a urbe iluminista, cujo futuro estaria garantido, em termos de uma

Capital do País que se mostra organizada, segura, a permitir a liberdade e a felicidade do cidadão.

Nesse sentido, pode-se afirmar que as transformações nos espaços possibilitam e acionam modos

de se relacionar com a urbe, gerando identificações. Convém observar o que afirma Magalhães

(2012 a, p. 30): “[...] sem dúvida, a relação simbólica com o espaço também atua na elaboração

do feitio identitário do sujeito”.

Na contemporaneidade, o Rio de Janeiro ainda encanta bastante e continua sendo uma das

cidades brasileiras de grande repercussão no exterior. O Cristo Redentor e a praia de Copacabana

ainda são símbolos garbosos da ‘Cidade Maravilhosa’. Trata-se de um cenário para obras de

notáveis autores da literatura nacional e é também elemento inspirador de tantas canções dos

mais diversos gêneros musicais. Contemporaneamente, a urbe é representada levando em conta

seus encantos e desencantos. Com a explosão urbana, a ocupação e a convivência nos espaços

desencadeiam novas relações e intercâmbios econômicos, sociais e culturais. Por conseguinte, as

músicas ganham um novo contorno e abarcam todas as transformações urbanas. Com olhar mais

abrangente, as canções apontam outras realidades e agora não só a favela como tantos outros

locais e outras demandas são tematizados, lado a lado com a cidade de natureza encantadora,

cujos “cartões postais” e também problemas continuam sendo abordados em outras tantas

representações.

Os versos “Rio 40 graus, /cidade maravilha,/ purgatório da beleza e do caos”, da canção

Rio 40 Graus, de Fernanda Abreu (1992), apresentam a convivência entre os prazeres oriundos

10

Canção “O Barquinho”, que apresenta, entre os diversos intérpretes, a cantora Maysa. A canção foi composta por

Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli no ano de 1961.

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do desfrute da paisagem e, por outro lado, o medo da violência. Na canção, em certa medida,

ainda se faz perceber o diálogo entre as diversas partes que coexistem no todo urbano:

“Madureira, Ipanema, Rocinha e Leblon”, bairros pobres e ricos da Capital fluminense, tomada

como modelo de representação de qualquer grande cidade do Brasil. O bairro de Copacabana, tão

cantado pela bossa nova, já não aparece na letra de Rio 40 graus, uma vez que o espaço citadino

do Rio de Janeiro se transformou e hoje novas centralidades ganham destaque no imaginário do

carioca e do brasileiro em geral. Os bairros de Ipanema e Leblon, presentes nos versos em foco,

são os preferidos pela classe média e média alta, mas também a Barra da Tijuca, uma vez que tais

elementos da morfologia urbana carioca aparecem como índices de status, sentido com que se

olhava Copacabana em momentos não tão distantes.

Ainda com relação à canção de Fernanda Abreu, os trechos “[...] Cidade sangue quente /

Maravilha mutante... O Rio é uma cidade / De cidades misturadas / O Rio é uma cidade / De

cidades camufladas [...] A novidade cultural / Da garotada / Favelada, suburbana / Classe média

marginal” fazem referência a uma cidade fervilhante, desprovida de alguns mitos e em constante

transformação. A pluralidade e a diversidade e os terríveis problemas econômico-sociais acabam

por criar realidades discrepantes: o lixo, o tumulto, a violência, o camelô, restaurantes caros, o

vendedor de pamonha, o doutor, o bêbado, a praia, o morro, etc. As passagens da canção “[...]

com governos misturados / Camuflados, paralelos / Sorrateiros / Ocultando comandos...” tocam

de perto no que diz respeito às relações travadas no tempo-espaço atual, em que se mesclam

poderes oficiais e não oficiais, as milícias e uma polícia, às vezes, corrupta, que encurralam a

população, sufocada por um jogo silencioso e voraz, contingências tais com que se delineiam as

vivências e experiências11

de cada indivíduo naquela parte que o Rio de Janeiro continua

desempenhando no todo, país brasileiro.

11

Rouanet, em Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin (1981), faz uma leitura dos conceitos de

vivências e experiências discutidos por Walter Benjamin, relacionando-os aos estudos de Sigmund Freud, numa

proposta de interligação entre memória e consciência. A vivência se caracteriza por estabelecer uma relação com as

impressões que tornadas de forma consciente, desaparecem sem serem incorporadas pela memória. A consciência

age como defesa contra as constantes excitações diárias. Sempre alerta aos perigos imediatos, a consciência

intercepta os choques, não possibilitando tempo para a reflexão e a assimilação e sedimentação deles pela memória.

Já a experiência se relaciona com impressões que, não sendo tornadas de modo consciente no mundo das

exterioridades, se acumulam na memória, estabelecendo traços mnemônicos. Segundo Walter Benjamin, na

modernidade, há uma sobreposição da cultura da vivência sobre a experiência, pois o mundo moderno intensifica as

situações de choque.

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Em Um táxi para Viena d’Áustria, como já exposto no primeiro capítulo, a música exerce

um papel de destaque na escritura, realizada também com trechos de canções que aparecem de

forma literal ou parodiada. Nesse sentido, Sarkissian Junior [n.d.] afirma:

[...] alternando entre o emprego literal e o uso paródico, o universo cancional

canta também em sua obra, sobretudo no primeiro capítulo. É o caminhão da

coca-cola atrapalhando o tráfego (“Construção”, de Chico Buarque), é o mesmo

caminhão atravessado engarrafando o verão “Águas de março”, de Tom Jobim),

é O barquinho (Roberto Menescal), é o grito de vai trabalhar vagabundo! (Chico

outra vez) [...].

O romance, tal como a canção de Fernanda de Abreu, mostra a convivência de aspectos

distintos e diversos na mesma cidade. Veltinho vive os conflitos que se apresentam no espaço

citadino com tão belas paisagens e problemas estruturais tão comprometedores. O personagem

ama e preza a urbe com todos os seus contornos e desvios. Em um momento de tensão, o

narrador evoca imagens positivas que contrastam com o caos da cidade. Ele olha para as duas

cidades, tanto para o espaço urbano cantado pela bossa nova como para a outra, permeada por

contrastes e conflitos, produto das diversas transformações naquele tempo-espaço. Observe-se:

“[...] chega de tumulto, quizumba, pandemônio numa tarde azul demais, na qual ali adiante uma

areia morna, fofa e sensual espera que a gente tire os sapatos, relaxe e goze – e aí surge um

sacana dopadão e atrapalha tudo” (TORRES, 2002 b, p.13-14).

As ambiguidades citadas são vividas nas fronteiras, nos limites geográficos, nas relações

econômicas com que se apresentam as diversas cidades do Rio de Janeiro imersas na Capital

fluminense atual, onde as misturas, as interações, as novas fronteiras se fazem valer. Assim,

observa-se que o morador da favela trabalha na zona sul, mistura-se e atua no todo urbano com

indivíduos de classes sociais e culturais diferentes, haja vista as interações que se plasmam no

momento em que os ricos sobem o morro, com o intuito de participar dos bailes funks, como

também nas ocasiões em que os pobres ganham as areias das praias dos bairros nobres.

São muitos os intercâmbios vivenciados diariamente nas cidades cuja dinâmica adere bem

mais à simultaneidade do que às polarizações e às dicotomias. Por mais que o espaço urbano

segregue, por mais que se busque separar, por mais que as diferenças existam, se acirrem e,

efetivamente, atuem, não deixam de haver a convivência e o entrosamento, ora de forma

harmoniosa e pacífica, ora de modo agressivo e hostil. Como afirma Bresciani (1994, p. 10), “[...]

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o isolamento de cada camada, se evita a contaminação entre grupos diferentes, não chega a

impedir a aproximação” (grifo da autora).

Mais uma canção da bossa nova – Águas de Março –, produção de Tom Jobim, que

tematiza a feição destacadamente positiva do Rio de Janeiro, aparece parodiada no romance, a

fim de evidenciar a relação com a praia, como se sabe, um dos ícones da cidade, prazer que

também agora está sujeito aos entraves urbanos. A chegada a esse local, um desejo de Veltinho, é

também atravancado. As águas de março são, dessa forma, desvirtuadas: “[...] é pau, é pedra, é o

fim do caminho. É um caminhão atravessado, engarrafando o verão. Moro na zona sul. Quero o

mar. E não essas ruas interrompidas, selvagens – esse beco sem saída” (TORRES, 2002 b, p.19).

A beleza da Capital carioca é, assim, prejudicada pela falta de fluidez e pela desarmonia

da urbe, aqui mostrada de modo caótico. O episódio com o caminhão da Coca-Cola mostra a

saturação das cidades, problema que causa irritação nos indivíduos, pois contribui para o

crescimento da competitividade, do individualismo, enfim, esboça-se um quadro negativo de que

resulta a neurose urbana. Nessa narrativa de Antônio Torres, os transtornos causados pelo

acidente desencadeiam situações extremas de intolerância e de irritação cujo desfecho poderia ter

sido o linchamento daquele que teria provocado o caos – o motorista do caminhão.

A confusão e a neurose cotidianas fazem com que Veltinho experimente um sentimento

de deslocamento bem pessoal, pois identificado com a saudade do Rio de Janeiro descrito nas

canções da bossa nova. A turbulência generalizada da urbe o faz sentir-se estrangeiro, pois a

cidade e a Copacabana de agora se apresentam como desconhecidas. Nesse sentido, é ele próprio

que reflete:

Moro em Copacabana, um bairro superbacana. Não é preciso falar da sua fama.

[...] Tenho saudades de muitos lugares, até mesmo de Copacabana. Quando

cheguei aqui ainda dava para se tomar banho de mar. Agora Copacabana está tão

suja. coitada. [...]

[...] Copacabana, eu te amo mesmo assim. Você me adormece com os embalos

do baile no morro e me desperta ao som das suas rajadas de balas. [...]

[...] Copacabana me engana [...] (TORRES, 2002 b, p. 139-142).

O olhar sobre Copacabana transforma-se, torna-se uma percepção dúbia. O bairro

modifica-se, passa a deter uma série de problemas, mas, no fundo, a satisfação e o encantamento

diante daquela parte do Rio de Janeiro ainda ocupam grandes espaços na subjetividade de

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Veltinho. Há a percepção das contradições, das perdas, do caráter negativo em geral, mas isso

não arrefece o peso e a importância de Copacabana no mundo do personagem. Efetivamente,

além de Veltinho, também o narrador e outras personagens fazem essa leitura avaliativa da

cidade. Há certa nostalgia nos modos como a urbe se apresenta e é olhada, percebida e vivenciada

hoje.

A identidade do sujeito se constrói também a partir da vivência e das interações com os

espaços e com o tempo. Por conseguinte, o sonho de realização pessoal está também imbricado

com os modos de ocupar os locais urbanos e como eles repercutem na trajetória do indivíduo,

bem como eles influenciam os diálogos do sujeito consigo próprio. Os parâmetros com que o

mundo globalizado estrutura a contemporaneidade, também provocam interferências nas relações

mais intimistas do homem, até porque, em grande parte, seu comportamento, seus valores, suas

práticas cotidianas também são, de um modo ou de outro, definidos por princípios do mundo

globalizado.

O processo econômico, político e social, a globalização, em última análise, ainda que

atuando de modo desigual nas diversas regiões e camadas sociais, determina uma maior ou menor

integração das comunidades e organizações na ordem mundial. Afinal, todos estão imersos nos

princípios que regulam práticas que vão desde as relacionadas com os países como um todo, uma

vez que não há mais nações isoladas, chegando até ao sujeito, cuja vida, nesse ou naquele

momento, também se vê exposto e incurso nos ditames das regras do mundo global. Não por

acaso, o próprio trabalho tem sido determinado e regulado, em muitas situações, pelos

paradigmas impessoais dos conglomerados em que se transformam os países arrumados em

bloco, na ordem mundial contemporânea.

Veltinho migra do Nordeste para o Sul, e, em São Paulo e no Rio de Janeiro, é lógico que

ele vem a assimilar saberes e costumes, ganha novos espaços e constrói novas relações

socioculturais. Ao assumir-se cosmopolita, tal protagonista faz conviver hábitos urbanos com as

antigas matrizes, no entanto não se pode deixar de observar que o domínio dos códigos da

metrópole faz com que ele ascenda social e economicamente. Ocorre que a cidade, em seu eterno

processo de transformação, determina que também o indivíduo não perca de vista jamais essa

realidade, sob pena de, por assim dizer, ele vir a perder o bonde da história. Também o sujeito

precisa se reinventar sempre.

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Veltinho, como sujeito urbano, está continuamente sob a ação dos choques12

cotidianos da

vida na cidade, mas é como se o fato de o personagem não buscar se atualizar e se informar,

fizesse com que ela perdesse o passo. Ao constatar o próprio descompasso, Veltinho busca se

lançar ao novo: quer também tornar-se global. Seduzido pelos novos arranjos econômicos,

aventura-se em uma proposta de emprego ofertada por um “malandro”. Entram, em cena, aí,

processos de uso do homem pelo próprio homem. Abandonando o emprego, em busca de outro

que renderia mais prestígio e poder, Veltinho, na verdade, se expõe e se envolve em jogos

especulativos, quando incautamente aceita propostas sedutoras de trabalho. Transforma-se, desse

modo, em objeto do Outro, isso é, passa a ser usado. Em uma sociedade cujos valores

comunitários perdem espaço, não raras vezes o sujeito se transforma em objeto de manobra.

Instauram-se processos de reificação. Observem-se as reflexões identificadas com leituras dos

processos de humilhação e de perplexidade:

O meu último emprego durou exatamente o tempo que já tenho de desemprego.

Quatro meses!

Caí no conto da multinacional.

Você imaginaria que uma multinacional podia não dar certo no Brasil?

Fui contratado pelo dobro do que estava ganhando numa agência nacional [...]

[...] quando pintou a cantada para um novo emprego, achei que era um

verdadeiro milagre. Fui conversar correndo. [...] era uma peça manjada. Ainda

assim topei a proposta. A empresa era dos gringos e não dele. Que risco podia

haver? [...] Devia ter desconfiado. A esmola era grande demais. [...] O primeiro

pescoço para o machado foi o meu. Bem feito. Quem mandou bancar o otário?

Com tantos anos de experiência no setor, podia ter ao menos me informado antes

sobre a saúde financeira da empresa. [...] Multinacional tem que estar onde a

grana está. Bye-bye, Rio de Janeiro. (TORRES, 2002 b, p. 146-151).

Inquieto, Veltinho parecia sentir necessidade de conhecer outras esferas sociais e

participar mais efetivamente das transformações ocorridas na sociedade, em termos globais. Mas

é tomado de assalto por formas novas e mais dinâmicas de movimentação, em uma conjuntura

que em muito diferia do vivenciado e experimentado por ele até então. Diante do desajuste e das

incertezas que a nova configuração espacial e social passariam a projetar em sua experiência

12

Em Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin (1981), Rouanet faz uma leitura da obra de Walter

Benjamin e discute as situações de choque que permeiam o mundo moderno. O choque se caracterizaria por ser uma

reação automática do sujeito interpelado pelos chamamentos do mundo. Trata-se de reações reflexas e, por isso

mesmo, não são sedimentadas no mundo da memória. A consciência age contra a ameaça do choque.

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individual, Veltinho entra em crise e mata um amigo. Assim, o personagem é acometida por um

vazio existencial e uma angustiada busca por compreensão: da sua transformação individual e do

mundo com o qual se relaciona e interage. Em sua agonia, a personagem delira com Viena, lugar

onde há apresentação de espetáculo de música nas ruas, metáfora que parece traduzir uma ideia

do estágio a que a cidade do Rio de Janeiro chegou. Diante de uma situação de sufoco, a

personagem mostra que precisa fugir do ambiente reificado e caótico em que vive, quer uma

válvula de escape desse universo de opressão e, embalado por uma música no rádio, se desliga e

imagina escapar para Viena, mundo musical idealizado, apesar de ter assassinado seu amigo, ou

talvez por essa mesma razão!

Veltinho constata que vive em uma urbe bastante segmentada, não que isso não existisse

anteriormente. Mas agora tudo nela circula, se transforma com muita rapidez, com muita

intensidade, o que a divide por demais em várias outras cidades. A urbe concilia expoentes de

crescimento que privilegiam poucos, e também núcleos de pobreza e marginalidade que

progridem geometricamente e configuram uma realidade difícil e injusta. Reforça-se que é como

se existissem várias cidades dentro de uma única e, de algum modo, ainda que precariamente,

existem intercâmbios entre as partes, por mais segregação social que haja.

Claro que os olhares para a cidade também são particulares, uma vez que tal universo é

percebido, vivido e representado de forma diferente por cada pessoa. Não é surpresa se dizer que

a urbe possibilita olhares diversos para seus habitantes; no momento em que ela se torna lugar

hostil e desprovido de significados para uns, é vista como jogo de interesses e de conquistas por

tantos outros. Essa dualidade, de alguma forma, acaba por desenhar feições de fragmentação para

os agentes que nele atuam.

O desempregado Veltinho vê a cidade de forma diferente daquele Outro que todos os dias

deixa sua casa para se dirigir ao ambiente de trabalho. Mesmo quando empregado, Veltinho não

percebia a urbe também como núcleo de incertezas, pois o cotidiano, que põe à prova o ritmo

alucinante da metrópole, e as longas distâncias a serem percorridas, por exemplo, não

possibilitam mecanismos com que se veja, mais detidamente e de modo mais atento, a cidade

habitada com seus vários centros e facetas. Vive-se apenas o espaço urbano que se identifica com

o recorte do dia a dia de cada um. Destacando a multiplicidade com que se apresenta a urbe,

Magalhães (2014, p. 37) afirma: “[...] essa pluralidade se identifica com a caracterização da urbe

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como um organismo em que convivem partes diferentes, cada uma com as próprias feições,

centros e singularidades e que se sobrepõem no universo urbano como um todo”.

Vive-se apenas a cidade que se faz valer com a exploração dos espaços urbanos que se

situam e interagem com o universo imediato do cidadão, deixando-se de lado muito das possíveis

relações com a urbe como um todo. É claro que tudo isso só faz reforçar quanto as vivências,

num mesmo espaço citadino, se constituem hoje a partir de modos diferentes de interação.

A vida urbana tem-se tornado um grande paradoxo: há o aceleramento, a corrida

irrefreável diante do tempo, sempre apontado como exíguo, diante das tantas e crescentes

demandas a serem empreendidas diariamente. Ao mesmo tempo, a infraestrutura deficitária da

cidade tem inviabilizado as práticas e atitudes tão intimamente identificadas com as instâncias da

globalização. Assim, a urbe vem a ser um inevitável palco de conflitos.

No Rio de Janeiro aqui recriado, a explosão urbana remete a cidade a desafios diuturnos,

os quais se chocam de frente com a precariedade da infraestrutura urbana. Tudo isso resulta na

vivência precária de um sujeito esfacelado, que precisa lidar com as demandas do mercado e a

desconstrução da consciência social, somadas à desestruturação dos grupos. Entregue e sem

referências, esse sujeito vive um presente perpétuo. Jameson (2002) define o presente perpétuo

como uma série de presentes sem conexão com o passado e a falta de vislumbre de futuro.

Como observa Jameson (2002), na contemporaneidade, os vínculos com o passado já não

são preservados e as constantes mudanças impossibilitam a construção de projetos com que se

esboçaria uma ideia de futuro. O desencontro entre as três instâncias temporais gera esse sentido

de presente continuado com que o homem contemporâneo vivencia a categoria existencial do

tempo. Não só Jameson, também Bauman (1998, p.113) demonstra preocupação ante essa

ausência de integração temporal, principalmente no que concerne à falta de expectativa de futuro.

Vive-se o agora, sem conexões temporais. É como se a vida fosse apenas esse presente

continuado.

Na sociedade atual, torna-se difícil dispor-se de uma posição garantida com que se planeje

a vida, pois não há espaço para um projeto longo, o futuro já chegou. Como assegura Bauman

(2001, p. 144), “[...] o ilimitado das sensações possíveis ocupa o lugar que era ocupado nos

sonhos pela duração infinita”. O jogo social contemporâneo é o do consumo de ideias, de estilos

de vida, em um presente reduzido a um átimo, em que reinam a instantaneidade do tempo, o não

planejamento de vida e a não fixação com um olhar sobre o Outro. É a velocidade que determina

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o desenvolvimento das cidades e das relações. A durabilidade dos contatos em geral não importa,

e a dúvida não ocupa tempo, pois tudo deve ser definido logo. É como se a eternidade fosse

vivida em uma única existência motivada e direcionada por transformações das identidades que

permitem o renascimento sempre, o renascimento pelo renascimento, a novidade pela novidade.

Reforça-se aqui: vive-se o agora, as construções são efêmeras e tudo é momentâneo. O

sujeito vive de forma urgente e intensa, refém da luta diária, das frustrações, dos transtornos e da

inconstância de uma vida sem perspectiva de futuro. Veltinho vivencia esse presente perpétuo, já

que perdeu a capacidade de organizar o passado, e o futuro lhe aparece de forma incerta.

O amontoado de pedaços de vida que vêm à tona enquanto preso no táxi, evidencia, de

certo modo, uma experiência esquizofrênica13

, pois o personagem estaria mergulhado naquele

momento numa fuga como sobrevivência. O presente, incômodo e sofrido, comparece como

negatividade tão determinante e tão intensa que o delírio se apresenta como a saída para que a

vida pudesse seguir. É como se, sem o delírio, Veltinho viesse a sucumbir.

2. 1 NAS TRILHAS DO INDIVIDUALISMO

A cidade retratada por Antônio Torres mostra-se permeada por desníveis e por uma lógica

imediatista que talvez acabe por exigir do indivíduo o acionamento de múltiplos papéis. Assim,

ela é antes de tudo heterogênea, pois vem a ser um receptáculo de culturas diversas identificadas

com as variadas classes sociais que compõem estratificações tão decisivas. No universo urbano,

convivem também o tradicional e o contemporâneo, elementos com que se moldam o ritmo e as

feições que desenham as paisagens urbanas. Enfim, trata-se de uma cidade de tantos e tantos

fragmentos dos quais brotam os antagonismos e as densas diferenças sociais.

As relações tumultuadas se inscrevem como aspecto essencial da vida urbana, o que faz

de tal cidade um cenário, em certa medida, decadente de onde brota também a insegurança. Nesse

ambiente, o homem urbano debate-se na luta pela sobrevivência, enfrentando diariamente as

diferenças e as desigualdades sociais, tudo contribuindo para fazer da urbe um espaço fomentador

13

Jameson (2002) toma a exposição de Lacan sobre a esquizofrenia como modelo estético para descrever o presente

perpétuo, uma vez que o esquizofrênico vive uma série de presentes sem relacioná-los no tempo.

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de atitudes individualistas de que decorre a crescente solidão, tão arguida. Todas essas questões

fazem com que o sujeito urbano viesse a se dividir em vários, assumindo as diversas máscaras

com que ele busca encarar os desafios que o cotidiano lhe apresenta. Nesse sentido, o texto em

estudo afirma: “[...] é absolutamente necessário que o candidato preencha todos os requisitos

exigidos pelos atuais padrões do mercado” (TORRES, 2002 b, p. 08).

Zygmunt Bauman (2001), valendo-se das considerações de Michel Maffesoli sobre a

flutuação dos territórios e a fragilidade dos indivíduos expostos a uma “realidade porosa”, reflete

sobre os estágios alcançados pelo mundo contemporâneo. O pesquisador observa que só se

adapta a essa realidade “fluida, ambígua” quem vive em estado de permanente transformar-se e

entregue a processos de constante autotransgressão. Nas palavras de Bauman (2001, p. 238):

O ‘enraizamento’, se existir, só pode ser dinâmico: ele deve ser reafirmado e

reconstituído diariamente – precisamente pelo ato repetido de

‘autodistanciamento’, esse ato fundador, iniciático, de ‘estar de viagem’, na

estrada.

Segundo David Harvey (2012), até então, na chamada modernidade, o homem era movido

pelas paixões dos princípios iluministas; vivia-se o paradigma do conhecimento, da organização e

da estrutura, bem representado pelo fordismo, sistema de produção em massa, que busca a

detenção do controle de todas as etapas da produção. O fordismo se apoia na estética do

modernismo, por meio dos preceitos de funcionalidade e eficiência. Segundo Harvey, a partir de

1973, esse sistema entra em colapso. Chega o momento em que há o início de um período de

fluidez e de incertezas, com processos de trabalho e de mercados flexíveis, práticas de consumo

que se superam rapidamente, mobilidade geográfica e uma maior interação entre os meios de

comunicação e informação.

As transformações no sistema econômico capitalista alteram os processos de produção,

hábitos de consumo e as configurações políticas e sociais ao redor do mundo. O novo sistema

ainda promove a dispersão da classe trabalhadora, no sentido de que a produção não mais se

ambiente num único local; ao contrário, a produção das matérias-primas deixa de acontecer num

local centralizado, como também será multifacetada em relação aos locais em que os processos

passam a ocorrer.

O novo sistema, com as variedades de espaços de produção, de montagem dos produtos,

muitas vezes, em outros países, devido à mão de obra mais barata, e de venda e comercialização

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de tais mercadorias no mundo inteiro, ocasiona certa dispersão de que resultam, também, o

encolhimento dos espaços públicos e o alargamento dos espaços privados, tudo contribuindo para

o esmaecimento dos valores comunitários e de certos sentidos éticos, necessários à vida em

sociedade. Enfim, a dispersão generalizada de tudo e de todos alcança certo destaque,

ocasionando, como resultado, a crise de intercâmbios, também uma marca da

contemporaneidade.

Todo esse quadro de transformações político-econômicas e sociais influencia nas práticas

culturais e nos modos de “vivenciar e experienciar” o tempo e o espaço, uma vez que a instância

temporal está cada vez mais acelerada, e a dimensão espacial, diante das facilidades de

deslocamento, tem tornado as distâncias pequenas. Não que tais aspectos por si só sejam

negativos, mas a possibilidade crescente de mobilidade poderia contribuir para a instauração de

práticas e sentidos de dispersão, o que acentuaria o individualismo e o sentimento de solidão.

As categorias do tempo e do espaço regulam o dinamismo do desenvolvimento capitalista

e da produção cultural. O surgimento de novas possibilidades de intercâmbio de culturas e a

aquisição de produtos industrializados, cuja feitura costuma ser automática e realizada com

grande participação da máquina, podem gerar certo sentimento de constatação da impessoalidade

na construção do produto exposto à venda (JAMESON, 2002). O capitalismo transforma a

cultura, que passa a ser consumida como mercadoria. Desse modo, cultura e economia se inter-

relacionam e se alimentam mutuamente. A esse respeito, Jameson (2002, p.30) observa,

O que ocorreu é que a produção estética hoje está integrada à produção das

mercadorias em geral: a urgência desvairada da economia em produzir novas

séries de produtos que cada vez mais pareçam novidades (de roupas a aviões),

com um ritmo turn over cada vez maior, atribui uma posição e uma função

estrutural cada vez mais essenciais à inovação estética e ao experimentalismo.

Tais necessidades econômicas são identificadas pelos vários tipos de apoio

institucional disponíveis para a arte mais nova, de fundações e bolsas até museus

e outras formas de patrocínio.

Nesse mesmo sentido, observa-se que no romance é feita uma crítica à mercantilização

das produções artísticas e religiosas. Tais produtos são expostos em prateleiras que os deixam em

condição de fácil aquisição e de descarte imediato em favor de outro:

Inacreditável: ela continua fiel à Santa Madre Igreja de Roma. Ainda não se

japonesou na Igreja messiânica. Não se americanizou com os evangélicos, os

adventistas, as testemunhas de Jeová. Não se africanizou na umbanda. Nem se

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universalizou no espiritismo. Continua uma fidelíssima católica apostólica

romana. Como é que minha mãe ainda não virou esotérica? Tantas seitas, tantos

credos, no varejo e no atacado! Era agora que ela ia gostar de ver o mundo.

(TORRES, 2002 b, p. 69-70).

Como se pode observar no romance, as relações econômicas e culturais estão cada vez

mais interligadas. O diálogo com outras culturas, ainda que superficial, é uma constância. Assim,

a flexibilidade, palavra que marca o momento atual, está ligada à instabilidade, à fragmentação e

à insegurança, aspectos e instâncias também presentes no cotidiano do homem contemporâneo.

Novos espaços são criados para abrigar as demandas emergentes identificadas com os

diversos modos de relação entre indivíduos, pautadas em práticas culturais em que se observa a

impessoalidade. Nesse sentido, Bauman (2001) apresenta os espaços urbanos e as relações que ali

se constituem. Para ele, o espaço público assume duas significações – o civil e o não civil. O

espaço público civil é apontado como locus apropriado para a prática individual da civilidade.

Nele, as pessoas compartilham o espaço e não são incentivadas a tirar suas máscaras, uma vez

que elas permitem a sociabilidade impessoal, sem o incômodo de sentimentos privados e relações

de poder. São ambientes apresentados como locais em que se preserva o bem comum e que

desencorajam os propósitos individualistas.

Para Bauman (2001, p. 112; 114):

[...] os encontros inevitáveis num espaço lotado, interferem com o

propósito. Precisam ser breves e superficiais: não mais longos nem mais

profundos do que o ator os deseja. [...] “vestir uma máscara pública” é um

ato de engajamento e participação, e não um ato de descompromisso e de

retirada do “verdadeiro eu”.

Os espaços “públicos não civis”, notadamente destinados ao consumo, são caracterizados

pela possibilidade do compartilhamento do ambiente sem estabelecer com o Outro uma interação

social, a exemplo do shopping center, espaço que agrupa vários indivíduos, mas contribui para o

isolamento deles. É que a configuração padronizada do espaço não facilita os contatos, uma vez

que a motivação básica é o prazer de consumir e tal satisfação é individual, intrasferível e não

compartilhada.

Detendo-se especificamente na relação com o espaço, Marc Augé (2012) cunha os

conceitos de “lugar” e “não-lugar”. Os lugares se configurariam por serem criadores de

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identidades e estimuladores de relações interpessoais. Espaço público não civil, os não-lugares,

em geral, não deteriam aspectos de expressão simbólica ou identitária, uma vez que, por serem

universos de passagem e de trânsito imediato fariam com que a ideia de se estabelecer ou de

fomentar relações interpessoais seja desencorajada.

Comprometido com o movimento, os não-lugares se apresentam como provisórios, a

exemplo dos aeroportos, as salas de espera, o supermercado, as estações de ônibus ou metrô, os

centro comerciais, etc. Para Augé, esses espaços remetem à solidão, ao isolamento. Há, no

entanto, que se considerar certa integração, certa interpenetração dos lugares com os não- lugares

que, de alguma maneira, são o lugar da contemporaneidade. Ao representar a nova realidade a

partir da multiplicidade das diferentes relações humanas, em certa medida, destituídas de

significação, os não-lugares devem ter sua leitura relativizada, pois é possível que esses mundos

promovam encontros desencadeadores de relações sólidas.

Assim sendo, nos espaços públicos civis e não civis, as relações que lá se estabelecem

assumem configurações muito próprias. Lugares de trânsito, o encontro e a interação entre as

pessoas é fugaz, efêmero, superficial, sem qualquer compromisso e, muitas vezes, permeado

pelos choques do cotidiano. Nesses universos urbanos, quase não há chance para a construção de

experiências, uma vez que não há tempo para contemplação e sedimentação do que é visto e

vivido. De certa forma, não há possibilidade de atribuição de significados aos acontecimentos

corriqueiros, de modo que as impressões sejam fixadas pela memória, como pode ser observado

em várias partes da narrativa. Em determinada ocasião, Veltinho entra e sai dos lugares

praticamente sem ser notado. O Outro também é quase sempre ignorado por ele, que segue

envolto em suas questões. Segundo reflexão do personagem, “[...] no meio da multidão todo

mundo é invisível” (TORRES, 2002 b, p. 23).

O avanço da tecnologia, no que se refere à relação com o tempo, tem permitido uma gama

de possibilidades, em termos de rapidez e simultaneidade dos eventos, além de ampliar e

possibilitar o ir e vir a qualquer lugar em instantes. A velocidade encurta o tempo, vence as

distâncias e as submete. É assim que a tecnologia revoluciona a vivência das instâncias tempo-

espaciais Com o encolhimento do espaço e a redução do tempo ao presente, um evento em

determinado lugar pode refletir em outros no instante em que acontece. Esse fenômeno é

chamado por Harvey (2012, p.219) de compressão espaço-temporal. O pesquisador justifica que

usa a palavra compressão “[...] por haver fortes indícios de que a história do capitalismo tem se

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caracterizado pela aceleração do ritmo da vida, ao mesmo tempo em que venceu as barreiras

espaciais em tal grau que por vezes o mundo parece encolher sobre nós”.

Nos dias atuais, tem-se a impressão de que é possível dar conta de várias demandas ao

mesmo tempo e no mesmo lugar. No entanto, diante do aumento das solicitações, a sensação de

atraso e de deslocamento tempo-espacial está sempre presente, fato que requer do sujeito uma

constante adaptação aos novos ritmos da vida. Sendo assim, ao querer desenvolver múltiplas

tarefas, ao desejar se informar de tudo e se manter sempre atual, o indivíduo torna-se mais

suscetível ao fracasso.

Embora as classes sociais sejam afetadas de modo desigual pela instância tempo-espacial,

uma vez que as dimensões econômico-sociais estão aí a atuar sempre e sempre, torna-se

incontestável a afirmativa de que todos os cidadãos estão imersos no mundo da instantaneidade,

isto é, todos vivem à mercê da atomização do tempo, o que nos submete, sem distinção, aos

desvarios das premências do tempo. Com isso, as relações familiares, amorosas, empregatícias e

até mesmo as relações com a cidade possam se tornar fluidas, superficiais, imediatistas.

Tais contatos podem estabelecer repercussões inconsistentes e incompatíveis com a

construção e desfrute da experiência, no sentido benjaminiano, relação que, como tal, pressupõe

engajamentos sólidos e consistentes, pois mediados por traços mnemônicos, o que vale dizer

alojados e sedimentados pela “memória”, não raras vezes, com fortes indícios emocionais e

afetivos. Veltinho vivencia quão as relações são frágeis e aparentes, constatação que se efetiva

quando ele vai ao encontro de antigos colegas de trabalho e até mesmo no contato com supostos

amigos encontrados na praia. O distanciamento físico, uma vez cessado o imperativo dos

encontros no ambiente de trabalho, desencadeia consequências inesperadas. Tal ausência faz

esmaecer os laços.

Efetivamente, as relações sofrem mudanças, e há perdas da suposta força anterior.

Veltinho percebe o caráter esquivo e de distância com que as relações agora se apresentam.

Quando não mais se faz valer a semelhança de interesses e a frequência diária aos mesmos

espaços não mais são obrigatórias, sem dúvida, as relações perdem o brilho e a vitalidade, os

laços se esgarçam. Essas transformações nas relações levam Veltinho a refletir também em

termos de como o desfazimento, quase por completo, dos vínculos com a família que ficou no

Nordeste, também está ocorrendo. Ele se dá conta de que as preocupações e a crise profissional

intensificam o distanciamento da mulher e dos filhos e percebe que o afastamento se faz valer

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não somente no plano físico. Há um abalo mais profundo – o do campo emocional. É como se a

“experiência” – fundada na memória – no sentido benjaminiano, também estivesse se arrefecendo

na relação com o que Veltinho, afinal, tem de mais importante – a própria família.

As compressões tempo-espaciais da contemporaneidade favorecem os contatos instáveis e

superficiais, o que ocasiona o predomínio das “vivências do choque”, noção também trazida por

Rouanet, com auxílio de princípios freudianos, com os quais ele faz a leitura e a análise da

produção de Walter Benjamin. O conceito – vivência do choque – caracteriza as relações que se

baseiam em encontros fortuitos, laços de aparência, contatos tais que podem ser mediados pela

“consciência”, tudo enfim priorizando a defesa dos interesses imediatos e o “lugar ao sol” que

tanto se busca. Nesse sentido, tudo concorre para que se persiga, antes de tudo, salvaguardar os

interesses pessoais, assegurando-se a conquista dos objetivos e dos fitos que se sedimentam,

predominantemente, em ganhos econômicos que, equivocadamente, favoreceriam a suposta

qualidade de vida.

No cotidiano, o que se observa, em não raras situações, é que as práticas sociais são

construídas a partir de mecanismos em que se percebem vínculos sem profundidade, efêmeros, às

vezes não tão construtivos, pois neles predominam estágios de competitividade acirrada, de

atomismo nas relações de trabalho e de transformação das culturas em mercadorias, expostas e

disponíveis a quem oferecer o melhor preço.

A vida privada torna-se cada vez mais exposta ao universo público, a satisfação de

desejos imediatos é considerada como propósito de vida, o trabalho e a cultura se tornam cada

vez mais um produto e os arranjos sociais e econômicos, mais efêmeros e não satisfatórios, pois

liderados por interesses que nem sempre contemplam o bem comum. Tudo isso resulta na

naturalização da desigualdade, na violência, nos vazios interiores e no esfacelamento da

identidade, que deve ser constantemente renovada e reinventada. Observe-se o trecho a seguir:

“Confesso que ainda não morri. Mas estou tão sozinho [...] acabo de foder um homem, com dois

petardos no ventre do dito cujo. Sim, sim, sim. Na barriga. Duas balas fulminantes” (TORRES,

2002 b, p. 37).

Como se pode observar em Um táxi para Viena d’Áustria, o momento cultural e social

acaba por ser desestabilizador, fugidio, o que evidencia uma conjuntura pautada no

individualismo. As desigualdades aumentam a cada dia, e a solidariedade coletiva não é

cultivada, o que compromete o bem-estar social, não só no que se refere à ordem nas cidades,

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mas também no que diz respeito à qualidade de vida cotidiana. Veltinho, ao sentir-se perdido,

busca refúgio na família: pensa na mulher e nos filhos. Ao se dar conta dos estágios de desgaste

da atual relação familiar, entra mais fundo na “memória”; lembra-se da infância, da mãe religiosa

que reza para os filhos, e do pai corrupto, mas não encontra consolo ali. Refletindo sobre

Veltinho, Renato Cordeiro Gomes (2000, p. 69) afirma que “[...] o anti-herói, desenraizado na

grande cidade, vê esgarçarem-se os laços familiares, do clã: seu passado, como lugar de origem, é

apenas uma lembrança vazia”.

Para os teóricos portugueses, Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1987), assim como o

herói, o anti-herói também protagoniza a narrativa. A centralidade do personagem principal é

revelada pelo destaque de sua ação e movimentação no espaço e no tempo diante das demais

figuras da trama. É nos planos éticos e psicológicos que os dois conceitos se distanciam. O herói

é movido pela procura e pela conquista e alcança êxito na busca de sua autoafirmação. Já o anti-

herói, eivado de defeitos e limitações morais, sociais e psicológicas, acaba por ser crivado por

aflições e desencanto ante uma sociedade desagregadora e desqualificante. Diante do exposto,

Veltinho pode ser caracterizado como um anti-herói, pois o personagem, tipo comum do

cotidiano, se afirma por uma sequência de defeitos. Subjetividade solitária e desamparada,

Veltinho é marcado pela desqualificação que causa a derrota, a angústia, a desorientação.

Degradado, ele vivencia uma série de fracassos – no campo profissional, emocional e afetivo –

que comprometem sua autoimagem. Assim, Veltinho mostra-se notadamente um herói às

avessas, pois, ao ter de lidar com uma sociedade em crise e, de certa forma, em dissolução, ele

chega ao grau máximo do desnorteio – comete um crime e se refugia na fuga da realidade

conflitante.

O sujeito se relaciona com o mundo, com os outros e consigo mesmo por meio das

interações possibilitadas pela linguagem, que atua também na configuração das práticas culturais.

Dessas articulações, resulta a experiência existencial, que se caracteriza por ser, sobretudo, única,

individual e intransferível. Ao longo do tempo, os modos de se relacionar com o Outro e com o

mundo têm-se transformado. As sociedades tradicionais pré-modernas se mostram totalizantes, o

grupo prevalece sobre o indivíduo; visto apenas como parte do coletivo, o sujeito age de acordo

com o que determinam as instituições sociais. A modernidade coloca o homem em posição de

destaque, uma vez que ele se sobressai diante do grupo, o que o impulsiona no sentido da

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tentativa de encontrar um lugar próprio, seu, no universo. Trata-se da autonomia do indivíduo em

relação à vida social.

Na contemporaneidade, como se pode observar nas linhas acima, os princípios e valores

capitalistas exacerbam a competição e colocam o individualismo em posição exponencial. Assim,

o sujeito passa a ser “mais um na multidão” que busca se destacar, pois ninguém almeja ser

arremessado ao universo dos fracassados. O capitalismo marginaliza quem não se integra em seus

códigos. Restaria aos não inclusos, a frustração por não poder desfrutar das benesses

possibilitadas pelo maravilhoso mundo do consumo e da tecnologia.

Notam-se os desencontros da sociedade, que se transforma num corpo social

individualista, atomizado e hedonista, que destrói crenças e dogmas comuns. A narrativa, entre

outras características, mostra como as pessoas parecem estar voltadas para si mesmas, para os

próprios afazeres e dores, sem tempo para o Outro, mesmo que seja um amigo, o marido, o pai.

Veltinho, envolvido nesse processo de individualização e narcisismo, não se dá conta da solidão

que acompanha os sujeitos presos a essas transformações nos modos de sentir, enfim, de viver

consigo e com o Outro. Quando uma senhora interpela e conversa com um Veltinho

introspectivo, voltado para si, destituído de crenças e da noção de coletivo, ele se dá conta da

própria transformação: “Incrível. Aquela senhora tinha sido a primeira pessoa, hoje, com quem

havia trocado algumas palavras. Havia se transformado num homem caldado, só conversando, o

tempo todo, consigo mesmo, se perguntando e se respondendo, se respondendo e se perguntando”

(TORRES, 2002 b, p. 205).

O hedonismo, outra característica que pode ocupar os interesses do sujeito atualmente, é

bem demonstrado na figura de Cabralzinho, com suas andanças de bar em bar e a busca do prazer

imediato, sem compromisso, voltado apenas para a satisfação identificada com o aqui e o agora.

Com uma vida intensa, o personagem busca esse deleite instantâneo, aspecto que se observa

também em um Veltinho “matador de campanhas” publicitárias.

Os propósitos da esfera privada podem caminhar junto com a fragilização da esfera

pública. O interesse privado costuma submeter e vencer os intentos do mundo público, subjugado

por objetivos que, nem sempre, se preocupam com o bem comum. A individualização tem como

consequência a desintegração da cidadania, pois diminui a participação do sujeito na vida

coletiva. Nas palavras de Bauman (2001, p.46):

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Se o indivíduo é o pior inimigo do cidadão, e se a individualização anuncia

problemas para a cidadania, e para a política fundada na cidadania, é porque os

cuidados e preocupações dos indivíduos enquanto indivíduos enchem o espaço

público até o topo, afirmando-se como seus únicos ocupantes legítimos e

expulsando tudo mais do discurso público. O ‘público’ é colonizado pelo

‘privado’; o ‘interesse público’ é reduzido à curiosidade sobre as vidas privadas

de figuras públicas e a arte da vida pública é reduzida à exposição pública das

questões privadas e a confissões de sentimentos privados (quanto mais íntimos,

melhor). As ‘questões públicas’ que resistem a essa redução tornam-se quase

incompreensíveis.

Com isso, é possível também verificar o aumento do desinteresse com o ideológico e com

o político, quase não havendo espaços para a discussão de interesses comuns da sociedade, e as

identidades sociais estão desgastadas. A narrativa em estudo evidencia essas assertivas, ao

caracterizar uma sociedade despojada dos interesses coletivos, públicos e voltados para os

interesses pessoais. O texto critica o cinismo e as mentiras das autoridades do País, o que só faz

aumentar o descrédito e o desinteresse pelas questões políticas. A senhora que sai do cabeleireiro,

preocupa-se com o penteado, o governo federal mente sobre a questão da segurança, os

comerciantes têm medo que os moradores dos morros invadam suas lojas, o motorista do

caminhão quer sair ileso da situação, os que lamentam a perda de tempo buzinam sofregamente.

2.2 O EU NO CONTEXTO SOCIAL

Com a aceleração do ritmo dos processos econômicos, políticos e sociais, além das

inovações tecnológicas, os produtos passam a ganhar e a perder importância rapidamente. Como

declara Martín-Barbero (2004, p. 266), “[...] a aceleração da novidade acelera também a própria

obsolescência do novo”. O mercado está cada vez mais volátil e não permite que se pense em

longo prazo. O ganho deve ser imediato, e, para tanto, se recorre à manipulação do gosto e da

opinião. Os publicitários e veiculadores de imagens buscam “bombardear” de novidades

glamourosas os potenciais consumidores; os excluídos amargam o vazio, a frustração do sonho e,

muitas vezes, a indignação em discursos sufocados e despercebidos. Deslocado no tempo e no

espaço, por não se sentir pertencente e atual numa sociedade que exige certo padrão de

comportamento e de aparência, muitos utilizam medidas extremas e violentas para se dotar dos

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aparatos que os colocarão em determinado espaço. Trata-se do que povoa os veículos de

informação cotidianamente – o roubo, o sequestro, o assassinato.

À vista disso, vê-se que, inserido em um universo de concorrência e de acumulação, o

homem contemporâneo busca, sobretudo a aquisição de bens. O contato com a aceleração do

tempo histórico desencadeia essa nova experiência existencial que contribui para delinear a

identidade, seus comportamentos e valores em uma cidade que se faz e se revela pela presença de

indivíduos marcados pela avaliação e julgamento sociais. A esse respeito, García Canclini (2010,

p.30) afirma:

As lutas de gerações a respeito do necessário e do desejável mostram outro

modo de estabelecer as identidade e construir a nossa diferença. Vamos

afastando-nos da época em que as identidades se definiam por essências a-

históricas: atualmente configuram-se no consumo, dependem daquilo que se

possui, ou daquilo que se pode chegar a possuir.

García Canclini mostra como a posse de bens de consumo é tomada como forma

subjetiva, em termos de se avaliar e qualificar o cidadão. Desse modo, dispor de recursos para

desfrutar do que o sistema oferece parece se tornar cada vez mais imperativo. Assim, a

acumulação de capital é, muitas vezes, colocada à frente do bem-estar humano. Não se perca de

vista o que Berman (apud HARVEY, 2012, p.26), afirma: “[...] o próprio processo de

desenvolvimento, na medida em que transforma o deserto num espaço social e físico vicejante,

recria o deserto no interior do próprio agente de desenvolvimento”. Diante disso, o indivíduo,

modificador dos espaços e agente do desenvolvimento, precisa aprender a se relacionar com as

transformações que ele mesmo instaura.

As condições de vida e de trabalho dos indivíduos passam despercebidas diante dos

objetos por eles produzidos. Grandes empresas, ainda hoje, mantêm trabalho escravo. No entanto,

a sociedade ignora, não deixa de consumir o produto. Tampouco se mobiliza para que haja uma

intervenção jurídica efetiva. A vida é subjugada ao mercado, o produto do trabalho é mais

importante do que aquele que o produziu. Quanto a isso, Harvey (2012, p. 98) observa que, “[...]

em condições de modernização capitalista, podemos ser tão objetivamente dependentes de

‘outros’ cuja vida e aspirações permanecem tão totalmente opacas para nós”. Nesse sistema

socioeconômico individualizado, muito da significação do indivíduo está condicionado ao poder

aquisitivo, pois só assim haveria seu reconhecimento como cidadão.

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Na contemporaneidade, portanto, ganha relevo um sujeito com novos valores, anseios e

formas de ver e viver o mundo, em que “[...] ter desejos e ser reconhecido pelos outros se torna

tão importante quanto silenciar o ronco da fome” (CALIGARIS, 2013, p.179). Com a mudança

dos códigos sociais, vive-se de aparência, e o pertencimento a determinado grupo tido como de

certa elite deve ser conquistado. O que parecia fútil e irrelevante é, atualmente, garantia de acesso

e liberdade para circulação no meio social, uma vez que “[...] os objetos e o aparato são a

condição de uma liberdade inédita, pois hoje ninguém mais será barrado na festa por ter nascido

em berço humilde – só se tiver escolhido o aparato errado” (CALIGARIS, 2013, p.178). O acesso

a determinados grupos e ambientes não depende de nascença e, sim, do poder aquisitivo e de

adequação às regras. Na sociedade atual, seus integrantes são julgados pela capacidade de

consumo, pois “[...] as aparências e os objetos de consumo são atributos constitutivos da

subjetividade e da liberdade” (CALIGARIS, 2013, p. 178). É o que nos diz Contardo Calligares,

na crônica “Grandeza das futilidades”.

Na sociedade pré-moderna, os direitos hereditários incorporados garantiam aos indivíduos

certa posição, mas, na contemporaneidade, esse modelo já não se sustenta tanto. As pessoas não

precisam mais de um título para ter acesso aos espaços selecionados e tidos como elitizados.

Assim, dispor de determinada imagem pode assegurar certo caráter de realização, o que, cada vez

mais, vem-se acoplando aos desenhos das identidades contemporâneas.

Veltinho, ao ficar desempregado, se vê deslocado do sistema, sentindo-se improdutivo,

dilacerado, triste, sem valor algum, “[...] um terceiro qualquer coisa... qualquer coisa merencória”

(TORRES, 2002 b, p. 52), com pouca ou quase nenhuma perspectiva de vida, pois já não interage

com as forças que mobilizam a cidade e integram o sujeito num grupo social de valor. O

personagem parece saber que, por não estar exercendo uma atividade econômica, se tornara um

estorvo, um inútil, um excluído. Como declara Bauman (2009, p. 82), “[...] estar desempregado

significa que a regra, para os seres humanos, é estar empregado; portanto, estar desempregado é

um incidente, uma coisa bizarra, anômala, que é preciso enfrentar”.

Em sua nova condição, tal personagem tem de se alimentar com o que foi acumulado

enquanto trabalhava e, por isso, lamenta precisar “comer o carro”, um bem que servia como

distinção simbólica e que logo seria usado para o sustento da família. Como se percebe no

romance em estudo:

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Parou no ponto do ônibus, lembrando-se do tempo que tinha carro. Vendera-o

para juntar mais dinheiro ao bolo de suas reservas. [...] Daqui a pouco iria estar

comendo um carro. Era o preço da sua desservidão involuntária. Ou o começo

de uma solidão voluntária. E quando o dinheiro do carro também acabasse? [...]

Loucos, príncipes e mendigos comem carro? (TORRES, 2002 b, p.198-199).

O bem que Veltinho perde (o carro) é um objeto de diferenciação a que nem todos podem

ter acesso e que assume um valor simbólico, tão importante na sociedade. São as formas de

aquisição que determinam quais bens são valiosos. Na verdade, é o valor de troca que atribui

tanta significação ao bem, nesse sentido, fetichizado. Para García Canclini (2010, p.63), “[...] a

lógica que rege a apropriação dos bens como objetos de distinção não é a da satisfação de

necessidades, mas sim a da escassez desses bens e da impossibilidade de que outros os possuam”.

No cancioneiro popular brasileiro contemporâneo, assim como na crônica “Grandeza das

futilidades”, é possível encontrar canções que exprimem as mudanças ocorridas na subjetividade,

bem como a questão da aquisição de bens simbólicos e materiais, como cultura e, até mesmo, a

posse de um carro. A canção Comida (1987), do grupo de rock Titãs, expressa o sentimento de

insuficiência e a busca incessante por experiências de sentidos para construção de um sentimento

de pertença:

Bebida é água! / Comida é pasto! /Você tem sede de quê? / Você tem fome de

quê? / A gente não quer só comida / A gente quer comida / Diversão e arte / A

gente não quer só comida / A gente quer saída / Para qualquer parte / A gente

não quer só comida / A gente quer bebida / Diversão, balé / A gente não quer só

comida / A gente quer a vida / Como a vida quer [...] / A gente não quer só

comer / A gente quer comer / E quer fazer amor / A gente não quer só comer / A

gente quer prazer / Pra aliviar a dor / A gente não quer / Só dinheiro / A gente

quer dinheiro / E felicidade / A gente não quer / Só dinheiro / A gente quer

inteiro / E não pela metade [...] / Diversão e arte / Para qualquer parte / Diversão,

balé / Como a vida quer / Desejo, necessidade, vontade / Necessidade, desejo,

eh! / Necessidade, vontade, eh! / Necessidade.

Além das necessidades físicas e básicas do corpo humano, há também as necessidades

psicológicas e subjetivas, a exemplo de cultura, reconhecimento e autonomia. O indivíduo quer

“diversão e arte”, “saída para qualquer parte”, quer “diversão, balé” e “quer a vida como a vida

quer.” O anseio de liberdade e de decisão sobre a própria vida é forte nesses versos, bem como a

luta contra as dores psicológicas evidentes nos versos a seguir: “A gente não quer só comer, a

gente quer prazer pra aliviar a dor. A gente não quer só dinheiro, a gente quer dinheiro e

felicidade. A gente não quer só dinheiro, a gente quer inteiro e não pela metade”. A canção

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mostra que a busca pela felicidade também está centrada no sentir, na constituição subjetiva dos

anseios, do usufruir e também do criar e sentir-se parte.

As formas de exercer a cidadania e a configuração das identidades, hoje, em muitos

aspectos estão ligadas ao poder econômico e ao consumismo. A publicidade sabe das carências e

dos problemas psicológicos do indivíduo e, “perversamente”, busca preencher os vazios com o

consumo de bens, produtos, comida, posição social. A conquista é apresentada como sinônimo de

poder, liberdade e bem-estar. Cria-se a ideia de que o indivíduo está adquirindo não apenas um

produto, mas incorporando uma afirmação como sujeito. A falta de referência e de valores

sólidos, a falência e as contradições das instituições, a decepção com supostos líderes, tudo isso

pode gerar descrença, falta de sentido da vida, aspectos de que a publicidade se vale para vender

seus produtos que, supostamente, trariam realização pessoal e realizariam o preenchimento de

vazios sociais e existenciais (MAGALHÃES, 2014). Ávido para preencher os hiatos humanos, o

mercado atua por meio de ofertas imperdíveis estampadas nas vitrines das lojas ou nos sites da

Internet. Ações que, de certo modo, comprometem, ainda mais, os laços humanos e afetivos, já

debilitados pela falta de tempo para o Outro, falha que se apresenta como consequência da vida

instável que se leva, num mundo em que o lugar de cada um, configurado a partir de valores

externos, é constantemente avaliado.

Para acompanhar a rápida mudança dos eventos é, ainda, fundamental que as pessoas

estejam atentas e dispostas a livrar-se das conquistas, esquecê-las e prontamente substituí-las. É a

sociedade do “descarte” como denominou Alvin Toffler (1970), desfazimento não só de bens,

mas também de “[...] valores, estilos de vida, relacionamentos estáveis, apego a coisas, edifícios,

lugares, pessoas e modos adquiridos de agir e ser” (HARVEY, 2012, p. 258). Os que não estão

atentos à corrida, também, estão destinados a ser igualmente descartados.

Veltinho, insatisfeito consigo mesmo, em seu autoexame, censura a atitude de mudar de

emprego. Estar desempregado era difícil e, por esse motivo, se sente culpado. Assim, o

personagem percebe-se preso a uma rede de instabilidade e precariedade na cidade, onde a

comodidade oferece riscos, assim como uma atitude precipitada. Veltinho, em sua crise, não sabe

ao certo quem é e a qual lugar pertence, está tal como “[...] um marinheiro embriagado que

nasceu fora de tempo e lugar e perdeu o navio” (TORRES, 2002 b, p. 18-19).

A falta de “utilidade funcional”, para usar um termo de Bauman, deixa Veltinho

desencantado e desiludido, em um mundo sem possibilidades de futuro. Vive-se em um mundo

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fluido, em que o sujeito está imerso em um universo global de troca, difusão e aceitação das

influências mundiais, em cidades travadas em que se convive com a falta de referenciais, com a

violência e com a mobilidade urbana comprometida.

Como já dito, o protagonista vivencia a ausência de rumo, e a incerteza é sua

companheira. Sai às ruas para aplacar a solidão, observa a cidade em que mora e reflete sobre as

próprias relações. Faz uma análise sobre o trânsito, a pressa das pessoas, a sujeira das ruas e das

praias, o tráfico de drogas, a violência, a promiscuidade e avalia os bairros de Copacabana e

Ipanema, que mudaram muito desde a sua chegada ao Rio, apresentando-se agora com outra

dinâmica, que não lhe traz consolo. Ao observar a cidade, o personagem momentaneamente se

distancia da própria dor, no entanto o sofrimento coletivo não se apresenta como conforto,

tampouco leva Veltinho a uma saída para a crise individual. As reflexões sobre o social são

inesperadas, mas também intensas, e conduzem o leitor a refletir sobre os problemas da sociedade

atual.

O personagem fala dos tipos que encontra, e um, em especial, chama atenção. É Zé do

Éter, mendigo que vive nas ruas do Rio de Janeiro e que, por onde passa, provoca repulsa nas

pessoas. Zé do Éter está fora do jogo social e vive a cidade de modo despretensioso, sem

ambições, mas, em consonância com o estado de devaneio, Veltinho acha que o mendigo tinha

um olhar aguçado sobre a urbe e a sociedade modernas, e que o pedinte conseguia compreender

os mecanismos de tal universo. Afinal de contas, o aumento da produção e do consumo faz com

que o lixo também alcance grande volume. Os produtos que, anteriormente, necessitavam de

muito tempo para a própria produção, hoje se renovam, se reciclam e superam com muita

rapidez. Em uma sociedade cujos produtos têm prazo de validade em diminuto espaço de tempo,

o próximo lançamento dentro em breve encontrará seu lugar – o lixo. O progresso, pelo olhar de

Zé do Éter, produz lixo, como também os excluídos, mendigos, desempregados. Expressões

como “Sou um terceiro qualquer coisa” (TORRES, 2002 b, p. 52), em que gente e coisa não têm

distinção, denotam a falta de valor com que a sociedade contemporânea pode ver determinado

Outro (WALTY, 2007). Nesse sentido, o lixo traz não apenas restos, detritos, mas também parte

de uma organização social excludente que tem o progresso, a riqueza e o poder como signos. É

Zé do Éter quem diz:

– Uma tempestade está soprando do paraíso. Ela se prendeu nas asas de um anjo,

com tanta violência, que ele não pode mais fechá-las. A tempestade o

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impulsionou irresistivelmente ao futuro, para o qual as suas costas estão

voltadas, enquanto uma pilha de lixo diante dele cresce na direção do céu. Essa

tempestade é o que chamamos de progresso. (TORRES, 2002 b, p. 197).

Veltinho pensa na história de vida de Zé do Éter e cogita levá-lo para conhecer o seu

amigo escritor, Cabralzinho, mas desiste, entre outros motivos, por saber que o porteiro não

deixaria o mendigo entrar no prédio. Zé do Éter não se insere no jogo social reinante. Bauman

(2009, 51) alerta que “[...] não se pode pensar em compartilhar uma experiência sem partilhar um

espaço”. Veltinho se desfaz do devaneio e segue adiante, devagar, na contramão da dinâmica da

rua, onde os carros correm, as pessoas correm, a vida corre.

Entre verdades e mentiras, o ônibus rola e a tarde gira.

Já estava perto do ponto, sentindo os pés estourados, de tanto andarem. Agora

ele caminhava devagar, enquanto o resto da humanidade corria. Corria para o

ônibus, para os supermercados, para o trabalho, para a praia, corria na praia, os

carros corriam, as pessoas corriam, ‘correr, correr obstinadamente por uma

espécie de flagelação linfática’, lera isso num livro, que dizia também que “todo

o mundo corre porque se perdeu a fórmula para parar”. (TORRES, 2002 b, p.

198).

Cabralzinho, assim como Zé do Éter, vivencia a cidade de forma diferente da maioria dos

habitantes. Ele, como o “mendigo psicológico” que vive na e da rua, sem desejar muito da vida,

se recusa a entrar no jogo do mercado e, por isso, torna-se “lixo”. Como objeto de consumo que

não se enquadra nas necessidades do momento, Cabralzinho se torna irrelevante. Suas produções

estão ultrapassadas para as urgências da vida contemporânea. Sobre tal estado de coisas, Bauman

(1998, p.56-57) reflete:

O desarmamento, a inabilitação e a supressão de jogadores insatisfatórios

constituem, pois, um suplemento indispensável da integração mediante sedução

numa sociedade de consumidores guiada pelo mercado. Os jogadores incapazes

e indolentes devem ser mantidos fora do jogo. Eles são o refugo do jogo, mas

um produto que o jogo não pode parar de sedimentar sem emperrar.

Cabralzinho é um homem intenso, que, ao conhecer Veltinho, expõe as dificuldades

enfrentadas pelos profissionais da área. Ele defende uma literatura engajada, que retrata os

marginalizados e seu linguajar das ruas, variação distante do formalismo da norma culta. O

personagem lamenta a sua vida como escritor em crise, com muitos escritos na gaveta,

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inviabilizados de publicação, pois as emergências do mundo não possibilitam espaço a projetos

literários que não atendam aos interesses das representações emergentes. Ao negar atender ao

mercado editorial, que se volta para as “necessidades” de uma sociedade descentrada, não raras

vezes imatura e que busca interpretar seu cotidiano com a consulta dos astros, Cabralzinho é

relegado ao esquecimento.

Cabralzinho, escritor criativo que produz constantemente para atender a seus desejos e

fantasias, não consegue se adequar à realidade da vida atual. Ao trazer as dificuldades

enfrentadas na profissão de escritor, questiona o estágio da ordem econômica vigente, que tenta

reduzir até mesmo as formas de expressão, no caso a literatura, a produto de consumo rápido e

descartável. O escritor, assim como Veltinho e o pintor argentino, aparece na narrativa como

aquele que, diante das emergências do cotidiano, perde sua representatividade social.

Veltinho, Zé do Éter e Cabralzinho não se encaixam nos padrões morais, éticos, estéticos

da cidade e, por isso, veem e vivenciam aquele universo urbano de modo diferenciado do que

costuma ocorrer. Não existe uma visão integrada com a cidade, cada um a vê a partir do seu lugar

no espaço. A esse respeito, Magalhães (2014, p.41-42), ao fazer uma leitura de Porto Alegre, a

qual também se aplica ao Rio de Janeiro, afirma:

[...] as formas e os modos heterogêneos de pertencimento, as ‘verdades’ daí

decorrentes e os quadros dramáticos de existências anônimas imersas na capital

gaúcha [carioca] estariam a demandar maneiras originais e muito próprias de

relato e de exposição dos pedações de suas vidas esfaceladas. Assim, os cacos e

os fragmentos urbanos captam e destacam, no universo multifacetado da fauna

populacional porto-alegrense [do Rio de Janeiro], tipos humanos cujas trajetórias

entre tantas são premiadas e resgatadas como peças de ilustração dos diversos

dramas diariamente teatralizados na capital gaúcha [carioca], também uma

“cidade partida”.

As personagens citadas resultam de uma dinâmica de exclusão e massificação de um

espaço que se constrói com imagens efêmeras e descontínuas em uma urbe polifônica, imaginada

e reinventada por cada sujeito. É uma cidade que está em constante conexão e desconexão com os

hábitos culturais e sociais mais voltados para o individualismo e menor capacidade de promoção

de políticas direcionadas ao o coletivo. As grandes questões são esquecidas e a presença dos

excluídos, quando imposta, causa mal-estar.

A viagem em torno das personagens Veltinho, Cabralzinho e Zé do Éter possibilita um

olhar sobre a lógica econômica global e sobre o encaixe no contexto socioeconômico que, por seu

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lado, desencadeia dilemas individuais, dificuldade para lidar com as frustrações, com o espaço e

o tempo.

2.3 GEOGRAFANDO A VIOLENTA CIDADE

Apresentada em tons sutis e envolta em ironia, a violência se configura na narrativa como

um traço caracterizador na/da cidade. Suas mais variadas faces são expostas por meio da

exclusão, desigualdade e manifestações físicas e psicológicas, em um Rio de Janeiro agregador

de abismos sociais e constantemente representado pelo par barbárie/civilização. Essa oposição é

mostrada, em especial, pelas mídias, que alimentam a segregação e o medo, o que associa o

espaço urbano à ideia de perigo. Nesse sentido, Bauman (2009, p. 55) diz que, “[...] a exposição

das ameaças à segurança pessoal é hoje um elemento determinante na guerra pelos índices de

audiência dos meios de comunicação de massa (incrementando assim o sucesso dos dois usos,

político e mercadológico, do capital do medo)”. A mídia promove espetáculos com os

acontecimentos diários, que, para o telespectador, servem de entretenimento e, muitas vezes, até

de fuga de uma realidade desoladora. A narrativa em estudo, com o uso da linguagem

jornalística, ilustra a situação:

O pau vai comer solto, amigo ouvinte. A cobra vai fumar.

Prepare o seu coração para muita emoção.

É hoje. Dentro de alguns instantes entra no ar um espetáculo para ninguém botar

defeito. Ação. Suspense. Terror. Cenas de violência explícita.

Finalmente. Chegou. Agora no Brasil. A Ipanema Pictures orgulhosamente

apresenta, com sangue, suor e sufoco,

A GUERRA DAS GARRAFAS

(Salve-se quem puder). (TORRES, 2002 b, p. 17).

A dualidade barbárie/civilização aparece impregnada nas formas de representação das

cidades e seus discursos validados pelas distâncias culturais, sociais, econômicas em espaços

divididos em áreas nobres e periferias, como se verifica: “Se descer mesmo, como é que vai

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ficar? Vai caber todo mundo na nossa garganta14

?” (TORRES, 2002 b, p. 17). “Os lá de cima”,

do romance, tomados como bárbaros constituem o Outro, o espelho do que a civilização não deve

ser e manter-se distante. Assim sendo, as duas áreas se encontram principalmente em zonas de

transição com um contato marcado pela desconfiança e pela exclusão. De um lado, têm-se as

massas que moram em favelas tidas como espaços de ameaça, e, de outro, uma classe média

centrada em seu projeto pessoal de ascensão, como o personagem Veltinho, que só começa a

perceber o Outro e a cidade que habita quando destituído de sua posição econômico-social.

Muitas vezes, alheias à dura realidade da população pobre, as classes mais abastadas se

refugiam em suas casas ou em condomínios fechados que se revelam verdadeiras “ilhas”.

Buscam manter-se longe da insegurança oferecida pelas ruas e da visão desagradável, que é a

miséria. As urbes vivenciam a perda da função de abrigo e de convivência pacífica.

O isolamento, a convivência precária e a não aceitação do Outro tornam a cidade local de

risco constante, e transitar na sua geografia fica cada vez mais difícil e perigoso. O medo urbano

tem mudado o perfil das cidades e o modo de habitá-la. Os indivíduos, a fim de se sentirem

seguros e longe da deterioração da ameaçadora e turbulenta urbe, isolam-se atrás de muros e

grades, espaços que Bauman chama de “gueto voluntário”, que segrega e aumenta a intolerância

para com a diferença. Como esse teórico (2009, p. 39) assegura, “[...] trata-se de um lugar isolado

que fisicamente se situa dentro da cidade, mas, social e idealmente, está fora dela”. Os

condomínios transmitem uma ideia de comunidade e se tem a impressão de identidade partilhada

por meio do afastamento das ruas, ambiente considerado hostil. Vale ressaltar que essa

“comunidade” não compartilha de laços afetivos.

O narrador, embora não possa traduzi-la, apresenta um panorama da cidade e da relação

das pessoas com o espaço permeado pela violência e, no plano da morfologia urbana, configura a

inviabilização do trânsito. Veltinho tem uma relação dúbia com o espaço citadino; o Rio de

Janeiro para ele é encantador, mas também desagradável. Busca-se a própria segurança e a

companhia apenas do Outro semelhante socialmente. E Veltinho continua:

Andando e pensando: o caminho se faz ao andar. E lembrando do tempo em que

aquela praça era muito mais agradável, sem os tapumes das obras do metrô

entravando os transeuntes e enfeando o pedaço. Pensando nas tramoias por trás

14

O termo, garganta, é no romance, usado para designar uma via que liga três ruas. “[...] uma garganta por onde

escoam três ruas, no sentido de Copacabana, completamente bloqueada por engradados, garrafas e cacos” (TORRES,

2002 a, p. 12).

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do tabique, e no golpe publicitário das obras, que só serviram para molhar as

mãos dos construtores que deram grana para a campanha eleitoral do governador

[...] Ipanema, o metro quadrado de terreno mais caro do que o de um castelo na

Inglaterra, só protesta contra os camelôs que favelizam suas ruas e contra a

presença de negros em sua praia. (TORRES, 2002 b, p. 201-202).

Em meio a sua reflexão, Veltinho é interpelado por uma senhora que saíra escondida de

um dos “guetos voluntários”, driblando a filha que não a deixa sair em função do medo das ruas e

da violência que elas representam.

Quero andar um pouco. Ver as ruas. Passo o tempo todo ali, olhe (apontou para

um prédio), trancada. Minha filha não me deixa sair. Diz que não estou mais em

idade de andar pelas ruas, que são perigosas, é o que ela acha. Mas dei uma

fugidinha. Não vou passar o resto da minha vida presa num apartamento. [...] Ela

é uma boa filha, sabe? Só que vive tão apavorada, coitada. Morre de medo de

tudo. Do trânsito, de assalto, da violência. É por isso que ela nunca me deixa sair

sozinha. (TORRES, 2002 b, p. 202-204).

O medo, a violência, a indiferença e o anonimato são temas que povoam os pensamentos

de Veltinho e daqueles que cruzam seu caminho – a senhora do condomínio e Cabralzinho. Os

três, cada um a seu modo, compartilham a angústia de viver uma cidade em crise, na qual o medo

paralisa as pessoas: “Ninguém chia. Isso é que não dá para entender: mesmo as que se chateiam

não esperneiam. Ficam apavoradas, mas caladas” (TORRES, 2002 b, p. 110). A indiferença cega:

“– É tão raro encontrar alguém que tenha boa vontade para dar uma informação!” (TORRES,

2002 b, p. 203). É a impessoalidade que torna o outro invisível em “Ruas selvagens” e

“humanamente vazias”.

A violência aqui tematizada refere-se não só aos assaltos, sequestros, assassinatos, mas

também ao rompimento do pacto social, que deveria oferecer equidade de direitos e deveres para

diferentes grupos sociais. A violência se apresenta na privação ao habitante de direitos à moradia,

ao transporte, ao lazer e aos aparatos que os fariam pertencentes a uma sociedade. O não acesso a

esses bens parece ocorrer em função da economia capitalista e de sua lógica de dominação

excludente e concentradora. Esse tipo de agressão, muitas vezes, dá origem a outra agressão – a

criminalidade, que evidencia a fragilidade da estrutura social que a criou e a deixa, de certa

forma, crescer.

Nos dias atuais, as respostas são buscadas, como afirma García Canclini (2010, p. 29),

“[...] mais através do consumo privado de bens e dos meios de comunicação de massa do que

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pelas regras abstratas da democracia ou pela participação coletiva em espaços públicos”. Diante

disso, a situação dos excluídos fica ainda mais complexa, já que a mídia traz uma função

ideológica em seu discurso. Valores homogêneos são projetados sobre as subjetividades,

configurando os modos de pensar e de agir apresentados como padrão, o que resulta na criação de

estereótipos e preconceitos, já que os que não conseguem se enquadrar no perfil exigido não são

aceitos, criando-se uma tensão social.

“Os lá de cima” têm sua presença temida pelos que estão na avenida devido ao

estereótipo da violência que acompanha os habitantes do alto: “[...] e olha lá a turma do morro

querendo descer, e só Deus sabe com que propósitos” (TORRES, 2002 b, p. 16). No entanto, é

Veltinho, homem escolarizado e morador da zona sul, Copacabana, complexo e importante bairro

da cidade, que comete um assassinato.

Veltinho não pretendia cometer o crime, ele não o faz com o intuito de ser reparado

socialmente por sua derrocada financeira e abandono social, e, sim, devido ao desajuste

psicológico causado por sua desorientação. Mesmo sabendo que, sem intenção, matou um amigo,

o personagem divaga sobre quem seria o morto ou poderia sê-lo. Delírio que remete ao escape

para Viena d’Áustria. O personagem reflete: “[...] O cara que matei foi aquele que me demitiu?

Ou aquele que me negou um emprego, batendo a porta na minha cara, dizendo que estou velho?”

(TORRES, 2002 b, p. 44). Veltinho lembra também do riso, do prazer, poder e vitalidade que

sentiu e evoca uma das máximas da modernidade, a velocidade, para de maneira sutil questionar

os valores de uma época: “[...] não existe movimento mais moderno. Só requer velocidade e

cinismo, a receita universal da modernidade” (TORRES, 2002 b, p. 93).

O tiro dado por Veltinho é como uma alegoria, pois se apresenta como uma reação de

todos que estão presos a uma dinâmica capitalista e perversa que lhes nega liberdade. O

personagem se sente oprimido e se pergunta quem o tortura, possivelmente toda uma sociedade

que não o vê. Em suas palavras: “Estamos viajando em dó maior, o tom sob medida para os

torturadores abafarem os gritos dos torturados. É Viena que me tortura? Viena, Zurique, Paris,

Roma, London-London, Frankfurt, Berlim, Nova York, Mozart?” (TORRES, 2002 b, p. 51).

O romance parece problematizar de perto a crise das instituições, da família, da mídia, do

consumo que, de algum modo, se relacionam com a violência. Sintoma da contemporaneidade, a

violência está cada vez mais presente e banalizada, como se percebe na voz do narrador-

personagem: “[...] tudo bem, hoje pela manhã o céu estava uma beleza e eu pensei: o dia de hoje

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vai ser mais violento ainda do que os outros” (TORRES, 2002 b, p. 136). Ao ser convertida em

espetáculo, a violência embota os sentidos e os torna imperceptíveis para tais apreensões.

Como observa Debord (2003, p.13), “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as

condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo

o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação”. Ainda segundo Debord

(2003, p.17), “[...] a atitude que ele (o espetáculo) exige por princípio é aquela aceitação passiva

que, na verdade, ele já obteve na medida em que aparece sem réplica, pelo seu monopólio da

aparência”. Um táxi para Viena d’Áustria, de certa forma, quebra o monopólio da aparência com

o uso da ironia que anula qualquer ideia de ingenuidade. Na narrativa, o belo e o feio, a paz e a

guerra, a memória e o esquecimento convivem, ainda que esse belo, essa paz e essa memória se

fragmentem e se diluam na fugacidade do cotidiano instantâneo, e tal realidade seja colocada

como numa vitrine. “[...] Tudo isso e mais os passarinhos que posam na minha janela, as

bananeiras no fundo do meu prédio, os cães uivando nos apartamentos, as balas a esmo vindas

não sei de onde, as igrejas de montão para qualquer crença” (TORRES, 2002, p.141).

A atmosfera realista da narrativa não abusa de descrições, é o vazio da consciência do

personagem e a confusão com sua subjetividade que o fazem cair na armadilha da banalização da

violência. As imagens do Rio de Janeiro são comuns aos habitantes da cidade, e a violência

retratada se constitui em um objeto desse espaço. O desespero de Veltinho, ao ficar

desempregado e, assim, destituído do poder de compra e detenção de bens simbólicos, o

banimento do escritor Cabralzinho pelas editoras por não se adequar a um paradigma, o cárcere

vivido por uma senhora, imposto pela própria filha aterrorizada pela violência, bem como as

ofensas ao motorista, por sua condição social, figuram situações que permitem a visualização de

pequenos flashes da cidade do Rio de Janeiro, segregada e oprimida. Impondo-se em todos os

recortes do mapa urbano, seja na favela ou em um cruzamento em Ipanema, pela categoria do

discurso em que ser pobre é uma ofensa ou pela ação, linchar um motorista que causou um

acidente, a violência tem a face da riqueza com seu poder e da miséria com sua impotência.

Cidade constituída de encantos e horrores, o Rio de Janeiro é lugar de fascínio, sensação

de prazer e inspiração, ao mesmo tempo em que observá-la pode provocar no indivíduo

conflituoso e problemático que a habita, uma imersão na solidão, mesmo em meio ao tumulto. A

tensão é constante e se origina da decadência da sociedade e das cidades que causam mal-estar,

insegurança e angústia. Numa urbe que se move de maneira precária e da violência diária que

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desumaniza o ser, como um Sísifo, que todos os dias precisa refazer o seu trabalho de levar a

pedra até o topo da montanha, Veltinho desperta do devaneio delirante em que se encontra e se

deixa evolver por sua conflituosa realidade.

Veltinho e Cabralzinho apresentam subjetividades despedaçadas ante a atmosfera caótica

e violenta da cidade, bem como da perda de representatividade social. Com isso, o tiro vem a ser

uma libertação catártica diante do vazio no qual estão imersos e que os atordoa e conduz à queda.

A narrativa, em certa medida, revela o mal-estar consequente dos inúmeros choques do cotidiano,

em um sistema falho e que torna quase inviável a vida nos grandes centros urbanos. A debilidade

da fronteira entre a culpa e a inocência, em uma sociedade competitiva e desigual, faz com que

todos sejam autores e vítimas da violência social. Veltinho acaba por ser, segundo Araújo (2008,

p. 296), “[...] um assassino piedoso, banalizando sua crueldade como os exilados urbanos

sufocando-se de inação”.

Esse assassino piedoso se tornou invisível à sociedade, é mais um rosto disforme na

multidão que reproduz a cacofonia da cidade, suas dissonâncias e ruídos. Veltinho, turbulento

como a urbe em que habita, ao som da “Missa em dó maior”, de Mozart, sente de maneira intensa

a morte e a vida pesarem em seus ombros.

O personagem tem uma relação subjetivada com o tempo e com o espaço, passado e

presente se tocam e se confundem, o que revela a instabilidade de seu psiquismo. Na narrativa,

não há uma separação do tempo cronológico do tempo memorialístico; o passado ressurge como

presença, e o espaço é vivenciado naquele momento e também nos instantes resgatados pela

memória em que o mundo interior daquele nordestino entra em cena. Também há uma

rememoração no espaço onírico em que o sonho comparece em Rio d’Onor, aldeia comunitária

em Portugal e Viena onde se pode ouvir música nas ruas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O texto Os (des)caminhos do indivíduo na cidade: uma leitura de Um táxi para Viena

d’Áustria buscou analisar a complexidade do indivíduo na atualidade. O estudo teve em vista

entender, principalmente, quem é esse homem e os aspectos a partir dos quais sua subjetividade é

construída. Tais questões são observadas a partir de um texto que privilegia os medos, as

angústias, mas também os sonhos e as expectativas do sujeito. O romance publicado em 1991

tematiza um mergulho do indivíduo dentro de si mesmo, bem como o cotidiano das grandes

cidades, o qual se apresenta não muito diferente dos dias que correm.

Veltinho vivencia o exílio com a tomada de consciência do que o incomoda e também da

realidade que o cerca. Ao ver com mais clareza a situação em que vive, o protagonista é tomado

pelo sentimento de desamparo. A consciência crítica o expulsa de onde ele, de certa forma, já

havia sido banido – a convivência social. Assim, ele transita em torno de sua solidão e da

percepção de sua condição de exilado, mas boa parte de suas inquietações se voltam também para

as relações com o Outro.

O romance invade tanto o universo psicológico de seres dilacerados quanto o mundo

urbano e sua engrenagem econômico-social, que não raras vezes mutila e danifica valores

humanos, a princípio, inegociáveis. Os dramas, as angústias, as desilusões, os medos e tantos

problemas que afligem o sujeito acabam por ser potencializados ao grau máximo nas

representações dos dilemas e crises vivenciados por Veltinho. Para ele, quando a vida se torna um

tormento insustentável, a morte chega a ser vista como recurso ideal, perfeito, como pode ser

percebido nas suas palavras de narrador-personagem: “[...] só a morte é perfeita. A vida é que é

cheia de imperfeições” (TORRES, 2002, p. 93). Em outra direção e em outras situações, a morte

acaba por se transformar em elemento de tormenta.

A inquietude e a dúvida acerca de tudo, inclusive da existência de um Deus e sua

participação na vida do homem, evidenciam toda a desorientação do personagem. Sem ter em que

se sustentar e sem fé em qualquer ser transcendente, Veltinho sabe que faz parte de uma geração

descrente, e, de algum modo, isso o desassossega: “Eis aqui uma nova geração que, ao tornar-se

adulta, encontrou todos os deuses mortos, todas as guerras terminadas e toda a fé do homem

abalada” (TORRES, 2002, p.125). Sem a mediação dos deuses e desprovido de qualquer outra

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referência, a imagem dos pais constituiria o referente primeiro, a base de origem, o que não vem

a acontecer. Tal destituição vem a ser uma frustração, e a recorrência à memória comprova esse

vazio do onde se pode dizer que brotaria o desamparo atual. Da mãe, provém uma imagem de

honestidade, zelo e até de sabedoria, tudo fundamentado à luz da fé religiosa inquebrantável que

ela professa. A imagem do pai é borrada pela imputação do rótulo de corrupto, condição que

desperta um sentimento de vergonha que impede o publicitário de vislumbrar, na figura paterna,

uma referência. Convém afirmar que a imagem do pai é trazida como identificação e seria

invocada como companheira apenas no momento em que se vê como assassino.

Tendo como recorte metonímico a cidade do Rio de Janeiro, a análise tentou trazer

também a relação do sujeito com a urbe – universo dinâmico das diuturnas transformações e

decisivo na construção do imaginário e dos valores de seus habitantes. As dificuldades

corriqueiras enfrentadas pelo cidadão carioca, de alguma forma, ilustram o debate e o

aprofundamento de problemas concernentes ao universo urbano na contemporaneidade.

Focalizando aspectos negativos, a narrativa tematiza certa lógica reificante que se encarrega de

excluir, de colocar à margem, aqueles que, de algum modo, não interessam para seu

“funcionamento” – os inúteis, em especial, os anulados financeiramente, derrocada de que

resulta, como se viu, a falência existencial. Nesse cenário, a realidade é reconstruída a partir da

ótica de um indivíduo decadente que experimenta agora a solidão do homem desprezado ante o

insucesso. Tal estágio de desbotamento faz Veltinho vê a cidade a partir de uma ótica de

restrições. Anteriormente integrado ao universo urbano com todas suas contradições, Veltinho

passa a vislumbrá-lo e até mesmo a vivenciá-lo como um mundo hostil e, de certa forma,

insuportável. A saída seria o encontro com o Paraíso que Viena d’Áustria representaria.

Antônio Torres, ao trazer para a sua ficção problemas e conflitos individuais, sociais e

culturais, elabora representações de uma sociedade narcísica, massificadora, massificada e

violenta. Tais questões são incorporadas no jogo narrativo, que constrói situações de inconstância

de sentimentos e de percepção de uma realidade plena de infortúnios e de desavenças. Tudo se

reflete no discurso atropelado e construído como o fluir de um filme, com imagens independentes

que nem sempre se complementam.

Os intertextos estão relacionados com os valores, práticas, cultura, enfim, relações sociais

do narrador-personagem. Exemplo disso é a música, haja vista a presença da canção popular

brasileira, do jazz e, sobretudo, da música clássica em seu universo. Em algumas situações, as

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letras das canções são tomadas como elementos de ilustração do momento existencial. O gênero,

a melodia, o ritmo da canção costumam ser utilizados para traduzir o estado de espírito de

determinado instante. Ele diz: “[...] cada música tem o seu momento” (TORRES, 2002, p. 26). O

empréstimo de textos das canções, dos poemas, dos contos torna-se fundamental. Afinal de

contas, tais recortes são recriados e integram a feitura e a exposição dos discursos das imagens,

pensamentos, reflexões e até dos delírios do protagonista. Tais textos vêm a se apresentar como

recursos com que ele lê a si próprio e ao mundo. Ao brincar com as palavras desses textos, o

narrador também descontrói modelos de construções frasais preestabelecidos em termos de uma

sequência lógica.

Um táxi para Viena d’Áustria, objeto das discussões travadas nesta pesquisa, é um retrato

complexo da experiência humana, tema bastante explorado e representado não só, mas

principalmente, a partir da modernidade. Trata-se de um texto que, expondo a trajetória de um ser

em conflito, mostra-o como sujeito que vivencia e experiencia a dificuldade de nomeação não só

dos próprios sentimentos, mas também do mundo circundante. Ser à deriva, tal sujeito se dilui e

se reconstrói a cada instante. E vivencia e experiencia a desordem interior, a solidão, a violência

física e moral. A estrutura narrativa desordenada ilustraria a desintegração, a desorientação do ser

nesse universo multifacetado.

Um táxi para Viena d’Áustria – retrato de um mundo, metáfora de uma sociedade, reflexo

de uma condição. Tudo é exposto a questionamentos – linguagem, mundo, condutas, valores

humanos. Há uma nítida consciência de que este trabalho não esgota a leitura dos próprios temas

propostos. Há também a certeza de que outras tantas possibilidades de leitura e de análise se

apresentam. O romance demanda outras discussões, a exemplo do enfoque da possibilidade de

leitura do narrador como duplo ficcional do autor, ao lado de propostas de análises de

manifestações do insólito e da esquizofrenia contemporânea diante dos estágios de vivências e

experiências com a categoria do tempo.

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